Tuesday, January 24, 2012



CONTOS DE RATAZANA
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7. Episódio
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Eis como os amigos de Pipocas enveredaram por um caminho do bem e ajudaram o pobre Faísca


Muita gente via o Faísca quase todos os dias; uns riam-se dele, outros tinham pena, mas ninguém se metia com ele. Era um homem pequeno mas magro, estreito de costas, de cabelo encaracolado e penteado ao lado. Usava calça de fazenda, camisa às cores e não fumava. Na vila andava de pulôver. Quando estava perante qualquer ilustre, havia nos seus olhos um certo retraimento, a expressão reveladora do indivíduo que não gosta de ser muito mirado. Devido a essa expressão, os guardas de Marco de Canaveses sabiam que a sua mente não tinha crescido com o resto do corpo. Chamavam-lhe o Faísca por causa de aparecer em todo o lugar. Todos os dias as pessoas o viam passar para o jardim empurrando o seu carrito de pedais com bijutarias até vender a sua carga. E, sempre atrás dele, seguia o seu cão de vigilância. Chamava-se Vigília, fazia lembrar um texugo, embora o seu tamanho fosse volumoso. Quando, cansado de pedalar o carrinho, ele se punha de pé encostado a uma parede, o cão subia para o selim para que ninguém se atravesse a roubar-lhe a carga. Havia quem tivesse visto o Faísca logo de manhãzinha no Beco do Repouso, havia quem o tivesse visto a comer laranjas no mercado, havia quem soubesse que ele vendia santinhos; mas mais ninguém melhor que Catanada, sabia todos os passos que o Faísca dava. Catanada conhecia toda a gente e sabia tudo relativo a todos.

O Faísca vivia fora da vila nos arrabaldes do Marco de Canaveses numa casa térrea com um pequeno quintal na frente. Teria achado vaidade da sua parte mesmo morar junto à rua. O cão vivia ao redor e dormia na cama aos pés dele, e isto agradava-lhe, pois nas noites de Inverno, o bicho aquecia-o. Se as noites gelassem, bastava-lhe pôr umas achas na fogueira, amarfanhar-se nos cobertores e pôr-lhe em cima o esqueleto quente do Vigília. A casa era tão solarenga que o Faísca só tinha problemas quando chegava o Inverno. Bem cedo pela manhã, bem antes de o comércio abrir, o Faísca saía para fora de casa, seguido pelo cão que rosnava ao contacto com a atmosfera fria. Depois, desciam ao Marco de Canaveses e punham-se a trabalhar ao longo duma rua. As traseiras de dois ou três restaurantes davam para essa rua. Por todas elas o Faísca entrava direito aos recantos malcheirosos a comida. Empregados mandriões deixavam-no carregar bidões besuntados de restos de comida e caixas com garrafas vazias, porque não queriam ser eles os transportadores do lixo. Depois de ter limpado cada um dos recantos traseiros e ter os braços cansados, o Faísca voltava a subir a rua, a que ele baptizara de “Largo da Gota” e, seguido do cão fiel, sentava-se num banco do tasco. A seguir, tomava o mata-bicho oferecido pelo dono pelo trabalho e tinha direito a uns ossos para o cão. O cão sentava-se em volta dele, roendo calmamente os ossos. O cão do Faísca nunca deixava ninguém se meter com o dono, mesmo na brincadeira, que atirava-se logo como se eles fossem gatos.

Quando o Sol raiava já o mata-bicho havia terminado. Sentado agora no beiral de fora, o Faísca aconchegava-se perante o sol que tingira de azul-marinho a manhã. Observava, lá em baixo, os vendedores de peixe nas carrinhas a fazerem-se à vida, chamando a freguesia. Ouvia o apito do comboio, soar repetitivamente ao longe da estação do Caminho de Ferro. O cão deitado, em redor dele, esticava-se como um bacalhau, deliciando-se a apanhar sol. O Faísca parecia mais estar a pensar na morta da bezerra, pois os seus olhos tinham uma expressão concentrada. Acariciava, distraidamente, a sua magra perna pela barriga do cão e coçava-lhe os tomates. Uma hora depois, o Faísca ia a casa, tirava o carrito coberto por um oleado e metia-lhe um pouco mais de gasolina no depósito. Em seguida, rua acima, rua abaixo, guiando o carrito, encaminhava-se pelo jardim dentro até encontrar um banco ao sol e sem ninguém. Pelo meio da tarde, tinha já vendido uma dúzia de santinhos; depois, seguido pelo cão, andarilhava as ruas principais até vender algumas bijutarias por dez escudos. O que ele fazia ao dinheiro ao certo é que ninguém o sabia. Andava sempre pendurado. De noite, encoberto pelas trevas da noite, ia à parede e levantava uma pedra, e escondia as moedas na lata vazia de engraxar sapatos ao pé de dezenas de outras latas. Seja como for, o Faísca tinha armazenado uma grande quantidade de dinheiro.

