Monday, March 29, 2021

 




Dois amantes reencontram-se após alguns anos separados.

Ele: «Eu pensava que eu era bravo. Mas tu és muito mais que eu.»

Ela: «Já não te via há anos.»

Ele: «Tenho andado por aí.»

Ela: «Mentiroso. Quem é a garota que tu andas agora?

Ele: «Que garota?»

Ela: «Não mintas. Eu ouvi dizer que tu andas aí atrelado. Quem é ela?»

Ele: «Uma amiga.»

Ela: «E o que fazia no seu quarto?»

Ele: «Não sejas curiosa, tá bem? Volta para o teu quarto. Tenho serviço a fazer.»

Ela: «Não quero! Esta noite durmo aqui.»

Ele: «O meu preço é alto.

Ela: «Eu pago. Diz quanto queres?

Ele. «Não quero nada.»

Ela: «Trata todas as mulheres assim?

Ele. «Exceto uma.»

Ela: «Quem?»

Ele: «A minha mãe.»

Ela: «Não me importava que andes com outras mulheres. Mas não quero ser tratada como elas. Não me importo se me amas ou não. Eu te amarei de qualquer jeito. Desde que nos separamos nunca mais estive com outro homem. Esperava que também tenhas feito o mesmo. Tu prometes-me?

Ele: «Não.»

Ela: «Por favor, como não pode ser como dantes?

Ele: «Tu lembras-te? Uma vez me perguntaste… se havia alguma coisa que eu não emprestaria a ninguém? Pensei muito nisso. E agora já sei. Há uma coisa… que nunca emprestaria a ninguém.»

E saiu perante um jorro de lágrimas.

                                                                                                      Abraão, Porto.


Tuesday, February 9, 2021

 

                                       Um conto ao estilo de F. Abraão

4

                                                                                                               

PARTE 1

                                    OS INCOMPATÍVEIS

 

   No primeiro dia, Óscar aguardou com impaciência a hora do recreio. Assim que a campainha tocou, dirigiu-se para o pátio das raparigas para falar a Bianca. Um bando de raparigas aos berros não foi suficiente para o afugentar e tornou-se necessária a intervenção de uma professora para que se fosse juntar aos rapazes.

   À hora do almoço, não conseguindo contatar com ela, porque o pai a foi buscar no cabriolé de teto de abrir para a levar para casa. Óscar resolveu esperá-la à porta, quando acabaram as aulas. Bianca saiu, rodeada pelas colegas. Resolvera compor uma atitude e fingiu que não via Óscar. Ela era a aluna mais bonita, mas é pouco provável que Óscar o tivesse notado.

   O pequeno bando pôs-se em marcha. Óscar seguia atrás, a quatro passos de distância e nada embaraçado com as piadas que as miúdas lhe atiravam de vez em quando. O grupo acabou por desfazer-se e Bianca entrou em casa.

   Óscar sentou-se à beira do passeio. Passado alguns minutos, a porta abriu-se e Bianca surgiu. Atravessou o passeio e contemplou Óscar.

   - Que é que queres?

   Óscar ergueu para ela os seus tristes olhos.

   - Tu não estás noiva?

   - Palerma – disse ela.

   Ele fez um esforço para se levantar.

   - Ainda teremos de esperar muito tempo para nos podermos casar – observou ele.

   - Quem falou em casamento?

   Óscar não respondeu. Talvez não tivesse ouvido. Puseram-se a andar lado a lado. No outro extremo do terreno, reinava uma penumbra acolhedora e segura. Bianca sentou-se no chão, com a saia longa com botões. Depois, cruzou as mãos em cima dos joelhos, como se fosse rezar.

   Óscar sentou-se ao lado dela.

   - Ainda teremos de esperar muito para nos podermos casar – repetiu ele.

   - Nem tanto como isso – disse Bianca.

   - Quem me dera que pudesse ser já.

   - Pouco falta. – disse Bianca.

   Óscar perguntou:

   - Achas que o teu pai dará o consentimento?

   Ela nunca tinha pensado nisso. Voltou-se e olhou para Óscar.

   - Talvez não precise de lhe pedir.

   - E a tua mãe?

   - Deixa lá os pais em sossego – disse ela. – Achavam logo que não estava bem ou que era esquisito. Tu não és capaz de guardar um segredo?

   - Está visto que sou. Não há como eu para guardar segredos. Já tenho alguns.

