Sunday, September 9, 2018





                                         O FEITIÇO DO MONTE CORGO

IV

Ao descer o Monte Cargo, viu uma pequena cabana a norte do local dos Quatro, para das pequenas rochas, debaixo do sol no sopé da colina. «Não te esqueças: o mundo é gagá.» - Pensou Padrinho por uns instantes, antes de começar a descer a ladeira do caminho. Ainda se encontrava a uns cem metros de distância, quando o uivo do corvo ou coisa parecida lhe chamou a atenção e, depois, quando tornou a olhar para o céu, o sol tinha desaparecido. Por uns momentos, a imagem dos Quatro bailou-lhe na mente, fazendo-lhe recuar no espaço e no tempo em que, num gabinete nos arredores da cidade, cheio de papeis em cima de móveis antigos e formas de calçado penduradas nos armários de madeira, o seu amigo Magricelas, industrial e fabricante de calçado, lhe falara no seu quinto ano da independência empresarial. «Sabes o que mais? Se me permites, devo dizer-te que a mais perigosa mentira é aquela que queremos impingir-nos a nós próprios», -dizia ele n seu melhor estilo. «Ü melhor que tens a fazer, é arrumares-te no monte a apanhar sol e viver ao mesmo tempo uma felicidade absoluta.» - Tal como ele, o seu amigo era um provinciano de raiz, descendente de uma farru1ia de sete costados cujo nome foi mencionado durante toda a sua infância.
«Fiz tudo que sempre quis fazer na minha vida. -disse ele, mais adiante
-Havia coisas em que fui realista. Por exemplo: ganhei ao comunismo,

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nomeadamente nos excessos das greves. Quando um homem mais precisava deles para acabar a obra, os filhos duma puta resolviam fazer intervalo para irem celebrar com os amigos à tasca, de acordo com aquilo a que chamavam «beber ao molho», como sinal de respeito pela nova «nação em construção». Um dia resolvi estragar-lhes a festa do Natal. Ao entrar de rompante no salão da fábrica onde eles estavam todos reunidos, conversando sob o calor dos copos, desde a aguardente ao vinho tinto da pipa do lavrador e, mascarado de Pai-Natal chinês, com um farto bigode e uma peruca à brasileira para ninguém me reconhecer, gritei bem alto: «Fujam que o vinho está envenenado! Fui eu que vos envenenei; eu sou o Mao; não vai haver subsídios para ninguém, seus mandriões! Ah,Ah,Ah!» - Magricelas, no gabinete, ao recordar a cena passada, franziu o sobrolho no seu rosto frio.
A ideia que às vezes parecia ser a incompatibilidade de alguns elementos dos Quatro para com ele soava baseada num sentido banal.
«A vida ás vezes silencia uma pessoa , - confessou ele a Padrinho, sentado numa cadeira de palha. -   «Quando uma pessoa cresce e chega ao top e depois desce, nada mais parece digno de que dizer: caíste? É como nós estarmos calados, acho eu, e vermos os outros sempre a falar. Mas pouco a pouco o tempo muda em nós aquilo que pretendemos não o ser, e não nos resta outra consolação que não seja continuar a viver.» - Ficaram a maior parte do tempo no gabinete a conversar. E fizeram prognósticos sobre os planos que tinham um do outro, muitas contas e mais contas e os números saiam-lhes da boca mas sempre irregulares.
O olhar de Magricelas encarou com algum fatalismo esta reviravolta na vida de Padrinho, o regresso às origens. Padrinho .chamava a boa Estrela a sua própria «coroa da glória», e sonhava um grande futuro, talvez chegar a presidente ou, em alternativa, a Ministro. Saíram os dois do gabinete e percorreram caminhos diferentes.

A estratégia de Escovado consistia em não meter a boca em seara alheia e, por isso, controlava estritamente as suas reacções. Era um homem alto e amplo, com um rosto atraente mas, como ele próprio costumava dizer, «nunca fui uma pessoa de grandes alaridos.» Era também franco na sua amizade para com Padrinho e revelou-lhe que tivera, digamos, outro tipo de contradições ao esquema que era utilizado na escola da

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formação. Passou a vida noutro sector empresarial e, como tal, não se podia queixar muito. Tranquilizara-o bastante e a conversa não passara daqui mesmo.
Compridão confessara a Padrinho que a sua sorte era trabalhar para uns judeus. «Em tempos, fiz um negócio e francamente desiludi-me.», - disse ele duas semanas antes de embarcar para Paris. -«Vendi um chicote das Caldas revestido em palhas que afirmava ser «um esboço genuíno» do famoso Retrato de Picasso, e ganhei um balúrdio de massas.» - Os ricos dos bons negócios seduziam-no; não vendia nada premeditado, nem se metia com negociantes baratos, voltando as costas à cangada de famintos que assolavam a região. «Tipos novos, é preciso cuidado com eles». Como os ciganos, pois para ele essa escumalha estava corrompida para todo o negócio. «Agora sou fariseu.» - Dizia ele orgulhosamente com o seu sotaque de europeu de França. «E chamam a isto fazer negócios! Pff ! Cambada de camelos.» - Apesar de todas as suas exigências, ele parecia satisfeito no seu papel de fariseu. Todavia, tornava-se óbvio que nunca perdera a consciência da fragilidade da encenação, mantendo as características de um verdadeiro provinciano.

