Sunday, August 19, 2018




A TABERNA DO RATO
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Uma vez viciado em bebedor, qual será o pó mágico que me traga de volta à condição de não bebedor? O Sr. Rato-Ratão, dono da taberna do Rato que fica na zona alta da cidade, mentor dos clientes viciados, conselheiro das almas desamparadas, o tipo de homem que já viu e sabe tudo, o menos doutrinário dos Senhores do canudo e o mais malandrim dos fanáticos servidores de copos, ex-músico e compositor, jornalista primário e escritor de histórias de fazer chorar uma ceguinha, aprendiz de uma dúzia de variadas profissões e, por conseguinte, segundo os seus próprios ditos, «mais um amigo que um inimigo» -aludindo à media altura que tinha, não se elevava a mais de um metro e sessenta e sete centímetros do chão, era no entanto um homem de físico equilibrado, de bigode sobre o lábio superior e possuía uma cor morena de rosto. - Ficou a piscar os olhos por dentro do balcão, olhando pela chegada do Baixote a meio da noite que vinha a limpar as lentes dos óculos de míope. Ao aproximar-se do balcão, pediu para lhe servir um copo de whisky, tentando com o lenço apagar por cima da testa um suor trémulo que Baixote, qual quê, parecia ter visto a morte da bezerra ou lá o diabo que é isso.
«Você parece que vem daí de algum sítio de ter tirado os três a alguma virgem», Exclamou Rato-Ratão saindo para fora do balcão e soprando
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uma névoa de hálito cheiroso das suas mãos em concha. «Isso diz você. A si, talvez lhe fizessem algumjeito mas, a mim, não, porque já não tenho idade para isso, além de dar algum trabalho.» -
Baixote estava todo bem arranjado e limpo. Trazia um fato sport com camisa e gravata a condizer e o cabelo bem penteado. Depois de molhar a goela com um malte de oito anos, disse: «Pronto, já bebi, agora 0 segundo passo vai ser fumar um cigarro.» -
As suas palavras foram abafadas pela presença de uma segunda voz, compacta de calor, carnuda e sensual de mulher, que se decidiu dirigir-se até eles. Por detrás de Rato-Ratão, o Baixote esticou um braço ao encontro da mão dela. «Olhai quem vem lá?», -gracejou ele. -«Era só esta que me faltava agora.»
«A sua amiga é muito boa», - disse maliciosamente o empregado, e continuou, voltado para o Baixote. -«Desculpe lá, não foi com intenção.» - O outro pareceu não levar a mal e disse: «Seja como for, vou apresentá-la: eis a minha namorada.» - O empregado retribuiu o gesto. «Muito prazer, o meu nome é Capitão Guei.» -
«A namorada? De quem?», -grítou ela ao ouvir o dito dele. -«Isso queria ele, mas só somos amigos e mais nada.» -

A sala -alcatifa nas paredes e no chão da cor do limão, aos gomos em vários sítios -começava a encher-se de clientes bebedores. Entre os quais se destacavam duas miúdas, uma de cabelos curtos empastado de brilhantina, a outra com madeixas às cores e ambas ansiosas por mostrar as suas qualidades em alternar copos (aprendido com Rato-Ratão) durante os primeiros ensaios na taberna: as chavalas tinham baptismo de guerra, Vento da Ventania (dezoito anos) e Maria-Rapaz, com dezanove anos, que abandonaram o emprego de vendedoras ao domicilio para se integrarem nas percentagens de canecos. Vinham vestidas cada uma à sua maneira; - e deram de caras com Rato-Ratão; e abanaram a cabeça, arregalando os olhos de pura inocência.
«Aquele cliente é esgazeado. -  disse Vento da Ventania em tom reprovador -Pagava-me um copo se eu lhe deixasse dar um beijo nos mamilos.» - E logo a outra assentiu, com um esgar do rosto. «Tiveste mais sorte do que eu. O rabosano 1 que estava comigo só me pagava champanhe se eu não me importasse que ele deitasse a mão nas minhas nádegas.» - Parece que a amiga não interpretou muito bem o que ela disse, porque logo a seguir ripostou: «Nádegas? E porque é que tu não o

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IPatego.
deixaste apalpar as nádegas?» - A outra pôs-se muito espantada a olhar para ela e disse:
«Porra, deixasses tu apalpar as tuas!» - O dono da taberna não as repreendeu por usarem semelhante linguagem; o espírito dele tinha mais coisas com que se preocupar, e ei-lo a dar ordens em tom alto: «Ok. Não há problema. Atrás dum cliente segue outro e a seguir a uma mesa outra espera por nós. Seguindo em frente, estão ali aqueles dois ligrinhas 1 sequiosos de vos pôr a beber uns refrescos à vossa escolha.» -
Não valia a pena Rato-Ratão ensinar muito mais do ofício à miudagem, porque elas davam bem conta do recado. E a prova disso é que, momentos depois,-ouviu-se a voz da mais nova a chamar pelo empregado:
«Sr.Empregado, faz favor: traga-nos duas laranjadas bem frescas.» - O dono sorriu e murmurou para o seus botões: «A mulher é um demónio; quando lhe convém, vira tudo ás avessas que um homem só dá conta quando caiu no logro.» -
«Vou-me embora e venho-me despedir de si - disse Baixote -Vou curtir uma de dança ao Xeque Ao Rei e levo a Madame Rara a fazer de rainha.» - O dono respondeu ao tom irónico dele. «Cuidado, não se perca pelo caminho. Boas noites.»

O mesmo Capitão Guei, agora entrincheirado à porta a controlar as entradas e saídas dos clientes, fora noutros tempos -parece estranho mas é verdade -o mais tímido dos clientes nocturnos, a alma em doçura, a própria encarnação do bom humor. Como um bom erudito que era, e adjunto do mestre-escola Rato Ratão, entregava-se às suas funções de corpo e alma, ajudante competente, trazendo as suas tarefas no mais puro dos controles que alguma vez a casa teve, fazendo por cair nas boas graças dos clientes, rogando pragas contra os outros que não deixavam ficar uma gorjeta na bandeja de barro, chegando ao ponto de ter autorização (concedida a título de  brincadeira) em colocar uma placa na parede em que continha um osso da canela de porco, bem envernizado, em que se lia em baixo os seguintes dizeres: Recordação dum cliente que não deixava ficar a sua gorjeta na bandeja. -
Nesse tempo era admirável a sua abertura de espírito para com alguns crónicos clientes da taberna, aprendendo facilmente a lidar com eles à
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lHomens homossexuais.

boa maneira portuguesa, como daquela ocasião em que o crónico cliente o incomodava ao balcão com perguntas aborrecidas e ele, olhando seriamente, lhe disse: «Conhece a marca do meu alfaiate?», - O cliente ficou espantado a olhar para ele e contrapôs: «Não, porquê?» - Então, ele muito lampeiro, abriu o casaco de par em par e colocou o dedo do meio da mão direita esticado e fez-lhe um manguito, dizendo: «Tá a ver, isto é para não me chatear mais.» - E virou-lhe as costas, indo para a cozinha, antes que o cliente o mandasse àquela parte...
A pouco a pouco a sua adesão ao ambiente transformara-o numa figura castiça e popular, enquanto Rato-Ratão controlava as múltiplas tarefas de organizar o bom funcionamento da taberna. «Enquanto você janta, eu controlo a porta e vice versa.» - Na cozinha, a cozinheira preparava o jantar. À medida que ia pondo os pratos prontos na mesa. chamava três a três ou dois a dois; consoante o movimento que houvesse na casa. O Capitão Guei era um óptimo comedor e, conforme ia devorando os pratos apimentados da cozinheira e os molhos requintados de iogurte de nabo, o seu corpo começava a inchar, pois toda aquela comida tinha de caber em algum lado e, para desinchar, bebia muita água gaseificada. Depois, sem que alguém notasse, descarregava com meia dúzia de farpas em direcção do fogão, afim de apagar os maus cheiros no ar...
 O seu problema de engordar (pesava 120 quilos) foi o inicio de todos os problemas. Quando a cozinheira lhe chamava a atenção: «Não me diga que não gosta dos meus cozinhados.Eu quero que você coma tudo, mas não quero vê-lo feito num balão.» - E ele respondia, erguendo os seus pequenos olhos por cima das grandes lentes: «Eu só quero comer o suficiente para não sentir fome, só isso.» - Que homem aquele: tinha as respostas todas e conseguia enganá-la. Porque, logo a seguir, mal a televisão começava a dar a telenovela, ele virava-se para ela e dizia-lhe bem alto: «Vá ver a telenovela, olhe, como os artistas se beijam fortemente.» - Quando a cozinheira corria para ver a cena romântica, ele dava um salto ao frigorífico e rapava uma mão cheia de fiambre e queijo, que metia para a pança; enquanto o rato espreitava no esgoto, pondo a língua de fora...
O suficiente não era para o Capitão Guei. Fora sempre habituado ao máximo. Mas não tinha que se queixar, uma vez que nem era casado nem tinha mulher, não tinha satisfações a dar a ninguém. E, se tivesse, então talvez ele tivesse desistido de comer tanto, assim não.

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A pesca foi sempre um hobby para o Capitão Guei, que aproveitava as manhãs livres para se deliciar à beira rio, olhando para o horizonte,
\vendo as gaivotas menear-se sobre as águas e, enquanto fumava um cigarro nas calmas, seguia com o olhar pachorrento a trajectória do fio de pesca metido na água e ficava assim absorvido nos mais infinitos pensamentos. Nem a presença dum cão rafeiro lhe estorvava os sentidos.
«Que é que queres de mim? Não te dou nada. Escusas de vir aqui para a minha beira, que eu não tenho nada para te dar.» - E antes, nunca deixava de mandar preparar, na tasca mais próxima, uma boa caldeirada de peixe, que seria bem regado com um jarro de vinho verde e depois, sim, abria as portas do carro,-um Fiat 1500, e punha-se a dormir uma boa soneca com as pernas para  fora...
Não passaria pela cabeça de Capitão Guei arranjar uma mulher mas 0 destino pregou-lhe uma partida. -sempre tinha concluído -que ficaria solteiro toda a vida, era essa a sua opinião sobre o assunto, mas depois que conheceu no café uma mulher que dizia ser ajudante de enfermagem, ele envolveu-se com ela; tinha-lhe despertado um sentimento forte e profundo. O facto de ambos não pretenderem ter filhos foi para ele um peso que lhe saiu das costas, pois só ele sabia os pecados da sua juventude. A ajudante de enfermagem tinha à volta de quarenta anos, trazia rosto ensonado e vestia uma T-shirt com a imagem da Madonna, quando era virgem; voltou-se de caras para ele e disse: «Só posso estar contigo duas a três vezes por semana.» - Ele suspirou com ar de contrafeito. «Bom, é melhor assim que nada, não é? Ejá é muito bom.» - Disse ela e combinaram o próximo encontro.
Depois do novo encontro, ele confessou-lhe que era jornalista dum jornal diário e fazia reportagens de noite. Ela aceitou toda a versão e pediu-lhe que gostava de se despir com o quarto ás escuras e ele fez-lhe a vontade; mas mais tarde Capitão Guei descobriu que ela tinha o corpo todo picado de agulhas eficou em alerta máximo. Um dia depois, Capitão Guei disse a Rato-Ratão o que se estava a passar consigo e recebeu a seguinte resposta: «Quer uma opinião? Fuja desse problema que isso é morte prematura.» - Ele aceitou a sua opinião sem discutir e, no dia seguinte, experimentou fazer algumas averiguações . Quase uma hora depois dele sair, voltou a entrar no quarto às escuras e assistiu àquele rito de sufoco de gargantilha que se ouvia na chiadeira do rosnar a que ela se sujeitava em nome do vício. «Tu pensas, -berrou-lhe ela quando o viu de frente - que faço isto por gozo?»

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Quando ele conseguiu meter na cabeça que tinha que tomar uma,. decisão a sério, acabou-se a brincadeira. Sim senhor, ela era uma mulher viciada até ao couro cabeludo. Não estava ainda enlouquecida pelo sarampo, mas estava com certeza toda tomada pelo fumo envenenado da farinha de pó que os toxicodependentes tomam para sonhar com visões. Ele começou a não aparecer ao convívio do sono escuro. Foi nesse período -ele reparou, acertadamente, que ela frequentava a ralé  e que se meteu com os piores índios das vielas e travessas mal cheirosas; eram ainda piores do que as putas. - Foi através dessa incursão, na ultima noite que ele dormiu com ela, que viu que ela estava inconsciente, deitada de cabeça para baixo e as mãos para cima. Capitão Guei teve de fazer as malas e partir a toda a pressa, antes que a desgraça carregasse sobre ele.
E onde foi ele buscar essa desgraça? Obcecado pelo sexo?
Com a ideia de emagrecer? À erudição dele? Na verdade ele nem sabia dar uma explicação a essa realidade.

