Saturday, August 17, 2013



FERNANDO ABRAÃO
E RATAZANA
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(8)

O
MUNDO
                                                                               DA
NOITE
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A pensão do avio ficava bem perto da Praça dos Poveiros. No Largo do Padrão, os únicos que andavam por ali perto eram os homens da rapidinha, à procura de um consolo. Nos dias esfriados, ao cair da noite, as gordas e magras mulheres do avio costumavam manear-se pelos passeios da rua e pensar que, numa boa hora, estariam a apanhar um freguês, para o levar para o cardenho. Chegavam, até, a fazer de sentinela um pouco antes de aparecer a aurora. Havia um café a cerca de quarenta metros mais à beira na rua onde, por vezes, com as malas aos ombros, as mulheres, encostadas às montras mostravam os seus atributos. Mas, habitualmente, engatavam-nos ao passar com um piscar de olhos acenando a cabeça, pois já era habitual. A pensão do avio era conhecida como a velha pensão de Coelho Neto. Na verdade, Coelho Neto era apenas o nome da rua. A pensão era num prédio antigo pintada de cor deslavada com três andares, e tinha janelas, com vistas para a rua. O dono pedinchara aos proxenetas para porem as suas prostitutas a servirem de taxímetro nas ruas e levar os homens para os quartos. Os proxenetas gostavam muito da dormida de Coelho Neto. Diziam que uma dormida naquela pensão sabia tão bem como uma boa golada de vodka para os aquecer nas longas frias noites de sentinela à espera delas. A pensão de Coelho Neto amontoava as prostitutas à volta dos passeios, até pareciam uma verdadeira escolta. É claro que a vizinhança já não se importava com aquele cenário porque já estavam habituados. Mas não era suposto alguém se incomodar com aquilo durante estes anos todos. De resto, quando havia quaisquer escaramuças, os proxenetas eram os primeiros a refugiarem-se num qualquer local da cidade. Depois de a procissão passar, o dono voltava a oferecer-lhes uma dormida e trazerem as mulheres para o negócio, e tudo voltava à mesma forma. Naquela noite de Dezembro, a rua parecia escura e solitária e as poucas prostitutas que se aventuravam no vaivém, como era habitual, sempre que passava alguém pelas proximidades, diziam vamos subir aos homens que as olhavam, uns por acaso e outros para um caso. Jó, a prostituta da rua, acabava de iniciar a sua faina e puxava os colarinhos do blusão para cima quando viu umas pernas longas atravessar a rua ao fundo. Era um homem alto. Parecia tão alto como um gigante e tinha despertado nela uma curiosidade súbita. Avançou na sua direção e, agarrou um velho exemplar da Nova Gente, preparado para o atrair. Jó gostava deles assim. Altos, fortes e grandalhões. Se tivesse sorte podia ganhar com ele o equivalente a dez cabritos. Já não era a época dos camones, mas aquele devia ter estado a emburricar por ali perto ou algo semelhante. O camone foi direto a ela, batendo as mãos para se aquecer e exclamou num português tacanho “tu fode?”. Ela disse que sim e enfiaram-se os dois dentro de um cardenho aquecido por um aquecedor a gás. Ainda estava algum calor lá dentro... O alemão atirou uma nota para cima da cama que agradou a ela e preparou-se para o trabalho. Sorrateiramente, Jó olhou de soslaio por entre a enroscada camisa e, reparou que as suas duas longas pernas já tinham saído para fora da cama. A seguir veio o serviço. Mas o camone nem lhe deu tempo para respirar e, atirou-se para cima dela. Uns minutos depois, caiu para o lado com um suspiro profundo e, por fim, ouviu-se apenas uma exclamação ofegante Oh, My God. Não mais do que um espernear de corpo; a satisfação era visível. Vestindo-se trauteando, já que a noite estava ganha, Jó voltou a pisar os passeios para fazer-se à vida. Foi nesse momento que um tiro entoou. Correu para uma portada de um prédio, colocando os braços sobre a cabeça, de maneira a proteger-se e procurou ver o que se passava lá à frente. Aguardou e contou os segundos, sustendo a respiração. Dezoito, dezanove, vinte. As estrelas