«Ele era um acérrimo defensor dos direitos das suas origens.» - Disse Piasca, enquanto atacava uma travessa de mexilhões. «Quando resolveu estender o negócio para   Paris, indo trabalhar com os judeus, eu disse-lhe: Compridão, tem cuidado, que não é a China nem a Índia em que os gajos ainda trabalham à luz da vela. é Paris, a cidade da luz; mas ele queria saber disso, o que ele queria era ir ver o «Moulin Rouge» e apalpar o pescoço às francesas, porque, como tu sabes, o é pescoço, desculpa mas é verdade, eu sei. Tudo muito civilizado, uma linguagem naquele estilo liberal mas, no fundo, quando para a merda, é como cá!» - Calaram-se durante uns momentos .
Piasca, com mais de quarenta anos, levantou-se da cadeira e estendeu a mão ao amigo. «Gostei muito deste bocadinho.» -
Logo após a saída dele, Padrinho voltara ao Monte Corgo, ao local dos Quatro, junto das rochas e estava próximo da cabana. Doíam-lhe os pés, o que o obrigou a coxear desde que saíra do restaurante. «A minha paixão é o tijolo, o cimento e a água», -lembrava-se ainda das palavras de Piasca. -Com esses ingredientes, tenho o mundo na mão.»

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Padrinho vai para junto da cabana e senta-se no banco de pedra, passando o lenço pela testa suada. Depois de esticar as pernas ao comprido, deixa-se ficar uns minutos em reflexão, soando-lhe aos ouvidos as palavras de Magricelas que, anteriormente, tinha proferido: «Eu confesso, ·que duvidei de ti. Mas eras mais sábio do que nós julgávamos. Nós, os Quatro, nunca aceitamos um compromisso, e tu aceitaste.» Depois foi Compridão que concluiu: «Tu enriqueceste à tua custa. Mas trouxeste o Diabo contigo, agora liberta-te dele e entrega a sua alma a outro, antes que sejas derrotado pelas forças do Bem.» -
Padrinho abana a cabeça e deixa escapar um sorriso mórbido. Reflecte amargura e cinismo. «Essa é boa. Trouxe-vos o Diabo comigo, sim, foi uma coisa digna de mim.» -

Numa espelunca de copos, a uns quinze quilómetros da cidade, no Club do Azeite, ex-Leitaria da Corneta! Numa noite dos anos 80, em que o rectângulo da sala estava bem frequentado por uma clientela rasca, sente-se o barulho da música a envolver as pessoas como um trovão. O ritmo invade-os completamente mas, lentamente, essa sensação passa.
«O Azeite movimenta o leite.» - Disse Rosa Maria ao cliente, numa mesa cheia de copos e garrafas de champanhe . «Quando uma pessoa bebe sem conta e medida, fica com um gás que apetece fazer amor. E o que é que faz nós bebermos? É o calor da garganta , penso eu, é uma coisa que nos invade dentro, que uma pessoa não aguenta muito tempo sem beber.» - Ficaram algum tempo a conversar e a beber e a contar confidências um ao outro. Dizia ela que ·fazia amor três a seis vezes por dia. «Porra  Eu dou uma e fico logo como o coelho a espernear-me todo.» - Disse-lhe ele com a boca cheia de cerveja. «Comigo isso não sucederia.» - Corrigiu ela e ele acenou com a cabeça. «Calculo, és uma rapariga maravilhosa, eu sei, mas vou-te dizer honestamente, contigo acho que serei diferente.» - A estratégia dele estava lançada. Agora, a coitada da Rosa Maria iria ter de passar, se calhar, um mau bocado. Porém, tranquilizou-a bastante saber que as mulheres com quem ele, o cliente, esguio e esquelético com cara de fuinha, se relacionara, não eram do seu tipo mas sim «cavalas e façanhudas», que, para além disso, também eram descaradas e algo desmioladas; faziam tudo na corda bamba e gritavam que nem umas cabras para o excitar; faziam as maiores fitas