Catanada, empregado de banco a quem não escapavam os particulares da vida dos seus semelhantes e que ficava a falar sozinho para a sua gravata sobre os seus conhecidos, descobriu o tesouro do Faísca por um processo matemático. Então, raciocinou: «Todos os dias o Faísca arranja em média dez escudos. Quando tem muitas moedas de tostão vai à loja e cambia o dinheiro por uma moeda de dez escudos. Portanto, deve guardá-la.» Catanada pôs-se a adivinhar a quantidade de moedas guardadas. Há anos que o Faísca vinha fazendo este modo de vida. Seis dias por semana ele limpava os bidões e aos domingos vendia santinhos na igreja. A roupa orientava-as nas feiras e a comida e os mata-bichos nos restaurantes e tascos. Catanada ainda andou um bocado à nora com grandes somas, mas logo desistiu. «Deve ter açambarcado pelo menos dez mil escudos», pensou. Há já algum tempo, Catanada tinha meditado nestas coisas. Mas foi só depois de, louca e entusiasticamente, a aventura de sustentar a prostituta no apartamento de Pipocas ter sido anulada que o pensamento recaiu, sobre o tesouro do Faísca e ganhou para ele um contorno pessoal. Depois de se debruçar acerca do problema, Catanada prosseguiu o caminho da solução. «Mas seria louvável», pensou, «tentar fazer-lhe um seguro de vida! Oferecer-lhe umas roupas novas? Ele até tem estilo. Mas não tenho dinheiro», lembrou-se, «para comprar essas coisas, embora isso não seja caso de grande monta. Como é que vou levar a cabo esta marosca?»

Chegava-lhe agora uma luz ao fundo do túnel. Como um rato que, durante uns longos minutos se acerca de um bocado de queijo, Catanada estava preparado para utilizar o seu tema. «É isto!», exclamou a sua cabeça. «O Faísca tem dinheiro, mas não tem seguro de incêndio e roubo? Eu tenho-o! Vou pô-lo a fazer um seguro para ele e para o cão também. Será esta a minha marosca para avaliar aquele pobre diabo.» Era uma das muitas habilidades que Catanada estava apto. A vontade irresistível do finório de apresentar o seu projecto a um amigo invadiu-o. «Vou falar com Pascácio», pensou. Mas não sabia se devia fazê-lo. Era Pascácio realmente firme? Não quereria ele cobrar-lhe alguma parte do seu dinheiro para seu proveito próprio? Pelo sim pelo não, Catanada resolveu não correr já esse risco. E não esperou pelo amanhã. Nessa mesma noite foi dar uma ronda pela casa onde o Faísca vivia com o cão. Pipocas, Pascácio e Very nice sentados ao balcão do café, viram-no passar mas não disserem nada. Porque, pensaram que ele não demoraria muito a vir para o pé deles. Estava uma noite cinzenta, mas Catanada prevenia-se com uma lanterna na algibeira, pois sabia que, tinha que ter cuidado, uma vez que era do conhecimento geral que o cão, se suspeitasse que alguém queria fazer mal ao dono, se transformava em vampiro sanguinário. Levava também numa pasta pequena uns brindes, que tinha orientado no banco e uma garrafa de cachaça que, a empregado do restaurante lhe tinha dado, como agradecimento de uma fórmula para conseguir o empréstimo bancário para uma ida a Paris. No pensamento de Catanada, o Faísca ia adorar a cachaça. A noite estava mais cinzenta. Catanada cortou por uma ruela ladeada de terrenos abandonados e cobertos de ervas. Assim que Catanada se acercou da cancela, viu o cão rafeiro do Faísca sair a rosnar do quintal, e Catanada, para o manietar, atirou-lhe uma chiclete.

— Chupa, cãozinho, chupa — disse suavemente —, que vais ver como vais ficar docinho.

O cão, logo ficou entusiasmado pelo aroma, pois retirou-se para o interior.

— Faísca, é o teu grande amigo Catanada que quer dar-te uma palavrinha.

Fez-se silêncio.

— Faísca, sou eu, o Catanada.

Uma voz seca e azeda respondeu-lhe:

— Vai-te daqui. Estou na cama. Não enerves o cão. Vai mas é dormir.
— Tenho aqui uma garrafa de cachaça — retorquiu Catanada. — A tua rouca voz ficará tão fina como a voz de um tenor. Tenho também uns brindes para ti.

Na casa ouviu-se um barulho repentino.

— Entra lá, então — disse o Faísca. — Eu digo ao cão que és meu amigo.

