Friday, August 15, 2014



CONTOS DE RATAZANA
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O Cliente e a lésbica…


Rtu!

O Cliente cuspiu no chão; ao mesmo tempo que se ergueu de um salto, como que impulsionado por uma mola; desejou amar ardentemente a Pina-Colada – como já anteriormente – muitas vezes repetira esse desejo. E, naquele dia, começou a sacudir o pó das mangas do casado e deu um jeito ao seu decoro olhando para o espelho: «Caraças, – gritou ele, andando para trás e para a frente – tenho que matar este desejo.» A seguir, tomou o caminho e começou a dar passos pelo passeio tipo militar – um, dois, um, dois, – entoando uma quadra chalada dum poema de Ratazana «Quando a sorte não penetra, três na peida, etc.» - Aproveitamos para referir que era um hábito, de alguns clientes, do Bar do Traidor de Ratazana, entoar os seus poemas malucos… «Vamos embora, meu velho, adianta o passo», – gritou o Cliente, fervendo com a ideia. – «Vamos tomar de assalto esse plano.» – Voltando costas às ruas, lembrando as boas recordações, apaixonado como sempre fora pelas boas novidades, ele teria dado ali (caso trouxesse consigo tal objecto) um tiro para o ar, tomando conta da Pina-Colada de assalto. Ao chegar à porta, inclinou-se para a frente, murmurando: «Já chegamos, agora porta-te bem.» – Pina-Colada era uma mulher lésbica; tinha à volta dos trinta e picos anos e olhava de uma forma sensual. E todo o seu corpo revestido de uma fina pele, lisa como o vidro, um sonho das Caraíbas…

Quando ele se aproximou, invadiu-o um calor tórrido de estalar, e sentiu o sangue a correr vertiginosamente pelas veias e a sua pele ferver como caldos de galinha. Estava cheio de palavras para lhe dizer tudo mas um «Olá» bastou para ele ficar ali como um morcão na expectativa a olhar para ela, como no filme A Vida é Bela, quando o Roberto Begnini choca com a sua Princesa e caem ambos junto ao celeiro e ele afasta-lhe as palhas do rosto, em vez de apalpar os marmeleiros, mas não, aqui não foi assim, porque, a acontecer isso, ele poderia levar uma lambada nas ventas e então sim, o caldo ficaria entornado… Tinha os olhos fitos na prateleira das garrafas e reparou então, através dos espelhos, que meia dúzia de lesmas estavam sentados à mesa a beber umas bebidas quaisquer. Às tantas, piscou os olhos com tanta força que ela finalmente sorriu, dando origem à ideia deles se sentarem a conversar. Escolheram um sítio recatado a um canto do bar. «O que é que julgas que eu vim cá ver?» Disse o Cliente de olhar sereno, enquanto, ela lhe pegou nas mãos e lhe fez uma meiguice. Começou a tremer; a vibração era tão intensa que ele receou que ela se apercebesse e puxou dum cigarro para descontrair. «Eu sei, eu sei.» – Respondeu Pina-Colada. E depois não disse mais nada. Estavam ambos no vazio do silêncio e, se ele quisesse apalpá-la, teria que inventar uma cena, só que não valia a pena preocupar-se agora com tais assuntos, pois ali, diante dele, surgiu o inevitável; a figura alta e desengonçada da Preta, com laço vermelho ao pescoço e um chapéu de coco na mão, calçando umas botas à cowboy verde-azeitona. «Isso é propriedade privada.» – Disse uma voz trémula e excitada. A seguir, a Preta inclinou-se para Pina-Colada e beijou-lhe os lábios, enquanto o Cliente se levantou silenciosamente e deixou-a a sós. E, à roda da cabeça do Cliente, desvanecem-se as ideias e perde-se na rua,