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que se possa imaginar, para ele aumentar o seu entusiasmo e tudo isso, essencialmente, por causa do livro de cheques. Ele era um cliente da velha guarda, gostava de pagar generosamente.
A partir daí, o cliente chamara-a a sua «coelha sem preço» e sonhava com ela todos os dias e a todas as horas, além de prever para ela um grande futuro, quem sabe como dona duma casa de Tia, ou uma leitaria de leite à mão. «A tua amiga é uma burra», -disse o cliente uma semana antes de bater a bota para o outro mundo, a uma colega dela na mesa recheada de copos. - Tinha um palacete forrado a vidro e espelhos de latão, que ele dizia ser uma dádiva de amor da sua parte, numerosas folhetas, incluindo estimulantes sexuais que davam ligeiras cócegas, e uma edição do Tarados e Chanfrados do autor.» «Rosa Maria tem mais desejos do que ideias.» - Ele pronunciou o nome com tal força que cuspiu para cima do copo. Apesar de todas essas contrariedades, ele parecia ainda amá-la. «Ele era um bem amado.» - Disse a amiga, enquanto aspirava da boca uma fumaça do cigarro.
O cliente de Rosa Maria tinha mais de sessenta anos, nunca lhe quiz dizer o seu nome e morreu na noite em que fez amor com ela na c.ama. Era um assunto de que ela evitava falar, embora sempre palradora para discutir qualquer assunto que fosse tabu. Porque que é que logo aquele velho havia de morrer em cima de mim? Agora que tinha tanta coisa para me oferecer, um palacete e um casaco de visão e um cadillacc pintado a carvão.
Rosa Maria, cuja primeira reacção pela morte do cliente fôra uma sensação de angústia e medo, desculpava-se diante das amigas que não tivera qualquer culpabilidade no cartório.
Depois da morte do cliente que, veio a saber-se, se chamava João Mávida, Rosa Maria abandonou a vida boémia e moinante de camareira e dedicou-se à venda de flores numa loja que alugara na ocasião.
«Uf!», -confessou ela a uma amiga. -«Já tinha saudades de voltar a ser uma senhora.» - Trazia cabelo russo com madeixas azuis num penteado de banana mal feito, usava um vestido ao xadrez por baixo dum avental de flores estampadas, abandonara as pinturas mas não deixara de fumar, e vendia flores e plantas de todo o género -naturais e artificiais
- Rosa Maria acabou por se alhear dos copos à noite e principiou a beber água, ficando por vezes amuada no seu quarto sem saber com quem falar. Por isso, comprou um periquito e mantinha acesa a lâmpada
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do passado. «Já te disse que hoje não me apetece beber.» ou então.
«Não me assobies alto que eu não sou nenhuma cadela!.» -
As amigas dela acharam estranho a mudança de Rosa Maria (conforme disseram no trabalho à noite) e a atitude dela no tocante à sua vida.
«Quem a ouve falar até fica pasmada com ela, nem parece a mesma», _ disse uma delas. -«Ainda bem», -respondeu outra das amigas, pondo-se de -É sinal que uma pessoa viciada em copos, se deixar de beber, deixa de ser viciada!...» - Instantes depois, voltaram as costas umas··às outras e dirigiram-se para o trabalho.                                                                                                               f
Um dos aspectos da sua educação tinha sido bem descuidado. Um domingo, pouco tempo depois da morte do seu cliente, ela foi comprar cigarros ao quiosque da esquina, quando o ardina dos jornais lhe anunciou:
«E o meu ultimo dia. tantos anos a vender jornais e agora é que os Picas haviam de me querer arruinar o negócio.» - Ela escutou com atenção a palavra p-i-c-a-s e teve a ilusão de ver uma junta de médicos com seringas nas mãos a darem várias injecções no ardina de jornais do domingo. «O que é isso de picas?» - Perguntou tolamente e a resposta saiu com rapidez: «São drogados», - acrescentou ele - Como não dormem de noite, aproveitam para me gamarem os jornais, fazem fogo para aquecer os pés, mortalhas para fumar, estrumeira para cagar e outras e tantas variadas coisas, tudo por causa do vício.» -
Rosa Maria afastou-se e voltou para o quarto. Depois de fumar uns três cigarros e beber outros tantos copos de vinho (tinha começado a beber recentemente), deitou-se em cima da cama e, instantes depois, adormeceu. Durante o sono, reparou que tinha ali, na sua cama, aquele indivíduo idoso meio labrego com quem ela mantivera uma relação marcante. Havia   algumas semanas que não entrava na arena sexual com tamanho apetite, e nunca antes desejou ter uma aventura tão veloz que a deixasse de rastos. O prolongado silêncio dele (que silêncio! até que soube que o seu nome constara da lista de defuntos do caso do cliente que morrera na sua cama) fora doloroso. A noticia da morte dele suscitara-lhe uma data de problemas, principalmente com a vizinhança, que teve que dar a volta ao quarteirão para se refugiar. Estava pasmada a olhar quem é que ele julgava ser, para entrar assim sem bater, sem um aviso, à porta dela, pensando encontrá-la de braços abertos, como retribuição dos copos que lhe pagara diariamente no trabalho ... em suma, sentira-se invadida. Mas depois pensava para si, repetindo tais ideias para as profundezas, afinal de contas, João Mávida tinha pago bem cara

