Thursday, December 25, 2014


                                             
                       
                                                   O meu “Bolinhas”
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Já lá vai um bom par de anos, numa segunda-feira, quando comprei o meu primeiro carro. Ainda recordo da sua matrícula; BF-19-03 – Morris Minor de 1953, cor vermelha e riscas lilás. Era propriedade de um colega meu do conjunto onde eu tocava viola que, o tinha lá encostado na sua velha garagem. E eu gostei daquele automóvel. Comprei-o a prestações e custou-me quatro contos e quinhentos escudos. Era um carro à inglesa; tinha o banco de trás comprido e forrado a pele e dava a impressão de uma sala de visitas. Tinha um espaço quanto baste para duas pessoas pôr as pernas à vontade. E às vezes servia como beliche; tinha as cadeiras da frente que, quando rebaixavam, o tornavam íntimo e prestável. Conduzi por um cemitério local a cem metros de distância. Não havia lá nada que me estorvasse, mas ao curvar o muro, calculei mal a curva, e lá deixei a minha marca. Levei algum tempo a limpá-lo e a pô-lo bonito, puxando o lustro aos cromos com graxa dos sapatos, e pintando os pneus a branco estilo barão. Não me lembro de me haver sentido mais entusiasmado e com enorme alegria. Demorou poucas horas para que o meu “Bolinhas”, como o batizara, se transformasse no meu objeto de eleição. Andava comigo para todo o lado. 
Naquela época eu trabalhava em night-clubs, como violista de um duo. Lembro-me do frio que ele fazia no Inverno quando eu levava as catraias a casa pela madrugada e como estas desatinavam aos gemidos. Era um carro de muitos buracos. Não aquecia ninguém. E às vezes eu abria os vidros para elas respirarem para dentro, e só depois os fechava, para sentir mais calor. Quando a noite estava mais fria, o remédio era uns bocados de cartão e pano grosso que, assim, tapavam os furos. Por essa altura mantive namoro com uma camareira, que me pediu para levá-la à sua terra, perto de Chaves. Antes de ir levá-la, fui lavar o carro e perfumei-o todo por dentro. A viagem até à sua terra correu de feição, o pior foi o regresso. Atravessámos as terras de Chaves no meio de uma tempestade de neve a cerca de 50 metros da estação ferroviária. A minha companheira deitou-se ao comprido no banco traseiro, e cobriu-se com uma manta. De repente, um camião em sentido contrário, saiu fora de mão e barrou-nos a passagem. Saí do carro e fiz então parte da equipa de automobilistas que tentaram retirar a neve dos trilhos. Passado algum tempo, o limpa vidros bloqueou e tive que o substituir; pondo a mão de fora para tirar a neve e desembaciar o vidro. Chegamos ao Porto praticamente gelados, porque o sistema de aquecimento deixou de funcionar e o carro converteu-se num frigorífico… e era isso mesmo. Levei cinco a horas a chegar ao destino. A catraia parecia ter saído de um caixão. Ela nunca havia confiado muito no Bolinhas; aquela viagem não concorreu para melhorar a sua opinião.   
Com a falta de trabalho que se gerava, não sobrava muito dinheiro para a gasolina e um fadista meu amigo, quando precisava que o levasse para um espetáculo, chegava-se a mim e dizia: “Mete dois litros…” e, lá íamos numa calma. E depois de alguns minutos, propagou-se no interior um cheiro a borracha queimada. O meu amigo fadista e os seus acompanhantes, saltaram do Bolinhas, gritando: “Pára! O carro vai incendiar-se!” Parei o carro e eles saíram para fora. A princípio, não sabia donde vinha aquele cheiro. Talvez um curto-circuito; talvez um fio a bater na chapa. Mas aos poucos fui desvendando o mistério. Eu já tinha adquirido um certo instinto para estes serviços. O problema era passar a luz de mínimos para médios; a fase entrava em choque. Assim, a viagem foi feita em mínimos.    
Lembro-me da crise económica dos 70 e as complicações que eram na bicha nos postos de gasolina. Não havia muita paciência para muito e num domingo à tarde, fiz uma viagem com o Bolinhas pela terra de meu pai, com uns amigos. De vez em quando alguns carros passavam por nós, apitando; seus motoristas e seus passageiros gostavam de pegar com quem conduzia antigos carros. Mas naquele tempo, ou a gente era descontraído com o próprio carro, ou não ia a lado algum. Após dois quilómetros de viagem, consegui ultrapassar o carro que me tinha ultrapassado antes, creio que era um Peugeot cabriolet, de matrícula francesa. Ele deixou-se enganar na estrada pela bicha à gasolina, e eu passei por ele com uma vaia em voz alta e áspera: “Comi-te, franciú!” Depois, escondi o Bolinhas no primeiro cruzamento, e uns minutos depois, lá apareceu o Peugeot a todo o gás. E nós adorámos aquele momento.       
Durante a minha louca juventude fazia um rode de coisas que naquele tempo pareciam banais, mas que hoje seriam consideradas completamente loucas. Um amigo meu, por sinal, era meu companheiro do duo, convenceu-se que um dia havia de me comprar o Bolinhas. O carro, porém, não estava mecanicamente em condições. Disse-lhe que não se aventurasse a isso; não queria vê-lo no hospital. Andei meio quarteirão antes que um ruído suspeito aumentasse na parte de frente do carro e a mangadeixa se desintegrasse com um estrondo semelhante à pancada duma marreta. Logo a parte da frente afunilou. Não sei qual foi a minha ideia, mas o que fiz foi concreto: vendi o Bolinhas conforme estava ao sucateiro por 5oo paus.
Hoje nada é igual. Agora é tudo eletrónico, cromado e pinturas brilhantes. No passado um carro era uma coisa tão familiar, tão próxima, tão importuna e querida quanto uma mulher. Hoje nada é igual. Espero que nunca mais seja…


                                                                                                                                                                                                 Abraão, Porto.