Quando mais tarde, Pina-Colada encontrou a figura bizarra do Cliente, deu-lhe uma explicação anda lá, esquece isso. Ao vê-lo através do vidro do carro, com os olhos enevoados de sono, sentiu pular o coração, tão forte eram as pancadas que receou que ele fosse parar; e foi naquela forma complacente que ela julgou esquecer o assunto como se nunca tivesse existido e desceu a ladeira do caminho acompanhando-o, de modo a nanar o problema. Normalmente ela era intransigente na defesa dos seus vícios, e quando os seus amigos, aos fins-de-semana a assediavam com propostas maliciosas, argumentava contra eles como uma fera danada, como ela costumava referir, ao explicar: – aqui é o meu paraíso, onde está o meu jardim, entendem? – E se eles respondiam malcriadamente – qualparaísoqualcaralhosuafressureira – ela ia ao balcão buscar um copo de uísque com gelo até cima, dirigia-se para a mesa do canto, sentava-se com uma revista na mão; tudo isto com um sorriso encantador nos lábios: Os cavalheiros não se importam que eu saboreie a minha bebida, pois não?... Oh!, ela era uma figura única, famosa na noite, rainha dos tablados onde os homens eram artistas e nenhum deles se pode gabar de ter conseguido pôr-lhe as patas em cima, não porque eles não quisessem, disse ela, mas porque foi ela sem apelo nem agravo que lhes deu de sopa. Para o Cliente não houve patas nem sopas e muito menos negas. Para ele no seu contexto, a amizade perdura para sempre quer haja baldas ou não. No seu padrão, a amizade é intocável e está acima dos desejos da pessoa. Depois dele molhar os lábios com a bebida que tinha na mão, tapou o nariz enquanto cheirava qualquer coisa à distância. Foi quando a Preta (que ainda continuava de chapéu de coco na tola), se aproximou. Depois, com um aceno de timidez, saudou-o com um ar altivo e murmurou um convite; – é melhor sentar-se aqui ao pé de nós para não apanhar frio. – Tornou a afastar-se a passo lento, deixando-o grato por lhe ter avermelhado o rosto, com aquela frase – um bom motivo para sorrir. Quando era uma miúda, Pina-Colada possuíra um rosto de uma inocente, verdadeiramente excepcional, um rosto que parecia de anjo. A sua pele suave e macia era como a de uma mão de Princesa. As suas feições gaiatas ajudaram-na bastante nas suas relações com as mulheres e fora, por assim dizer, um dos primeiros motivos apresentados pela sua primeira namorada, Susana Carrapito, para se ter apaixonado por ela. «Tens um rosto tão redondinho, pareces um queijo», – maravilhava-se ela, apertando-lhe o queixo entre as mãos. – «Um queijo amanteigado da serra.» Ela rendeu-se aos ditos. – «Não digas isso», – respondeu. – «Senão babo-me já toda.» - «Aqui dentro?», – perguntou a outra. – «Com toda esta gente?» Ela afastou-se para dentro. A partir daí atormentou-a durante algum tempo a ideia da sua atitude perante as mulheres; qual a medida a tomar para combater essa sensação e apurar esse desejo que era agora a sua segunda natureza. Teve, no entanto, a sua gravidade o facto de Pina-Colada, ao acordar de um longo sonho maléfico, transformado por várias cenas nas quais se destacavam imagens de Susana Carrapito na série de uma sereia cantando em cima de uma gigante baleia, não podendo pôr os pés em terra firme; chamando-a, chamando-a; – mas, quando foi ter com Susana, ela foi engolida pela baleia e o seu chamamento passou a ser um tributo de culpa e tormento… e quando Pina-Colada acordou e olhou para o espelho e descobriu a imagem de Susana a fitá-la com o seu rosto sedutor, atirou com o espelho contra a janela, partindo-o aos bocados pelo chão, dando sinais de indícios de que sentia uma enorme e forte dor de cabeça. Quando, mais tarde, pegou noutro espelho olhando para o seu rosto alterado, vendo um par de inchaços à volta dos olhos, horrivelmente feia, nem julgou ser quem era. Era já noite. Ela não sabia as horas. Além de não ter relógio consigo, no quarto não havia relógio. Vestiu-se à pressa e desapareceu pela rua a correr, em direcção ao bar. Volta de novo ao seu local de trabalho, como uma tresloucada à procura da sua amada. Visita a sala toda e descobre que a amante, sentindo-se sozinha, meteu-se na marmelada com outra rameira qualquer. Fica durante algum tempo imóvel, no escuro dum recanto da sala, sente-se traída e luta contra os seus próprios sentimentos. Depois, tira a fotografia da amante da carteira e rasga-a aos bocadinhos para o chão; e parte sem dar a conhecer a sua presença. Pina-Colada volta ao quarto e deita-se com a roupa vestida em cima da cama a chorar. «Putas malditas.» – Gritou para a roupa da cama que lhe amortecia a voz, enquanto esmurrava as fronhas cheias de folhos, compradas no Armazém Samberi da rua de Antero de Quental, com tanta força que o tecido velho de dois contos se desfez em trapos. «Mas que raiva. Que ordinarice, foda-se a puta, que pega.» Voltou a sair e foi para o mundo… O mundo da noite.

