Friday, December 17, 2010



CONTOS DE RATAZANA
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REZEM PELO CAGUINCHAS…



Ratazana aguarda-me para o ensaio… Ratazana das ideias cor-de-rosa de pingos de café e dos contos lordescos cada vez mais excitantes. É a seguir ao almoço… Acabei de embalar a pé pelo meio do bairro, de modo que ele encontra-me a chegar ao jardim de Arca d´Água… Vou ao encontro… e para lhe contar uma história espantosa.

A minha mulher castigou-me. Eu ainda não estou totalmente refeito do caso, o que é perfeitamente natural, se considerarmos que se trata da mulher com quem tenho vivido durante todos estes anos. Foi um choque tremendo, em todos os sentidos, ver uma bela noite subitamente a mulher ter posto trancas à rata, bani-la da minha mente e voltar-me as costas.

Claro que aqui há mais qualquer coisa que se passou. Sendo a minha mulher conforme é, os factos só se podiam dar desta maneira. E o resultado esta à vista…

Como é hábito, a pinga está na origem do problema. A minha mulher andou a massacrar-me durante as últimas férias, a meter-me as ideias na cabeça, ralando-me o juízo com o mau hálito que sai da minha boca de bebedor. E claro que tem andado a ralar os filhos quase desde a primeira vez em que nos pegamos a sério. Portanto, um dia, a cena estoirou.

Quando ouvi alguém a mandar-me um toque no telemóvel, ainda pensei que pudesse ser ela… Hoje era o dia em que Ratazana queria gravar umas cantigas do duo. E eu tinha-me preparado para o ensaio. Só não estava preparado era para a maneira como o estupor me saudou…

«Ontem a patroa abriu as pernas?»

Isso não são coisas que se digam à porta de um mini mercado, onde qualquer pessoa as pode ouvir, por isso levei-o para dentro da garagem e alapei-me no banco, para poder respirar mais à vontade. Então ele senta-se de frente para mim a ouvir-me a minha história…

O sacana não perde uma única pitada relevante. Não se escusa a perguntar-me simplesmente se eu a cansei, quando e como… sim, quase me diz como é que devo agir. Mais um toque de Ratazana.

Como já atrás ficou referido, passou-se durante as férias. A minha mulher deslumbrou-se com o sol, o que não partilho, regressou ao hotel e encontrou-me no bar a beber cachaças… se bem que ela tenha a certeza de que eu não estava grosso, pois reparou na minha postura quando a saudei. É bem provável, que ela tenha entrado em parafuso com o sol que apanhou… Não posso esquecer a maneira como ela se atirou a mim até eu ficar quase sem voz, para depois me deixar a falar para a parede e pôs-se a francos. Seja como for, a minha mulher passou-se no quarto onde ela, como uma parva… ou uma maluca… começou a despir-se às escondidas. Dois minutos passados estava enrolada no lençol e três minutos passados esticava-se na cama com as pernas de fora. Cinco minutos passados estava a blasfemar sozinha e passados dez minutos já eram pesadelo, eu tinha razões para me sentir um desesperado.

«Bem, mas por que raio é que ela começou a fazer-me isso?», grito eu, quando Ratazana faz uma careta. «Não fiz nada de mal, pois claro? Eu não ia forçar a minha própria mulher!»

«Penso que ela também o negava», responde Ratazana, deitando-me aquele olhar persistente e rufia que é o seu.

Ela também o negava! Sim, diabos a levem, suponho que sim. Por outro lado, não percebo por que é que eu me mostro tão nervoso. Como é que a minha mulher pode chegar a este ponto. Ela não deverá saber que, se as coisas se tornarem mais pretas, a família vai andar em grande reboliço por aí, e se puderam correr-me daqui e deixar-me sem nada que se manje, excepto um instrumento agastado e um gosto por álcool de muito boa qualidade do que aquele que está dentro das minhas veias? Como muitas outras coisas de que ela gosta… E assim continuo a contar-lhe o quanto eu a queria e as sensações que tinha enquanto a observava a caminhar e que grande que era o meu amor por ela… Ponho-me de pé e começo o ensaio à procura de relaxar o meu nervosismo e tanto a tocar como a cantar é visível uma grande descontracção com a viola na mão, como se tivesse renascido de novo para a música.

«E agora o que é que vais fazer?», pergunta Ratazana, já sentado com um copo de água na mão, depois de me ter dado outro copo, mas muito menos água.

«Seduzi-la outra vez, suponho», digo-lhe. «E se ela quiser… continuar.»

Continuar. Carago, como é que uma mulher o pode evitar? Tudo o que tenho a fazer é conquistá-la de novo… está numa de grevista geral, deixando-me cá com uma destas tusas… e não sou o único culpado, meu Deus!