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a sua presunção, se realmente disso se tratava. - Um morto na cama, merece o benefício da dúvida. -
E depois viu-o caído a seus pés, sem sentidos, no chão da cama, sem respirar, levando-a por segundos a perguntar como e que havia de fazer para se ver livre daquele entulho? - preferia esta expressão à palavra morto. O esforço de o levantar do chão, de atirar o braço dele por cima dos seus ombros e de o semi-carregar até à sala, custou-lhe porque ele era bem pesado. Doeram-lhe horrivelmente os pés para o erguer e ela sufocara até o deixar cair. O que ia fazer ela daquele trambolho escarrapachado em cima da sua cama? Meus Deus, e a vizinhança quando soubesse. Mas outros sentimentos vieram ao de cima a dominar. Tinha que fazer qualquer coisa; avisar a polícia por exemplo e fugir dali rapidamente: ao fim de algum tempo, resolveu meter pés ao caminho e desandou dali. O morto dormiu vinte e quatro horas, repartidas ali na cama para satisfazer as exigências policiais e outras tantas na morgue.
O seu sono era irrequieto; mexia-se muito na cama e escapara-lhe dos lábios uma ou mais palavras: Rosa Maria, o palacete é teu. Nos momentos de vigília parecia querer ressuscitar mas o sono era demasiado grande. Ele não conseguia imaginar sequer o que lhe tinha acontecido naquela fatídica noite do amor. Rosa Maria veio deitar a ultima mirada para o corpo, franziu os lábios e murmurou: «Coitado dele, parece que ainda está c "os copos.»  - Olhou uma  vez mais cheia de superstição.
«Envia-lhe uma mensagem ao ouvido dele.» - Recomendou a amiga, acompanhando-a até à porta .Entretanto, Rosa Maria voltou-se para trás e disse: «Eu depois mando-te notícias.» -
No sétimo dia ele acordou de repente, dobrando as pernas como um passarinho e arregalando os olhos até trás como o mocho e depois estendeu a mão para ela, murmurando em baixo tom: «Minha rosinha, vamos terminar o nosso trabalho que não foi acabado.» -
A subtileza do pedido deu tanta vontade de rir a Rosa Maria como o seu descaramento inesperado e, de novo, a invadiu uma sensação de acerto; disse sorrindo: «Está bem, que assim queres, que seja feita a tua vontade.»- Tirou o vestido largo, de pregas, e o casaco folgado - não gostava que as roupas revelassem a moldura do seu corpo - e começou assim a maratona sexual que deixou ambos felizes, exaustos, quando chegou ao fim.
Ele contou-lhe que lhe dera um enfarte que o mandou desta prós anjinhos. Mas voltara a viver.E ficara sempre com aquela espinha entalada

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na sua alma por não ter conseguido o que demais sagrado deixara à
superfície da terra: o seu amor. «Está bem, eu acredito», -disse ela._
«Mas não te canses tanto, antes que vás outra vez.» - Ainda dias antes ela vira um filme na televisão em que os mortos voltaram a nascer. A ideia disso acontecer parecia um milagre. Tinha ouvido tantas histórias de bebés que caíam de arranha céus e ficavam na mesma. quem diga: ao menino e ao borracho Deus põe a mão por baixo. Não será bem este o caso, mas havia uma cena no filme que deu na televisão em que o artista morre mil vezes e está sempre a nascer... Retomou o fio à sua meada. «Às vezes». -resolveu dizer -acontecem coisas milagrosas.»·_ A névoa tornou-se mais espessa à volta dela. Por isso, quando deu conta, tinha conseguido passar por debaixo do céu. Atravessou o rio quando a neblina se adensou para, instantes depois, se dissolver por completo, levando consigo o sonho. «Mas ele estava .» - Repetiu ela.


Aos dezanove anos, Vento da Ventania trabalhava pela última vez na taberna do Rato, depois que conhecera um homem com idade de ser seu pai e tê-la iludido a abandonar aquela vida de encharcar copos atrás de copos, para se dedicar à vida doméstica. O seu porte sempre fora muito escaldante e escondia mal as formas do seu corpo que deixavam transparecer o mistério das suas curvas de sex appeal. A cidade era a sua tentação e nela nadava como peixe na água. Nesse tempo, com dezanove anos, Vento da Ventania, tal como o seu nome .sugere, metia inveja a muitas raparigas do seu lugar pela sua fogosidade e persistência em levar avante os seus desejos. «Quando nova se conquista o horizonte, não é difícil uma pessoa escorregar e bater outra vez com o nariz no chão.» - Disse ela um dia.