brilhantes sobre a cidade ofuscaram-na. Escurecera; ouviu um ah ténue à distância e a primeira luz surgiu dum prédio. Um feixe de luz branco e brilhante, pouco luminoso quanto baste. Lá no fundo, por entre a luz de um carro, um grupo de homens deixava um rasto que se assemelhava a sangue humano. Rapidamente, Jó, sacou do telemóvel e ligou para o 112. E, então surgiu outro feixe de luz e depois outro. Três, quatro, cinco, todos voltados em direção ao corpo, estendido no chão, que procurava levantar-se a custo. Depois, surgiram pessoas vindas de outros lados. Jó correu até ao fundo. O corpo ainda mexia. E foi nesse momento, com a ajuda de algumas luzes que o reconheceu, com a sua velha revista numa mão. Vermelho como um pimento, agarrado ao braço ensanguentado. O camone agarrou a mão de Jó e esboçou um esgar sofredor. «Polissia! Polissia! Roubaram meus marcos...!» De repente, ouviu-se a sirene, muito veloz, à entrada na rua. Tinoni, tinoni! A ambulância estava a chegar. E, mal o enfermeiro o ajudou a pô-lo na ambulância, Jó apercebeu-se que não era tão grave. O seu estômago contraiu-se como um soco. Não estava com medo; apenas lamentava. Subitamente, toda aquela cena escura se transformou num lívido e brilhante branco. O barulho da ambulância a arrancar ecoou pela rua. O frio notava-se nos rostos gelados das pessoas. Todos permaneciam em silêncio, excetuando o frenético ladrar de um cão; numa varanda. De seguida, ficou tudo tão tranquilo na Rua de Coelho Neto! Apenas na rua alguns transeuntes citadinos que podiam muito bem ser confundidos com os mecos... E passo a passo, com o olhar concentrado, Jó voltou às lides. Naquela altura, teve início uma segunda procura de consolos. Alguns homens chamavam as prostitutas, através dos carros, originando uma onda de palavrões incorrigíveis. Podia ter feito alguns deles, mas não se atreveu a aventurar-se. Certa vez, assistira ao que um gangue tinha feito a um dos clientes da pensão, o velho picheleiro Tomás. Foi Jó, precisamente, quem o encontrou. O vidro do carro partido e Tomás jazia como uma almofada sangrenta. Roupas rasgadas, golpeado no pescoço, num estado lastimoso e ofegante... Rastejava, penosamente, de um lado para outro. A princípio, Jó, pensou que ele estivesse morto. Mas o pobre Tomás ainda dava sinais de vida, esticando as pernas na direção da porta e, após esticar um bom bocado, respirou devagar, mas muito profundamente. Subitamente, decidiu que preferia ser cortada pelo gangue do que ficar testemunha daquela embrulhada. Colocou a saca sobre os ombros, numa tentativa de não perder o que ia lá dentro, e correu em direção ao posto policial mais próximo. Enquanto percorria, uma respiração muito forte alastrou-se. Recordou que percorreu como o corredor de pista até alcançar a meta. Achou que nunca na vida correra tanto. Mas os seus esforços revelaram-se preciosos. A polícia levou-a de volta até ao local e encaminhou o pobre Tomás numa ambulância para o hospital. Começou a olhar para o relógio. Em breve, o trabalho da putaria acabaria. Em breve, estava a deixar a rua e a entrar no seu quarto... Um táxi buzinou. Era sempre fácil identifica-los, porque os táxis traziam um candeeiro aceso sobre o tejadilho. Uma voz vacilante, exclamou: «Me-ni-na! Me-ni-na!», fazendo o gesto com a mão. Como uma cobra, esgueirou-se rente aos prédios. Uma corrida de cem metros livres. «Me-ni-na!», levantou de novo a mão em direção ao braço. Queria dar a atender onde tinha sido ferido. Apontou para baixo para o braço atado ao peito. «Mim...tá...vivo!» Parecia muito radiante consigo próprio. Tomou outro fôlego e exclamou: «Mim... ter sorte.» Jó fitava-o sorridente, pacientemente. «Portuguese, não ser bom atirador!» A seguir exclamou em voz alta e calorenta. «Tu... me-ni-na grande... ami... amiga ser.»  Jó nem queria acreditar, nesse momento, viu uma lágrima a descer pelo seu rosto. Estendeu os braços e deu-lhe um abraço. «Friend, Friend», a sua mão enorme, em busca, à volta do corpo dela, até que a segurou. «Friend, Friend.»Assim permanecerem enquanto o taxista aguardava e zumbia o taxímetro à volta deles, e as luzes se apagavam intermitente e poucos carros se ouviam na rua. E foi assim que as colegas foram dar com eles, quando se despediram. Olharam, estupefactos, para os dois, à luz do candeeiro da pensão de Coelho Neto. Naqueles tempos, criar amizade com um camone era um caso raro. Seria considerado leviandade. Chamava-se Jack Smith. O camone escrevera a Jó depois de chegar a Inglaterra para lhe agradecer. Enviou-lhe uma fotografia da mulher e do filho. Jó ficou contente. Pela família. Mas nunca lhe respondeu. Sentia-se demasiado confusa. Ainda se sente.