À medida que avançava pelo meio do pátio, Catanada viu o Faísca falar baixinho com o cão, dizendo-lhe que Catanada não fazia mal a ninguém. O Faísca estava em frente da escaqueirada porta da entrada desfigurado rodeado pelo cão. Vigília rosnou e logo voltou a ficar sossegado.

— Este só faz mal se o dono o mandar fazer — disse o Faísca, envaidecido.

Os seus olhos eram os olhos risonhos de um homem divertido. Quando abriu a boca, o seu grande bafo empestou à luz da lua. Catanada abriu a pasta.

— Trago-te aqui uma boa garrafa de cachaça — disse.

O Faísca pegou na garrafa e olhou para dentro, depois abanou-a, e sorrindo, tirou-lhe a rolha. O cão arreganhou os dentes, olhou para ele, e lambeu as beiças. O Faísca buscou dois copos. O primeiro foi para Catanada, sua visita.

— E agora tu, Vigília.

O cão recebeu a sua parte na tigela, bebeu-a e ficou à espera de mais. O Faísca bebeu um bom gole e esticou a cabeça para o ar.

— Que mata-bicho!

O Catanada olhou para ele e colocou a pasta à sua frente. O Faísca, curioso, interrogava-o com os braços abertos. Catanada mantinha-se calado a fim de deixar que pela cabeça de Faísca passassem muitas perguntas. Até que disse:

— És uma tremenda dor de cabeça para os teus vizinhos.

Os olhos do Faísca encheram-se de espanto.

— Eu? Para os meus vizinhos? Quais vizinhos?

Catanada mudou o tom da voz.

— Tens muitos vizinhos nas imediações que pensam em ti. Nunca vêm visitar-te porque de dia andas sempre fora. Julgam que talvez não gostes que te venham visitar à noite. Mas esses teus vizinhos andam sempre preocupados porque têm medo que um dia a casa se incendeie e roubem-na e te ponha a vida em risco.

Apalermado e boquiaberto, o Faísca seguia o raciocino do outro, tentando entender as coisas novas que estava a escutar. Não punha em dúvidas sequer a sua veracidade, uma vez que era Catanada quem as proferia.

— Eu tenho assim tantos vizinhos? — perguntou, admirado. — Juro, que eu não sabia, Catanada. E eles preocupam-se comigo? Que raio de coisa, Catanada. — Engoliu a saliva para controlar a emoção que lhe tomava a garganta. — Tu compreendes, Catanada, o cão e eu gostamos de aqui estar, por causa deste sossego. Não pensava era que causava preocupações aos meus vizinhos.

As faces ficaram-lhe esbranquiçadas.

— Contudo — continuou Catanada — o teu estilo de vida causa muita apreensão aos teus vizinhos.

O Faísca botou os olhos ao chão e tentou pensar rápido em qualquer coisa, mas, como sempre lhe acontecia quando forjava uma ideia, a caixa cinzenta bloqueava e daí não surgia nada. Depois, seriamente, fitou Catanada nos olhos.

— Então, o que é que tu achas que eu devo fazer. Eu não estava a par disto.

Era demasiado simples. Catanada não estava a contar com esta. Repensou; esteve quase a mudar de táctica; sabia, no entanto, que isso ia pô-lo danado consigo mesmo se o fizesse.

— Os teus vizinhos são pessoas civilizadas — disse. — Gostariam que defendesses os teus bens. Se tens dinheiro guardado fá-lo investir num seguro da casa. Num seguro ao cão também. Compra acções. Tira o dinheiro do sítio onde o escondeste, Faísca.

Enquanto falara, Catanada tinha fitado atentamente os olhos do Faísca. Vira-os fugir para o lado com suspeita e depois com desconfiança. Num momento teve a certeza de duas coisas. Primeiro, que o Faísca tinha dinheiro escondido. Segundo, que não era fácil deitar-lhe a mão. O Faísca estava agora de novo a olhar para ele. Nos seus olhos haviam sofisma e, ilustrando-a uma estudada ratice.

— Não tenho dinheiro nenhum — disse.
— Mas todos os dias, amigo Faísca, vejo-te receber cerca de dez escudos de vendas e nunca te vi gastar um centavo.

Desta vez o raciocínio do Faísca não o tramou.

— Dou-os à Minha Sorte — disse. — Não guardo dinheiro em nenhum lado.

E com este drible encerrou firmemente o assunto.

«Aqui deve haver pardal», pensou, Catanada. Por fim, lançou o último às ao jogo. Deitou mão à pasta e pô-la debaixo do braço.

— Eu apenas tive o cuidado de proteger-te. Como sabes, o seguro morreu de velho — disse em toada crítica. — Se não quiseres tentar precaver-te, não posso fazer nada por ti.