A frívola Vento, a nigth-girl, envolta  em roupas de fioco 1 
não duvidava da sua ligeireza. A irmã mais velha, Angélica, ao visitá-la no seu recanto no Cu do Judas, recusou uma chávena de chá preto e bolachas que lhe era oferecida, tagarelando qualquer coisa que fez de conta que entrou por um ouvido e saiu pelo outro.
«Podes dispensar esse trabalho todo e troca-me isso por um copo de whisky velho, de preferência. » - Disse a irmã Angélica. Ela esforçava-se por dar uma de finesse com boa aparência de irmã mais nova.

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1 Roupa sem qualidade.

«Ouve-me, tu és uma miúda gira, com pinta, porque é que te deixas embalar no canto destes homens que querem é uma gaja para a cama de pernas abertas?» - Certa noite, Angélica resolveu levar a irmã Vento a uma festa nocturna cheia de traidorzinhos entesoados e Vento fugiu com um deles quando apanhou a irmã distraída. Uns dias depois, envergonhada do seu acto, de ter rejeitado a companhia que a irmã lhe tentara oferecer, mandou-a chamar ao Cu do Judas para revelar à irmã que não era virgem em buraco nenhum do seu corpo. Ao que a irmã mais velha lhe estendeu um tabefe na cara e lhe chamou os nomes mais ordinários: puta, galdéria, coiro.
«Eu nunca autorizava um filho da pulha qualquer a desflorar-me as partes mais sagradas do meu corpo, ouviste?» - Berrou, revelando a sua capacidade de agir em conformidade com a sua personalidade. «Eu sei o que valho e o que posso valer e, como sei também que o segredo morre no instante em que uma besta dessas nos põe as patas em cima, para logo a seguir nos classificar como umas mulheres de vida.
Nunca se tinham visto muito a partir desse momento, continuando Vento a reinar a sua euforia pelas casas nocturnas da cidade. -O vício veio a confirmar o seu dom para a arte-sexy. -enquanto Angélica desistia de usar roupa interior. Começara a pôr perfume em todo o sítio do seu corpo onde houvesse um buraco e abriu, pouco tempo depois, uma casa onde se praticavam abortos. Como a irmã somava e multiplicava os lucros semanais, empenhou-se a fazer três a quatro actos sexuais por semana; para além de meia dúzia de abortos praticados a raparigas que lhe batiam à porta, desesperadas por uma gravidez prematura.
Soube, mais tarde, da prisão da irmã por um jornal citadino afixado numa banca de jornais, FALSA PARTEIRA FAZIA ABORTOS COMO QUEM FAZ BOLINHOS DE BACALHAU. Nem na desgraça uma pessoa está livre destes comentários. Descobriu também que não conseguia chorar.
«Continuei a ir vê-la ao xadrez durante ene tempo», - disse ela a
Padrinho. - «Por causa disso, deixei de sair de casa.» - A prisão de Angélica foi envolta em propaganda jornalística e envolveu as mais diversas opiniões. Vento da Ventania ganhou o hábito de conquistar homens em idade madura e era avistada no Cu do Judas, em plena luz do luar, envolta apenas em camisas transparentes e quatro laços de seda atados nos seios e nos tornozelos. Costumava fazer amor sempre por