Após a morte do seu irmão, Cola Meu, o Rei dos Pastéis, Membro do Grupo dos Traidores, estava fragilizado à mercê da sua família rígida. Preocupado em assegurar o seu futuro, Cola Meu aventurou-se a montar um negócio de eventos situado fora da cidade, sob a ideia de prosseguir aí a sua formação como empresário individual. O local situava-se num terreno alto, quinze quilómetros a Norte. A casa dos eventos ainda se encontrava em parte de acabamentos, mas a sua dimensão era superior à de um médio bairro camarário. A fase principal estava concluída: a entrada, o salão, bem como o aparcamento automóvel para os convidados e as saídas para o exterior. Alguns empregados trabalhavam na restauração defronte, o armazém do reabastecimento. Cola Meu era um indivíduo de estatura média, rosto cheio, moreno e presença forte. Ficou surpreendido com a proposta do cliente que o contatara, pois sabia que os eventos casamenteiros estavam na berra, mas a sua reação inicial foi preocupante. Contudo, depois de ter ouvido os números da sua proposta, ficou desinteressado. Era um homem que fervia com pouca água, e não conseguia esconder os seus nervos. Indiferente à sua reação, o cliente disse-lhe: «Recebeu a minha mensagem. Estou prestes a organizar o casamento de uma filha, e brevemente terá a lista dos convidados. Faz-me uma atenção, senhor Cola Meu?» Ao olhar para ele, Cola Meu teve vontade de lhe dizer que não, mas a sua recusa não ia resolver nada. A proposta ainda estava em banho-maria. Tinha pensado nos números que o cliente tinha dito e, apesar de ser pouco, a última palavra ainda não estava dada. Disse na sua voz grave e sonante: «A minha casa oferece os melhores preços a todos aqueles que a procuram. Pode crer.» O cliente acenou com a cabeça: «Obrigado, senhor Cola Meu. Vou apanhar o autocarro.» Mas nunca o cliente chegou a entrar em contato. Era um autêntico infiltrador. E tentou investigar os preços do mercado. Após alguns anos passados no negócio dos eventos, Cola Meu viu as encomendas diminuíram em série com mais intensidade, tornando-se mais fracas. A nova aparição de outros empresários e o combate aos preços da ocasião, fragilizaram-no cada vez mais e consequentemente começou a pensar abandonar a sua posição no mercado, e depois, lenta e progressivamente, saiu do negócio. Seguiram-se as borgas e as comezainas. Voltou por algumas vezes, ao palco de O Mundo da Noite. Aquelas que o conheciam, formaram uma lista de seduções e algumas delas ficaram vinculadas no relacionamento por períodos. Entre elas contava-se a ardente Nanda. Foram vistos várias vezes, perto de uma residencial com uma suite de cama grande onde gozava todo o seu prazer. Durante vários meses, Cola Meu parou, porque não havia outras coisas para fazer. Os negócios deixaram de o preocupar e envolveu-se nas bebidas fortes e estimulantes, que o descontraía a enfrentar outros desafios. Sentia-se preguiçoso. Os restantes membros da família sentiam profundamente. O velho provérbio que diz que o Vício não conhece raiva maior do que a de um homem destroçado levou a que a carreira do excêntrico Cola Meu, fosse imigrar, nos finais dos anos noventa, para Angola, para se lançar numa padaria. Era um refinado pasteleiro, recentemente promovido, e um empresário no ativo em oscilação no segundo período mais negro da sua vida, mas era também um homem casado, com filhas. Depois de uma demorada e dura ambientação com o sistema, Cola Meu voltou para a sua antiga profissão para os