 Quando chegou à taberna para executar a sua tarefa, servir copos, andar de um lado para o outro, comportar-se como um criado, apesar de toda a sua aprendizagem, é claro que os clientes apreciavam a maneira dele. Ele tinha sido uma pessoa cativante mas, quando se está ao balcão de uma taberna o que se põe à mesa não é conversa, mas sim serviço. E, no entanto, não se podia contestar que era um figura de proa daquele tempo da taberna do Rata-Ratão, que por fim lhe permitia sustentar as suas despesas pessoais, a manutenção do carro e pagar a renda do apartamento que alugara numa zona central da cidade. Enquanto Rato Ratão continuava a saltitar à volta das miúdas para chamar a atenção dos clientes, o resto parecia extinto, como uma lâmpada com o filamento partido .-Mas porquê? -Porque Rato-Ratão, rodeado de boas catraias, saltitava por ali como um pastor trazendo um bom rebanho e até começava a encher a gaveta de notas, engordando a sua conta bancária como nunca engordara no seu currículo bancário.
O seu lema: "Um amigo tráz outro amigo", dava-lhe o direito de seleccionar a clientela ao seu prazer -muitos e bons - o que importava essencialmente é que a gaveta à noite ficasse abarrotada de dinheiro. E mais: assim não se via forçado a suportar muito zé-ninguém que andava por aí a monte, quando podia gozar os privilégios de possuir uma clientela ao mais alto nível que frequentava aqueles antros do prazer.

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E ainda: tinha vindo a modificar as instalações da casa de modo a proporcionar o melhor aconchego para os seus clientes; e isso era sinal que 0 negócio estava encarreirado no melhor caminho e todos os dias vinham caras novas e ouviam-se histórias de homens emulheres fascinados por fantasias eróticas. -Sim, numa casa de viciados maduros, por assim dizer, o melhor seria nem espreitar sequer à porta, não sentir o cheiro dos seus aromas, ficar ali feito expectador a ver a cena final de cada um e fazer um raciocínio à mentalidade humana. -Motivos para alarme? Quem seria capaz de condenar? Não só eram as mulheres que frequentavam a   taberna, como não podia confiar em toda aquela gente;
_ havia clientes que ele considerava pessoas respeitáveis do jet set, homens a trocarem as mulheres cansadas e velhas pela cama das amantes novas e cheias de truques aprendidos nas casas dopica-pica 1 e raparigas esfomeadas de tudo à procura que aparecesse o seu gigolô e as levasse para os confins do Mundo ao encontro do amor e uma cabana sem tecto. E, o pior de tudo isto, era quando chegava a cegonha e contagiava uma ou outra das meninas e elas não sabiam quem era o pai da criança! E durante várias dias havia zangas, disputas, falatórios e todos passavam por pais, até o guarda nocturno não escapava a essa dúvida. Por esse motivo, é que um letreirojunto à retrete das meninas as avisava do perigo que a cegonha podia trazer. - Usa sempre o preservativo e evita um mal-entendido -Tal era o anúncio que, um dia, a Madame Rara proferiu: as mulheres do meu estilo, se souberem, só terão filhos se quiserem.

O que ele fez na nova mudança: para aumentar o apuro do dia na gaveta, surgiu o fornecimento inesgotável de filmes em video cassetes, como por exemplo: filmes do Cantinflas, Charlot e também de cow-boys, através dos quais (juntamente com as fitas da Bardot e da Sophia Loren) os clientes se mantinham sempre em contacto com o prazer bizarro da carne. E, para dar mais vazão ao apetite da clientela, punha anúncios à entrada da sala, sobre as fitas que iam estrear-se nos dias de cinema.
Os frequentadores da taberna reuniram-se na cozinha para urna improvisada cimeira em grupo, onde não faltava   uma comezaina  de  frango de cabidela. Enquanto a cozinheira lançava os miúdos do frango para dentro da canja  de  galinha,  Rato-Ratão instalou  o  grande  Golias  e  Ave Rara
1 Casas de passe

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a uma mesa e deu inicio à sessão nocturna. «Tenho o grato prazer de registar aqui as teorias do grande Golias sobre o GAS.» - E discursou no seu melhor estilo. Quando Baixote contou a verosímil história da fuga de Ave Rara no restaurante, em que estava acompanhado do Padrinho e de Fífia -estando o protagonista da cena absorvido pela canja de galinha e pela desgraça de falar de si - Rato-Ratão, sorvendo o ar por entre os dentes, referiu-se à conquista dos marinheiros portugueses A conquista de Goa, Damão e Diu. «Na qual até mesmo o governador reconheceu que os portugueses, embora de estatura pequena, são mesmo uns gigantes na hora da merenda.» -
«Credo, Senhor!» - Golias, de olhos voltados para o tecto, mão repousada na careca, interrompeu essas conclusões: «Ó homem, não diga asneiras. Desista. O seu problema é não saber o que diz, e o pouco que diz, transforma-se numa, numa -e concluiu a frase em tom depreciativo
-numa cagada!» -
Ave Rara, levantando os olhos do prato da canja de galinha, exclamou:
«Vocês é que me lixam lá com a história dos marinheiros; se mandassem mas era vir as mulheres para nos distrair um bocado, isso é que vocês acertavam.» - A sua voz pareceu emergir de um abismo profundo de ansiedade e comoveu a Rapariga da Saca Preta, que se precipitou para o local onde ele estava sentado e lhe afagou a face com uma carícia meiga. «Tens toda a razão. Estes homens é que não sabem apreciar uma mulher, como só tu o sabes fazer.» -
Ave Rara desatou na marmelada com ela diante dos outros que deram bronca.
A Madame Rara, entretanto, saíra da casa de banho.e apresentou-se aos catedráticos hóspedes na mó de cima. Trazia cabelo curto e permitia que os seus mamilos sobressaíssem através da camisa fina, que usava sempre provocantemente justa .Levantou os olhos para todos e acenou com a colher da sopa. «À vossa honra, cavalheiros, e à categoria destas filhas duma ...!» -
Fífia, chegada no momento, entrou em cena. «Cheguei a tempo?» -
«Chegaste, na hora certa.» -
«Já disseram tudo o que tinham para dizer ou querem continuar a dizer mais asneiras?» - Perguntou Golias aos outros e virando as costas à polémica Rapariga da Saca Preta. «Mas que espécie de asneiras, ainda temos muito para dizer? Talvez um bacanal, sei lá. E sefossemos todos foder? » - «Na Xangai room 1» - Começou a dizer, mas Baixote já estava

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1Um quarto especial para seis
·cansado de tanto disparate e cortou a conversa. «Eu tenho um lema
:comigo: na carna sou filho único, assim sei que atrás das minhas costas
,1ão existe mais nada!» - Aquilo fez rir toda a gente.
«Logicamente -continuou Baixote, com o seu sorrisinho malandro -
.cada um faz e come daquilo do que gosta. Nem aprovo nem reprovo.
\Alinho no meu grupo, cornojá disse: é único.» - Ouvem-se murmúrios contraditórios, neste ponto, suscitados pelos mais diversos disparates.
«Num passado recente, sucedeu com um atirador credenciado. Levou com ele uma mão cheia de mulheres para um combate de sexo impróprio para consumo- impingidas pelo GAS, - memória que veio acordar os espíritos de cada um dos presentes, perante as insinuações do orador - e, no meio do ringue (cama), se ele não se punha a pau, uma das lutadoras de sexo, de vibrador embutido no corpo, quase que o deitava abaixo, não fosse ele estar de olho alerta!...» -
Todos se puseram a rir. Até mesmo Rato-Ratão; havia certas verdades que sabia bem sempre recordá-las. «Verdade, verdadinha», -acrescentou Baixote. -«Eu não teria tomates de levar tanta mulher para a cama para, no fim, não ter colhões para as satisfazer urna a uma, nem que fosse um chisquinho de nada.» - E com isto, terminou a cimeira do grupo e Baixote pediu a Rato-Ratão que lhe servisse um whisky da sua garrafa. Entretanto, o resto do pessoal deixou-se estar no pagode. O dono da taberna, pela sua parte, deu um arrumo aos copos vazios e ouviu o Baixote a resmungar:
«Agora vejo porque é que omundo enlouqueceu: com estes diabos todos à solta, quem é que os vai pôr na linha?» - Mas disse-o em surdina, e ninguém, a não ser ele, ouviu o que ele disse.
Capitão Guei seguindo o exemplo do seu patrão, foi dando uma ajuda na cozinha e na limpeza dos copos. E aproximou-se do sítio onde Ave Rara, encostado ao ombro da Rapariga da Saca Preta, deitava abaixo mais um chiquetinho 1 do seu copo. «Ouça lá, dizem que você é um perito em termos filosóficos», - inclinou-se Ave Rara e pôs um braço no empregado. -«Diga-me então lá, se eu quisesse enraivecer um preto, o que é que deveria fazer para enervar o gajo?» - O outro demorou uns segundos a dar a resposta. «A melhor maneira é esta. -e foi ao bolso, tirou um bocado de algodão que passou com suavidade no rosto de Ave Rara - O algodão não engana!» -
Ave Rara desatou às gargalhadas até mais não.

1 Whisky

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Na residência da Xangai foi posto à disposição de Golias e Ave Rara, um quarto para quatro, que estava destinado para o bacanal. O primeiro. a chegar foi Golias que se embrulhou numa manta e pôs-se a sorver líquidos gaseificados. A seguir, entrou Ave Rara de copo cheio de whisky na mão e pôs a mão sobre o ombro de Golias que tremia de frio.
 «Quem não gosta de entrar numa farra destas é como se comesse um
bife sem sal», -disse como se falasse a uma plateia de bêbados. -«Uma confusão com o putedo é como entrar. num carrossel; escolher 0 brinquedo e, depois, deixar-se andar, até perder o medo.» -
Só quando o grande Golias recobrou as forças e sentiu o calor penetrar-lhe nas veias é que reagiu e respondeu à frase de Ave Rara.
«Vocês são a minha gente, o meu povo. Passei metade da minha vida junto dos amigos.»