Saturday, December 13, 2014


                                                             Os «Peidos» da Artista
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Tal como diz a letra do fado Recordações dum breve amor, os dois subiram por uma escada tosca de velhas tábuas; a cama negra e tão esburacada, e de alguns lençóis iguais, deixaram recordações dum breve amor. Mal ele pôs os pés no quarto, despiu-se e foi ao bidé lavar as partes de baixo (banho de puta), enrolou-se no lençol em forma de charuto e meteu o braço por debaixo da cabeça, pondo-se a contemplar a cantadeira com os olhos em bica. Ela foi a seguir. Despiu-se a temperatura rondava os 20º, lavou-se da forma que o companheiro fez. A voz dele cortou o silêncio.
─ Tomara muita rapariga nova ter o teu cabedal! ─ Ela envaideceu-se e pôs-se a cantarolar uma cantiga, deixando a água correr pela torneira do bidé. De súbito, os efeitos de gazes do champanhe acumulados na sua barriga, fizeram um estrondo no quarto: pum, pum, e logo a artista se descontrolou, atirando com semelhante peido cá para fora, que entoou pelo ar.
Padeiro saltou da cama aos berros:
─ Que grande badalhoca ─, tinha o rosto de uma escultura. ─ Isso não se faz a um homem. ─
Mamuda levantou-se, cambaleando, e percebeu que as lágrimas que lhe caiam pelos olhos tinham também desespero. No instante em que, ele já equipado com a roupa, revoltado, arrancava o passo para a saída, voltou-se para trás.
─ Ó mulher, tu nem digas nada, olha que azar o meu, vir aqui para gozar um pouco e levar com o peido da artista, essa é boa. ─
Abandonou o quarto às gargalhadas. Quem o visse, até diria que era maluco. 
                                                                       

                                                                                                                                 Abraão, em Escritos Traidores.


                                                      Uma Noite de Copos
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E numa noite fria de Fevereiro, Nicha, algo nervosa, levantou-se da cadeira, começando a contar a sua desgraça num desespero total. Aquela desventura com o colega de trabalho que conhecera no bar, apareceu a nu e deixou-a de rastos, conforme salientou através das suas palavras:
─ Acabei a minha ligação com esse homem. ─ A cozinheira tentou confortá-la. ─ Ó mulher, ainda há dias estavas tão feliz com ele? ─ Ela não esteve pelos ajustes. Cheia de fúria, atirou com a tigela da sopa para o chão.
─ Se sois minhas amigas, não me faleis mais desse cavalo. ─ O silêncio tornou-se irrespirável. Menino Quim tirou os óculos da cara, pondo-se a limpar calmamente as lentes, com o guardanapo de papel. Bilontra tentou pôr água na fervura.
─ Tem paciência, sei muito bem o que é gostar desses bardamerdas que não nos merecem sequer uma unha do nosso pé. ─ A cozinheira voltou a interferir. ─ Ontem, ri-me tanto, quando contaste que foste com ele beber um copo à discoteca, depois levou-te a casa, querias que ele subisse ao quarto mas ele não quis; às tantas, tiraste-lhe os sapatos e obrigaste-o a ir descalço para casa. ─ Ouviram-se risadas. Repentinamente, Nicha bateu fortemente com a colher na mesa. Voltaram-se todos.

─ O cavalo não quis subir mas fiz com que fosse para casa sem sapatos, só para a mulher o ver descalço. ─ Soltou uma valente gargalhada. O jantar havia terminado, olhei de esguelha para as garrafas de vinho sobre a mesa, estavam completamente vazias. Fez-me lembrar certo provérbio: «O homem bebe para embebedar-se ─ mas a mulher bebe para alegrar-se.» Cada um de nós voltou para a sala.

Lá dentro, outra festa ia começar.


                                                                               Abraão, em Escritos Traidores.

Friday, November 14, 2014


NÃO VOS PASSA PELA CABEÇA OS CASOS QUE SE PASSAM NOS CAMPOS DO FUTEBOL.
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NUNCA VOU ESQUECER A PRIMEIRA VEZ que fui à bola. A primeira foi no estádio das Antas em 1959, quando o Porto jogou frente ao Atlético e ganhou. Estava eu internado na Casa de Correcção do Porto, e a direção do Porto ofereceu gentilmente bilhetes à instituição. Tinha 13 anos e passei semanas a comportar-me bem para ver o meu nome na lista dos bem-comportados. Nos primeiros cinco minutos, julguei que me iam levar ao colo, tal era o fluxo da multidão, mas logo, aqueci com o ambiente. E, fartei-me de levar encontrões e pontapés nas canelas. Jamais tinha ouvido tamanha barulheira de gritos como na entrada da equipa do Porto, e naquela tarde, deviam estar mais de 30.000 pessoas no estádio, mas quando eles se punham a gritar todos ao mesmo tempo, parecia que o estádio ia abaixo. É uma experiência que fica marcada para sempre. Eu fiquei apanhado para a bola. Basta ver, quando o jogador chamado Hernâni, toque subtil na bola, faz um sprint veloz, já sabemos que o avançado tinha meio golo nas botas.
Vinte anos depois, tornei-me sócio do F.C. do Porto, e voltei ao mesmo local onde tinha estado, vinte anos antes. Muitos dos momentos mais memoráveis da minha vida, sem dúvida, saíram-me dos campos do futebol. Vinte anos depois, quase uma centena de jogos vistos, os casos mais extrovertidos ainda perdura na minha memória. Recordo o homem das rifas da Ribeiro que começara a ficar nervoso, no jogo em que o meu clube empatou em Coimbra, contra a Académica; viajamos quatro no carro e repartimos as contas à moda do Porto, e entramos aos repelões no estádio às 3 da tarde. O jogo começava uma hora depois. Apareceram aqueles chatos rapazes da terra, cabelo à escovinha, que se fartaram de nos picar, quando deixamos de os ouvir, já o rifeiro tinha enviado um sapato à cabeça de um deles. Menos de 5 minutos para acabar o jogo, há um livre soberbamente marcado por Cubilas e o empate surge, e o delírio nas bancadas passa-se dos carretos. Logo o segundo sapato voa em direção à cabeça dos rapazes, que fogem em debandada. Ele começara a rir-se e não conseguira parar.