A bondade voltou aos olhos do Faísca.

— Diz aos meus vizinhos que estou bem de saúde — pediu. — Diz-lhes que venham visitar-me sempre que queiram. Têm é que avisar-me antes. Ficarei muito contente por os receber. Dizes-lhes isto por mim, Catanada?
— Digo — respondeu Catanada com dureza. — Mas os teus vizinhos não vão ficar muito satisfeitos quando souberem que tu não fazes nada para os sossegar.

Catanada passou a pasta para a mão e afastou-se encoberto no escuro. Sabia que o Faísca nunca abriria boca onde escondera o dinheiro. Este tinha de ser descoberto furtivamente e arrancado à força. Depois far-se-iam todos os seguros para o Faísca. Não havia outro remédio. E a partir daqui, Catanada meteu pés ao caminho a seguir o Faísca. Segui-o no jardim quando ele ia vender bugiganga, e aos domingos na igreja quando vendia santinhos. Ficava à espreita, de noite, junto da casa. Teve com ele algumas conversas a jeito, mas daí nada surgiu. As longas e desgastadas vigílias deram cabo do juízo de Catanada. Achava que tinha de pedir ajuda e opinião pessoal a Pipocas, Pascácio e Very nice. Quem melhor lhas podia dar? Tinha que lhes conceder a sua confiança, mas primeiro mentalizou-os como tal se tinha mentalizado a si mesmo. Quando chegou a altura, os amigos estavam numa, “Um por todos e todos por um”. Aplaudiram-no. O rosto iluminou-lhes de boa vontade. Pascácio chegou a fazer contas de somar e concluiu que o Faísca era bem menino de possuir mais de dez mil escudos.

— Temos de o seguir — disse Pascácio.—
--- Eu tenho-o seguido — retorquiu Catanada. — Mas é que ele só aparece à noite e o cão parece um demónio atrás dele. A coisa não é assim tão fácil.
— Usaste os pormenores todos? — perguntou Pipocas.
— Todos.

Por último, foi Very nice, esse pensador homem, quem encontrou a chave da solução.

— A coisa só é difícil enquanto ele não ganhar confiança connosco — disse. — Mas supúnhamos que ele convivia com a gente? Seria mais fácil para nós ganhar a cumfia dele.

Os amigos consideraram lentamente essa hipótese.

— Alguns empregados dos restaurantes dizem que ele se governa bem — disse Pascácio. — Já tenho visto que a comer é um pisco, mas a beber é bem melhor.
— É capaz de ter aí uns vinte mil escudos — disse Catanada.

Pipocas pôs uma questão:

— Mas os seguros? Ele há querer o cão no seguro.
— O cão é um autêntico robô — afirmou Catanada. — É-lhe fiel cegamente. Pode pôr-se um saco à volta do pescoço, mandá-lo ao recado e dizer-lhe: «Vai buscar pão», «Vai buscar leite.» Ele diz-lhe e o animal não falha uma. É um águia.
— Um dia, de manhã, vi o Faísca; tinha no bolso quase meia vintena de cascalho — disse Pascácio.

O assunto ficou encerrado. A conversa converteu-se em assembleia e a assembleia foi ter com o Faísca. O Faísca nem sabia como disfarçar a felicidade de ver a casa apinhada com todos lá dentro. Usou um tom rude.

— O tempo não tem ajudado muito — disse ele, na sua entrada inicial. — Talvez não devesse contar-vos, mas encontrei na barriga do Vigília uma cambada de carraças do tamanho de um ovo de pombo. — Depois, no seu papel de anfitrião, desfez de desculpas — A casa é muitíssimo pequena. Mas é quente e aconchegada, especialmente para o cão. Lamento não ter nada para oferecer aos vizinhos.

Foi então, a vez de Catanada, falar. Disse ao Faísca que os seus vizinhos estavam extremamente dispostos a ajudá-lo a fazer o seguro, e que se ele fosse almoçar com eles poderiam criar um elo forte de amizade. O Faísca ficou muito sensibilizado ao ouvir estas palavras. Olhou para eles; depois, para o cão, à procura de apoio, mas aquele não o fitou. Por fim, com a palma da mão, limpou o nariz de ranho, e passou a mão no grande blusão de fazenda.

— E o cão — perguntou docemente. — Vocês não se ralam que ele também vá? Vocês têm cães?

Catanada acenou com a cabeça um sinal de concordância.

— Temos; o cão também faz parte da família. Põe-se de lado um canto só para o bicho.

O Faísca era muito orgulhoso. Tinha receio de não portar-se à altura deles.

— Vão agora à vossa vida — rogou. — Tenho que ver se faço alguma coisa. Amanhã ou depois vou ter convosco.