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cima do parceiro -uma forma segundo ela dizia - de não amachucar muito a sua maquinaria. «Tenho muita pena mas vou por cima, senão tu partes-me os meus cacos todos.» -
Ao fim de algum tempo, Vento começou a ver a vida a correr, evitou de passar amiúdas vezes pelas lojas para aumentar mais a sua rentabilidade monetária, ganhou capacidade de abrir uma loja mas, para já, escondeu todas as suas pretensões na cabeça. «O rio corre sempre para o mar.» - Disse ela ao meter as promissórias bancárias na carteira.
«Mas, no fim de contas, vou ser como ela.» - Os clientes e as oportunidades tinham começado a cantar-lhe aos ouvidos; e também ela aproveitava o mais que podia e sabia, segundo aquela máxima do pescador: o que vier à rede é peixe.
Vento era uma rapariga competente, temível em muitos aspectos: o protótipo da empregada de bar dos anos 80, cliente das super-lojas de roupa feminina M iss  and  Lady. Era a menina catita da sua zona.
Agora também ela aparecia pelas casas de alta costura da baixa, promovendo a sua própria linha de vestuário comum -marca V -voltada mais para amadores e empregadas da loja de que para gente fina, de modo a seguir o lema do povo: devagar se vai ao longe.
O sucesso batera-lhe à porta. «Há que saber agarrar a ocasião.» - como Angélica gostava de expressar aos amigos. Vou seguir os teus passos, irmã. Ser uma rapariga sedutora e atractiva num negócio dominado por homens de carteira recheada. Tudo isso significava dinheiro e, agora que ela tinha maior idade, estava disposta a ganhá-lo. A ideia de que era por natureza uma mulher dependente de homens maduros, a mais conservadora das mulheres, e de que as exigências profissionais assim a obrigavam foi, por assim dizer, arrebatada à sua imagem do passado.
A este propósito teve a primeira briga com o vendedor de alta costura Máximo Maximino e dissera-lhe, com a sua espontaneidade habitual:
«Acho que andas a fugir muito bem dos nossos passos quando sabemos que eles estão próximos de se encontrarem. Mas imagina se eles param em paralelo? Aposto que te viravas e desatavas a correr atrás deles.» - Mais tarde, depois de terem feito as pazes, ela meteu-se com ele, fazendo valer o seu novo estatuto de  PV -Pronto-a-Vestir.
Apesar da sua ambição para se implantar no meio do negócio e crescer na realidade dos tempos, Vento nunca deixou de sentir uma certa angústia ao virar duma esquina -por um certo legado do passado em que envolvia

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sua irmã. Este constante eriçar dos cabelos no pescoço fizera dela uma
negociante cautelosa, uma «calculadora de percentagens». como diria a
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malta das lojas e, à medida em que as contas iam crescendo iam
aumentando as cautelas. Mesmo longe da loja, essa sensação dava-lhe por vezes uma concentração nervosa; foi ganhando o ar calculista de uma máquina preparada para um ataque aos habilidosos em números.
Isso reforçava a sua tese de mulher-frívola; as pessoas mantinham a distãncia e ela concordava ou, pelo menos, assim o dizia. «Para além das minhas felicitações -garantia-lhe Máximo Maximino na exposição de roupa em Milão - isto mostra que você gosta de correr riscos, o que é uma prova bastante positiva.» - Estavam a trabalhar na nova colecção de Inverno. Entretanto, pensou Venta com um sorriso cansado para ele, que deslizava por trás do seu corpo. Agora tenho-te a ti. Não te posso censurar por teres aceitado a boleia.
Ele era como um robot para ela. Habituado a não ter sopeira em casa, deixava as roupas nos respectivos gavetões, as pontas  dos cigarros punha-as no quintal do vizinho, trazia um aspirador no casaco para apanhar as migalhas. Melhor: mijava no urinol e punha o chichi num saco de plástico, directamente para a fossa camarária; sempre alegre e alheado do que fazia, continuava a provar a si próprio que ele, o miúdo da bica, já não precisava de desarrumar o que arrumara. E não era por isto que Maximino a punha doida. Ele enchia um copo de vinho; enquanto ela bebia a garrafa de vinho sozinha, ele punha-se em cuecas deitado no chão a imitar um nadador numa piscina e batendo com as mãos no chão, cantarolava:

Foi o peixinho do mar, Que me ensinou a nadar...

Ela ria-se loucamente, enquanto bebia o ultimo trago. «Basta, estou farta de me rir com as tuas maluqueiras.» - Queixava-se. «Há mais vinho na garrafa?», - Ele agarrava-se ao dela, murmurando baixo.
«Apetece-me peidar», -dito com o ar mais inocente do mundo, depois dela ter soltado nova gargalhada. «E qual é o teu problema?», - Ele respondeu muito mansinho. «Já fizemos isso noutro tempo. Eu dei um peido e tu deste-me a peida.» - Quase automaticamente, as gargalhadas soaram num ritmo infernal.