Troquei de turno ao trabalho, em 1978, para ver o jogo em que o meu clube se tornou bicampeão contra o Barreirense, no estádio das Antas. Recordo o momento em que o jogador Oliveira, o nosso cérebro da equipa falhou o golo ao poste contrário por uma unha negra. Quando um sócio do meu clube de rádio ao ouvido, ouvindo o encontro do rival, grita para ele aos altos berros, chamando-o de aselha e boémio para logo a multidão cair numa barulheira infernal durante 5 minutos, para aclamar o genial golo de Oliveira, já se sabe que o rádio voa das mãos do sócio e alguém vai ficar em mau estado.

Mais uma.
Que rica tarde soalheira nos aguarda à chegada ao campo do Varzim para assistir ao jogo que interessa ao meu clube: a vitória dá-nos o título de tricampeão. E nas bancadas, logo a seguir ao primeiro pontapé na bola, a emoção sobe ao rubro em jogadas a rondar a baliza contrária, perante o arrastar das vozes da multidão em pulgas, na eminência de ver uma bola entrar. Uma escapadela do jogador azul e branco põe tudo em choque, mas o avançado sem acerto atira a bola pró monte. E o último quarto de hora é de gritos. Quando soa a apitadela final, o empate persiste, e a equipa do Varzim dirige-se à nossa bancada para a despedida da praxe, é claro que sai vaia e em seguida um coro de raiva. Quando um rapazito dos nossos, sufocado em lágrimas, sobe ao gradeamento debaixo de uma emoção forte para um polícia de cassetete na mão cair em cima dele, já se sabe, que a nossa claque e massa associativa solta um longo Ah, Ah, Ah, durante 20 segundos, e rápido o polícia cavar dali em passo de corrida. 

E mais outra.
Ir a Viena de Áustria em 1987, quando vencemos o Bayern de Munique na final da Taça dos Campeões Europeus, e ver o fenomenal calcanhar de Madjer, é coisa única no nosso historial. Sumir chiclete atrás de chiclete até os engolir durante uma das maiores aflições de uma tarde gloriosa do Porto trazer a taça UEFA, em Sevilha, no ano de 2003.


Essa era uma das minhas histórias que tinha para contar daqueles jogos e nunca deixei de o fazer. Porque gostava de as contar.

Thursday, November 6, 2014


                                                     .

Meia-noite, mais ou menos. Um homem de chapéu enterrado na nuca vem do fundo da sala e caminha direito à casa de banho; pára, agacha-se para despertar a portinhola das calças e tira a gaita para fora, pondo-se a mijar para o urinol mas mija para o chão… e, em vez de mijar, põe-se a rir como um desastrado: «Olha para isto!» E volta a mijar fora do urinol!... «Esta está boa! Mas quem seria o filho da mãe que pôs ali aquele letreiro na retrete?...» E ele sai cá para fora e diz: «Que lindo serviço! Mijei no chão porque me assustei com aquele reclame que está lá escrito a letras gordas que diz: ─ QUEM MIJAR PARA O CHÃO FICA SEM A GAITA!... E o homem de chapéu enterrado na nuca sai para a rua desnorteado, fora de si, a levar na mente aquela tesoura no ar que viu na casa de banho, quase que lhe cortava a gaita!...

                                                                                                              Abraão em, Escritos Traidores.




                                                     O Fascista e o Candongueiro
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Um fascista entra numa loja de mercearias e é abordado por um empregado. ─ O que deseja o senhor comprar? ─ pergunta o empregado com uma lista na mão. O cliente passa uma vista de olhos pela lista e pede um garrafão de cinco litros de vinho verde e um presunto e questiona: ─ Posso servir-me da mercadoria e deixá-la aqui a aguardar?
─ Muito bem. Mas quando pensa vir buscá-la?
─ Daqui a seis meses ─ responde o fascista.
─ Seis meses?
─ Desculpe, mas eu ainda não disse tudo. É que só penso pagar daqui a seis meses.
─ Isso é ridículo. E porquê esse tempo?
─ É que, daqui a seis meses, vou ter no cemitério um encontro marcado com um candongueiro. É uma pós-ditadura. 


                                                                                                     Abraão em, A Música Que Eu Dou.

