Friday, June 27, 2014

CONTOS DE RATAZANA __________________ BOCHECHAS E O SEU JULINHO Agarrando bem a sua bolsa, lá estava Bochechas sentada ao lados seus amigos. À frente, Serrador dizia: «Digam lá o que disserem, ela está aqui e não me deixa mentir: tem tido muito juízo na cabeça e põe todo o dinheirinho que ganha no banco.» - Ela compartilha da mesma opinião, enquanto Vassouras entra no conflito e diz: «Se ela tem cinco milhões de escudos guardados? ─ ele respirou fundo ─ «Acho muita corda para a viola!...» - E eu espero que eles parem de falar para intervir: «A ganância às vezes é um sintoma do caos que está para suceder. Não acham que é muito dinheiro para uma rapariga só?» - Serrador volta a confirmar: «Vós estais redondamente equivocados. Ainda ontem fui ao banco com a moça e vi com os meus próprios olhos o seu extracto bancário. De certeza, ela não se importa que vos diga, mas não são cinco milhões mas antes sete milhões de escudos.» - Ficamos a olhar uns para os outros. «É absurdo ─ comenta Vassouras ─ mas tudo é possível: como diz o ditado; grão a grão a galinha enche o papo.» - Bochechas soltou uma gargalhada. E logo a seguir, responde: «Não se admirem. ─ Olhou para todos ─ sou uma moça sem vícios; não fumo, não bebo fora do trabalho, não jogo e, essencialmente, não tenho chulo.» - A conversa estava interessante. E, deste modo, por mais que o optimismo de Bochechas fosse convicto, não estava preparado para o que depois viria a acontecer; jogava no amealha-debaixo-da-roupa e ignorava o imprevisto da ocasião. Atirei-lhe o meu remate final: «Mas acautela-te, porque já vi por aí a farejar uns pequenos tubarões. Se um dia aparecer por cá um daqueles ferozes, leva-te daqui, tão certo como nós os quatro multiplicados por dois sermos oito…» - … As bocas às vezes, tornam-se realidade e são tão úteis como os factos. De acordo com a boca o sujeito depois de olhar à sua volta foi sentar-se numa cadeira. Notava-se nas suas feições um rosto de puto. Olhou com alguma timidez para o ambiente até mandar chamar Bochechas que se sentou à sua frente. O diálogo entre eles foi curto, sendo acompanhado por um champanhe bruto e bem fresco. Também houve direito a brinde, embora não fosse bem especificado o porquê. Ele apresentou-se: «Chamo-me Julinho.» - A pele da cara dele era amarelada, sinal que não ia para a praia; tinha os dentes da cor do tabaco. Nos meus ouvidos ressoara o seu sotaque de pacóvio. Era uma vez um encontro amoroso, cujos versos não rimavam, mas mesmo assim, eram bonitos de se ouvir pelo menos de noite. Os próximos encontros entre eles sucederam em catadupa. Foi chegada a altura dele lhe apresentar uma proposta aliciante ─ ser empresário de nome individual. Ela quis saber o significado daquela palavra. «Mas que negócio é esse?» - Respondeu-lhe ao ouvido. «Engate por linha.» - Gerou-se uma confusão na sua cabeça e deixou-se ficar nas estrelinhas do seu pensamento. Mais tarde, quando tomou uma atitude fê-la de cabeça bem erguida. Partiu para a grande aventura da sua vida… Todos os locais têm o seu significado. Os labirintos do caminho têm sempre razão. Este chamava-se ─ A rampa do cavalinho. Um sítio ermo e descampado, ao cimo de uma encosta. O primeiro amigo a visitá-lo foi Vassouras. «Não acreditas nas voltas que já dei para descobrir este miserável buraco.» - Ele esfregou o nariz. «Ainda não acabou! ─ disse Bochechas. ─ Vais ter de me acompanhar.» - Levou-o por um corredor estreito e escuro, até chegar junto de uma lareira, onde algumas raparigas de aspecto chunga se aqueciam ao fogo. Disse Bochechas numa voz abafada: «Enquanto vou buscar uma bebida para ti, deixa-te ficar a fazer companhia às meninas.» - Ele puxou-lhe de imediato por um braço e encostou-a à parede. «Estás louca ou quê? Não fico um segundo junto destes monstros, piro-me já a léguas daqui para fora.» - Retrocederam juntos para o corredor. «Já as viste bem? São obscenas e práticas ─ disse ela, sorrindo. ─ Nem sabes o que perdes.» - Serviu-lhe um copo de cerveja. Mal acabou de beber, Vassouras despediu-se à lavrador e desceu, suando as estopinhas, pela rampa do cavalinho feito num cavalão… Estamos a 7 de Abril do ano de 1992. O projecto de Julinho avançou num