fornos e para a fabricação de pão, a fim de tentar rentabilizar o investimento feito. Seis anos mais tarde, escreveu novamente para a sua mulher para apresentar a sua mágoa de que o negócio do “Pinga-Pinga” como batizara, estava péssimo, que esta aceitou «com pesar». A seguir às pretensões de querer vir embora, os funcionários negros, no entanto, tentaram persuadi-lo a não desistir e que, se tivesse levado para lá a família, Cola Meu seria um felizardo naquela terra. Embora os rumores sobre o hipotético anúncio da passagem da padaria, chocou não só os funcionários, ao qual era amigo, como toda a população de Viana. Era indiscutivelmente um homem popular. Depois daqueles anos no negócio do pão, nada parecia fora do seu alcance. Alguns esperavam que tivesse por lá algum biscate, mas um problema cirúrgico obrigou-o a ir à barra do hospital, onde esteve internado um tempo. Quando finalmente, Cola Meu se recompôs, tinha um interessado à sua espera na padaria. Era um habilidoso: alto e escuro embora o seu poder físico fosse magro e franzino. Permaneceram em conversa durante alguns minutos e celebraram a intimidade com umas cervejas Cuca à maneira. O angolano tratou-o por Menino Cola, como era tratado. Tinha vindo, como disse, apresentar uma proposta para o negócio. Apercebendo-se do olhar frio de Cola Meu, acrescentou que caso aceitasse, lhe daria garantias de bens, tais como umas terras herdadas. Voltou de novo a tratá-lo por Menino Cola. Cola Meu pediu-lhe que entrasse. A padaria estava um pouco desarrumada como ele a tinha deixado após a sua convalescença, a grande mesa dos preparados estava ainda com restos de farinha, o chão a precisar de uma vassourada. O compartimento do pessoal situavam-se noutra extremidade, tinha um pé alto, iluminados por uma janela através do qual soprava uma aragem fresca. Havia sacos de farinha e de massas nos gavetões, alguns deles já utilizados. O escritório tinha uma cabeça de uma pacaça embalsamada, sustentada sobre uma biga onde se prendiam os papéis das encomendas. Cola Meu puxou o banco para trás e levantou a tampa que servia de mesa. Sacou de uma caneta e papel para redigir um contrato de passagem. O angolano deu um passo atrás e vasculhou no interior das calças com rapidez e tirou um envelope cheio de cuanzas e uns títulos de propriedade de terras, na zona do Cacuaco, que tinha pertencido aos pais. Depois suspirou, sentou-se e virou-se para a frente. Cola Meu ficou curioso. Pegou-lhe nos documentos para dar uma vista de olhos, e disse-lhe afirmativamente. «Tu és um homem de sorte, pá, pois conheces-me agora e não estou lá muito bem.» — «Mas não está doente?» — «Tratei-me para isso. Tenho andado a pensar regressar à Metrópole.» E voltou a interpelá-lo: «Achas que tens capacidade para isto?» O angolano respondeu de primeira. «Sim, Menino Cola. Este é o meu sonho. Fazer pão para o povo comer.» — «Já vi, pá, mas não tens mais dinheiro?» — «E o resto? —, apontou para os títulos: «Não contam?» — «Não valem muito, mas terão que ser avaliados. As terras são o que mais abundam em Angola.» O que disse fez sorrir o angolano. Era verdade. Nunca tinha visto na vida tanta terra vermelha como aquela, mas não era apenas no Norte que elas existem. Pensou na sua satisfação quando se visse na sua terra natal, Matosinhos, terra dos seus amores. As virtudes antigas estavam perdidas e teriam que ser conquistadas. Revirou os títulos nas suas mãos. As terras valem o que valem, pensou para si próprio. Sabia que não tinha vida para lá ficar desde que tivera aquela dificuldade em estabelecer-se em Luanda. Guardou os títulos no bolso e assinou o contrato da passagem, passando-o para o angolano o assinar. Assim estava o negócio concluído. Essa seria a última assinatura de Cola Meu. O sonho que ele trouxera durante o percurso da viagem dissipara-se em segundos. Havia outros sonhos, e outros projetos, mas Cola Meu já se sentia muito velho para tais exercícios. Guardava, no entanto, essas recordações. Apalpou o envelope e disse ao motorista: «Leva-me ao aeroporto, mas vai em velocidade de turismo.»