Sunday, October 5, 2014


Conto Instantâneo



                                                                  Vassouras e o Vídeo
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Perto do centro da cidade, Vassouras descobriu, através das nascentes das águas e, acrescente-se, do mijo dos cães que abundavam a potes pelos cantos das esquinas, descobriu dizia eu, um produto eficaz para eliminar os ratos todos que vagabundeavam pela superfície da terra ; quando começou a matar os ratos e ratazanas pelos estabelecimentos, rapidamente criou o seu império de dinheiro que os amigos se pasmaram a pensar no negócio! Mas ninguém se atrevia a aproximar-se do seu negócio e lá ficou ele a vaguear pela cidade e a dar cabo da ratice toda que por lá abundava. Bem disso se quis aproveitar a namorada Batoque, começando por exigir algo mais que uns alternes.
─ Não me queres oferecer um vídeo para ver filmes? Sabes que não gosto de sair à noite de casa ─ O seu olhar meigo cativou-o num ápice, contrastando com o mau feitio dele. Não era capaz de lhe dizer não a nada. O pior vinha depois; um pouco gabarola, era frequente dizer aos amigos o que dava e o que não dava; daí, quando ela soube, foi aos arames e pregou-lhe uma partida. Um dia, pela manhã, esperou por detrás da persiana da sua janela, que ele viesse ao escritório situado a poucos metros do prédio onde habitava; quando o viu aproximar-se, gritou para a rua: Toma lá a merda do vídeo que me deste, podes dá-lo aos teus amigos. ─ Atirou o aparelho pelo ar, que foi estatelar-se contra as pedras da rua, ficando em bocados pelo chão. Ele não cabia na sua revolta, gesticulando com a sua mão no ar: ─ Ah! Minha rafeira, deixa estar quando voltares a pedir mais alguma coisa, vais ver o que te acontece. ─ Mandou um pontapé no resto do vídeo, que acabou por escaqueirá-lo ainda mais.           
                                                                                                                                  Escritos Traidores, de Abraão.





EM JANEIRO DE 1996, a senhora Tina, de cabelos loiros, apanhou o vício de fazer uns arranjinhos, e nunca mais desaprendeu. Era uma senhora de meia-idade conhecida por «Miss Piggy», num trocadilho usado em O Jornal Dos Traidores. A sua carreira foi premiada, quando se tornou dona de uma casa de passe em Rio Tinto, no Porto, — para satisfação dos clientes em geral, a maioria dos quais achava que as obscenidades escandalosas que se passava na sua casa suburbana eram mais para um gozo do que para injuriar. «A minha casa é suficientemente ARRUMADA para ser frequentada... e suficientemente INDECENTE para ser feliz».
Em Fevereiro de 1999, o nome da senhora Piggy apareceu em foco, de novo, no cabeçalho do pasquim, que anunciava a barafunda do estacionamento na casa junto à igreja de Rio Tinto. Contudo, desta vez não era necessário chamar a guarda, e dizia-se que a senhora Piggy afirmava: «Fi-los ver para porem os carros longe». Contou a um repórter mau-olhado de O Jornal Dos Traidores: «Hoje em dia, os vizinhos vêm algumas vezes uma quantidade de carros parados à minha porta e dizem: ´Então, já atendeste a tua família toda, Tina?` — ´Ai, já estava a contar com eles...

                                                                                                                                                  Abraão - Porto


Saturday, September 20, 2014


Conto Instantâneo



                                               Frank e Cabide
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Na primeira semana de Maio, Frank rendeu-se aos encantos da Cabide e tornaram-se namorados numa noite de conversa fiada. Durante esse tempo todo, Frank acabou por confessar:
─ Agora que te encontrei, não me foges mais. ─
Noite após noite, Frank e Cabide estenderam a amizade criando um elo forte entre ambos.
─ O melhor que tu fizeste ─ disse Frank, ─ foi dizeres que me amaste a partir daquela noite. ─ E Cabide responde: ─ Também me ajudaste, não é? ─ Passou uma onda passageira pelo olhar de Frank. ─ Gosto do teu olhar de esgriva! ─ E a Cabide: ─ E eu gosto do teu estilo de samaritano! ─ Enquanto os outros clientes se divertiam no bar em contos e histórias, eles abandonavam a sala e desapareciam de repente. Apenas o recado: «volto já» Não muito longe da cidade, no 191, o número da porta do motel, os impulsos traidores esperavam por eles. Frank ficou de sentinela à espera que Cabide tirasse a mantilha de trapos que lhe aquecia os ossos do seu corpo esguio.
─ Cabide! Oh, Meu Deus como és tão magricela? ─ Ela dá pulos de galinha na cama, enquanto ele fica de crista no ar a olhar pasmado. Cabide vai ao encontro dele. ─ Tinhas-me de dizer isso? ─ Agarrou-lhe no braço. ─ Não vês que assim fico sem vontade?
─ É isso mesmo ─ diz Frank. ─ Diz-me onde é que eu me vou agarrar com este griso. Se ao menos tivesses umas banhas onde eu pudesse deitar a luva!...
─ Cala-te, que excitação a tua! ─ grita ela. ─ Arre que sarna! Embora seja magra, tenho um corpo para dar e vender! ─ Ele dá-lhe uma palmada no rabo e diz:
─ Ainda o dizes, rapariga! Mas eu, quando te apalpar, é para te partir toda! E finalmente, estou a ver-te com essa cara de galinha do mato!...
                                                                                                     Escritos Traidores, de Abraão.




                                                  A Despedida de Solteiro
                                                              ________

O meu bar tem duas salas que são utilizadas para todos os convívios. Numa noite, houve uma festa de despedida para um cliente de descendência alemã que ia casar no fim-de-semana. Como ia haver um evento na tarde seguinte, o pessoal da casa teve que deixar as mesas recheadas com pratos de frios e quentes. Pouco depois de terem ido saudar os clientes, umas artistas da rapidinha foram convidadas para a festa em que lhes foi pedido que «dessem uma goelinha». Contentes por já estar tudo em ordem, estavam a formar-se pares quando viram um letreiro escrito com o seguinte: «Felicidades para lá do Muro dos Prazeres» (Pensão).