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Ele era culto e sensual para com as pessoas que comunicavam para casa, mesmo educado sem meter o bedelho em assuntos que não lhe diziam respeito. Tal como as estrelas da televisão o eram nos programas educativos. Depois da mãe de Vento da Ventania ter sido alvo duma cortesia fora do vulgar, disse à filha quando chegou ao telefone: «Parabéns. Tens um namorado superfino.» -
«Superfino, mãe?» - Ela não discutiu com a mãe, levando em linha de conta o facto de Maximino ser uma importação italiana, «alimentado a sparguetti e macarrão». Muito embora ele tivesse dado meia volta ao mundo na moda das novidades, ela continuava a viver com ele. Ninguém consegue prever longos prazos; mesmo a médio prazo, parecia nebuloso. Por enquanto, concentrava-se na tarefa de fazer crescer o negócio e, ao mesmo tempo, conhecer mais aquele homem, que presumira, desde o primeiro dia que o conhecera, ser o grande amor da sua vida.
Havia na vida muitos momentos difíceis. Ela não sabia o que ele sabia, mas ele também não sabia o que ela sabia. Tentou, uma vez contar o exemplo do Louro, o jogador de casino condenado pelo vício, que acabara por saber que a mulher tinha a morada aberta e recebera três salpicões para consolar a desgraçada e, num jogo de cartas, jogou os salpicões e ficou sem eles, mas Máximino fitou-a ingenuamente, dando­ lhe a perceber que não tinha entendido patavina nenhuma.
E surpreendeu-a ao perguntar-lhe sem mais nem menos: «E porque é que ele não comeu antes os salpicões?» - Mas ela não quis responder, preferiu antes murmurar para si mesmo.
«Ó meu querido, tu é que precisavas de levar com os salpicões! Só não sei é o local exacto .. -
Onde é que foste aprender essa história, começara ele a perguntar, engasgando-se porque não achou graça ao tom maternal que sentiu na sua voz; mas ela respondeu-lhe sem vedetismo. Da primeira vez que ouvira falar do Louro, explicou, entendera tudo ao contrário e pusera-se a pensar que o vicio é um mal terrível. «Vício, Viciados», nessa altura eu estava longe de saber o que era isso, ouvia até falar em demónios, bruxarias e outras coisas mais disparatadas que o mundo cria. Por isso comprei um livro: «Cague nos vícios». Para uma rapariga simples como eu, nascida em casa de gente pobre onde existiam -livros do penhor ou livros dos calotes -e, tinha de o admitir, que havia famílias em que não existia livro nenhum, a não ser, a lista dos telefones.

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O que ele tinha de pior, concluiu ela provisoriamente, era o seu fairplay para com as outras raparigas, chamando a atenção delas para  o que quer que fosse.
«Vai, vai ver se chove.» - Gritava ela por mais de uma vez, quando o
apanhava à sua beira diante das amigas.
E o que tinha ele de mais sedutor era a forma como sabia instintivamente o que ela queria, a maneira e o tempo certo que dispunha a tudo isso. Conseguia ser a alma gémea do seu coração. Daí resultava que o sexo entre os dois fosse como um choque eléctrico. «Pumba! está.» - Aquele primeiro raio através do beijo inicial era o tónico para o começo da marmelada. Às vezes ela sentia o cabelo eriçado, em pé.
«Faz-me lembrar a varinha mágica que tenho na cozinha.» - Disse ela a Máximino, e os dois desataram a rir.
«Sou eu o amor da tua vida?« - Perguntou ele muito depressa.
«Claro que sim, meu bambino de oiro.» - Respondeu ela tão depressa como ele perguntara.

O boletim meteorológico dava sinais de chuva intensa e húmida e o céu apresentava uma lua em quarto minguante em estado de uma obscuridade quase total, e a noite dera lugar a uma tenebrosa trovoada. As árvores abanavam ao sabor do vento que fustigava cada vez mais, ouvindo-se o ruído de sons agudos que pairavam pela rua. A passo lento, segue Padrinho, chapéu enterrado na cabeça, bolsa de cabedal dos documentos fortemente atada à mão direita, enquanto a outra mão se enfiava no bolso da gabardina escura. No silêncio da noite, ele baniu do pensamento todo o remorso pelo período em que duvidara de si mesmo, substituindo-o por uma ideia nova: devolver a si próprio a imagem do passado. Sentiu que a sua o abandonava e encolheu os ombros, numa expectativa de aguardar de momento o que o futuro lhe reservava - embora isso também estivesse para breve.
Envolto pelas ruas da cidade que se enroscavam ao seu redor, contorceu-se num esgar de frio e olhou para o horizonte. O Porto mostrava-se uma cidade airosa, revelando a sua verdadeira raça de natureza pura, a sua beleza arquitectónica de cidade que tinha ganho a noção de si própria e, por conseguinte, se rebolava num presente auspicioso, diferente, de borgas e paródias, sem nunca ter rejeitado o