Passados dois dias, o Cliente voltou ao bar de Pina-Colada, que lhe havia dado toda a sua amizade. A um canto da sala, lá mesmo nos fundos, Pina-Colada quando o viu, serviu-lhe uma bebida e sentou-se ao seu lado, oferecendo-lhe um pouco de companhia. «Já em tempos falamos disto», – disse ela sem vontade de bater naquela tecla – «Uma mulher nesta vida não pode fazer planos, sem correr o risco de ir parar ao malagueiro - Ele respondeu-lhe: «Estou a ver que para ti não existe o amanhã nem o futuro.» – E ela confessou: queria dizer para ele deixar de exprimir certas coisas mas não era capaz. Não só por tirar-lhe a esperança vã, como sentir por ele uma paixão bacoca, conforme ela preferia dizer. «Não pensas ter um filho?», – disse o Cliente pondo o dedo na ferida. A princípio Pina-Colada protestou: – Mas qual é a tua? – mas depois, acalmou-se, bebendo um pouco de uísque e limpando a boca ao guardanapo de papel que trazia entre as mãos. «Quero ter um filho, mas só meu, e da Preta!...» - «Tu deves é estar doida dessa cabeça.» – Insinuou o Cliente. Havia quanto tempo que não falava assim. E desta vez, quem sabe, se não seria a última…Estava a ficar quente e escaldante o ambiente dentro do bar! Uísque de 18 anos só com gelo! Puríssimo! O Cliente, olhando à sua volta, confrontou-se com a opinião de que o jogo das mulheres da noite tinha a sua origem na carteira. «Quando o cliente não puxa das lecas à vista grossa», – explicou ao parceiro do lado – «quando o cacau não reluz como a luz dos candeeiros, é evidente que a mulher deixa-se adormecer e não vê nada à sua frente.» - O Cliente enumerou diversas vantagens sobre o sistema ao parceiro do lado que o ouviu atentamente. Numa instituição de vício e prazer, onde os modelos de comportamentos variam entre a casta de clientes, é deveras importante: música popular ou empatada de boa qualidade, caras giras e atraentes (de preferência, nacionais). Mais higiene e limpeza na sala e nas retretes, jarros de flores berrantes (cor de pêssego com lilás) a adornar os cantos. Um novo sistema sem pagamento de alternes e contas vultuosas, ar condicionado e ventoinhas de tecto em todas as divisões, separadores para os fumadores e não fumadores. Maior atracção do mercado, melhores bailarinas e uso de água destilada para os seus pés, além do papel, nos quartos de banho e bolas de naftalina para mal cheirosos. Desvantagens: chatos, lêndeas, baratas, barulho, chulos, preços em demasia. O parceiro do lado estava de boca aberta. Abrindo os braços, gritou: «É assim mesmo. Diz-me lá ó parceiro, onde mora uma casa dessas?» - Mas três coisas aconteceram, muito depressa. A primeira foi que pararam de conversar. A segunda foi que, assim que a garrafa acabou, eles pararam de beber. E a terceira foi que o Cliente abriu os olhos e olhou para o relógio; os ponteiros passavam do limite e ele achou que era tarde demais. «Ó Meu Deus, a que horas é que me vou deitar!» - Ele, mal chegou a casa, meteu-se na cama; sentia-se para lá dos confins do sono, mergulhado de cabeça enrolada entre o travesseiro e os lençóis com a miragem da cena do bar. Para lá do acontecimento tenebroso, passara horas de bom convívio. «É um vício lixado; os bebedores atraem os bebedores», – disse o seu subconsciente. – «Nunca mais ganho juízo.» – Deu uma volta para o outro lado da cama. Por fim, lá deixou escapar o último suspiro da noite.