traçado rocambolesco mas atractivo. Apareceu acompanhado de um agente de imobiliária e propôs a Bochechas o negócio de comprar uma mansão. Desde que entrara para esta vida, sempre se imaginara na pele de Madame Vovó, uma personagem idealizada na sua mente, quando se formou na arte do engate. O negócio acabou por se realizar em cima de uma mesa, depois dela ter assinado os papeis e passado os cheques para a transacção comercial. «Esta casa vai dar-nos muito dinheiro em pouco tempo ─ diz ele ao ouvido dela. ─ Vamos ser ricos.» - Passou-lhe o braço por cima dos ombros. «Espero bem que sim. ─ Ela fechou os olhos. ─ Agora que fui às lonas.» - Abraçaram-se fervorosamente. A frequência no local à noite tornava-se devastadora por causas das quezílias entre os vários grupos de clientela, havendo quem apelidasse ─ Impróprio para consumo ─ E sempre que os grupos se pegavam à troilada, era o raio do caneco. É que nem sempre Julinho, resolvia a contenda à força de cabeçada… Subitamente, ouvem-se os cânticos dos pielas a fazer um chiqueiro enorme. Toda a gente corre para o mesmo lado, desafiando os regulamentos, do bar. Às tantas, voam as mesas e bancos pelo ar e ouvem-se os estilhaços de vidros a cair no chão. O pânico generaliza-se. Julinho diz a Bochechas: «Vou já pôr aqueles cabrões em sentido… se der para o torto chama a ramona.» - Chegou juntos dos prevaricadores. «O que é que se passa aqui?» - A maioria deles estavam embriagados. Um deles disse: «Não se passa nada, apenas dei uma galheta naquela estúpida por me chamar atrofiado dos cornos.» - Ele puxou o indivíduo pelos colarinhos. «Mas quem é que te disse que podes bater em alguém?» - O outro nem teve tempo de respirar. Logo a seguir, ele atirou-lhe com semelhante marrada que o pôs de cu para o ar a gemer de dores. O sangue jorrou pelo chão. O tipo deitou as mãos à volta da cara toda ensanguentada. «O cabrão fez-me um lanho na cabeça.» - Segue-se uma luta campal, parecia mesmo as rixas do far-west. Todos batiam em todos e já ninguém se entendia. No momento em que uma voz roufenha grita lá do fundo. «Lixai o proxeneta do azeite.» - A confusão aumentou. Ouvem-se gritos, choros e garrafas a voar pelos ares. Bochechas sobe para cima dum banco de madeira e põem-se aos berros. «Fujam que vem aí a guarda.» - Aumentara as confusões. As pessoas saem a correr e atropelam-se umas às outras. A rampa tornou-se num inferno. Ouvem-se os cães a latir, não se sabe se é de susto ou de medo. O disparo de uma arma seguido de um gemido paralisa toda a gente. Fez-se silencio à volta. Não há ruídos de nada. Até que chega o som do carro da patrulha. Os clientes descem a passo de galgo pelos caminhos adiante sem olhar uma vez sequer para trás. O chefe da patrulha apeia-se do carro e inspecciona o local. Sente-se no ar um cheiro a trampa. O chefe mistura-se com o pessoal da casa, é um homem importante, apesar de tudo, as pontas do seu bigode retorcido dão-lhe um ar autoritário. «Quem foi o causador (ou causadores) deste imbróglio?» - A resposta não foi lá muito convincente. O estabelecimento foi encerrado e o negócio acabou por ruir pela rampa abaixo. A guarda encetou outro tipo de investigação e fez uma visita a casa de Bochechas que prontamente abriu a porta. «O senhor guarda está enganado. O meu homem não fugiu, simplesmente foi tratar de negócios.» - O guarda voltou a falar. «Vai ter que nos acompanhar ao posto policial.» - Vestiu-se apressadamente e seguiu no carro da guarda. Ao chegar ao posto, sofreu um grande abalo quando soube que o negócio da mansão não passava sequer de um logro. Levou as mãos à cabeça. Mostraram-lhe os papeis, tudo não tinha passado duma fajardice tramada pelos dois homens. Quantos sonhos terão sido sonhados durante aquele tempo? Terá sido nesse momento ─ sim, porque não? ─ que Bochechas pensou pela primeira vez que fora usada tão infantilmente. Foi nesse momento que olhou para uma tabuleta em cima da cabeça do guarda e ficou boquiaberta ao ler o escrito: ─ Se acreditares em ti és um vencedor ─ Uma coisa é certa: durante aquela noite, viu-se de súbito prisioneira dentro dos grandes círculos metálicos da nostalgia e acordou com eles a esmagarem-lhe o peito com interrogações. Ate que, finalmente, às três da madrugada do dia 4 de Novembro, foi arrancada por um pesadelo que a atirou para cima do mocho do posto da guarda. Com violenta e nostálgica fúria, acordou e olhou com espanto quando viu entrar Julinho algemado a umas correntes, diante dói seu nariz. Durante o interrogatório, Bochechas passou-se totalmente ao escutar o juiz – inquiridor, quando apresentou o processo. Ironicamente, disse, credo senhor, nem o famoso cadastro de Jesse James seria tão volumoso…