Big Bela, alcunha traidora, era proveniente da família humilde e descendia de Pombal, embora tivesse raízes familiares no Norte. Depois de ter ganho confiança com uns tipos desencaminhadores no Porto, entrou no mundo da prostituição como iniciadora de rápidas no Pub Arpejo e ingressou mais tarde num bar do topo chamado Club Lord. O seu namoro com o seu mais-que-tudo, um ano depois de sair do Arpejo, levou-a ao trampolim da fama. Depois de um casamento à “Moda-de-Campanhã”, Big Bela teve liberdade, primeiro com horário ilimitado e depois no convívio com os seus exclusivos clientes. Por volta de 1986 era uma profissional de primeira na mais velha profissão do mundo e uma mulher endinheirada por mérito próprio, após meia dúzia de anos em atividade e uma freguesia da alta. Big Bela era também um membro ativa do Grupo dos Traidores. Depois de ter trabalhado, com êxito, nas melhores casas de sexo do Porto, Big Bela foi trabalhar para Lisboa, e a sua arte levou-a ao sucesso, tanto nas relações como na amizade. A casa que frequentava, uma das maiores da capital, onde Big Bela ganhava milhares de contos — fora o patamar para o seu estrelato. No Verão de1987 apareceu envolvida numa parelha erótica e sensual, quando se juntou a Minhoca, e Big Bela aumentou a sua reputação crescente com o sucesso da sua arte para o poder do sexo, «Impacto Sexual 87.» Embora os mexericos sobre a ligação com Minhoca fossem já tema das bocas sem limite em O Bar do Traidor, depois das revelações de O Jornal Dos Traidores e das bocas feitas pelos clientes. Big Bela levava uma vida dupla em privado. Aparentemente ligada ao mais-que-tudo, manteve uma relação extra com aqueles seus amiguinhos do antigamente. Big Bela irradiava calma e serena confiança perante a sua freguesia, cada vez que aparecia nos bares. Mais tarde, foi aluna de informática vendedora nuns programas de marketing e publicidade, e quando os seus trabalhos apresentados resultaram numa compra avassaladora do Cliente Traidor, Big Bela achou por bem dado o seu tempo despendido nas aulas do curso. O cliente, afeto ao seu trabalho, viu-a na noite da eleição para o Concurso Miss Lord, ao lado dos empresários Mussolini e Caracol, na mesa dos “Andores”, participando no evento. O apresentador do certame, disse:

       Olhai bem para ela... com a sua malandrice e ratice, não haja dúvidas, que a Big Bela é a maior da nossa cantareira...