Os vizinhos sabiam como ele se sentia. Saíram para fora e deixaram-no só.

— Ela há-de se dar bem com a gente — disse Very nice.
— Pobre diabo; por aí anda ao quem será — acrescentou Pipocas. — Se eu tivesse sabido, há mais tempo que o tinha convidado, mesmo que ele não possuísse um tusto.

Um brilho de alegria brilhou em todos eles. Em breve as novas amizades ficaram estabelecidas. Pipocas, com uma longa corda, fechou um círculo em volta do quintal, onde o cão tinha de comer quando viesse lá a casa. O Faísca tinha agora um lugar central para ficar de frente para o cão. Pipocas e os amigos entenderam que o convite feito ao Faísca fora inspirado por aquele fatigado e desejoso momento que olhava pelos seus destinos e os protegia do mal. Todas as manhãs, muito antes de os seus vizinhos saírem de casa, o Faísca passava com o seu carrito e, seguido pelo cão, fazia a ronda do tasco e restaurantes. Era daquelas figuras da terra por quem toda a gente sente simpatia. As recolhas tornaram-se vantajosas. Os empregados eram seus amigos, dizia de si para si, dias a fio, quando rebocava o lixo e deixava os bidões vazios para eles os encherem. Estes empregados gostavam tanto dele que os afligia deixarem-no emborrachar-se sozinho. Muitas vezes o Faísca tinha de recolher a casa para dormir. Era tão grande o seu medo de não executar as tarefas, se por acaso não fossem lá limpar. Durante dois dias, os vizinhos limitaram-se a esperar pelo Faísca. Mas, por fim, ele acabou por vir visitá-los. Sentaram-se em redor da mesa, jantaram, e discutiram o que se passava no Marco de Canaveses numa voz arrastada de espertos saciados, os olhos do Faísca bailavam de rosto para rosto e os seus próprios sorrisos sobressaíam-se conferindo as conversas que ouvia. No fundo do quintal, satisfeito, o cão olhava para eles. Nessa noite, a discussão surgiu do tema das pessoas esconderem o dinheiro. Catanada falou:

— Tive um tio, um grande avarento, que abafava o dinheiro no sótão. Ora um dia, um incêndio deflagrou, e ele ficou sem nada. Ninguém chamou os bombeiros. O meu tio era preguiçoso, ficou sem dinheiro nenhum e depois internou-se.

Catanada notou, com uma certa satisfação, que no rosto do Faísca surgira uma certa inquietação. Pipocas reparou também e, por sua vez, prosseguiu:

— O meu patrício, que me deixou esta casa e a outra, também enterrou dinheiro. Não me lembro quanto, mas, como era considerado poupado, devem ter sido aí uns quatrocentos ou quinhentos contos de réis. O patrício fez um esconderijo no tecto e pôs o dinheiro em cima; depois marcou o sítio com uma cruz. Mas, um dia, quando lá voltou os ratos tinham-lhe comido o dinheiro e deixaram lá umas pontas.

Os sorrisos do Faísca seguiam os rostos. No olhar estampara-se-lhe o medo. Os seus dedos metiam-se por entre o miolo da broa. Os vizinhos trocaram um olhar e, habilmente, mudaram de tema. Passaram a falar dos amores de Xanana. Pela noite dentro, Catanada saiu furtivamente de casa e, dirigiu-se rapidamente a casa do Faísca, saltando com destreza por cima da cancela e passado o quintal. Depois de tirar o canivete do bolso e ter aberto a porta, pôs-se a revistar gavetas e armários, e todo o local onde o Faísca poderia ter escondido o dinheiro. Mexeu e remexeu aqui e acolá e, por fim, deu por terminada a busca. Uma hora mais tarde, Catanada voltou para trás num desalento e aborrecido. Por essa altura, o Faísca já estava em casa dormindo o sono aberto deitado ao lado do cão. No dia seguinte, realizou-se uma assembleia na casa do Pipocas.

— É impossível dar com o esconderijo — informou Catanada. — Escondeu bem. Não se vê nem um chavo. Temos que conhecer bem os cantos à casa. Temos de arranjar outro esquema.
— Talvez seja melhor irmos todos — sugeriu Pascácio. — Se todos formos revistar a casa, talvez um de nós tenha mais golpe de vista.
— Hoje voltamos a convidá-lo — disse Very nice. — Um senhor que é meu amigo, vai dar-me uma garrafa de uísque — acrescentou com modéstia, Very nice. — Quem sabe, o Faísca, com uma pinga destas, não se levante da mesa e fique por aqui a sonhar.

Assim ficou combinado.