«Pensei que ias abaixo por isto», acrescenta Ratazana, passado um instante. «Alguém disse que andavas destravado…»

Passo a cara pelas mãos, simplesmente. Reconheço que, perdi o controlo da situação que está á evoluir de uma forma mais rápida para mim. Então, enquanto estou sentado, Ratazana aproxima-se e instala-se na cadeira. Tem os dedos a mexer, com o fazem os músicos e fita-me no rosto.

«Sabes por que é que não te quero ver cair, não sabes?», exclama ele. «Claro que podia não me ralar e não seria teu amigo.»

Continuamos o ensaio divertidamente, gravando algumas cantigas com aquelas vozes que já percorreram várias salas no passado. Jesus, fazer só uma oitava! Verso rapioqueiro de cariz popular e no refrão, em vez de coro, solo de Kazoo. Mas aquele tradicional fado da dor de corno… vai animá-los um pouco… aquele fado de destroça corações vagabundos… começa a ganhar forma que os iniciados aprendem a sentir… não sei bem o que é, mas está a começar a entrar…

Quase tombo o copo quando deixo pousar lentamente a viola… faço outro intervalo. Encosto-me no sofá e ele senta-se sobre a mesa, a olhar para a minha cara, com uns olhos ligeiramente observadores. Ele insinua e sai-se com esta.

«Então, pá, não fiques aí sentado a gastar os pensamentos com ela», diz-me ele, «mentaliza-te se a queres dobrar…»

«Não a posso obrigar…»

Não é fácil obrigá-la. Tudo o que tenho a fazer é pôr a minha mente sobre a sua cabeça e domá-la por todo… ela faz o resto. Lá vem Ratazana com aquela conversa de moinante para mim enquanto desbobina o seu conteúdo sobre casos da noite, e não há duvida que faz uma reportagem notável dos boémios. Depois ri-se daquele jeito sem dó pelos meus desabafos e despacho-o com uma máxima para ele se calar.

«Vai-te foder!» Esfrego a mão sobre o nariz e ergo os olhos para ele, chateadíssimo. «Ensaiamos… ou queres deixar para amanhã?»

Ele levanta-se, mas não sabe o que lhe apetece tocar. Ainda está indeciso, prendeu novamente a viola ao peito e começou a dedilhar nalguns tons, mas parece ter criado qualquer coisa para ele não deixar de fazer dobragens de acordes, deixo-o tocar e fico a ver o que é que sai dali. Mas não o importuno… Ergo a viola e começo a acompanhá-lo de perto. Tiro uma batida compassada e arranco-lhe dois sins de cabeça… Ele volta-se para me dar a certeza de que faço uma boa ligação para o seu solo.

«Acompanha-me abafado!», pede. «Acompanha-me abafado!»

Portanto já tirou mais esta. De improviso, muito naturalmente. O artista… vou tramá-lo sem lhe fazer o abafado, mas não! Agarra-se no solo e abre com um trinado de cordas. Aquele início de entrada mexe-me cá dentro, como se de um sedativo se tratasse. É tão refrescante como um pirolito e quase da mesma frescura. Mas é um pirolito com sumo, meu Deus…

«Toca-o outra vez», digo-lhe eu. «Ouve lá, inventaste isso agora?»

Sim, responde-me ele, só uma parte. Ele pôs-se à procura de uma entrada e apanhou-o em seguida e foi assim que aconteceu. Mas talvez falte mais…

Depois de todo esta embrulhada, estabelece-se um pouco de acalmia na garagem. Tenho andado a melhorar os meus índices de tocador o que me surpreende neste capítulo. Ratazana ainda está a guardar o seu instrumento, ainda está a trautear a música. E há alguém a abrir a porta da garagem. Chamo Ratazana… parece um detective… e fico de olho pregado. Parece-me o filho de Ratazana, mas pode ser outra pessoa.

Mas não. É um condómino.

Já ensaiei ali meia dúzia de vezes, mas que eu me lembre é a primeira vez que vejo alguém a entrar pela garagem. Temos estado a fazer algum barulho que seja quem for que apareça ao portão sabe logo que há música na garagem.

O condómino mete-se dentro do elevando enquanto o diabo esfrega um olho e leva um menino atrás de si. E eu nem chego a ver quem é que entrou… para fazer uma análise… Ainda me agacho, mas por que raio, estou eu a olhar para o escuro? Ratazana olha-me com curiosidade acrescida e entra-me com esta.

«Estás a ver o quê?», pergunta-me. «Por que é esse vistaço todo?»

«Exercício», respondo-lhe, porra, devo ter o aspecto de quem esteve a fazer exercício. Dou uma esfregadela nos olhos com a mão e tusso profundamente. Então de repente lembro-me de que não tenho nada para o jantar e de que o tasco ainda deve estar aberto. Digo-lhe que vou dar uma mija e vou à fossa, onde abro a torneira para abafar o cheiro.

Quando volto, Ratazana já tem os instrumentos nas sacas. Pouco falta para as seis da tarde e o céu já escurece.