E o espectáculo começou. As luzes apagaram-se em breves momentos, ouvindo-se o espernear de alguém. Os corpos tomaram formas diabólicas pelas complexas improvisações do tablado. Atravessados, numa cama rectangular, as almofadas enchiam e desenchiam num constante vai e vem, o colchão suportou o começo daquela excentricidade completa de fascinação. De olhar fixo nas sombras que desnudavam as suas formas sensuais e  eróticas, Golias deu um suspiro. «Ficava bem aqui uma lâmpada vermelha para dar mais realismo ao acto.» - Respondeu Ave Rara ao comentário dele. «Deixa-te aí disso. Daqui a um bocado estás-me a pedir que vá desenterrar o Gardel para ele vir cá cantar o Silenzo enla noche.» - Soltaram risos.
O pior foi o coração de Golias que começou a portar-se mal, e a tropeçar como se também ele quisesse tomar uma forma diabólica; depois de tudo o mais, porquê, logo agora? Bumbum, fazia o coração, e o seu peito sobressaltava-se. Toma cautela, senão vais desta para o maneta. Bumbum, Bumbum. Sim, estava mesmo um cangalho.
Por artes mágicas, o coração acalmou um pouco. O chelique tinha passado ao lado, pensou ele. Ainda assim, ouviu Ave Rara, em trabalho duplo, exclamar: «Então, como é? Chega-te para o nosso lado, estou aqui  há  um quarto de hora a aquecê-las; assim não tens trabalho nenhum.» - Ao que Golias, respondeu: «Ó meu caro, eu prefiro a mulher em temperatura fria, assim dá-me mais gozo aquecê-la à minha rotação, não sei se me faço entender» -

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Ficaram mudos durante um bocado, sem fazer perguntas um ao outro. Lá fora, o frio começava a querer desaparecer, dando às pessoas outra aparência mais confortável. Os fumos dos canos de escape dos carros no seu circuito sulcavam o ar espesso e frio.
O amor crescia, desembrulhado como um presente, o desejo fluía a ilusão num apetite diferente . Lá dentro do quarto, eles não davam descanso algum aos seus corpos, antes rodopiavam em malabarismos de artista tocando posições ortodoxas num guisado rocambolesco. À medida que a emoção crescia, o rosto e corpo de Golias modificavam-se mais. Sentiu as peles alargarem-se mais e viu, pela claridade que espreitava da janela, a sua pele ficar mais branca e os dentes mais pretos. E a careca pingava água que parecia a fonte das sete bicas. Ao mesmo tempo, já nem sabia quem era a catraia que lhe lançava olhares duma lascívia cada vez mais explícita, e lhe agarrava a mão com tanta firmeza que quase lhe partia os dedos... Sentiu nos lábios dela o odor da cachaça e ficou cheio de repulsa. Como é que conseguira beijá-la, desejá-la até, chegar mesmo ao ponto de estar ali armado em urso, quando ela estava toda entornada de álcool!.. A claridade tornou-se mais clara à volta deles como uma nuvem de algodão. «Tens uma cara tão mimosa .» -Segredou-lhe ele. E ela fez questão de rectificar . «Não me chames esse nome. Isso é nome de vaca!» - Lá dentro, ouviram-se risos. Ave Rara e o seu par interromperam as suas fantasias e começaram ás gargalhadas. Era agora patente que eles começavam a dar mostras dum certo cansaço. «Essa foi a melhor da noite.» - Disse Ave Rara puxando dum cigarro e pondo-se a fumar.
Cada fantasia apresenta o amor à sua maneira; mas Golias, desperto nesse instante, reconheceu que o seu coração teve um acesso de euforia com as risadas e resolveu animar o serão. «Há dias estive com o meu neto e disse-lhe: 6 rapaz, quando é que pensas arranjar uma profissão? - e o safado respondeu-me: - já tenho, avô, profissão: esperador, só preciso de estar à espera que os meus velhos batam a bota!» -
Eles desataram todos a rir.
Quando Golias se levantou, a recordação daqueles momentos encheu-o de consolo e satisfação. Onde é que se meteu aquele safado do Ave Rara? Deu por si a pensar e foi espreitar: o malandro tinha ido para a casa de banho mais as duas parceiras! O sacana: aposto que se safou o melhor possível. - Era uma ideia para repetir e para voltar. -Mas, por agora, tinha mais com que se preocupar.

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 A Rapariga da Saca Preta e Fífia abreviaram um mini pequeno almoço no quarto, composto de bolachas de água e sal e champanhe Gancia, com que se tinham munido da taberna, e os seus rostos transpiravam ainda excitação por todos os poros. Golias devorou as bolachas e Ave Rara atirou-se à bebida, enquanto as raparigas, ao fim de alguns instantes de brincadeira, desataram a palrar, em simultâneo, que ninguém as conseguiu fazer calar. «Quando acabares um serviço, tens que tomar sempre banho, senão, cheiras a porco, percebes?» - «E tu cheiras a galinha choca, sua mula, bem diz o Baixote que tens um mau hálito, por isso é que um homem, quando vai para a cama contigo, perde logo a inclinação de endireitar a forqueta!» - E enquanto uma das raparigas perdia a fala, Ave Rara cuspiu o champanhe para o chão e berrou furioso: «Ó carago! Calai-vos  lá, senão, corro-vos fora do quarto.» -
«Estamos a brincar, -disse Fífia com meiguice no olhar -Nós até somos amigas, não somos, pá? -concluiu rapidamente ao ver a Rapariga da Saca Preta com uma cara do caraças - Bom, o que a gente disse, - começou ela a gaguejar -bom, quer dizer, foi a brincar, vocês não levem a mal.» -
«Foi uma noite do caraças -disse Fífia fumando um cigarro.
«O que a gente passou aqui - acrescentou Golias - não se conta nada a ninguém, por causa do falatório lá na taberna, perceberam?» - E uma delas terminou a frase: «Também não quero que ninguém saiba disto.» -
«OK, estamos conversados. - Agora foi Ave Rara que falou com convicção. - Mas não se esqueçam  que prometeram voltarmos  cá novamente para a segunda parte.» - E recuando em direcção à porta, disse ainda: «Sois um encanto. Até logo.» - A Rapariga da Saca Preta, antes de sair, tirou um frasquinho dentro da carteira cheio de líquido azul e pôs umas gotas no meio das mamas e das orelhas e deu o seguinte remate na hora da despedida: «Olhai, o primeiro gajo que se chegar ao pé de mim, vai-me querer lamber toda...» - E desatou a rir pelo corredor adiante.


O facto de Fífia e da Rapariga da Saca Preta se perfilharem a fazer duplos em programas de erotismo revestia-se essencialmente por causa do pilem que caía na suas carteiras e convenciam «toda a gente» que eram, acima de tudo, especialistas no assunto.«Agora aquele velho marado

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quer-me convencer a ir com eleparaacama elevar urna cassete de vídeo com cenas de coelhos  a fazerem  amor!» -
«Eu acho isso um nojo», -concordou Fífia. -«Esse tipo fez-me lembrar
a história que eu tive há tempos com um coxo que tinha a mania de fazer amor em cima da cadeira e punha a perna de pau a fazer de trave para o segurar; às tantas, entusiasmou-se tanto que acabou por cair e bater com a cabeça no chão e teve que ir receber tratamento ao hospital.» - Mas elas não eram lésbicas, não o eram de forma alguma; apenas faziam uns trabalhinhos encomendados por causa do pataco e, no entanto, não lhes faltavam clientes que não as quisessem. «Onde está o velho maluco da cena do coelhô?», --Perguntou Fífia. -«Apresenta-mo, hoje estou com vontade de fazer de coelha.» -
Estava ao fundo da sala. A Rapariga da Saca Preta foi ter com ele e apresentou-lhe a amiga. Com uma mão a tapar uma parte do rosto, o corpo esguio e esquelético escondido numas calças largonas a cheirar a unto de porco, e num par de sapatos medida 50, o velho marcou o encontro logo a seguir à apresentação. Depois, aconteceu o seguinte. A meio da sessão do vídeo na cena do coelho se atirar à coelha, Fífia começara a vomitar e, sem dar conta, perdera a cremalheira dos dentes.
De repente, quis falar com destreza como era seu hábito e deu conta que sentia dificuldade em mover o maxilar.
«Que motivo será?» - Disse ela, indo fazer um chichi. «Qual é a tua entrada em cena?» - Perguntou o velho quando os coelhos começaram aos saltos. «Eu já te digo.» - Mas passaram mais de cinco minutos antes que o fizesse. Entretanto, na cena do vídeo, os coelhos continuavam à procura das coelhas saindo Fífia da retrete, abriu os olhos e viu a sacana da cremalheira dos dentes, mesmo ali à sua frente, espetada nas costas do velho.
A primeira coisa que pensou foi aproximar-se dele, fazer-lhe uma festa na cabeça e zás, colocar de novo os dentes na boca. «Ü que é isto?» - Berrou o velho pondo a mão nas costas mas ela acalmou-o com uma cena de coelha dócil.
Bem, depois, arranjou uma cena em que não fosse preciso mexer muito com os dentes e, durante a parte final, os coelhos puseram-se a comer as coelhas de pé e a falarem com pronúncia de habitantes do Leste.
Entretanto, despediram-se dos intervenientes.
Até à próxima. E já agora, muito boa noite.

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Afinal de contas, São Nicolau (veio a saber-se mais tarde) perdera também a casa. Como sejá não bastasse ter perdido a mulher, o trabalho e o controlo da sua vida.«A merda do sensacionalismo quando dá para avancar 1 é sensacional mas, se dá para o torto, mete um medo do carago.» - E não lhe saia da cabeça que, um dia destes, ainda voltava a colocar-se frente a frente com o homem vestido de negro e de martelinho na mão a bater na secretária e a dizer constantemente: «silêncio». Uma pessoa, quando nasce para apanhar tareias e se calha de ficar moído, só a urna o salva de apanhar mais porradas. Seja como for, São Nicolau já tinha feito a sua previsão relativa ao futuro. Mesmo com o estouro do famigerado negócio das transferências de defuntos, mesmo que não vergue mais a mola e caso não tenha direito à reforma da Segurança Social, hei-de morrer à sombra de uma bananeira e, confortavelmente, num caixão minimamente decente.
Estava a descer pela zona secundária da cidade, junto a um declive de águas sujas a vir trazer-lhe o cheiro. Porque seria que a sua vida se assemelhava tanto, no seu caso, a Padrinho? Pusera a consciência a trabalhar e vinham-lhe à mente coisas-nunca-iguais, do estilo não
-voltar-atrás, e enchia-o de medo. Sabias que agora eu ando com Mister Louis? E como é que tu havias de saber se eu nunca te disse? Foi assim, quando andei por aí a vegetar que eu o conheci. Quando uma pessoa esquece opassado fica distante de sipróprio, corno diz oprofeta Abraão. Se conseguires aguentar-te, livra-te da incúria e foge da penúria, disse para consigo.
Mister Louis: um turbilhão ao Deus-dará, um sujeito que deixou de valer um tostão. Playboy inglês, tinha transformado uma banalíssima agência de trapos - M ister English - numa loja de marmelada. Sobejamente um paranóico, famoso pelas suas aventuras com estrelas de cabaret e algumas rainhas das casas de massagens e, segundo as más línguas, pela sua apetência às mulheres de mamas grandes e traseiros bem arredondados, a quem «comia pelos olhos», norma utilizada no seu caso que «recompensava generosamente». Para que é que a Maria-Rapaz se tinha ido meter com aquele aventureiro do Mister Louis, com os seus truques das argolas no corpo e o seu BMW ultimo modelo? Para homens daquele escalão, as chavalas mesmo mamudas e bem avantajadas de traseiro - eram para dar urna moca e não repetir. - Devemos também dizer que o vício, quando surge, perverso e tentador, é incontrolável do poder indígena.

Maria-Rapaz telefonou na noite seguinte, dos arredores do Porto. A funcionária chamou Mister Louis ao telefone mas ele quando atendeu o telefone, ela já tinha desligado, mas voltou a ligar. «Estou a falar duma cabina e não tenho mais moedas.» «Maria», disse ele, deixando transparecer na voz um fio de desespero. «Tu não me disseste que me ias dar com os pés» «E tu nem me disseste que me ias trocar por aquela nojenta da preta», respondeu ela. «Cada um de nós tem as suas razões.» Ele voltou a dizer: «Maria, volta, que eu vou-te pôr uns brincos gírissimos no teu pipi para nós brincarmos como dantes.» - «Põe antes no cu da preta.», disse ela n_um tom brincalhão. «Parece que estou a imaginar a cena. A preta a guinchar, quando quiser arriar o calhau e os brincos a tilintar uns nos outros, ah,ah,ah.» - Ele deixou-a rir até voltar a dizer:
«Maria, eu estou só no mundo e só te tenho a ti. Não me faças atirar da ponte D. Luis 1ao rio Douro, que agora a água está gelada.» -
Ela ficou como o gelo. «Louis, ouve bem o que te vou dizer. Não quero discutir contigo outra vez porque, no fundo de todas as tuas parvoíces, se calhar até me amas. Por isso vê se entendes que eu sou uma miúda inteligente e, porra, pá, deixemo-nos de merdas; nenhuma branca gosta de ser trocada por uma preta. Quando dou o meu amor é porque estou consciente que amo essa pessoa, estou a falar de nós, evidentemente, por isso é que eu te digo, Louis, não me queiras explorar mais. Ainda tu andavas nu como o macaco e já os teus descendentes exploravam as parvas como eu. Vai para África ou para a Índia que lá não devem faltar mulheres que gostem de pôr brinquinhos nos sovacos, cotovelos ou quem sabe, até nos próprios calos dos pés; dizem que elas os têm a rodos.» -
«Neste caso, admites que não me amas e que não me queres mais.», objectou Louis, mas a voz atraiçoou-o. «Desta vez é de vez.» -
«No fundo, acho-te divertido, um velhaco, e único no teu género. Mas vou fazer-te uma lista de duas a três coisas que me interessam: nada de brincos, nada de pretas e um exclusivo só para mim; dia e noite.» -
«Maria», disse Louis, «Mas assim, tenho que ter urna língua de aço...» - Mas a chamada foi abaixo e elejá não a ouviu. Poisou o auscultador no descanso. Ela voltou a telefonar, dias depois e, nessa altura, já a lista das promessas estava consumada; ela nem lhe perguntou se elejá tinha dado mais uma queca na preta ou noutra qualquer, nem lhe perguntou onde ele andava, como ele também não lho disse e tornou-se evidente para