Sunday, June 8, 2014

CONTOS DE RATAZANA (7) __________________ Durante a manhã, quase sempre ia tratar de fazer as compras para o bar. Depois das nove horas,era acordado pelo velho despertador que nunca falhava o seu toque, depois do pequeno almoço, leite e café, com um pão torrado ou tostas, conforme o que houvesse em cima da mesa, e saia para a rua. Gostava de utilizar as zonas pouco demarcadas dos locais habituais, afim de fugir a uma certa rotina. É dia de peixe. Mas nem sempre havia o que me interessava. Depois das compras feitas, voltava de regresso a casa. Pelo meio, fui tomar um pingo de leite com café. Entrei no café e ouvi chamar por mim: Psst. Rodei a cabeça e vi um grupo de mulheres sentadas a olhar. Reconheci uma delas e aproximei-me do grupo. «Se ainda duvidas quem eu sou, chaga-te cá.» - Exclamou a mulher que reconheci. Franzi o sobrolho: «Sabes bem que de manhã ando sempre a dormir.» - Trocamos as saudações da praxe. Depois dela me apresentar as suas amigas, disse: «Como conheces muita gente, podias ajudá-las a vender as suas tralhas.» - Achei óptima a ideia. «Com todo o gosto, não sei os preços que levam por vender as vossas tralhas, mas de uma coisa sei eu; fazer tachos é a minha especialidade…» - Ao mesmo tempo, pisquei-lhes o olho, elas entenderam. Perdi alguns minutos a conversar até voltar à minha vida. Prometeram fazer uma visita ao bar. Não eram umas novatas mas, pensando bem, ainda rompiam umas meias solas. Eu estava sozinho, no bar, cercado de copos para arrumar em cima de uma bandeja. Elas, ao verem-me, exclamaram: «Eh lá, lamentamos incomodá-lo mas podemos tomar um cafezinho?» - Eu, cheio de simpatia, levantei a mão e fiz-lhe sinal para se sentarem, saindo ao encontro delas. Sentámo-nos à mesa. Elas tomaram café e umas bebidas gasosas. Uma delas, a loira, arregalou os olhos: «Mostre-nos lá a sua casa. Já vi que é muito bonita.» - Levantei-me e fiz-lhe as honras da casa. Depois, voltamo-nos a sentar. A entrada de clientes na sala interrompeu a nossa conversa. Pedi licença e fui atender: «O que vão tomar?» - Perguntei eu. Eles não paravam de olhar para o fundo da sala. «Para mim, serve-me o habitual.» - Disse Cola Meu. O parceiro ao lado, Caga Milhões, não se fez esperar. «Um whisky com muita água.» - Enquanto os servi, arranquei os meus pensamentos para a manobra. Voltei-me para os dois: «Tenho ali aquelas vendedoras que querem vender os seus artigos; por acaso não estão interessados em ir ver?» - Cola Meu sorriu: «Vamos lá, mas só se o preço for convidativo.» - Levei-os à mesa e apresentei-os. «Chamo-me Filete Dourado.» - Depois dela se apresentar, disse Caga Milhões: «Parece que a conheço.» - Tinha de ser. Aquele homem conhecia tanta gente que raramente alguma pinta lhe escapava ao seu olhar de avestruz. «Eu a ti também ─ disse ela, compondo-lhe a gravata. ─ Fica melhor assim.» - Os outros olharam para eles com alguma inveja. Momentos depois, Cola Meu pôs-se de pé, de ombros largos para trás. «Não queres mostrar-me… as tuas peças?» - A outra pegou na maleta de mão. «Aceito. ─ Mas nada de apalpões à ganância.» - Deram entrada no coreto ao lado, tendo ele jurado que não a apalpara daquele modo que ela expressara. Caga Milhões e Filete Dourado foram foxtroteando como manda o regulamento do bar. Quando a dança acabou ele, radiante de prazer, propôs: «Queres ir até à varanda apanhar ar?» - Ela sorriu. «Só um bocadinho, mas cuidado com essas manápulas.» - Os outros estavam encantados. Quando eles se cruzaram no caminho, a outra pareceu admirada. «Ena! ─ diz Cola Meu ─ Conseguiste?» - E ele: «Cala a boca!» - intervém Caga Milhões: «Deixa lá. ─ Responde a outra ─ Não ligues!» - Arrebentaram de rir. Mas fica-se por aqui o encontro. Os dois seguem