                                                                                     ABRAÃO, em O BardoTraidor.blogspot.com


Tuesday, September 9, 2014



Conto Instantâneo                   


«Aprendi que cair no vício não é o cabo dos trabalhos»

MARIA ODETE criou uma das «pegas-espertas» mais badaladas da noite portuense. Mas a alternadeira de 37 anos, que passa por turista nos locais chiques da moda, tirou o curso nos bares dos hotéis e é conhecida por ser uma mulher inteligente, sagaz e intuitiva. Apesar de ter trabalhado nos bares e nos cabarés de segunda, Odete não considerava o mundo da noite como uma carreira. «Achava que todas as alternadeiras eram estúpidas cujo modo de vida não resultava», diz. «Tinha medo de que, se me tornasse viciada, as pessoas não me quisessem.» O que lhe metia medo também era apanhar algum vício.

Mas o desejo de mudar de vida era grande e, por volta de 1971, juntou-se a um grupo de viajantes e viajou em alguns cruzeiros de férias. Mesmo assim continuou a evitar correr riscos. Raramente ia em grupos. E a sua vida social era bem mais preenchida tal como a sua carteira. «Era o medo de estar no caminho viciado que me continha», diz. «Até que finalmente aprendi que podemos apanhar vícios e que não é o cabo dos trabalhos.»

Fez um bom pé-de-meia em 1975, e daí passou a lojista de uma sapataria, em 1977. Casou-se em 1976, e teve um filho em 1979, apresentando uma forma física invejável. «As pessoas perguntam se não estou nada preocupada com o fato de só vender sapatos», diz ela. «E daí? Incomoda-me que pensem que sou uma estúpida? Incomodei-me mais com isso quando era mais novata. Agora, passa-me ao lado.»                                                                             
                                                                                ─ ABRAÃO, em ahistoriadeumboemio.blogspot.com                          




 Dinheiro fácil                                                   
                    
   
DEPOIS DA ABERTURA AO PÚBLICO do bar Tempo de Mimos, o proxeneta Tono da Rola ganhou dinheiro fácil. «Num dia eu andava por aí engatando mulheres», recorda ele, «e noutro dia eram as mulheres que engatavam a mim.» Mas o ser engatado constantemente não o arrefece; é realista no que respeita ao poder do dinheiro e delicia-se com o proveito que ele tem representado para si. «Fiquei revoltado quando me puseram na choça por fomentar a prostituição. Estava agarrado às grades e pensei: ´Vou comprá-lo.` Chamei o guarda e disse-lhe: ´Veja isto ─ não é uma nota de cem euros tão sedutora?` É o tipo de coisa com que falamos quando somos confrontados.» Contudo, agravou ainda mais a situação ao ser-lhe anexado mais uma folha ao seu grosso processo. «Quando nos tornamos conhecidos, o nosso espaço torna-se muito perigoso. Passamos a estar um bocado mais sós porque nos limitamos às pessoas que conhecemos melhor. A família é a única coisa que tenho que é minha.»

                                                                                   
 ─ ABRAÃO, em bardotraidor.blogspot.com 



CONTOS DE RATAZANA
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O homem de inventar alcunhas e contos noturnos para escrever
Dêem-lhe uma dica e ele fabrica logo um conto


Aos 33 anos tornei-me boss de um bar de belezas, como eu lhes chamo, na cidade do Porto, e tudo o que desejava era escrever. Chegava a casa de madrugada e levantava-me às 9 da manhã para a escrita. Já era sabido por, à noite ou de dia, escutar com os meus ouvidos de mercador as conversas dos clientes quando era tocado por uma ideia que me fazia agachar no balcão, para pegar no papel e caneta para anotar.

Num dia de Setembro, um cliente e eu estávamos a tentar planear algo para chamar mais pessoas ao bar. «E se eu me dedicasse à escrita, e criasse um pasquim só para o bar?», perguntei. «Podia escrever aí, e anunciar como um daqueles ardinas dos jornais e ia dizendo: «Escândalos! Traições!» É certo que nunca o tentei. O desejo de escrever para os clientes incentivava-me, não como profissional, mas ao meu jeito. Por detrás dos copos, saquei um monte de rascunhos de pessoas que me contaram os seus desabafos, e peguei na minha máquina de escrever portátil comprada numa feira, e sentei-me à mesa. Se mais não fosse, daria uns bons contos para contar aos meus clientes. «Então o que dizem disto?», perguntei, olhando em volta do balcão, como um deputado à cata de votos. «Bem», disse um cliente, «é um pouco fofoqueiro». Não me ralei, a intenção era mesmo essa. Pus mão à obra e apresentei um ensaio ao primeiro grupo de clientes. 

E assim, numa cinzenta segunda-feira, dia 3 de Outubro de 1983, publiquei um pasquim chamado “Jornal Dos Traidores”, em que os protagonistas eram os clientes do bar, para todos criei alcunhas, todos aceitavam as regras, e pus o jornal ao fundo do balcão, onde colei um letreiro ao lado: «Contos Hilariantes de Amor e Traição dos Anos 80», ─ e convidei os clientes a lerem uns contos, enquanto bebiam. Alguns riam com ironia e diziam: «Que grande aldrabice!» Outros mostravam simpatia, «Um traidor com fome de amor!» Uma beleza perguntou se a notícia ao fundo, «Lésbica à solta na casa de banho!», aquém se referia. Nunca me senti tão embaraçado. A certo momento, aproximou-se um par traidor. «Não sei o que estás prá aí a escrever», disse a beleza, «mas seja lá o que escreveste, quero ler». Com um sorriso conivente, o homem acrescentou: «Não há dúvida de que o jornal é uma ideia absolutamente original!» Pedi-lhes para chegarem à frente (e fiz-lhes uma confidência) e contei-lhes um caso surpreendente. Título do conto: «A História do Morto-Vivo».