   - Então põe este ao pé dos outros.

   Óscar quebrou um pauzito e traçou um risco na terra negra.

   - Bianca, sabes como é que nascem os bebés?

   - Sei – disse ela. - Quem foi que te explicou?

   - Foi um amigo de meu pai. Ele contou-me tudo. Acho que teremos de esperar muito para poder ter bebés.

   - Não tanto como pensas.

   - Um dia, havemos de ter a nossa casa – disse Óscar. – Entrámos, fechamos a porta e ficamos à nossa vontade. Mas ainda falta muito tempo.

   Bianca estendeu a mão e tocou-lhe no braço.

   - Não te preocupes com o tempo. Isto aqui é como se fosse uma casa. Podemos fazer de conta que vivemos aqui, enquanto tivermos de esperar. Tu serás o meu marido e poderás tratar-me por «minha mulher».

   Óscar remexeu os lábios e pronunciou em voz alta:

   - Minha mulher?

   - Assim sempre nos vamos treinando – disse Bianca.

   O braço de Óscar estremeceu sob a mão dela. Bianca retirou a mão e colocou-a em cima do joelho com a palma virada para cima.

   - Enquanto nos vamos treinando, talvez pudéssemos fazer outra coisa – lembrou Óscar, de repente.

   - O quê?

   - Talvez tu não gostes disso.

   - Mas o que é?

   - Podemos fazer de conta que tu és a minha mãe.

   - Isso não custa nada – disse ela. – Queres começar já?

   - Está bem – aprovou Óscar. – Como é que fazemos?

   - Vou mostrar-te.

   Bianca começou a falar com voz mimalha:

   - Vem, meu amorzinho. Deita a tua cabecinha nos joelhos da mamã. Anda, meu filhinho, para a mamã te embalar.

   Enquanto dizia isto, segurava-lhe na cabeça e Óscar encostou-lhe a cabeça e Bianca ia-lhe fazendo festinhas na cara e penteava-lhe os cabelos soltos.

   - Meu bebezinho adorado – disse Bianca, - fala-me da tua namorada?

   - Que queres saber dela?

   - O que tu pensas. Ela é demasiada fraca para suportar o que tu possas suportar?

   Óscar disse:

   - Não é isso, mamã. Ela é boa, de verdade. Nunca faz mal a ninguém. Nunca diz

mal seja de quem for. Nunca se queixa e é forte. Ela não é má por natureza. Não gosta de jogar às casinhas, mas fá-lo sempre que é necessário.  

   - Tu gostas da tua namorada, não é verdade?

   - Gosto sim. E ás vezes faço-lhe mal. Engano-a, induzo-a em erro. Às vezes até a pico sem motivo.

   - E depois sentes-te infeliz?

   - Pois é.

   - A Bianca nunca se sente infeliz?

   - Não sei. Quando pisco os olhos às colegas no recreio, parece ficar enciumada. E uma vez quando lhe quis pôr uma mão no peito, ela chegou a dar-me uma bofetada.

   Bianca comentou com espanto:

   - Porque te bateu a Bianca?                   

   - Não sei se devo dizer.

   - Então, não digas.

   - Não foi nada de importante. Sabes, mamã, eu não quero ir à igreja. Mas a Bianca quer. Eu disse-lhe que nunca me casaria e que talvez me retirasse do mundo.

   - Como um buda? E tu não queres casar na igreja?

   - Não, mamã. Não, mamã. Prometi ao Santo Inocente!

   - E a Bianca não gostou que tu lhe pusesses a mão no peito dela?

   - Pois não. Ficou doida varrida. Às vezes põe-se assim. Pegou nos meus óculos de sol, atirou-os para o chão e desfez-lhos a pontapés. E depois disse que tinha desperdiçado metade da sua vida por minha culpa.

   Bianca riu-se. 

   - Podias ter aproveitado a oportunidade para lhe roubares a virgindade.

   Óscar manteve-se calado e Bianca ficou inquieta.

   - O que foi? Perdeste a língua?

  Óscar contemplava o pôr do sol. Bianca perguntou, extremamente embaraçada. 

   - Ficaste zangada comigo? – (E acrescentou, para ver a reação): - Meu marido.

   - Não, não estou zangado contigo. Estava só a magicar numa coisa.

   - O que é?

   - Uma coisa.

   Bianca continuou, imperturbável:

   - Gostavas de casar?