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 ambos que se tinham de afastar um do outro, era tempo de dizerem adeu:
«Louis», -disse Maria.-«Aconteceu-me uma coisa estranha. Apaixonei-m 1 por um amigo teu ...» - E ela ainda estava a relatar-lhe o novo filme d:i sua vida quando ele atirou com o telefone contra a parede. Uns segundo depois, o telefone tornou a tocar.Ele foi atender. Era a voz dela. Maria
continuava entusiasmada a não falar de outra coisa que não fosse o amigo dele:os nossos planos são fazermos filmes sobre os piratas em Portugal e na Espanha, buscando as grandes vedetas, Hermanias, Miro Azevedo. Filipe Gonzalez, para desfilarem diante da Igreja dos Congregados ou do Mosteiro do Pilar -«já imaginaste reunirmos estas personagens sem cachet», -acrescentou ela alegremente.
A verdade é que as coisas estavam a aquecer para o lado dela. Louis nem quis acreditar quando ela disse que o amigo se chamava Champalinas. Louis lera, no pasquim do GAS, o nome dele associado às fajardices com mulheres da pior espécie e manobras fraudulentas, mas era assim mesmo, vigarista um dia, pirata toda a vida. Disse Maria: «Então ele perguntou-me: queres um casaco de visão? Eu disse, Champalinas, não precisas de me comprar coisas tão caras, mas ele insistiu :minha querida,
nada tema comigo. Vamos às compras e está tudo dito.» -
Tinha voltado a dar uma visita pelas ruas Sá da Bandeira e Santa Catarina e Champalinas trouxe o seu Mercedes.Ao chegarem ao centro, ele encostou o carro na baixa e pediu-lhe para aguardar uns instantes; parecia um xeque do petróleo .
Ao fim de alguns minutos ele regressou com embrulho debaixo do braço e disse: «Aqui está, minha querida, o casaco vista-o que é seu.» - Ela deitou a mão ao casaco. «Que bonito.» Ele segredou ao ouvido dela.
«Foram só quatrocentas donas marias, mas você merece tudo de bom
que há no mundo .» -
Era uma tarde de sexta feira, as lojas estavam superlotadas de gente a fazer compras para o fim-de-semana. Champalinas entrara na segunda loja e comprara um anel de brilhantes, enquanto Maria ficara à espera dentro do carro. Cinco minutos depois, ele chega e coloca-lhe o anel no dedo, perante o espanto dela que não queria crer em tanta coisa bela.
«Meu Deus, isto deve ter custado uma fortuna.» - Ele segredou-lhe: «São duzentos mil, mas já está pago.» - No dia seguinte, de manhã, abriram as lojas comerciais e Maria deu um passeio pela baixa e foi ver asmontras,

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vindo a descobrir que o casaco de visão não era verdadeiro; afinal, aquela pele não passava sequer duma pele - de coelho bravo .-Ela nem quis acreditar e pôs-se a protestar com o lojista que tencionava processá-la por difamação e pedir-lhe uma indemnização. E, daí a uma hora, chateada com aquele mau dia, resolveu entrar numa casa de penhores e foi avaliar 0 anel de brilhantes. Ali lhe disseram que em vez de brilhantes, tratava-se de «esmeraldas»  e valia uns cinquenta e picos contos, mediante
pagamento imediato. «Não é uma má ideia. Digo que o perdi e meto o dinheiro ao bolso.» - Pensou Maria e assim fez, vindo recheada de notas na carteira.
À beira destas fajardices todas, eu sou um autêntico homem, percebeu
Louis, que não sabia bem como as coisas se tinham passado e vivia num mundo de salve-se-quem-puder. Na sua agência de trapos, continuava inexplicavelmente a tratar as funcionárias como suas almas gémeas, apesar de todos os seus esforços para as não roer, principalmente, às flausinas que lhe batiam com «ele» nos olhos...
Lá dentro do escritório era um ser admirado, como a figura dum arrombador de gavetas, o gentleman do mico, o explorador de ingénuas; de um modo geral, um artista da arte de as comer bem. Nesse período, corrigiu-se a si próprio.
Mais nenhuma Maria-Rapaz seria capaz de lhe roubar o coração. A titulo de experiência, contou-lhes a história de Champalinas e do casaco com pele de coelho bravo e do anel que foi para o chaço.
Os olhos delas brilhavam e, no fim da história, riram deliciadas; a vigarice paga pela mesma vigarice, dava-lhes vontade de rir. Assim compreendeu Louis, tinha as funcionárias de outros tempos aplaudido e soltado gargalhadas ante as proezas de pessoas sem classe e, neste caso, Champalinas, outrora amigo epresentemente inimigo...
«Há pessoas tão reles e sem categoria.» - Exclamou a nova empregada de escritório, rindo com o seu ar provocador, traduzindo uma série de nomes sensacionalistas, enquanto exibia o seu corpo delgado e, como Louis agora reparava, loucamente apetecível, em várias formas eróticas não muito exageradas.
Fazendo beicinho com a maior desfaçatez, sabendo bem que o tinha excitado, acrescentou afectuosamente:
«Um beijinho?» - A colega mais nova não quis ficar atrás e tentou copiar a pose da outra, mas com bastante menos êxito.
Desistiu da tentativa, não sem alguma irritação.

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A taberna de Rato-Ratão estava classificada como cervejaria esnack-bar. categoria de estabelecimento que as entidades turísticas classificaram de segunda classe. «Uma casa como esta - comunicou o dono - só se encontra em revistas, livros ou no cinema.» -
E voltou a dizer: «Neste momento, praticamos os preços mais baratos ao cliente, por isso espero bem criar mais clientela.» - Realmente, por aquela comodidade toda e pelos preços, pensou Louis, não é difícil um indivíduo tornar-se cliente da casa; e não havia aumento de preços quando surgiam novas pombinhas. Que também seriam bem-vindas. Entretanto, Rato-Ratão enchia-se de bondade, fartando-se de dispensar a sua sabedoria sem pretensões e oferecer a sua amizade e os seus sorrisos sem pedir em troca sequer tostões. E, atrás do sofá do meio, Louis espreitava ao perto a trintona de mini-saia a fazer um telefonema ereparou que, à sua volta, talvez uns vinte otários, tão atiradiços como ele, estavam prontos para esfolar o cadáver.
O mundo do vício.
«Escusava de estar aí debruçado na mesa com esse ar de big boss», - disse Capitão Guei. -«Olhe para trás e pense de que lhe serviu estar a dar de olho à trintona, se houve mais de vinte olhares para ela que a pobre coitada nem sabe qual foi o olhar mais respeitador de todos.» -

«0 teu império está a apagar-se.» - Voz Calada, homem sempre programado, criador do Silêncio dos Surdos, e único proprietário da ideia, gastou exactamente quinze segundos a felicitar Padrinho por ter conseguido levar o seu projecto avante, antes de começar a explicar por que é que esse facto agora estava dependente de novas ideias. Voz Calada tinha começado a sua carreira na publicidade com algum sucesso. Padrinho, no entanto, não se atrapalhou. Todos aqueles anos no negócio de formação tinham-lhe ensinado muita coisa. E marketing é o que ele sabia fazer mais e tinha potencial para isso; o mundo da formação, o mundo do aluno aprender a passo de caracol. No mundo da rapidez, todas as pessoas voam senão ficam para trás; as outras que não chegam à meta, paciência, tentam outra vez. «Estou a falar, -soprou Voz Calada ao telefone -do vosso reinado.» -
Outra vez aquele chato: Padrinho, atarefado com papeis por todo o lado, foi ao sítio onde estava pendurado o telefone no meio do corredor; enquanto os alunos lá dentro da secção, atacados com peças de vestuário mal talhado para consertar, não davam vazão à encomenda e nem sabiam

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por onde esticar os tecidos. Agora, porém, Voz Calada não estava a brincar. «As sondagens mostram», -sussurrou ele. -«Que a informática e a televisão têm um papel preponderante na nova formação dos novos valores para a indústria em geral. Não é isso que pretende, Padrinho? Não sei se está a topar o filme, o tempo dos Marretas já lá vai. Agora é chegada a hora dos Fiúzas entrarem em antena pública. Vê se entendes 0 que eu quero dizer!» -
Padrinho viu-se reflectido num espírito novo, olhou para o espelho
por cima do telefone. Parecia que tinha crescido mais um metro. «Enfim, não há nada como experimentar esse projecto.Venham lá esses filmes.» - Respondeu a Voz Calada, sabendo que não valia a pena insistir. Na escola de formação, todas as informações aos alunos foram dadas através do slogan: Procura a nota. E mandara colocar um cartaz à entrada do seu gabinete e afixara a sua fotografia do Padrinho. -Busca o dinheiro - uma sigla que entusiasmara todo o aluno. Como Voz Calada costumava citar, as suas quatro amantes, todas bem boas, de cada vez que se punha em cima do poleiro delas dava cabo duma pipa de massas. «Que é que eu hei-de fazer ao dinheiro? Ao menos gozo e, quando não tiver nota, elas piram-se à má fila e deixam-me ficar por aí como um cão abandonado e à deriva. - dissera ele um dia a Padrinho nos tempos mais felizes. - Que se lixe. Eu sou de carne e osso. - Padrinho ao telefone, lembrou-se que se esquecera do slogan. «Como é que se chama a frase publicitária?  responde Voz Calada. - São boas como o milho!», «Ó meu sacana, perguntei a frase e não a qualidade das tuas amantes.» -
No tempo em que ele conhecera Voz Calada (há quase cinco anos) num almoço na fábrica das molas, o homem já era um sabido. Nessa altura, ele vendia  porcos aos lavradores por meia nota de conto e punha-lhes chumbos nos ouvidos. Uns dias depois, os animais adoeciam e o sacana voltava a negociar os porcos, trazendo uma dúzia pela meia nota. A seguir, meteu-se nos anúncios e andava para aí a fumar charutos gordos, dizendo: «ando a aprender com o Churchill» - Trazia um colete à moda alentejana com a etiqueta dos toureiros e fazia questão de utilizar a muleta quando pregava o mico aos amigos; adorava imitar o John Wayne, e andar sempre aos tiros (na carteira dos outros, claro!) para grande espanto dos seus clientes, mais ligados a ele; afirmava ser o dono do Palácio da Bolsa com escritório no salão árabe e prezava muito as suas relações com ojuiz supremo do tribunal correccional de adultos de

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habilidade escassa. O Voz Calada era uma personagem do tempo actuaJ e possuía instalações c1tadmas duma agencia criativa, denominada A sociedade Voz Calada e Harmoniosa. Tal como Mister Louis, adorava carros alemães e de preferência grandes e automáticos, com bar na parte de trás do assento, e adorava a qualquer hora beber leite da vaca Mimosa. Dizia-se que, uma ocasião, ia na companhia dum amigo e deu-lhe para engatar uma prostituta na estrada para lhe fazer uma massagem no carro. Mal ela o pôs a aquecer, pediu-lhe que passasse a gaita no leite e Voz Calada reparou que a mulher ainda era maior que ele. Quando ela se aproximou, Voz Calada carregou no botão para descer o vidro e, ao mesmo  tempo,  abriu a porta  e disse com um  sorriso encantador:
«Agradeço-lhe que se ponha daqui a toques muito depressa, antes que ela deixe de endireitar porque, depois, ninguém me aguenta.» - Voz Calada era um génio a inventar factos e ideias e a sua agência estava bem cotada no mercado da piada barata e tornou-se bem conhecido dos rufiões, mangoneiros 1 e ambientes da pesada. Padrinho desconfiava há muito tempo de que Voz Calada inventara a ideia das fitas de projecção sobre a formação - cadeiras, slides e o projectista sem aparecer.
O almoço entre ambos acabou por sensibilizar as duas partes e Voz Calada saiu-se bem no seu desempenho numa campanha de promoção aos vinhos a martelo dos tascos de Cima de Vila, que fora um êxito estrondoso. Voz Calada dizia em voz grossa imitando o Cocas dos Marretas: Beba três e pague só um. Eu sou o copo do prazer. Nesse dia recebeu quatro garrafas de litro por ter convencido os bebedores a beberem o triplo das suas medidas. «Você é um ás», -felicitou-o Padrinho
-«Deixe-me apresentar-lhe os meus cumprimentos.» - ·
Quando Procura a nota começou a ser alvo de curiosidade por parte dos alunos que acorreram em massa ao programa da escola de formação, Padrinho esfregou as mãos de contente. Graças a ele e ao seu entusiasmo, aumentara a sua intimidade com o génio Voz Calada, e passou a ser conhecido corno «OS dois da vida airada».
Tudo, porém, não passou duma gota de água no oceano. As pressões fiscais contra o programa de vídeo agravaram-se durante a ausência de Padrinho e muito por culpa dum tal senhor Chinês que apareceu na escola a bisbilhotar na papelada. «Senhor fiscal, eu não faço ideia onde estejam esses documentos», -roncou o encarregado da escola. - «Üs serviços de contabilidade não estão a cem por cento a funcionar.»