À medida que os jornais saíam, fui-me apercebendo do aumento de clientes-leitores no bar, seduzindo-se cada vez mais pelas notícias bombásticas. Por detrás de mim havia bate-boca e risinhos. Quando criei nova alcunha, levantei a folha do livro de registos, e deparei com cerca de quinhentas alcunhas à minha disposição. «Como me chamo!», perguntou o cliente. Logo respondi. «Bom Rapaz!». E fui aplaudido. Nesse período, o movimento do meu negócio triplicou-se. O jornal era o elo de ligação da malta, e estava a dar resultado. Escrevi contos atrás de contos. Em vez de me acomodar e reduzir ao stress, criei o blog: ´bardotraidor.blogspot.com`. A família traidora puxava por mim. Era a paga da minha invenção. Assim me transformei num Henry Miller, de contos eróticos.
    

Nesse primeiro aniversário de O Jornal Dos Traidores, tornei-me uma espécie de Grande Atração Noturna: Ratazana (eu), o criador de alcunhas e contos noturnos de escrever. Lance-lhe uma dica, ele fabrica um conto. Temi cansar-me pouco tempo depois. Mas 4 anos e dezenas de contos, incluindo livros, continuo expectante.

Desde então ligado ao meu trabalho dediquei a minha disponibilidade a escrever estes contos noturnos: no bar e no computador, em ruas e jardins, em cafés e festas. Nenhum lugar é impróprio desde que a veia se liberte. Quanto mais me instruo, mais pessoas procuram abrir-se comigo. Dão-me as suas dicas. Eu dou-lhes contos que são um passatempo interessante: Mas antes de escrever a primeira linha, dou-lhes os meus olhos, os meus ouvidos, a minha atenção total a mais de 100%. Neste momento a lotação disponível no Coliseu do Porto já não chega para sentar os clientes para quem escrevi e convivi ao longo destes anos (o número ultrapassa os 4.500).

Desde o primeiro dia que guardo na vitrina da minha sala os CD´s de todos os contos. A mesma que guarda os livros de capas brancas, vermelhas, verdes, azuis e cor-de-rosa ─ um arco-íris de contos, uma torre de pequenas lições de vida. Quase que posso dizer que ganhei a minha persistência. Mas gostaria de pensar que há mais alguma coisa que diz respeito ao fenómeno poder dos contos que contamos acerca de todos nós. Apesar de tudo, cada um nasce com dom de autor… do seu próprio conto de vida. Aqui vai a minha preferida: numa casa de lavradores de uns patrícios a 150 metros da Lixa, escrevi este conto para uma rapariga bonita e morena chamada Manuela e atrevi-me a ler a sua sina:

«Um Passeio Junto Ao Rio»
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Manuela não tinha namorado, não porque não lhe aparecessem mas, na altura sentiu-se um pouco confusa. Mas hoje, Manuela pensa que foi a melhor coisa que lhe podia ter acontecido. Uns meses entretanto decorridos, Manuela passou a visitar com assiduidade a sua vizinha e amiga, uma rapariga muito expedita, atinada e efectuosa. Quando está com ela, Manuela sente-se muito alegre, reencontra o afeto e o riso. Mas encontrará alguma vez a felicidade verdadeira? Um dia, após visitar a amiga, Manuela irá dar um pequeno passeio à beira-rio com um homem que conhece na casa da amiga. Ele far-lhe-á umas perguntas e a primeira coisa que ela pensará será: «Puxa vida! Este tipo agrada-me!», e depois irão namorar e apaixonar-se.

Talvez ele tenha vindo à festa da matança do porco, ou talvez estivesse a relacionar-se. Talvez passeasse. O certo é que vem da cidade e a encontra depois de uma visita a casa da amiga, quando ela nem sequer pensava nele. Há muitas raparigas na cidade, e muitos homens também.

 O CASO DE MANUELA e eu nos termos conhecido na marginal do rio não me acorreu no dia em que escrevi o seu conto. Uns meses mais tarde, sentei-me à mesa e peguei em papel e caneta para escrever. «Recorda-se de mim?», perguntou-me a pessoa ao lado. Era Manuela. Estamos casados há sete anos e temos dois filhos.



E FOI ASSIM que a minha ideia doida de escrever contos noturnos no bar não só me proporcionou uma aprendizagem fantástica na escrita, como me deu uma mulher e família. Poderia dizer-se que o meu sonho de me tornar autor de contos noturnos também se tornou realidade. Não certamente como pensara nas entrelinhas, mas a escrever livros no bar com uma folha A4 sobre uma personagem de cada vez. Mas também nenhum bom conto tem o desfecho que se esperava.   

Friday, August 15, 2014



CONTOS DE RATAZANA
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O Cliente e a lésbica…


Rtu!

O Cliente cuspiu no chão; ao mesmo tempo que se ergueu de um salto, como que impulsionado por uma mola; desejou amar ardentemente a Pina-Colada – como já anteriormente – muitas vezes repetira esse desejo. E, naquele dia, começou a sacudir o pó das mangas do casado e deu um jeito ao seu decoro olhando para o espelho: «Caraças, – gritou ele, andando para trás e para a frente – tenho que matar este desejo.» A seguir, tomou o caminho e começou a dar passos pelo passeio tipo militar – um, dois, um, dois, – entoando uma quadra chalada dum poema de Ratazana «Quando a sorte não penetra, três na peida, etc.» - Aproveitamos para referir que era um hábito, de alguns clientes, do Bar do Traidor de Ratazana, entoar os seus poemas malucos… «Vamos embora, meu velho, adianta o passo», – gritou o Cliente, fervendo com a ideia. – «Vamos tomar de assalto esse plano.» – Voltando costas às ruas, lembrando as boas recordações, apaixonado como sempre fora pelas boas novidades, ele teria dado ali (caso trouxesse consigo tal objecto) um tiro para o ar, tomando conta da Pina-Colada de assalto. Ao chegar à porta, inclinou-se para a frente, murmurando: «Já chegamos, agora porta-te bem.» – Pina-Colada era uma mulher lésbica; tinha à volta dos trinta e picos anos e olhava de uma forma sensual. E todo o seu corpo revestido de uma fina pele, lisa como o vidro, um sonho das Caraíbas…