   - Mas que parvoíce – disse Óscar. – Claro que gostava. Toda a gente gostava. Estarás tu a ver se me magoas? O meu pai já o tem tentado e, depois, pôs-se a rir.

   Bianca desviou o olhar para o sol poente.

   - Tu disseste-me que era capaz de guardar um segredo.

   - Pois claro que sou.

   - E não terás nenhum no género: «se eu disser o meu segredo, ao inferno irei ter?»

   - Tenho, tenho um.             

   - Então diz-me o que é, Óscar.

   E a palavra de «Óscar» parecia uma carícia.

   - Digo-te o quê?

   - O maior segredo que tu tiveres.

   Óscar recuou, inquieto.

   - Não posso – disse ele. – Com que direito mo pedes? Nunca o direi a ninguém.

   - Vamos, meu filhinho, conta tudo á mamazinha – sussurrou ela.

   Os olhos de Óscar mostravam grande exaltação de fúria.

   - Já não tenho a certeza de querer casar contigo. – disse ele. – Acho que vou

para casa.

   Bianca pôs-lhe a mão no pulso e ali a deixou ficar. Quando falou, a voz readquirira o tom natural.

   - Era para te experimentar. Já vi que sabes guardar um segredo.

   - Porque fizeste isso? Agora fiquei furioso. Até me dói o coração.

   - Tenho a impressão de que te vou confiar um segredo – disse ela.

   - Ora vejam! – escarneceu ele. – Então eu é que não sabia guardar segredos? 

   - Eu estava a ver se me resolvia – disse ela. – Mas acho que te vou dizer porque te faz bem. Há-des ficar contente.

   - E quem foi que te pediu para não contares?

   - Ninguém. Eu é que tinha resolvido.

   - Isso já é outra coisa. Então o que é?

   Bianca disse docemente:

   - Lembras-te daquele dia em que fomos a tua casa?

   - Aí não, que não me lembro!

   - Pois fica sabendo que adormeci no cabriolé e, depois tornei a acordar, mas os meus pais não deram por nada. Os meus pais iam a conversar e não viram a tua mão descair pela minha saia e apalpar a minha perna.

   Óscar disse em voz rouca:

   - As minhas mãos estavam nos bolsos.

   - Isso dizes tu. Pensavas que eu ia a dormir, mas não…

   Bianca continuou:

   - Não seria estupendo se pudéssemos reviver a cena? Supõe que a tua mão ganhou

o sentido ou qualquer coisa assim. Já li uma história no género. Podia tornar a acordá-la e fazê-la recuperar o sentido.

   Bianca deixara-se empolgar pela maravilhosa história. Óscar disse, com ironia:

   - Hei-de perguntar à mão.

   - Óscar – observou ela em tom severo, - o que eu te contei é segredo.

   - Quem disse que era?

   - Fui eu. E agora repete comigo: «Se eu disser o meu segredo, ao inferno irei ter.»

   Ele hesitou uns instantes e, depois repetiu:

   - Se eu disser o meu segredo, ao inferno irei ter.

   - Agora, cospe na mão… Assim…. Está bom. Agora, dá-me a tua mão…. Estás a ver? Agora misturamos o nosso cuspo e limpamos a mão ao cabelo.

   Executando o ritual, Bianca disse com a maior serenidade.

   - Conheço uma rapariga que contou um segredo depois duma jura igual a esta e morreu afogada num poço.

   O sol desaparecera, levando a sua luz brilhante. Bianca disse:

   - Eles vão me esfolar viva. Anda, despacha-te. O meu pai deve estar à minha espera com a trela do cão para me bater.

   Óscar olhou-a, incrédulo.

   - Para te bater? Costumam te bater?

   - O que é que julgas?

   Óscar exclamou apaixonadamente:

   - Eu que os apanhe! Se eles te quiserem bater, diz-lhes que os hei-de matar.

   Os arregalados olhos castanhos lançavam chispas.

   - Ninguém tem o direito de bater na minha mulher.

   No meio do escuro que reinava debaixo das ramagens das árvores, Bianca passou os braços pelo pescoço de Óscar e beijou-lhe a boca aberta.  

   - Querido, gosto muito de ti, meu marido – disse ela.

   Depois voltou-se e saltou, levantando as saias acima do joelho e mostrando a renda da combinação que esvoaçou quando largou a correr para casa.


(Fim do 1º ato.)