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1 Indivíduos com expediente e preguiçosos.

Mais tarde, o encarregado comunicou aquela visita ao Padrinho que ficou a colher informações. «Ü estafermo tem uma cara do caraças, os seus olhos olham por baixo como a catatua.» - Padrinho considerou tudo uma perseguição à sua empresa e mandou um recado a Voz Calada. «Eu cá», - anunciou o outro, - «juro que não recebi nada. Mas não te preocupes, eu vou saber quem é.» - E foi logo a seguir ao almoço que Voz Calada contactou o fiscal das finanças, o tal Chinês e acabou por saber que era uma rotina ao sistema da contabilidade da empresa.
Mas Padrinho não gostou de ouvir isso e foi tratar com um cliente e fornecedor de computadores para alterar o sistema informático. «Eu quero as rectificações à minha maneira. Tradicionalmente feitas de trás para a frente e de baixo para cima.» - Demonstrou com um esquema no papel o que pretendia. «Está a ver? É assim que eu quero o programa . Três para mim, mais três para mim e mais três para mim e sempre assim.» - Não foi preciso explicar mais nada, que o homenzinho percebeu tudo em ângulo recto, conforme os desejos dele. O que eu mais adoro neste país são os génios. Os maiores fabricantes de ideias. Sem eles, as estrelas não se iluminavam. Fora com o ar mais natural do mundo que Padrinho perguntara. «Tem toda a razão. Também lhe dou a minha.» - Confirmou o outro.
Encontraram-se os dois pela ultima vez, pouco antes de Padrinho seguir para Lisboa; almoço de sexta à tarde no restaurante do Zé da Pipa, ali não muito longe da empresa. A ementa era caseira: arroz de sarrabulho, várias saladas e azeitonas brancas. Por fim, fumaram um charuto cada um e beberam um Armagnac. O paraíso da dolce vita, proferiu Padrinho e reconheceu alguma inveja nos seus pensamentos.
A seguir ao almoço, uma sürpresa. Voz Calada levou-o à sala de dentro onde se encontravam dois homens com dois instrumentos nas mãos;um com uma guitarra e outro com uma viola. «Para descontrair um pouco», -confessou Voz Calada com os olhos brilhantes. -«Vou cantar um fado.» - Ouvíu-se o trínar dos instrumentos e soou a sua voz u m pouco roufenha:

Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida Tão concreta e definida, como outra coisa qualquer...

«O meu pai era mestre nas cantigas.» - O talento de Voz Calada como

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fadista era inegável e estava, de certa forma, em desacordo com a sua personagem. Quando saíram do restaurante, ele encostou-se à porta da entrada e confiou ao Padrinho: «Vou falar do-que-tu-sabes», -explicou Voz Calada. -«Ü sistema é radical. O que eles querem é engolir-te. Vê se te vês livre deles senão és carne para canhão.» «Tu já pertences aos da velha guarda. Percebes o que eu estou a dizer?» «Acho que sim.» . Mentiu Padrinho. «E não é só com homens de negócios, - disse Voz Calada com voz esganiçada -Com os intelectuais é igual. Rua com essa corja de maricas. Que peguem nos esfomeados dos sem abrigo que não tiveram instrução certa, com todos os vadios, todos, ouviste? Novos e velhos, professores e doutores, tudo novo cá na terra, dá uma autêntica revolução. E este país está atafulhado de vigaristas e medíocres! Já me começo a chatear comigo mesmo.» -
E depois o adeus entre os dois.
«Amigo, segue o teu caminho», - Murmurava Voz Calada ao seu ouvido. - «Depois a gente vê-se por aí, algures.»
«ÜK. Não fales mais, senão eu choro.» - Cada um seguiu para o seu lado.


Abandonado por aquela que ele considerava ser a sua amiga dos tempos modernos, Champalinas teve, para seu desencanto, notícias desagradáveis que lhe foram bater à porta do pequeno apartamento onde habitava. - o berro do recibo da luz - «Trriimm» - a campainha da porta preveniu-o a tempo; mas, antes disso, teve que desligar o rádio e deixar- -se estar sereno durante uns bons minutos, até o funcionário dos serviços da luz se retirar. Depois de se certificar que o homem já se tinha ido embora, abriu as portas do quarto e ouviu uma voz que partira de dentro: «Quem era,?» - Perguntou a sua nova amiga.
«Era o vendedor da casa da sorte a ver se eu queria comprar uma lotaria.» - Mentiu ele. A moça saiu do quarto com quase tudo à mostra e tapou meia cara. «Podias ter comprado o 69, é o meu número preferido.» Champalinas deu-lhe vontade de rir e berrou-lhe:
«És uma desavergonhada, já viste como estás? Vê se te vestes.» -
«Oh! Não me fazes a vontade, também não te faço a tua.» - Resmungou ela entre dentes, cravando um par de olhos rebeldes nele. Lá no fundo do corredor via-se a moça, mostrando tudo de bom aos inquilinos do prédio de frente. «Quereis, mas não vos dou...» -

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«O que estás para aí a dizer?» - Perguntou de novo Champalinas.
.Mas a moça desaparecera para o quarto de banho, -deixando a janela entreaberta; -e pôs-se descontraída a tomar um duche frio.
Champalinas pegou no fato completo e nas botas e arranjou-se, desde há muito que mantinha aquele apartamento na zona chique do centro da cidade, para não perder o contacto de gente de bem, queque como se diz na linguagem fina, etinha boas relações com gentes de todos os níveis, embora fosse acusado por alguns amigos de ser um grande pantomineiro. E escapuliu-se no elevador, deixando a moça a tomar banho, saindo cá para fora afim de resfriar os ânimos.
O que seria feitó'da sua indústria de filmes? Dizem que tudo não passou de uma grande manobra e tinha agora um negócio em mão, que os amigos lhe asseguravam óptimos rendimentos: telemóveis e rádios para carros.
Mas, continuando:
A notícia no pasquim da taberna do Rato dizia que a empresa de Mister Louis tinha sido estruturada na sua totalidade e virara-se para a exportação, produzindo calças e camisas de caqui, marca: Quemerda, e assinalando o regresso da marca -Mister English. -Agora revelava-se um autêntico self-made man. É a hora da verdade, escrevia o pasquim: ou ele se atira de cabeça, ou então vai pró maneta e aí nunca se sabe o que pode vir a acontecer! A notícia causou algum impacto entre os leitores, mas outras pessoas não fizeram caso, pensando tratar-se duma brincadeira . «Sabem que eu não sou homem para brincadeiras», -disse ele, depois de ler as notícias . - Sempre que me atiro tenho êxito e, se assim não fosse, estava quieto na praia a apanhar sol nas ventas.» - A sorte, porém, voltou ao fim de algumas semanas e ele sentiu que a exportação para a Colômbia e Brasil subira o volume das encomendas.
«Aceitei este repto com todo o empenho e com a mais sincera das virtudes», -procurar o êxito. -«E parece que o estou a conseguir :-o lançamento das calças Quemerda. -
Que calças eram essas? Um tipo de calças destinadas a combater o sol, com refrigeração no seu interior, era uma das novidades no mercado internacional. «Ü problema das calças», - explicava ele aos amigos. -
«É se um indivíduo vai para uma pista de baile dançar com uma miúda e põe-se no roço, o calor transforma as calças em água.» - Não faltaram risadas ao comentário dele.

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«Desculpem a confidência, mas as calças, para quem sofrer da falta
de calorias na gaita, é uma maravilha, está sempre no braseiro.» -
«Uma espécie de calor artificial» - Disse um deles.
Quando a notícia se espalhou pela taberna do Rato e Champalinas tomou conhecimento, horas mais tarde, ele teve o mais famoso dos risos de troça que alguma vez já teve; um riso que quase o obrigou a mijar pelas calças abaixo. «Calças com refrigeração para combater o calor», - riu-se perdidamente. -<Champalinas acalmou-se e passou o lenço pela boca . «Hoje em dia, ouve-se cada uma, vá lá o diabo lembrar-se destas coisas.» -
«Também ninguém acredita em bruxas», -encorajou-o um amigo. -
«Mas, que as há, isso é uma certeza.» -
O amigo saiu, deixando Champalinas a sós com a ironia daqueles momentos, sem se aperceberem que aquilo lhe dava um prazer fantástico. Mas não há que o censurar por isso; as zangas entre Champalinas e Mister Louis, é um facto que remontam desde há uns tempos atrás. Manda a verdade que se diga que nenhum dos dois sabe quem começou primeiro e quem tem motivos para apontar o dedo ao culpado.
Mas o que foi que aconteceu? O seguinte: durante algum tempo foram amicíssimos mas, numa breve discussão por causa de saias e de copos entre eles, pegaram-se e diminuíram a amizade. Inequivocamente, alguns furos abaixo da tabela de O a 1O, ficaria aí um três...
Seja como for; o optimismo da reportagem no pasquimveio a revelar-se infundado de algum realismo; pois, alguns dias depois, a imprensa comunicara que a empresa de Mister Louis tinha sido abordada para apresentar a sua obra prima: - as calças Quemerda - e fora alvo duma chacota juntamente com a sua nova secretária, no concurso de danças de salão em Genebra.
Para que não nos acusem de falta de informação, devemos acrescentar que os bailarinos -dentro de umas calças com ventiladores (a delicadeza não nos autoriza que divulguemos  pormenores mais concretos), expuseram-se demasiado ao calor, e mais não diremos.
Mister Louis teria sem dúvida classificado a ideia como «uma grande golpada», não fosse o imprevisto da dança em que se deixou adormecer,

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ao compasso dos francos suíços. «Quando um homem vende uma ideia não pode comprá-la de novo. -Mister Louis não chegara a embolsar francos nenhuns, muito pelo contrário, tivera que se fisgar muito rapidamente pois a comunidade mundial dos bailarinos ansiou por deitar-lhe a luva. «Estava tudo tão real como Lucifer ser generoso para com Deus. -invocou ele para o seu espírito interior.» - Os dois piraram-se de lá muito de mansinho sem grande algazarra e contando algumas aventuras por cá passadas à Menina Ane Jalouneix, que no dia anterior entregara ao casal um pedido de indemnização destinado aos bailarinos, na ordem de um milhar de contos. A Menina Jalouneix tinha alguma influência no Departamento do Turismo e os inspectores chegaram tardiamente ao hotel, quando Mister Louis e a sua secretária já galgavam a fronteira para Espanha.
Quero que vocês se lixem.
Durante uma temporada nunca mais se falou nas calças de caqui com ventiladores para o sol.

À medida que os fumos penetravam na mente de Chicras, o seu corpo tornava-se num demónio à solta e, no parque automóvel, cada vez era mais evidente que o seu estado piorava de dia para dia. Os dentes tinham-se pirado pela retrete abaixo, mostrando a gengiva ao luar sempre que tinha que arreganhar a tacha a uma pessoa para pedir uma esmola. Crescera-lhe a barba preta e espessa, o seu nariz bicudo parecia um lápis de desenho enos ombros exibia muitos pêlos; na verdade, todo o seu corpo estava cada vez mais parecido com o chimpanzé, bem peludo, e surgia-lhe até, na zona dos enchidos, um testículo a mais que crescia cada dia mais ejá o obrigava a usar calças de número superior e andar de muleta para equilibrar-se melhor, escondendo assim o novo membro em largas almofadas por dentro das calças. Facilmente se poderá imaginar o desassossego que nele suscitava esta transformação progressiva. Até o seu apetite se alterava. Desde sempre esquisito em matéria de comida ensacada, ao ponto de nada lhe saber bem e de dar por si ao meter para a veia. A estranha sensação de que o testículo aumentava sempre que puxava o ar pela narina - para snifar a coca - caindo em si meio envergonhado e aflito, ante este novo indício de crescimento do novo membro. Era uma coisa terrível, tão terrível que ele, ás vezes, julgava que estava a sonhar e custava-lhe a suportar.