Quando ele se aproximou, invadiu-o um calor tórrido de estalar, e sentiu o sangue a correr vertiginosamente pelas veias e a sua pele ferver como caldos de galinha. Estava cheio de palavras para lhe dizer tudo mas um «Olá» bastou para ele ficar ali como um morcão na expectativa a olhar para ela, como no filme A Vida é Bela, quando o Roberto Begnini choca com a sua Princesa e caem ambos junto ao celeiro e ele afasta-lhe as palhas do rosto, em vez de apalpar os marmeleiros, mas não, aqui não foi assim, porque, a acontecer isso, ele poderia levar uma lambada nas ventas e então sim, o caldo ficaria entornado… Tinha os olhos fitos na prateleira das garrafas e reparou então, através dos espelhos, que meia dúzia de lesmas estavam sentados à mesa a beber umas bebidas quaisquer. Às tantas, piscou os olhos com tanta força que ela finalmente sorriu, dando origem à ideia deles se sentarem a conversar. Escolheram um sítio recatado a um canto do bar. «O que é que julgas que eu vim cá ver?» Disse o Cliente de olhar sereno, enquanto, ela lhe pegou nas mãos e lhe fez uma meiguice. Começou a tremer; a vibração era tão intensa que ele receou que ela se apercebesse e puxou dum cigarro para descontrair. «Eu sei, eu sei.» – Respondeu Pina-Colada. E depois não disse mais nada. Estavam ambos no vazio do silêncio e, se ele quisesse apalpá-la, teria que inventar uma cena, só que não valia a pena preocupar-se agora com tais assuntos, pois ali, diante dele, surgiu o inevitável; a figura alta e desengonçada da Preta, com laço vermelho ao pescoço e um chapéu de coco na mão, calçando umas botas à cowboy verde-azeitona. «Isso é propriedade privada.» – Disse uma voz trémula e excitada. A seguir, a Preta inclinou-se para Pina-Colada e beijou-lhe os lábios, enquanto o Cliente se levantou silenciosamente e deixou-a a sós. E, à roda da cabeça do Cliente, desvanecem-se as ideias e perde-se na rua,

Quando mais tarde, Pina-Colada encontrou a figura bizarra do Cliente, deu-lhe uma explicação anda lá, esquece isso. Ao vê-lo através do vidro do carro, com os olhos enevoados de sono, sentiu pular o coração, tão forte eram as pancadas que receou que ele fosse parar; e foi naquela forma complacente que ela julgou esquecer o assunto como se nunca tivesse existido e desceu a ladeira do caminho acompanhando-o, de modo a nanar o problema. Normalmente ela era intransigente na defesa dos seus vícios, e quando os seus amigos, aos fins-de-semana a assediavam com propostas maliciosas, argumentava contra eles como uma fera danada, como ela costumava referir, ao explicar: – aqui é o meu paraíso, onde está o meu jardim, entendem? – E se eles respondiam malcriadamente – qualparaísoqualcaralhosuafressureira – ela ia ao balcão buscar um copo de uísque com gelo até cima, dirigia-se para a mesa do canto, sentava-se com uma revista na mão; tudo isto com um sorriso encantador nos lábios: Os cavalheiros não se importam que eu saboreie a minha bebida, pois não?... Oh!, ela era uma figura única, famosa na noite, rainha dos tablados onde os homens eram artistas e nenhum deles se pode gabar de ter conseguido pôr-lhe as patas em cima, não porque eles não quisessem, disse ela, mas porque foi ela sem apelo nem agravo que lhes deu de sopa. Para o Cliente não houve patas nem sopas e muito menos negas. Para ele no seu contexto, a amizade perdura para sempre quer haja baldas ou não. No seu padrão, a amizade é intocável e está acima dos desejos da pessoa. Depois dele molhar os lábios com a bebida que tinha na mão, tapou o nariz enquanto cheirava qualquer coisa à distância. Foi quando a Preta (que ainda continuava de chapéu de coco na tola), se aproximou. Depois, com um aceno de timidez, saudou-o com um ar altivo e murmurou um convite; – é melhor sentar-se aqui ao pé de nós para não apanhar frio. – Tornou a afastar-se a passo lento, deixando-o grato por lhe ter avermelhado o rosto, com aquela frase – um bom motivo para sorrir. Quando era uma miúda, Pina-Colada possuíra um rosto de uma inocente, verdadeiramente excepcional, um rosto que parecia de anjo. A sua pele suave e macia era como a de uma mão de Princesa. As suas feições gaiatas ajudaram-na bastante nas suas relações com as mulheres e fora, por assim dizer, um dos primeiros motivos apresentados pela sua primeira namorada, Susana Carrapito, para se ter apaixonado por ela. «Tens um rosto tão redondinho, pareces um queijo», – maravilhava-se ela, apertando-lhe o queixo entre as mãos. – «Um queijo amanteigado da serra.» Ela rendeu-se aos ditos. – «Não digas isso», – respondeu. – «Senão babo-me já toda.» - «Aqui dentro?», – perguntou a outra. – «Com toda esta gente?» Ela afastou-se para dentro. A partir daí atormentou-a durante algum tempo a ideia da sua atitude perante as mulheres; qual a medida a tomar para combater essa sensação e apurar esse desejo que era agora a sua segunda natureza. Teve, no entanto, a sua gravidade o facto de Pina-Colada, ao acordar de um longo sonho maléfico, transformado por várias cenas nas quais se destacavam imagens de Susana Carrapito na série de uma sereia cantando em cima de uma gigante baleia, não podendo pôr os pés em terra firme; chamando-a, chamando-a; – mas, quando foi ter com Susana, ela foi engolida pela baleia e o seu chamamento passou a ser um tributo de culpa e tormento… e quando Pina-Colada acordou e olhou para o espelho e descobriu a imagem de Susana a fitá-la com o seu rosto sedutor, atirou com o espelho contra a janela, partindo-o aos bocados pelo chão, dando sinais de indícios de que sentia uma enorme e forte dor de cabeça. Quando, mais tarde, pegou noutro espelho olhando para o seu rosto alterado, vendo um par de inchaços à volta dos olhos, horrivelmente feia, nem julgou ser quem era. Era já noite. Ela não sabia as horas. Além de não ter relógio consigo, no quarto não havia relógio. Vestiu-se à pressa e desapareceu pela rua a correr, em direcção ao bar. Volta de novo ao seu local de trabalho, como uma tresloucada à procura da sua amada. Visita a sala toda e descobre que a amante, sentindo-se sozinha, meteu-se na marmelada com outra rameira qualquer. Fica durante algum tempo imóvel, no escuro dum recanto da sala, sente-se traída e luta contra os seus próprios sentimentos. Depois, tira a fotografia da amante da carteira e rasga-a aos bocadinhos para o chão; e parte sem dar a conhecer a sua presença. Pina-Colada volta ao quarto e deita-se com a roupa vestida em cima da cama a chorar. «Putas malditas.» – Gritou para a roupa da cama que lhe amortecia a voz, enquanto esmurrava as fronhas cheias de folhos, compradas no Armazém Samberi da rua de Antero de Quental, com tanta força que o tecido velho de dois contos se desfez em trapos. «Mas que raiva. Que ordinarice, foda-se a puta, que pega.» Voltou a sair e foi para o mundo… O mundo da noite.