O amigo de Very nice oferecera-lhe a garrafa de uísque. Não podia haver mais prazer para o Faísca nessa noite quando lhe passaram para a mão uma tigela com uísque acompanhada de uma chouriça assada e ele se sentou ao pé dos vizinhos, bebericando e ouvindo falar. Raras vezes tivera uma oportunidade de beber uísque por uma tigela. Como lhe soubera tão bem. Desejou poder abraçar esta gente contra o peito e dizer-lhe quanto os adorava, mas isso não podia fazer, não fossem eles chamar-lhe de bêbado.

— A noite passada falamos sobre o dinheiro abafado — disse Catanada. — Agora, lembrei-me de uma madrinha minha, uma mulher esperta. Se havia alguém neste mundo capaz de descobrir um buraco onde ninguém desse com ele, esse alguém era a minha madrinha. De modo que um dia pegou no dinheiro e escondeu-o. Mas de nada lhe valeu. Um dia deram com ele e roubaram-lhe todo.

A inquietação voltou ao rosto do Faísca.

— É melhor ter o dinheiro à mão debaixo de olho, gastar um pouco e pronto e emprestar algum aos vizinhos — concluiu Pipocas.

Tinham estado a olhar cuidadosamente o Faísca e tinham reparado que, durante a história mais arrebatadora, o cansaço lhe aparecera no rosto e um abrir e fechar de olhos tornava-se evidente. Agora o Faísca consumia o uísque em doses triplas e os olhos carregavam-lhe de peso. O sono apoderou-se dele. Todos os seus sentidos tinham bloqueado. Ficara profundamente ébrio. Depois de toda aquela chouriçada e de todo o álcool ingerido, acabou por tombar a cabeça para baixo e adormecera. Pouco depois deu-se a saída furtiva dos vizinhos e sem que o cão do Faísca acordasse, cavaram dali para revistarem a casa do Faísca. Um momento depois, os quatro entraram na casa do Faísca. Quando abriram a porta o fedor era enorme. Os quatro vizinhos foram ao encontro dos cantos e apalparam buracos e bateram nas tábuas; mas durante bastante tempo ouviram o Faísca caminhar na sua retaguarda. Saíram para fora e esconderam-se atrás duns arbustos; de repente, só o silêncio, o abanar das folhas e o fraco vento da noite. Revisaram o arvoredo e atrás dos pinheiros, mas o Faísca desaparecera de novo. Por fim, cheios de frio e abatidos, arrastaram-se na direcção do centro. O céu escureceu e o manto da madrugada cobria já sobre a vila. Marco de Canaveses desceu até eles a luz dos primeiros candeeiros da noite. O Faísca, sorrindo de alegria, veio ao quintal cumprimentá-los. Passaram por ele de má cara e meteram-se dentro de casa. Em cima da mesa encontrava-se um saco de serapilheira. O Faísca seguiu-os.

— Enganei-te, Catanada. Disse-te que não tinha dinheiro porque estava com receio. Nessa altura eu não conhecia os meus vizinhos. Agora vocês disseram que me ajudavam a fazer o seguro da casa e do cão que já estou interessado de vez. Só depois de descansar é que me veio à cabeça a solução. No cofre do banco o dinheiro estará em segurança. Ninguém conseguirá tirá-lo de lá se os meus vizinhos me ajudarem.

Os quatro vizinhos olhavam-no, estupefactos.

— Pega no teu dinheiro e esconde-o no monte — disse Pipocas, indignado. — A gente não vai querer saber.
— Não — contestou o Faísca, — não me sentia seguro se o escondesse. Mas ficarei aliviado sabendo que os meus vizinhos me ajudaram a guardá-lo no banco. Vocês são capaz de não acreditar em mim, mas nestes últimos dias, alguém me revistou a casa para me roubar o dinheiro.

Embora o golpe fosse duro, Catanada tentou iludi-lo.

— Antes de esse dinheiro vir parar ao banco, se calhar, tu vais querer tirar algum? — sugeriu amavelmente.

O Faísca abanou a cabeça.

— Não. — Não quero fazer isso. Tenho quase mil moedas de dez escudos. Quando tiver mil, compro um porco para oferecer à Minha Sorte. Tive uma vez um galo do campo que adoeceu, e então, prometi à Minha Sorte que lhe compraria um porco para criar com o dinheiro junto durante mil dias se o bicho escapasse. E escapou — concluiu, estendendo as mãos pequenas.
— Muito bem. Ficamos esclarecidos — concluiu Catanada.