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passado, olhando a escuridão de um futuro promissor. Padrinho vagueou nas ruas nessa noite seguindo a luz e as trevas da madrugada. Lembrava que muito antes da chuva cair, um certo número de casos que o haviam abalado lhe vieram à memória trazendo alguns nomes que haviam sido expulsos do seu espírito por terem falhado na hora do compromisso e, em consequência disso, haviam-se deixado, como no filme O combóio apitou 3 vezes em que o artista, o xerife, fica a falar sozinho à espera dos meliantes que lhe queriam fazer «a folha». Ó falsas criaturas! Que mal eu vos fiz! - Quando o Deus para uns é cego, não há força da razão que resista a tal encomenda. Padrinho estivera à beira do abismo na derradeira queda. Como a Boa-Estrela havia sido benévola para com ele! - Via que a escolha era simples: o amor ao próximo e em Deus. Uma possibilidade que não podia deitar a perder, antes que fosse tarde de mais.
Tirou do bolso da gabardina um pequeno livro de apontamentos que ali se encontrava desde que saíra de sua casa, havia mais de três horas e meia: o livro com os nomes dos meliantes que lhe queriam fazer a tal dita «folha», os dignos companheiros, amigos de longa data, os seus nomes estavam escritos à mão, em tinta preta, e deitou-o a uma valeta...
Numa esquina, na zona da Rua Chã, outrora conhecida pela sua população de artistas de várias artes, vagabundos e homens à procura de prostitutas, e agora ocupada por profissionais de comércio e pequenos empresários de negócios, Padrinho teve ocasião de encontrar uma alma perdida à procura de alguém. Era ainda jovem, do sexo feminino, alta e duma beleza exótica, com um nariz tipo chafariz e cabelo preto e riscas brancas, penteado com azeite e tinha dentes pintados a yárias cores. A jovem estava mesmo à beirinha do passeio, encostada a um barão de ferro, de costas voltadas para a estação ferroviária, levemente inclinada para a frente e segurando, na mão esquerda, um objecto rectangular de estimação. O seu comportamento chamava a atenção: primeiro fitava com olhar sombrio o objecto que tinha na mão e depois olhava à sua volta e rodava constantemente a cabeça dum lado para o outro, pondo os transeuntes demasiado concentrados. Padrinho, numa primeira passagem, olhou para o objecto que a jovem agarrava: era um cartaz escrito a letras miudinhas. À segunda passagem, pôs os óculos e leu com atenção o cartaz: Por favor, uma esmolinha à ceguinha. A seguir, ofereceu-lhe a sua ajuda. A jovem passou o cartaz para a outra mão e voltou a repetir o mesmo refrão. «Este dinheiro -disse ele - é teu e não é muito,

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1mas é de boa vontade.»  -  E retomou  o caminho, olhando a pequena multidão silenciosa. Ali, na esquina de uma rua movimentada, andavam umas a sondar em busca dum corpo à deriva.
Mais adiante, quase ao fundo da rua, Padrinho viu claro uma prostituta
 A ser assediada por um esgazeado que, sem mais nem menos, agarrou o rosto dela com ambas as mãos e deu-lhe um beijo firmemente na boca. o entanto, ela reagiu de maneira surpreendente ao ser assim agarrada bruscamente, exclamando: «Vai-te foder», - berrou com toda a força ­ posso estar desesperada, meu, mas ainda não estou esgazeada a esse ponto.» - Ao que o freguês, dando mostras de mau perdedor, deu-lhe um valente soco ·no nariz que a pôs a sangrar. A seguir, pirou-se pela rua abaixo e perdeu-se na escuridão.
Quando Padrinho foi atrás dele, o freguês tinha cavado não se sabe para onde mas, em vez disso, encontrou uma velha amiga dos tempos da desgraça que veio flutuar para a sua beira, com uns copitos a mais no estômago.
«Olá! A uma hora destas por aqui -disse ela - se for para curtir o fado do Pescador!» -
Padrinho sorriu. «Olha, que é que queres que te faça? - acrescentou
-Não tenho sono, tenho medo da solidão e, como não consigo dormir, prefiro passear pela noite.» ·-
As palavras dela continuavam a ser irónicas.
«Está-me a contar essa fita a mim? -olhou maliciosa Esse filme vai
no Batalha!.» - Ele próprio também foi obrigado a rir.
Tal como ela, Padrinho pôs-se na galhofa a lembrar cenas do passado num jogo de perguntas e respostas para fazer passar o tempo.
«Eram todos filhos de Adão», -contava ela uma cena antiga. - «Mas quando se deitaram na cama, os cabrões arrancaram logo as suas roupas para mostrar as suas vergonhas .» - Ouviram-se as suas gargalhadas.
E Padrinho, logo a seguir, contou a dele:
«Uma noite, às quatro da manhã, completamente embriagado, tinha bebido o whisky todo da garrafa, tirara a escova de dentes epreparava-me para ir à casa de banho, quando se apresentou, no meu apartamento, uma jovem sem ser anunciada e não dava mostras de querer sair dali. Eu, educadamente , fui à casa de banho lavar os dentes e, ao voltar, encontrei-a de no meio do tapete da sala, completamente nua, exibindo um corpo de tarar. Quando eu vi aquele espectáculo ali diante de mim, gritei: Toma-me! Sou todo teu. Faz o que quizeres!» -

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