Passados dois dias, o Cliente voltou ao bar de Pina-Colada, que lhe havia dado toda a sua amizade. A um canto da sala, lá mesmo nos fundos, Pina-Colada quando o viu, serviu-lhe uma bebida e sentou-se ao seu lado, oferecendo-lhe um pouco de companhia. «Já em tempos falamos disto», – disse ela sem vontade de bater naquela tecla – «Uma mulher nesta vida não pode fazer planos, sem correr o risco de ir parar ao malagueiro - Ele respondeu-lhe: «Estou a ver que para ti não existe o amanhã nem o futuro.» – E ela confessou: queria dizer para ele deixar de exprimir certas coisas mas não era capaz. Não só por tirar-lhe a esperança vã, como sentir por ele uma paixão bacoca, conforme ela preferia dizer. «Não pensas ter um filho?», – disse o Cliente pondo o dedo na ferida. A princípio Pina-Colada protestou: – Mas qual é a tua? – mas depois, acalmou-se, bebendo um pouco de uísque e limpando a boca ao guardanapo de papel que trazia entre as mãos. «Quero ter um filho, mas só meu, e da Preta!...» - «Tu deves é estar doida dessa cabeça.» – Insinuou o Cliente. Havia quanto tempo que não falava assim. E desta vez, quem sabe, se não seria a última…Estava a ficar quente e escaldante o ambiente dentro do bar! Uísque de 18 anos só com gelo! Puríssimo! O Cliente, olhando à sua volta, confrontou-se com a opinião de que o jogo das mulheres da noite tinha a sua origem na carteira. «Quando o cliente não puxa das lecas à vista grossa», – explicou ao parceiro do lado – «quando o cacau não reluz como a luz dos candeeiros, é evidente que a mulher deixa-se adormecer e não vê nada à sua frente.» - O Cliente enumerou diversas vantagens sobre o sistema ao parceiro do lado que o ouviu atentamente. Numa instituição de vício e prazer, onde os modelos de comportamentos variam entre a casta de clientes, é deveras importante: música popular ou empatada de boa qualidade, caras giras e atraentes (de preferência, nacionais). Mais higiene e limpeza na sala e nas retretes, jarros de flores berrantes (cor de pêssego com lilás) a adornar os cantos. Um novo sistema sem pagamento de alternes e contas vultuosas, ar condicionado e ventoinhas de tecto em todas as divisões, separadores para os fumadores e não fumadores. Maior atracção do mercado, melhores bailarinas e uso de água destilada para os seus pés, além do papel, nos quartos de banho e bolas de naftalina para mal cheirosos. Desvantagens: chatos, lêndeas, baratas, barulho, chulos, preços em demasia. O parceiro do lado estava de boca aberta. Abrindo os braços, gritou: «É assim mesmo. Diz-me lá ó parceiro, onde mora uma casa dessas?» - Mas três coisas aconteceram, muito depressa. A primeira foi que pararam de conversar. A segunda foi que, assim que a garrafa acabou, eles pararam de beber. E a terceira foi que o Cliente abriu os olhos e olhou para o relógio; os ponteiros passavam do limite e ele achou que era tarde demais. «Ó Meu Deus, a que horas é que me vou deitar!» - Ele, mal chegou a casa, meteu-se na cama; sentia-se para lá dos confins do sono, mergulhado de cabeça enrolada entre o travesseiro e os lençóis com a miragem da cena do bar. Para lá do acontecimento tenebroso, passara horas de bom convívio. «É um vício lixado; os bebedores atraem os bebedores», – disse o seu subconsciente. – «Nunca mais ganho juízo.» – Deu uma volta para o outro lado da cama. Por fim, lá deixou escapar o último suspiro da noite.