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A presença dele tornava-se nefasta para os poucos comparsas que. acompanhavam na zona dos vícios e todo o dinheiro ajuntado na vigilânci, dos carros se misturava nas doses da droga que acalmavam o seu hábito. levando-o a sentir-se no estado em que ficava, uma espécie de Monstn da Ópera, um ser repugnante, mas não necessariamente aterrador.
«Ele que não se atravesse no meu caminho, senão, ainda lhe parto 0 focinho.» - Exclamou Ave Rara quando ia a entrar na taberna do Rato l' o olhou á distância. E virou-se para o empregado: «Você sabe o que me fez aquele malvado? Costumo dar-lhe sempre meia nota de conto para vigiar o meu carro e não é que o estupor, há dias, apareceu-me com uma lengalenga a ver se eu queria comprar uma máquina de filmar Sony e pediu-me adiantado cinco notas de mil que depois fazíamos contas pois
estava cheio de pressa. E eu, armado em pastor, passei-lhe o dinheiro para a mão e o gajo espeta-me com o embrulho e, quando eu vou abrir. tinha dois tijolos embrulhados num jornal.» -
Ele continuou, no entanto, a mostrar-se solidário, mesmo depois daquele estúpido procedimento que teve lugar ali à porta da taberna e pediu ao empregado que o avisasse quando fosse a sair, pois não queria dar com ele de caras e perder as estribeiras.
Capitão Guei, gentil como era, aproximou-se do sítio onde Chicras estava, deu.-lhe uma moeda de cinco escudos, sem dizer quem era o remetente e deu-lhe uma palmada no ombro e disse-lhe: «Por hoje, basta de arrumar carros. Está na hora de ires ver o Espírito Santo a pregar na televisão.» -
Agradeceu de emoção e de pé em pé saltitou pela rua adiante. «É
fraco o programa que me está a dar», - disse ele, mim tom irónico.-
«Prefiro antes ver a telenovela Gabriela, Cravo e Canela.» -
«A escolha é tua.», - Desculpou-se Capitão Guei.. «Eu só queria informar.»
«Mas informou mal», -voltou a responder Chicras com a sua amargura estampada no rosto. -«Costuma-se dizer que o corno é o último a saber, neste caso, não sou o primeiro e nem serei o último.» -


O amigo Baixote não conseguia libertar-se, por um instante que fosse, das suas horas dos copos, da vigília ás suas conquistas etinha consciência de que, pela primeira vez, perdera a vontade de lidar com  a vida, de

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icordo com os seus valores morais. No clube desportivo onde ensinava
!ióquei em patins a um número reduzido dejogadores, insistindo sempre 110s aspectos da disciplina, para engrandecimento do ser humano e do Jjvertimento deles, começou a dar mostras de um frenesim apaixonado
LJUe os jogadores, apercebendo-se de que aquilo era a expressão de alguma angústia íntima, ficaram desconfiados. «Muito bem, Mister. - dizia-lhe em tom brincalhão uma das estrelas da equipa, EVS. -O que se deve fazer para não falhar um pénalti?» - Ele devolveu-lhe a pergunta com a sua franqueza habitual. «Quando estás de frente com o guarda redes tenta comê-lo, dando-lhe o corpo ao engano, antes de lhe enfiar a bola por debixo do cu.» - No fim da sessão de treino, os jogadores estavam todos esbaforidos. O professor e a estrela juntaram-se ao pé da máquina das bebidas e a estrela perguntou-lhe qual era o segredo da sua técnica. «Diz o inteligente para o burro, -esquivou-se ele -Aprende com quem sabe.» - Ele encolheu os ombros. «Já entendi.» - Ele bebeu um copo de água Luso. «Não há segredos -murmurou-lhe Baixote ao ouvido. - O segredo é o treino intenso.» -
A estrela EVS ficou insatisfeito, o que o irritou. «Üh, deixe-se disso. No seu tempo não era como hoje com dezassete anos!» - Ele respondeu, lentamente. «Já vi que não entendeste o meu provérbio de há bocado.» - Ea estrela impacientou-se ainda mais. «Quem lhe disse isso? -disse com ar importante -Eu sei que há avançados que trocam os olhos para o guarda redes ser comido.» - Baixote reparou que a estrela EVS estava aprecisar duma lição. «Então faz isso. Por acaso, tu não tens três olhos?» - Foi a gota de água. A estrela ficou de nariz espetado no ar. «Ah, está-me a gozar ou quê? -disse -O que quer dizer com isso?» - E, já de saída, responde-lhe por cima do ombro: «Diz-me lá uma coisa, tu é que és a estrela da equipa. E as estrelas não podem falhar, porque são milagreiros e não é só com santos que se fode o próximo!» -

Baixote não era talhado para milagreiro como a personagem do Padre Merrin no filme O Exorcista, tal como a estrela EVS todas as semanas seconsumia na técnica da finta ao guarda redes com a bola, batendo até com o stike, no ringue várias vezes, mas sem resultados práticos. Em dez aparições diante do guarda-redes, convertia duas oportunidades ejá era umpau.

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Baixote, além do desporto como alternativa ao seu emprego di vendedor, apreciava mais as garotas que frequentavam a taberna do Rato como por exemplo; a ultima novidade que diz chamar-se Elisa Moreno. Com ela, Baixote sentia-se «um homem atraente» epor conseguinte estav,1 preparado para dar valor à amizade que os unia; ou pelo menos, ele nisso também pensou a princípio. «Devemos sempre deixar-nos prender pelas mulheres que gostam de nós, assim poupam- -nos o trabalho de gostarmos dela e são as mais fieis», - disse naquela vez. - «Porque.
aquelas de quem gostamos estão-nos sempre a cair em cima, parecem carraças.» - Certo ou errado, era a sua teoria.
Conforme ia dizendo, amava nela o seu corpo esbelto, de seios pequenos, fina mas bem preenchida, ia descobrindo o sentido que ela tinha do tempo. Amava nela, também, o esforço de querer vencer na vida, e o desejo que ela demonstrava em querer vê-lo todos os dias. Amava tudo isto sem querer ver, naquele amor, o princípio do fim.
No fim dos actos de amor, ela tornava-se electrizante. «lau.», gritava eufórica, como se tivesse perdido a virgindade. «Hi! Uuup!» -
Ele continuava a beber «Scotch of malt» e a fumar muitos cigarros, e uma mancha escura alastrava-lhe no meio da cara. Sob a influência do álcool e do tabaco, à noite fazia trinta por uma linha para escapar aos deveres familiares e refugiava-se nas sombras da madrugada. Não estava autorizado a controlar os passos dela. Da ultima vez que o tentou fazer, deu por si a discutir com o cliente ao balcão da taberna pela forma como o cliente confessava ao empregado. «Na noite passada, fui beber um copo com aquela garota morena e dei duas sem tirar nem pôr!» - E mais disse: «E pareceu-me que ela gostou, pois chiava que nem uma rata!» - O que mais irritou Baixote foi o outro, com cara de jesuíta, dizer que tinha dado duas! E pensou para si mesmo: «Deves ter dado duas mas foi de língua.» - Mas depois disso ele esqueceu o assunto e voltou a molhar a pena; e ela abriu-se toda como a rosa e ele deu-lhe o amor com todo o prazer do seu desejo.
Agora Baixote -que a princípio lhe falava constantemente dos amores que tivera nas suas aventuras amorosas e que tinha necessidade de amar de novo -já não protestava contra as escapadas dela. «Eu sei muito bem o que ela faz», -disse ele uma vez aos amigos. -«Mas isso pouco me importa.» -
Por ironia do destino, enquanto Elisa Moreno se recusava terminantemente a enfrentar os factos no tocante ao seu malquisto marido,

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tinha-se envolvido, por obra do emprego que escolhera, em angariar relações com os seus fregueses e no jogo duplo que lhe trouxe alguns dissabores por parte dos seus amigos.
«Mais «stike» ? Baixote mostrava-se céptico. «Ü teu problema», - disse-lhe Elisa Moreno, no seu mais desdenhoso sorriso. - É achares que deves parar por agora quando devias continuar. Olha o meu exemplo. Aquele sacana que eu ajudei a erguer anda a divertir-se à minha custa, ganha inheiro com o meu dinheiro e aproveita a ter umas belas noites de farra. E fodido, pá, não é? E eu, qual é o meu papel de ursa no meio disto tudo?» - Na voz de Elisa Moreno transparecia todo o seu desdém pela situação criada e só a força de alguns amigos a impediam que ela arreasse bronca e caísse no ridículo e no descrédito. O que fez Baixote arredar caminho foi o facto de vir a conhecer o marido dela nos palcos da noite e recusar a tomar parte nos problemas  de ambos e nos argumentos dele em criar conflitos e ser perito em confusões. Afinal de contas, o marido dela metia-se mesmo em sarilhos e intrigas e isso não era abonatório para Baixote que tinha outro estilo de reputação a defender.
«Nada tem a ver uma coisa com a outra.» - Disse ela pacien temente quando ele tentou explicar o seu ponto de referência: -talvez sim, talvez não, pensou Baixote, como qualquer amante receoso.

Depois de Baixote ter acabado as suas relações sexuais com Elisa Moreno, teve de fazer um grande esforço para sufocar dentro de si uma quantidade enorme de pensamentos pérfidos como por exemplo, se o marido .dela não fosse tão besta eu  continuava a roê-la, pensou, danado, o pior é se esse gajo descobre ainda me dá cabo do cortiço.
A caminho de mais um noite andante, Baixote parou junto da casa de diversões do marido de Elisa Moreno e entrou para molhar a língua e ten tar convencer-se de que a animosidade com ele, o seu compadre, não passava de natureza ilusória. O marido dela dominava todas as linguagens nocturnas. «Raios me partam, se eu sei quem anda a fodê-la e a meter macacos contra mim naquela cabeça de perua (e aqui Baixote tremeu todo) juro que mato esse cabrão!» - E mandou semelhante soco na mesa de madeira que a partiu em quatro partes. Mas ele, Baixote, tinha também de reconhecer que a sua inveja do «compadre» derivava em grande parte do maior domínio que o outro tinha sobre a linguagem nocturna. A linguagem é coragem: capacidade de ideia e de realidade.

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Embora a lenta transformação de Padrinho tivesse mudado a escola de formação numa escola científica ou de filmes de terror, numa alusão aleatória destinada ao grande consumo trabalhista -fosse essa a ordem de ideias, era caso para bater palmas, nesse particular -as conclusões
eram, de facto, adversas às portas do êxito e Padrinho, evitando formular maus pensamentos,  deixou o barco navegar ao sabor das marés. o
motorista conduziu-o até à taberna do Rato, onde fora com o intuito de beber um trago para esquecer. Nesta fase, dizia ele ao amigo; um homem precisa duma certa fantasia para se endireitar e, aofim de uma hora, tudo passa, e o resto é letra...