Em Novembro, o senhor Armando partiu de férias para o Douro Litoral. Por essa altura, já os clientes faziam comentários, e a 26 de Novembro as mulheres da rapidinha perguntavam a Big Bela no bar, se era verdade ter roubado o senhor Armando à amiga Minhoca. Depois, em 3 de Dezembro, contou Big Bela, o senhor Armando pediu-lhe que se encontrasse com ele secretamente, num quarto residencial do Porto, dizendo-lhe nessa altura que tinha decidido, enquanto estivera em repouso, que, apesar de gostar das duas companhias, ia ser afetivo dela. Depois disso veio a zanga entre as comadres e as inevitáveis fofocas em O Jornal Dos Traidores a seguir à sua revelação, através dos seus amigos, que «... tive uma relação com a Minhoca que durou vários anos. Depois conheci a Big Bela e apaixonei-me na cama por ela. Apesar de ser amigo das duas, decidi manter a Big Bela com a minha única amiga...» O senhor Armando continuou a ser muito bem atendido por Big Bela durante uns bons anos. Quanto a Minhoca, depois dessa traição, ela afastou-se sem deixar rasto.

Poucos escândalos sexuais de boémios, ou mesmo nenhum na história do Porto, excitaram tanto o imaginário dos clientes como o caso de Napoleão-Teresa Bochechas dos chamados «libertinos anos 90.» Centrava-se numa situação da vida noturna, que, a julgar pelas aparências, parecia tão natural que se assemelhava mais ao enredo de uma peça particularmente obscena de fita de cinema; uma vez que Napoleão, membro do Grupo dos Traidores e empresário comercial, se alternava na cama da prostituta Teresa Bochechas, (entre outros) o mata-ratos Vassouras, o proxeneta Julinho e, segundo consta, a maioria dos demais membros traidores em busca de prazeres proibidos. O caso foi comentado por todo o bar que, alguns deles, entre outras coisas, consideravam que a intimidade de cada um podia ser posta em causa. E, como se isso por si não chegasse, o assunto teve também cenas de ciúmes, decorrentes do confronto e discussão de dois antigos amantes de Bochechas, que eram ambos compadres de cama. Como todo o Porto se ria à socapa, levantaram-se grupinhos de clientes. Depois de ter a princípio negado qualquer participação sobre qualquer envolvimento de esquemas indecentes e imorais nas suas relações com Bochechas, o empresário comercial acabou por mudar mais tarde da tarde para a noite — ao confessar que não se dava bem com certas pessoas que frequentavam o bar. Em breve começou a aparecer conversas no balquilhas sobre «vícios correntes» no convívio social lordesco ao mesmo tempo que começavam a constar no bar os boatos mais indecentes e imorais (nunca se provou) sobre bacanais “á-truá”, sobre a aparição da acompanhante pela «Mulher-Pila» — sempre nua, com dois sexos, e que se supunha ser uma outra prostituta do métier. Este boato, em particular, ganhou tanta publicidade que se tornou tema das fofoquices no dia-a-dia nos bares, clubes e casas de tia. Aconteceu então a desgraça, quando o Julinho (nome artístico) — vendedor de carros, galanteador por excelência e angariador de raparigas para fomentar a prostituição (que o acusaram para ser preso), e personagem marcante em todo o caso Bochechas — se mandou depois de cumprir a pena de dois anos, e ninguém mais soube do seu paradeiro. A própria Bochechas ficou detida na esquadra por ter prestado falsas declarações durante o julgamento do seu antigo amante proxeneta. Na altura em que rebentou o escândalo, o «galanteador» Julinho — era um angariador de mulheres e um sacador — arrendou durante meses uma casa de campo, por meia dúzia de patacos, num lugar da província conhecido pela Rampa do Cavalinho. Foi aí que ele pôs Bochechas a trabalhar com umas mulheres rafeiras nas massagens. A clientela de Bochechas era obrigada a trazer a camisinha, se não queria apanhar um cavalo e, alguns deles desprevenidos, aventuraram-se. Boatos não confirmados de que Napoleão, homem casado e um empresário rico pelos seus próprios meios, alternava com Vassouras pelos prazeres de Bochechas, já circulavam em O Jornal Dos Traidores, que se atreveu a insinuar a incrível situação que, segundo constava, se estava a passar. Publicou, uma breve, mas mordaz referência a um mercedes conduzido por um condutor chegado à porta de um apartamento de uma rapariga não identificada precisamente na mesma altura que uma carrinha da desinfeção se afastava das traseiras. Esse apartamento situava-se na Avenida Rodrigues de Freitas, na zona de Campanhã, e estava arrendado em nome de Bochechas. Mas como não se referiam pessoas, o artigo não causou nenhuma mossa. Então, a 21 de Novembro de 1991, um cliente chamado Teixeira Placas despistou-se na estrada, depois de ter efetuado uma ultrapassagem mal calculada, no cruzamento de Casais Novos, no Norte. Tinha regressado do Porto, onde passara a noite no apartamento de Bochechas. As bocas afirmavam, que estavam ambos juntos há uns tempos. No entanto, a informação carecia de provas. Placas, acabou por morrer no hospital da terra. O Jornal Dos Traidores publicou um desabafo apanhado ao acaso de Bochechas, no qual esta afirmava: «Presentemente parece que tudo me corre mal — como se eu tivesse feito mal a alguém como por aí se consta...» Quem pudesse ter sido esse «mandatário-de-bocas», e quais tenha sido o motivo por que o fez, nunca se provou.