«Eh, Ratazana, anda daí e leva-me ao escritório (tasco) …»

Tem calma, tem calma… nem pensar em deixar aqui os nossos instrumentos. É o melhor que há… viver-se com música. Eu que vá até lá fora tomar um pouco de ar enquanto ele leva as violas a casa. Não vale a pena dizer-lhe que tenho pressa… ele tem a certeza de que me leva ao local e além disso…

«Venho já ter contigo», diz-me. «É melhor ires dando umas voltas ao jardim enquanto eu subo e desço.»

Assim despacho-me até ao jardim. Faço um pouco de exercício para aquecer os pés. Dou corda às pernas umas quantas vezes e faço os possíveis por dobrar o andamento. De repente Ratazana aproxima-se com o carro e interrompe a minha marcha.

«Tens essa barriga toda disformada», repara. Parece ter um olho clínico.

«Ah, sim… que novidade…» Tento enviar-lhe outro tipo de palavrão, mas é no momento que ele buzina e eu entro no carro. Peço-lhe para andar rápido e deixar de conversa fiada.

Custa um bocado até chegar ao tasco por causa do trânsito caótico, mas mal lá chego avio-me primeiro com o minha receita habitual. Não posso levar lagosta recheada porque sou alérgico ao preço. Havia lá uma coxa de frango de aviário, e isso foi o que eu trouxe para casa.

Lá vem Ratazana outra vez a dizer que eu estou a ficar encurvado. É exactamente o mesmo que a minha mulher já me ralhou. Mas ele leva vantagem pois consegue dar-me um tratamento para aliviar a magreza. E, durante todo esse tempo, eu à espera que ele fizesse algum convite… uma ida ao café… ou coisa do género… Eu próprio dei um lamiré… mas vai no Batalha…

O pior de tudo isto é que eu tenho de levar com ele e mostrar ser paciente, quando o que realmente me dava ganas de fazer era corrê-lo com um pontapé no cu. E tenho de levar com os seus conselhos… Ainda estou para perceber por que é que um homem que fica bem na vida segundo a boa vida nocturna… vir do zero e tornar-se independente… há-de vir dar conselhos a um vivaço meio idiota, mas Ratazana parece ter a noção de que não sei nada o que há a saber sobre estas coisas.

«Porque não a pões de lado e a riscas da tua vida?», pergunta-me, «ou deves divorciar-te da tua mulher?»

Tenho de o ouvir. Faço-o mudar um pouco de tema e afianço-lhe que há-de acabar tudo bem, que no fim do ano as coisas se hão-de resolver. E raios me fodam se eu acredito que as coisas se vão resolver a bem. Da minha análise isto parece uma das piores ensarilhadas que alguma vez eu pensei estar envolvido… e estou até ao pescoço…

Ratazana fala que nunca mais acaba e, uma hora passada, já me deu dezenas de resoluções. Uma coisa em que se concorda é que eu não vá andar à pancada com a mulher. Graças a Deus recebo um email… tenho que ir buscar o meu neto à escola e ele ainda me tenta reter.

Faço-o andar um pouco mais depressa, argumentando que falaremos mais sobre este assunto… Depois, já tenho os nervos destroçados… e este amigo! Quando puder vou a um psiquiatra. Tento-me alhear de tudo, mas Ratazana volta a malhar sobre mim e eu atiro-lhe à cara.

«Diabo, parece que me queres ver na desgraça?», berro-lhe eu. «Podia ter acontecido a ti e não a mim…»

«Sou um homem de sorte», diz ele. «Pensei que tu devias ter necessidade de ouvir um conselho dos bons. Realmente pensei. Vou ver se consigo que não me chateies mais…»

«Ouve, Ratazana, espero que a minha mulher abra o coração e me dê uma última oportunidade! Por que é que julgas que a minha mulher não mudou de cama? Para me tentar! Quem se deve oferecer é ela e não eu! Eu posso dar-lhe tudo o que ela precisa…»

«Não volto a falar-te dela, prometo!».

É o prometes! É um gajo carimbado e quanto mais ripostadas lhe dou, mais atiçado ele fica.

«Hei-de evitar falar dela! E… também não te ligo! Podes falar à vontade, que eu não te aconselho mais! Falas para a mundial… Hei-de evitá-lo, mesmo que consigas implorar-me para o fazer!»

Falas para a mundial! O rufia! Não insisto. Ainda sou mais tolo do que ele estar sempre a bater na mesma tecla. Já devia saber que não se pode trepar numa mulher que nos sacode ou nos rejeita, uma vez que tenha perdido o sentido da coisa. Paro de falar e Ratazana acelera em direcção à escola do meu neto.

«Agora, deixa-me aqui!», peço-lhe. «Puseste-me a garganta seca… aqui!»

Abro a porta do carro e mando-me pela rua adiante até me perder envolto no escuro da noite.