Rato-Ratão ganhara o hábito de falar do balcão como se estivesse a falar da rua e lá dentro, no meio do balcão, narrava histórias do arco da velha. Por ele soube Padrinho das aventuras do Baixote e seus amores, das calças com ventiladores para combater o sol e dos grupos de futebois ou mais exactamente, da resenha desportiva. «De quinze em quinze dias de tarde ou à noite», - esclarecia ele, -«O futebol dá-me momentos de prazer que duram a merda da semana toda a relatar.» - Ia ao fundo da questão e poucos eram aqueles que lhe ganhavam na palheta da lábia.
«Os adeptos têm os seus defeitos», -acrescentava ele, enquanto Padrinho, quejá não tinha energia para o aguentar mais, deixava-o palrar à maneira.
- «Hoje em dia não há adeptos perfeitos. O que conta são os pontos, não é?» «0 relvado é vosso, -recompôs-se Padrinho -e o campeonato é nosso.» -
«Olhem só para o que ele diz», - explodiu Baixote entrando na conversa. - «Na nossa terra sê dos nossos.» - Mas Padrinho não se deixou intimidar. «Deixa de parvoíces, o que tu dizes não passa de tagarelas baratas.» - Rato-Ratão voltou a engrenar na conversa. «Quando entrei naquele estádio e vi uma enorme mancha vermelha ao redor do campo assinalando ainda o sítio onde o Mouro soltara o último suspiro, vi crescer a raiva na assistência e pensei para mim: Os tempos estão diferentes. Agora, já não há jogos regulares. -continuou Rato-Ratão - Tal como a velha prostituta, a mancha vermelha dá espectáculo normalmente ao domingo de tarde e mete-se nas bilheteiras para se mascarar de cobrador - e com quem é que ela se agita na discoteca Dácupau que abre só à noite -com os novos Gandis vestidos de negro, outros chamam-lhes racistas-do-cartão-vermelho e nunca se sabe se acaba o campeonato na ignorância numa coisa que eu não digo.» -

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Toni da Gota acordou na cama duma conquista da noite com suor a escorregar-lhe pela fronte abaixo. A impressão que tinha na coluna era a de alguém que tivesse andado a carregar sacos de cinquenta quilos de batatas às costas. Começou a tossir e, quando deixou de o fazer, quinze minutos depois, tornou a adormecer num sono irrequieto e doentio, sem ter o desejo de comunicar com alguém onde se encontrava . Quando voltou de novo a acordar, tinha um rosto simpático duma garota inclinado para ele, sorrindo meigamente. «Então, seu dorminhoco? Doze horas a dormir, eh?», -disse ela, fazendo-lhe uma carícia na cara. - «Fartei-me de dar voltas com o tu carro pela zona, fui ao cabeleireiro e agora pronto , já aqui estou.» -.
Dito isto, deitou-se ao lado e pôs-se a esfregar o corpo no dele. «Não estejas já a pensar coisas.» - Mas já não foi a tempo, porque ele colou a boca na dela e ferrou-lhe os lábios e, depois, saltou atleticamente para cima dela. Aí se escarrapachou tal e qual como se fosse num cavalo que ele montasse para galgar na pradaria, galopando como só Gary Cooper o saberia fazer. «Ó filha, vou dar mais duas galopadas», - disse ele eufórico. -«Juro-te que não demoro mais de meia hora de cada vez.» - E, sem mais parança, começou a empinar-se de cima para baixo e de baixo para cima, de olhos semi-fechados, mas consciente do que estava a fazer.
Para a pobre garota, que ainda tinha no corpo a lembrança bem fresca da noitada anterior na cama com ele, este novo aquecimento foi a gota de água que fez transbordar o copo. «Socorro, acudam-me, ele dá cabo de mim.» - O grito dela ainda o avivou mais a acelerar o ritmo, o que lhe mereceu levar uma reprimenda da desgraçada. «Pára! Deixa de te portares como um bruto», -disse ela. -«Pensas que sou alguma mula de carga?» - Deixara-se ficar inerte na cama montado em cima dela, sacudido pelas convulsões do seu corpo, como um cowboy de rodeo, procurando serenar-se um pouco, até soltar-se de cima dela. Quando ela se aprontou de todo, pegou na malinha que estava em cima da cómoda e disse sorridente: «Porra, estava a ver que me abafavas», - e depois, corando um pouco, acrescentou :-Nunca vi um homem assim. Sete mocas duma só vez, é obra! Desconfio que nem o Mickey Rourke do filme 9 Semanas e Meia, te conseguia igualar.» - Uns quinze minutos mais tarde, Toni da Gota enfiou-se dentro do carro e afastou-se daquele lugar. Começava também a sentir um cheiro de bradar aos céus; gases intensivos, vindos do buraco anal trespassavam-lhe pelas pernas abaixo edeitavam cá para

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fora um fedor danado que ele teve que abrir os quatro vidros do cari para apanhar ar. «É incrível!», -pensou serenamente. - «Não perceh1 de onde veio este cheiro!» - Parou o carro e pôs as pernas de fora 0, carro a tomar ar. Levou cerca de um quarto de hora a desaparecer ,
aroma. Por fim, já com bastante à-vontade, percorreu vários quilómetro . até parar no posto de combustível mais próximo. Nesse momento apareceu a cara de Ave Rara de sorriso ao canto da boca.
«Ó que caraças! Tu por aqui? - Pergunta ele ainda com o mesmo sorriso.»
«Isso também queria eu saber. -Responde Toni da Gota -Começou
a doer-me a barriga, pá. Não sabes o que será?» - Ave Rara respondeu calmamente. «Andas a stikar muito e agora, se calhar, estás podre t.» -
«Vai-te lixar com essa. Contigo já vi, que não dá para conversar. - Responde Toni da Gota com um rasgo de dor no rosto.» -  Ave Rara demorou algum tempo a responder. «Ah, só te digo uma coisa. Não te trates, não, que vais prós anjinhos mais depressa. Muito boas tardes.» - Toni da Gota pôs o carro a trabalhar e desandou dali, a galope, com uma rapidez que transformou o pó da estrada num verdadeiro vendaval
de poeira pelo ar.

Cada vez que estava na sombra, sentia um peso lento a puxá-lo para baixo, até o fazer perder a consciência, como um brinquedo cuja corda chega ao fim. Esses momentos de alucinações começavam sempre depois dele beber uns copos a mais. Era nesses períodos que, a pouco e pouco, ele ia ficando mais ranhoso. E, à medida que ficava ranhoso, mais vontade de beber ele tinha; e não se podia privar um bebedor de beber, senão era o raio dos canecos; o tipo partia tudo e depois ainda chamava a polícia para ver o estrago e, no fim de contas, quem se lixava era «O dono da tasca».
Mas não foi bem este o caso.
Lá dentro da taberna o ambiente estava febril e Rato-Ratão controlava à sua moda a saída dos copos, pois não queria perder clientes. Os antigos e os modernos eram todos importantes e, naquela noite, ninguém se importava em beber um copo a mais pois, em caso de emergência, o dono da taberna desenrascava um taxi ou um amigo para os levar à sua residência. E Toy, depois da Hora do Show, e que detestava ver aquelas

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.macacas todas aos saltos e, dada a sua tendência para achincalhar as inulheres mais arrogantes, como por exemplo, aquela brasileira que o gozava à distância, ele não se conteve de lhe enviar via boca um
,,palavrão», murmurando entre os lábios, anda minha sacana, se eu
pudesse  enfia r-te nos cornos uma carripana destas queria ver como
,.reagirias; se há brasileira ou se há bebedola? 1 Mas, mesmo assim, a brasileira leu o significado dele e comentou aquele tipo não regula bem da cabeça, disse ela ao seu acompanhante na mesa, ao apontar-lhe o dedo. E o próprio Toy, o Baixote, Toni da Gota e Ave Rara; - e o motorista do Padrinho, sem esquecer as coristas também, em pleno salão de entretenimento - todos se piravam dele, por ser um chato quando estava pingado, reduzindo as conversas a nada ... E em cada um destes bebedores, ele, Padrinho, o grande empresário da actualidade, sublinhou que, é notório que o indivíduo que bebe sonhe, berre como um animal, cante como a cana rachada, e se desleixe por aí diante, noite após noite, até que Voz Calada, o génio das ideias que estivera calado como um rato desde há algum tempo, resolveu intervir dizendo que um dia estava embriagado numa pastelaria e pediu um copo de vinho ao empregado. Como não foi atendido, tirou as calças e pôs o cú em cima dum grande bolo que estava a sair da sala do forno ainda quente, deixando lá a sua marca. A seguir escarrou-lhe para cima e só depois é que meteu as mãos e deu-lhe urna dentada para o comer - até que levou com as formas nos cornos e, quando acordou, estava estendido na rua junto ao posto do saneamento e nem sequer um ai deu.
Muito rapidamente, Toy deitou abaixo mais dois whiskys com água gaseificada e fumou o dobro de cigarros em relação aos copos, tudo no espaço de cinco minutos. Enquanto os clientes não pingados tratavam em dar uma volta com as macacas, como Toy apregoava, os românticos e sonhadores nocturnos  davam por eles a festejar os próximos encontros com-a-mulher-careca-na-vagina, tudo isso emuito mais, capaz de levantar a moral a um defunto.
A princípio, estes sonhos não passavam de pequenas reservas na caixa cinzenta de cada um deles mas, quando chegasse a altura de pôr o sonho a trabalhar, o desafio estava lançado. Amor ao Sexo sem Pêlo; uma nova sinfonia de foder sem entraves de cabelos numa musica já antiga. O símbolo da Mulher-Careca-Na- Vagina, uma vagina sem pêlo ao lado dum pénis careca, simbolizava o amor do futuro ejá constava que vinham mais  seguidoras  com oslogan, Sem   Cabelo   é  mais   Barato,  Não   Há   Contágio

1Bêbeda.

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de Bichos, Experimentem o Famoso Sessenta e Nove. Ui isso é maravilha, cantarolava Ave Rara uma canção do Bob Dylan, acrescentando: Nunca mais me largas, ó beata?. Toy chamou de novo
a atenção do empregado. «Você quer que eu morra à sede? -e abriu os braços -um copo vazio é como um prostituta à esquina duma viela.» - o
empregado serviu-lhe o copo ao balcão. «Toy», -disse Toni da Gota, excitadíssimo . - «Onde    estão as gajas?» -
«Vai à procura delas»,-gritou Toy mais do que nervoso. -«Tu é que as conheces melhor do que eu.» -
«Ouvi-te falar nelas», -insistiu Toni da Gota, zangado. -«Qual é a tua? O que tenho mais é disso na minha agenda.»
O assunto estava realmen te a aquecer.

"Mais uma «vagina-careca", - surgiu à lua da vela na penumbra da noite -anunciou Capitão Guei, imitando a pronúncia inglesa com o seu talento habitual. «Menos uma que não precisa de água benta para a desinfecção.» -Rato-Ratão, de serviço atrás do balcão da taberna, fez tinir copos de fino de cerveja. «Se a moda pega», -queixou-se a Rapariga da Saca Preta. - «Acho que também vou experimentar.» »Isso é revoltante.» -Voltou a falar Capitão Guei, ao lado de Rato-Ratão, que murmurou aereamente: «Revoltante é se os homens também resolvem aderir à campanha dos Não-Sem-Pêlos!» - A perspectiva dos carecas começava a ser tema de conversa e até Baixote parou para meditar, mas Capitão Guei deu-lhe uma mirada, exclamando: «À boa maneira portuguesa», -disse em tom irónico. -«Quem desprezar os bons hábitos antigos de ter um bom pentelho 1 sobre o membro de elite do esqueleto humano, não é bom chefe de família.» - Um olhar de Baixote fê-lo mudar de rotação.
«Dizem-se tantas maluqueiras quejá nada estranho.», -respondeu. -
«Repare até que as lésbicas e os homossexuais não prescindem dos pêlos, faltava virem agora estas taradas. Eu, com urna mulher sem pêlo, não vou para a cama e muito menos endireito o galho!» -
«Digo-lhe uma coisa», -continuou Capitão Guei, desistindo do sotaque.
- «Ás vezes, no calor, até é capaz de fazer jeito a um homem que não sue tanto. Não se lembra daquela narrativa do Chupador das Vaginas Carecas ? É uma coisa do outro mundo. Quando liaquele capítulo, até me deu vontade de rapar os pêlos do traseiro, quem sabe, se aparecesse

130
2 Aglomerado de cabelos.

um empresário que me levasse até Las Vegas.»
Baixote levantou-se, pediu licença e pirou-se sem dizer mais treta. Capitão Guei levou os braços ao ar e dirigiu o olhar à Rapariga da Saca Preta. «Mas que mal eu fiz a ele?» - Ela retribuiu o olhar.
«Nunca se sabe, se ele gostou daquilo que você lhe disse.» -
Quando mais tarde se espalhou a notícia da narrativa do Chupador das Vaginas-Carrecas, os clientes viraram-se para Capitão Guei, sugerindo-lhe cada vez com mais frequência que ele denunciasse esse louco, apelidando-o de «besta humana» - que era o perigo público número um para a tentação das vaginas peludas e que poderia levar as outras pessoas a quererem experimentar a nova vaga dos amantíssimos diurnos ou n'octurnos a entrar nessa via, que tantas dores de cabeça estava a dar aos anti-carecas. O que estava a suceder, embora de inicio ninguém se apercebesse ou sequer tomasse isso em consideração, era que estava ·em voga um bando de canibais sem pêlo . Começara a considerar a figura dos sonhos como uma tara-mania, à solta sobre a cidade. Corriam boatos pelas casas de diversão e em todas as bocas havia quem dissesse que era uma história da carochinha, ninguém tinha levado a sério e pouco faltou para a polícia fazer uma rusga à taberna do Rato. As «carecas» calaram-se, acrescentando ao acto uma novidade - a cabeleira postiça -e assim enganavam os pategas.