Naquele ano auspicioso de 2003, que viu a equipa do FC do Porto sair vitoriosa em Sevilha, os empresários do Norte conquistar os mercados e o aumentar de casas de massagens no Porto, causou maior impacto em O Bar do Traidor do que o romance amoroso entre um homem de meia-idade, e as suas consequências — o amor do joalheiro Fonseca pela jovem elemento do Bando das Periquitas, Ana, conhecida nos traidores por Olho-Vivo. Revelou-se o maior de todos os fiascos traidores, dado que foi encarado como uma possível ameaça à integridade física do joalheiro, e por isso ele próprio, abdicou e afastou-se dali. O amor do joalheiro pela jovem Olho-Vivo, que fora mãe duas vezes e que começou quando este ainda desconhecido na altura no bar, foi um relacionamento conhecido durante meses no meio da família lordesca, e nos circuitos dos amigos dos copos. Contudo, por incrível que pareça, mesmo quando atingiu um patamar em que O Jornal Dos Traidores vaticinava publicamente «Olho-Vivo correrá com joalheiro — e fixavam o prazo —, todos os prognósticos ao romance traidor, chegaram rapidamente ao conhecimento do cliente do bar, o que gerou um ponto crítico; uma fofoquice sem procedentes na história do grupo. Então, incapaz de conseguir que a rapariga da sua escolha continuasse na prostituição, no momento da sua proposta, que estava prestes a acontecer, recusou a alternativa de umas rapidinhas à traidor e quando o barman do bar lhe deu a escolha entre renunciar à rapariga de que gostava ou à imoralidade, o joalheiro escolheu abdicar a favor da sua integridade e bom nome. Fonseca partiu para umas férias na tarde de 3 de Outubro de 1987, ao volante do seu carro Peugeot, depois de se ter despedido dos amigos. Era o fim de um idílio que durou o tempo que tinha que durar e por espantosa espontaneidade — o joalheiro Fonseca tinha uma opinião bastante clara sobre o seu envolvimento com Olho-Vivo, dizendo mais tarde: «Nunca conheci nem o pai nem a mãe. Os seus vizinhos do bairro, viam-me como
um cavalheiro com tendência para me tornar num Pai-Natal deles. Andavam sempre atrás das minhas moedas para que eu estacionasse o carro onde quisesse. Pedi-lhe várias vezes para sair do bairro e ir viver para um apartamento em zona residencial. Mas sempre dizia nem pensar... a ideia não lhe agradava. Ela já vivia amantizada, claro, com filhos, por isso teria de fugir do bairro, e o seu amante e família nunca lhe iam permitir...» Na véspera do renunciamento, o joalheiro Fonseca foi informado por uma amiga íntima de que, Olho-Vivo lhe revelou, dizendo: «Penso que fiz um favor a Fonseca. Daqui do bairro não saio nem ninguém me tira...». Até ao fim de algum tempo, o joalheiro Fonseca e Olho-Vivo continuaram a ser assunto de mexerico — e fofoquice — sempre que os seus nomes fossem evocados.