Assim se terminava toda a ilusão em volta do desvio do dinheiro. Pipocas e Pascácio levantaram o pequeno saco de latas da graxa carregadas de moedas de cobre, levaram-no para a outra sala e puseram-no debaixo dos papéis na gaveta de Pipocas. Tempo viria em que experimentariam um certo gozo em saber que aquele dinheiro estava debaixo dos papéis na gaveta, mas agora a sua derrota era azeda. Nada podiam mudar. A oportunidade surgira e cavara-se de vez. O Faísca estava ali defronte deles; tinha os olhos chorões de felicidade, para provar o seu amor pelos vizinhos.

— E pensar — disse — que todos estes anos vivi naquela casota e não conheci qualquer prazer. Mas agora — acrescentou —, agora, estou muito feliz.

Monday, January 2, 2012

CONTOS DE RATAZANA
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6. Episódio
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Eis como os amigos de Pipocas
juraram ser mais companheiros


O Sol já aquecia acima dos pinheiros, o chão estava quente e o rescaldo da noite ia secando nos arbustos do monte quando Pipocas saiu da cozinha para se sentar à soalheira do quintal e meditar, ao calor, acerca de alguns acontecimentos. Arremessou os sapatos e as meias para o lado e deixou que os dedos dos pés apanhassem ar sobre o cimento aquecido pelo sol. Manhã cedo tinha ido ver os fios esturricados e a tomada feita em bocados do seu apartamento. Entregara-se a uma pequena raiva momentânea contra os seus desmiolados amigos e lamentara por momentos o abuso de confiança.

«Se ainda pagassem renda, teria a consolação de receber algum», pensou. «Os meus amigos vão ter que me ficar a dever dinheiro. Agora vou ser eu a pagar os prejuízos.»

Pipocas, porém, sabia que devia castigar um pouco os seus amigos, ou estes considerá-lo-iam lorpa. Por isso, enquanto estava sentado com os pés ao sol no quintal, afastado as moscas com as mãos que eram mais avisos de que ameaças, meditou no que havia de dizer aos amigos antes de os aceitar no apartamento. Tinha de lhes fazer ver que não era homem que se deixasse abater. Desejava ser sempre aquele Pipocas de quem toda a terra gostava, aquele Pipocas que as pessoas procuravam quando tinham uma aflição de urgência ou um problema de maior. Como dono de uma herança e dono de duas casas, tinha sido considerado rico e ganhara inúmeras coisas boas. Catanada, Pascácio e Very nice dormiram cada um em suas casas. Tinha sido um dia cheio de acontecimentos excitantes e estavam exaustos. Mas o quente sol da parte da manhã acabou por brilhar-lhes no rosto e obrigá-los a sair da cama. Encontraram-se; sentaram-se; e, então, perguntou Pascácio, lamentoso.

— Como se deu o curto-circuito?

Ninguém sabia.

— Talvez — disse Very nice —, fosse melhor deixarmos de nos ver por uns tempos.

Catanada tirou as fotografias da algibeira e passou os dedos sobre as imagens desnudadas coloridas. Depois, ergueu-as contra a claridade e olhou através delas.

— Isso só trazia problemas para nós — concluiu. — Penso que o melhor era irmos ter com o Pipocas e confessar o nosso descuido, como os filhos fazem com os pais. Assim, ele não pode censurar coisa alguma sem sentir dó. E, além disso, não temos nós aqui um presente para ele?

Os amigos aprovaram com um gesto de cabeça. Os olhos de Catanada vaguearam novamente pelas fotos, franzindo o nariz um pouco, como o de um coelho. Sorriu, absorvido em calma quimera.

— Vou dar uma curva, amigos. Daqui a pouco encontro-me com vocês no quiosque. Não tragam más notícias se puderem deixar de ouvi-las.

Pascácio e Very nice fitaram-se tristemente enquanto Catanada se afastava, pelo meio das pessoas, direito ao quiosque. Por volta das catorze e trinta os três companheiros caminhavam lentamente em direcção a casa de Pipocas. A saca ia preenchida com ofertas de reconciliação: caixas de cigarrilhas, pastilhas elásticas, garrafa de uísque e uma revista da Playboy. Pipocas vi-os chegar, levantou-se e tentou lembrar-se daquilo que tinha a dizer-lhes. De olhos em baixos, os três perfilharam-se em frente dele.

— Javardolas, fodilhões das gajas das ratas peludas, marados! — chamou-lhes.

E mais não lhes chamou, porque de imediato, Catanada tirou da saca e exibiu as pastilhas elásticas. Pipocas disse que já não tinha confiança nos amigos, que a sua amizade tinha sido lesada. Depois a conversa tornou-se um pouco difícil, pois Pascácio tinha aberto a garrafa de uísque e deu-lha a estrear. Catanada sacou das fotografias enroladas no papel com o número do telefone delas e, indiferente, deixou-as ficar viradas de pernas pró ar, no cimento. Pipocas então esqueceu-se de tudo. Sentou-se no quintal, os amigos também e tiraram tudo de dentro da saca. Beberam e fumaram até se satisfazerem. Uma hora mais ou menos tinha passado, confortavelmente recostados, e a gozar as delícias do sol airoso, quando Pipocas perguntou por acaso, como se tratasse de qualquer coisa remota.