Escolher o pêlo pela careca. O vício inconstante, o desejo de tudo, num zás e por aí adiante. Um sonho lançado ao real pode alienar-se de si próprio ao ponto de se tornar realidade. Pensava por vezes em Big Star, o universo das carecas. A utilização da «camisinha» através dum bafo de boca: a técnica com perfeição! Ou, simplesmente, uma habilidade na arte e, por outras palavras -um processo eficaz e limpo -numa escolha completa. A novidade: fora ela a inovadora e, por conseguinte, coubera-lhe o papel de ser a supersónica.
E também a bondade, e a generosidade, e todas essas coisas do género. Estava na melhor, ia entrar na sua nova função; ser aquilo pelo qual sempre sonhara: bem cheirosa, careca desnaturada, humana e bem possante. Sentia-se capaz de derrubar todos os cabeludos que se estendessem à sua frente; com a força que ia crescendo dentro de si, dava-lhe mais poderes.
Eu sou a única, aceitou ela, a pelada.
Com decência, note-se.
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A sua vida era resguardada no aparcamento junto da taberna do Rato mas acabou na noite em que Chicras se pôs na rua aos gritos que tinham deitado a luva ao Chupador das Vaginas-Carecas e que, segundo parece. também o iam acusar na referida história por causa de uma tal Julieta. que ele apregoava há décadas ser a sua heroína. Queriam fazer dele uru viciado cheio de alucinações, um Romeo da coca. As represálias - apedrejamento, lutas de naifas, o habitual - já estavam a caminho.
«Acautelem-se que aí vêm eles.», disse Chicras a ato-Ratão e a Capitão Guei -Esta noite vai haver facadas.» -
Chicras estava ainda no meio da rua, confiante da sua segurança, quando uma garrafa voou pelo ar e foi apanhá-lo de surpresa no focinho. Desmaiou mais pela surpresa que pela dor. Reanimou-o Capitão Guei. que lhe atirou às ventas com a água dum copo, num gesto aprendido nos filmes de piratas, enquanto, nessa altura, já se ouvia a sirene do 115, a ambulância e Chicras dera o pira pela rua, a correr que nem uma lebre. Rato-Ratão, incapaz de resistir por mais tempo aos escândalos à porta do seu negócio, revelara a Capitão Guei as suspeitas sobre Chicras e a personagem do Chupador das Vaginas-Carecas e, a partir daí, ninguém conseguiu segurar Chicras. Todos os dias da sua humilhação jorraram nele como uma praga, como sejá não bastasse estar preso ao vício da droga, álcool e gamar o próximo -ainda tinha de lhe acontecer aquilo. - Atirou-se ao tasqueiro da esquina do quarteirão com uma faca de ponta e mola, dizendo: «Üu dás-me o frango que está a assar no espeto ou furo-te já a bexiga com a faca.» - E o tasqueiro não reagiu, dando o frango numa saca plástica e um pedaço de broa de Avintes, resmungando com uma maldição. «Vai», - disse -Vai-te embora, meu desgraçado. Havias de morrer entalado com as patas do frango.» - Mas Chicras não ia antes sem lhe deixar de dar o recado, eu já ando a comer patas há mais tempo do que tu, gritou, vocês estão com ele cheio mas é à custa dos otários. E redobrou a atenção, pondo-se ao fresco dali com o frango, antes que viesse alguém a estorvar-lhe o caminho.
Enquanto isso, na taberna do Rato, ainda se comentava o escândalo na rua. Era evidente que Rato-Ratão tentou evitar que o escândalo tomasse mais proporções e escondeu falar nisso aos clientes, sabendo que, - ofalatório é pior que um cagatório. -
Enquanto ele, o radioso espírito do bom samaritano da taberna do Rato dava origem às mais fantasiosas conversas.

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E agora entrava Madarne Rara na sala: «Sois boa gente, mas vou-rne ausentar. -Madarne Rara trazia as malas na mão -Preciso de criar em. mim novas emoções.»
Quando Rato-Ratão viu a sua vedeta prestes a sair, embora cemporariarnente, deitou o olho à gaveta corno quem diz: agora as notas dos copos dela vão escassear um pouco. Suplicou que a ausência não fosse muito prolongada. E Toy esperava à entrada da taberna, notando
-se nos olhos ainda a ultima bebedeira, muito embora se diga, já estivesse curada e preparado para outra. «Tentem impedir-me. Eu só bebo quando quero beber.» -
Foi Madarne Rara quem acabou de abalar, dizendo adeus com um lenço branco na mão, enquanto Fífia espreitava ao fundo da sala. Padrinho tinha voltado ao convívio ejuntara-se com ela a conversar. «Onde é que vais?», -perguntou. -«Não me queres levar contigo? -Padrinho estacou, olhou bem para ela e encolheu os ombros. «Estou a pensar nisso. Para já.deixa-te estar aí quietinha até ver se estes malandros sossegam.» -
O que se irá passar daqui a umas horas na taberna do Rato, aqui onde o amor sai à rua, feito numa sande de combinados, em troca duma promessa? Nessa noite estrelada e com luar, olhamos as figuras -umas enfarpeladas, prontas para um pé de dança, outras gulosas ás sombras dos pratos de com.ida e outras à espera de mergulhar os seus sonhos num.a conquista ilusória -atravessando esta porta igual às outras.
E lá dentro, com a sala cheia de luzes coloridas, vêem-se corpos a abanar-se, uns isolados e outros aos pares, aos trios e quartetos, ensaiando sons e deitando o mirone à garupa das cachopas que se esperneavam à vontade. No pouco espaço livre, ao centro da sala, os dançarinos mais frenéticos dançam. aos pulos nos maneias da moda e mexem-se por todo o sítio livre.
«Estou a ver que vós ainda estais aí para as curvas.» - Quem fala é o nosso apresentador de programas, show-man incomparável, sempre pronto a dar elogios e a fazer discursos -o extrovertido Baixote, com o seu trajo de serviço, batendo com o pé ao som do ritmo. -É sem dúvida um predestinado para estes eventos, uma figura de um metro e meio de altura, cabelo raso e cor castanha, castanho dos olhos também, feições

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evidentemente portuguesas, nariz curvo, lábios finos e curtos, rosto saído de uma pintura Malhoa sobre moreno. Um português que já correu Portugal duma ponta a outra, um bom tripeiro de gema. Uma big star.
E a festa continua e os dançarinos dançam cada vez mais entre 0 frenesim do ambiente. E quem são eles? Pois bem, nada mais, nada menos, que a maioria dos elementos do GAS. -E quem são? -Vejam, aqui ao centro está Golias, o sonhador, fazendo olhinhos a uma senhora de capa à toureiro , que usa uns tamancos de lavrador e tendo por vício bater com os pés ao ritmo da música bem firmes no chão. Deu em cheio por cima do pé do Capitão Guei que sofria dos calos e deixou o pobre desgraçado de cangalhas na cozinha a meter gelo nas peles para não aumentarem de formato. -E acolá, ao lado, a Rapariga da Saca Preta passa despercebida , ao contrário da sua «sósia» Fífia, a quem Padrinho ofereceu um espumante de cascata e promoveu-a a rainha da festa, com o título de Miss do chichi! -Estão todos aqui a divertirem-se dançando por aqui e por acolá; à direita Ave Rara bebendo com a Marta Chata; à esquerda Toni da Gota atirando-se à bailarina do flamengo Paulita La Rosa, e quis comprar por tuta e meia, tendo levado com os pés por tão impertinente convite. Toy, o solteirão incorrigível que não troca o copo duma bebida por uma mulher, baila à moda antiga o bailinho da Ilha do Pico com a filha dum pai incógnito; e Champalinas, Mister Louis e Fala Tudo chegam a tempo de se aliarem à festa e colocam-se numa zona ao lado da sala apinhada de gente, banhados pelas luzes cheias de cor. Os atiradores ao centro olham e fazem peito: Padrinho, Compincha, Piasca, Magricelas, Compridão e Deus Neptuno, todas as figuras importantes do GAS. Então, ouve-se um murmúrio vindo da assistência, subindo pouco a pouco de tom, «Vamos a elas», -exigem logo os atiradores -
«Vamos a elas.» -
Baixote entra de novo em cena. «Meus amigos, a noite é vossa e a folia também .», -e depois volta-se para o público, de braços abertos e com os pés a bater ao compasso da música, pergunta: -E quem é que não gosta de fazer Trim-chim-pum-pum-pum?» -
Várias vozes são agitadas, até que toda a assistência chega de novo a um acordo, entoando em coro uma única palavra. Baixote bate palmas. Abre-se a porta atrás de si, dando passagem a um grupo dejovens que desfilam numa passarela de moda. Por fim, na altura da votação, com papeis de voto e tudo, o público elege a vencedora .«Meus Senhores», -

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exclama Baixote. - «A Rainha da noite é a Fífia. Agora, sim, vamos aplaudir.» -
o público aplaudiu entusiasticamente a vencedora e, no final,
aproximaram-se uns dos outros. Baixote desliga a aparelhagem sonora e vem ao balcão regar a garganta com um whisky em copo largo e fundo.
«Esta festa já está, agora venha a próxima.» - Depois de ter embutido dois dedos de bebida, fica só a falar para os seus botões. «Mas que noite esta, eh?», -murmura ele, olhando para a assistência. -«Desta vez, valeu a pena.» - A música torna-se a ouvir na sala.

Quando o show-man Baixote saiu para a rua, a coberto do escuro, para a traseira da carrinha, que estacionara no parque, viu Elisa Moreno a chegar. Sentiu o coração apertado de emoção e, ao mesmo tempo, receio de revelar a sua presença ali. Escondeu-se atrás da carrinha a tremer de frio e deixou-se ali ficar cerca de cinco minutos, enquanto ela passava . Depois, encolheu os ombros, sentou-se na carrinha e ligou o motor. Como por milagre, Elisa Moreno abriu a porta e sentou-se ao lado dele na frente. «Pensavas que me fugias, não?». - Disse ela com um sorriso atraente no rosto. E piraram-se dali, fugindo aos olhares indiscretos.
Eram quatro da madrugada quando regressaram da discoteca Xeque Ao Rei e se instalaram na pensão do costume. Baixote nunca soubera o que era gostar de uma mulher o suficiente, porque sempre gostou de todas elas a valer. O recepcionista desencantou um quarto, o bastante para ele lá ficar com a sua amante, embora ele não gostasse muito desse termo. Tentou falar-lhe a sério: «Tens que entender a importância que pode vir a ter para nós este jogo duplo.» -Mas ela limitou-se a pôr-lhe a mão diante da boca e acenou para ele ficar calado e dormir.
Quando ele se virou para o lado, pôde tornar a fixar os seus pensamentos até cair em si e acabou por adormecer. Mais tarde, quando se pôs a pé, Baixote deixou a sua «Princesa» ficar a dormir na cama e bateu em retirada antes de a aurora chegar. Ao sair, porém, começou a experimentar no interior do seu corpo uma terrível sensação de fraqueza, mal estar, suores frios na cabeça. Soltava espirros constantes que ninguém ouvia, nem mesmo Toni da Gota e Ave Rara, que ficaram a dormir

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acompanhadas das suas amigas na Residência da Xangai, se atreveram a querer saber.
No dia seguinte, no início da abertura, a sala da taberna do Rato ainda mostrava o mesmo cenário da noite passada . Mesas à balda, cadeiras a reboque umas das outras, lixo pelo chão, para além é claro de copos e pratos -limpos e sujos -à espera de serem removidos para a cozinha. E, no meio do caos, o dono da taberna Rato-Ratão, ainda com cara de sono, varria a sala, de mangas arregaçadas e olhando impaciente para o relógio, à espera que chegasse o seu empregado.
Assim se tinha passado mais uma grande festa na taberna do Rato.

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