os seus destinos, enquanto elas vão tratar de preparar as próximas encomendas que estão para acontecer, se a sorte não desaparecer. O próximo encontro no café deu para conhecer mais uma cara nova, amiga das vendedoras de panelas. Dirigi-me até elas. «Temos mais uma vendedora?» Ripostou, com um ar que a enterneceu. «Não. Sou uma aprendiza.» - Gaguejei um pouco. «OK, não há problema.» - Devo confessar que aquele grupo era endiabrado. E lá vem Caga Milhões com as sobrancelhas arrebitadas: «Por aqui?» - Enviei-lhe uma saudação com a mão. «Até foi bom aparecer. Chegue-se para aqui.» - Aproximou-se. «Estás bem acompanhado.» - Sorri para ele. «Chegue-se cá. Quero apresentar-lhe esta cara bonita.» - Estendeu a mão, a moça da cara bonita não tirava os olhos dele. Parece que tinha visto o Conde da Batata Frita!... E foi assim que eles se conheceram. «Deve ser bom andar num carro daqueles ─ disse a moça da cara bonita. ─ Que marca de carro é?» A voz dele sobressaiu: «É um Porsche.» - «Sabe que nunca andei num carro daqueles?» - «E qual é o problema? Se quiser, damos já uma volta pela Avenida da Boavista e ponho-a cá num instante.» - Não hesitou e saiu atrás dele em direcção ao carro. Quando os vi entrar para o carro, não deixei de rir. Lembrava-me das palavras dela quando disse: ─ Nunca andei num carro daqueles. ─ Francamente, não é que eu tivesse alguma coisa contra a máquina, nada disso, simplesmente aquele carro tinha mais de vinte anos. Ao ligar o motor, fazia mais fumo que a caldeira do fogão a lenha do tempo do meu avô. Pus-me a vê-los arrancar. Mal o carro avançou, o fumo espalhou-se pelo ar, deixando um rasto de cheiro a óleo queimado. E Caga Milhões descreve uma volta pela avenida adiante. O vento hoje sopra a Norte e vem carregado de calor. Alguns transeuntes olham curiosos. Os olhos dela eram como verrugas, penetrantes, mas a falar era suave e simpática. Caga Milhões tinha-lhe oferecido uma espécie de corrida e tinha-a entusiasmado com uma volta ao longo da avenida, até passar por cima do jardim, parando junto dos arbustos… Pergunta-lhe: «Que tal? Gostou da viagem?» - «Ufa, deixe-me respirar, ainda estou meia tonta.» - «E vá lá que ainda não carreguei o prego a fundo!...» - «Essa é boa… Não me assuste mais.» - «Há uma coisa que não sabia. É assim tão rechonchuda?» - «Sou, mas chegue-se para lá; já estou a sentir os calores por mim acima.» - «Mas que coxa gorda!...» - «Cuidado, não ponha as mãos nas pernas que o varredor está a espreitar!» «Quero que o varredor vá dar uma volta ao sobreiro!... Com a traça que estou, ainda o deito abaixo!» - «É doido ou quê? Pare de me apalpar as mamas.» - «Ó! Meu Deus! Que mamas…» - «Que homem este que me põe… tão tola… aiaiaaaai!» - «Ó filha, e se déssemos aqui uma braitada? O varredor até se mijava todo.» - E Caga Milhões abre o vidro do carro e põe a cabeça de fora, papagueando todos os disparates, insultando o varredor… «Se dás mais um passo em frente, passo-te o carro por cima desse esqueleto de peru…» - «Ah! Sim ─ disse o varredor pouco risonho. ─ Vai mandar postas de pescada para a tua rua.» - E, cinco segundos depois, Caga Milhões gracejava sobre os braços dela e tocou-lhe nos cabelos. «Ó filha, chega-te mais para cá.» - «Pare de me apalpar, senão começo aqui a gritar.» - «Boa ideia tiveste agora, grita que eu gosto.» - Um grito solitário rasga o silêncio da manhã. No interior do carro os dois corpos envolvem-se numa marmelada franciscana… Ao longe, o varredor murmura para a relva. «São completamente doidos! Filhos de uma puta!» - E nove minutos depois, no interior do carro, tudo se acalma. Que peso sai daquelas cabeças tontas e perversas e produz semelhante gritaria? Ele sai do carro e dá um arrumo às roupas. Depois, volta-se na direcção do varredor. «Também estás com a traça? Espera aí que já te faço a folha.» - «Vai roncar prá tua rua. Tens cara de chouriço!» - Espingardou o varredor. «Chiu! Eu calo-te já.» - Entrou para dentro do carro e ligou o motor. «Fica a saber que eu tenho os meus impostos em dia.» - Deu uma aceleração ao carro que passou velozmente por cima do jardim pondo o varredor a correr por tudo quanto era relva! O carro, depois de galgar para estrada, perdeu-se pela avenida.