— Como é que se deu o início ao curto-circuito?
— Desconhece-se — explicou Catanada. — Fomos malhar e logo aconteceu. Talvez a corrente eléctrica não queira nada connosco.
— Talvez — repetiu Pascácio numa voz de menino do coro, — talvez haja nisto o espírito de Satanás.
— Pode alguém saber o que leva Satanás a fazer isto? — acrescentou Very nice.

Quando Catanada lhe entregou as fotografias e explicou que elas o queriam conhecer, Pipocas ficou reservado. Olhou um tanto indiferente para as fotos. Os seus amigos, pensou, estavam a tentar adormecê-lo.

— Vocês não pensem que eu nasci ontem — disse, por fim. — Muitas vezes ficamos presos a uma amizade pelos copos de uísque que lhe oferecemos.

Não podia mostrar aos seus amigos o gozo que se instalara dentro de si desde que ficara a saber do curto-circuito no seu apartamento nem podia, por delicadeza para com o vizinho que o informara, descrever como esse gozo o agradava.

— Vou pôr estas fotografias arrumadas para aí. Pode ser que algum dia me lembre delas.

Quando a tarde começou a escurecer, Pipocas meteu-os no seu carro e rumou para o Porto, para o seu apartamento. Mas muito antes, tinha dado ordens ao electricista para tratar da ligação eléctrica. Pipocas, como prova do seu perdão, foi buscar uma garrafa de gim e ofereceu aos seus amigos. Habituaram-se facilmente à nova bebida.

— Quando é que nos levas a conhecer os novos pitos da Senhora do Porto? — perguntou Catanada.
— Na sexta-feira ela vai apresentar-me um tridente de pitinhos — disse Pipocas.

Catanada sorriu satisfeito.

— Os pitos da Senhora do Porto costumam ser tenrinhos. Eu disse-lhe uma vez que precisavam de roços jovens e não roços velhos, mas ela mandou-me bugiar.
Beberam os últimos tragos da garrafa, o que chegava e sobrava para fomentar a doçura da camaradagem.
— É bom ter amigos — disse Pipocas. — Como é triste uma pessoa não ter amigos para compartilhar o gim!
— Ou as bifanas — acrescentou Pascácio, rapidamente.

Pascácio ainda não estava completamente liberto dos remorsos, pois não tinha dúvidas de quem tinha provocado o curto-circuito do apartamento.

— Em Portugal inteiro há poucos amigos como tu, Pipocas. Poucos se gabam dessa consolação.

Antes de embalar completamente sob os piropos dos seus amigos, Pipocas lançou um repto.

— Quero as chaves do meu apartamento — ordenou. — Quero-as todas na minha mão.

Embora nenhum deles o tivesse citado, cada um dos quatro sabia que ia haver festas no apartamento de Pipocas. Catanada deu um suspiro de alívio. Passada estava a preocupação com as despesas, passada estava a responsabilidade de dever dinheiro. Já não era devedor. Em meditação, deu graças pelo curto-circuito no apartamento.

— Vamos ser mais felizes agora, Pipocas — disse. — No fim do mês quando tivermos dinheiro, vamos dar uma grande comezaina. E talvez tenhamos aqui, se as convidarmos, uns borrachos da Senhora do Porto para gozarmos à fraternidade.

Então, Very nice, numa excitação grata, fez uma ousada promessa. Era o gim quem o fazia, a noite do curto-circuito e todas os momentos picantes. Imaginou que tinha recebido grandes prendas e queria dar uma também.

— Será nossa parte e obrigação fazermos com que neste apartamento nunca ao Pipocas falte pito — disse com arrojo. — O nosso amigo nunca se há-de fartar.

Catanada e Pascácio levantaram os olhos, pasmados, mas a coisa já estava dita. Ninguém a podia desmentir. Até Very nice compreendeu, depois de a ter lançado cá para fora, semelhante afirmação. Só podiam ter esperança de que Pipocas não a lembrasse.

«Porque», disse Catanada para si próprio, «se esta promessa fosse exigida, seria pior do que as despesas. Seria um comércio.»

— A nossa palavra de honra, Pipocas! — disse.

Sentaram-se à volta da mesa, com os copos nas mãos. A amizade que havia uns pelos outros era quase intolerável. Com as costas da camisa, Pascácio limpou os queixos molhados e repetiu a afirmação de Catanada.

— Seremos mais felizes aqui — disse.