O Bar do Traidor tem a honra de apresentar do Mestre
da Ratice, Abraão, a sua obra imortal: Gente de Vícios.
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O
SONHO DE PADRINHO
1
«Serve-me o último copo para a estrada.» - Exclamou Padrinho, bebendo
um trago dum gole só e ficou
a molhar os lábios junto à porta da taberna, a meio da noite. Limpou
os óculos de lentes de visão distante, franziu as pálpebras fechadas sobre os olhos e tornou a pôr os óculos.
«Para se criar
um vicio, tem que se aprender a viciar primeiro, -prosseguiu
Padrinho, saindo para a rua e respirando uma lufada de ar fresco.
«Para ser viciado, é preciso ser praticante e viciar-se ....» -
Numa madrugada de inverno, mal começou o coro da alvorada, um homem
alto e corpulento descera a pé pela rua em direcção a casa, a
cambalear mas seguro do seu caminho, atravessando a faixa dum lado para o outro sem olhar
para qualquer dos lados.
«Eu vi a vida por aí em tanta dimensão, ai vi, ai vi !»1, e mais não
disse, porque a seguir soltou
uma sonora gargalhada que rasgou o silêncio.
«Vai cantar pró diabo mais as tuas
canções» - E na noite branca e fria, voltou
a murmurar no interior das suas entranhas, «Poupa-me essa voz de ganso e não acordes
os vizinhos.» -
Padrinho, o cartola
inspirado na noite cristalina, tinha-se regulado pelo luar enquanto descia o ultimo
troço da rua, improvisando mais
uma quadra da canção,
abrindo os braços
para o ar. «E também aprendi a viver na sua ilusão, ai vi, ai vi!» 1
- Agora, alargou o passo e falou para
a sua voz
............................................................................... 11
1Extracto da letra da canção «Por terras de Abraão»
de F.A.
de ganso. «Estás melhor assim, excelente,
pá!» - Na sombra do prédio,
olhou para cima da
varanda em direcção
à janela parecendo dar-se conta
de que alguém o estava a espiar,
mas não! Uma careta de sono e piscou
os olhos com alguma sonolência estampada no rosto. «Aí vou eu, a caminho
de casa.» - Sem uma ponta de barulho sequer,
entrou em casa, segurando os sapatos na mão pelo corredor em bicos de pés... um prato em cima da cómoda estoirou
ao cair no chão sem pedir licença,
lá ao fundo do corredor, na cama, a sua santa mulher, vestida
de branca de neve,
dormia silenciosa, enquanto
Padrinho piscava os olhos e prosseguia a caminhada lenta sem interferir no sono profundo
dela.
Caiu em cima do sofá! Agora
sim, vou sonhar!...
O combóio desligou-se do seu todo,
seguindo as carruagens para cada lado, levando
cada uma o seu mistério. Dois homens, o saloio Padrinho e o pêras São Nicolau, caíram
como formigas à procura dumas
migalhas que os fizessem crescer. Vai acima, vai abaixo,
atrás deles no vácuo, pairavam
secretárias reguláveis, telefones
portáteis, stripes de salão,
cartões de relevo, bilhetes de embarque, jogos,
bebidas internacionais,
televisores via satélite
isentos de impostos, tanta coisa meu Deus! Que era impossível numerá-las! E também -pois não, uma quantidade de mulheres que haviam sido escolhidas a dedo por altos funcionários competentes do Ministério dos
Fundos
pró Bolso para as mais variadas
funções. À medida que o sonho voava levava-o para os confins
do pesadelo, igualmente absurdo,
onde flutuavam os detritos da alma,
recordações destroçadas, privacidades violadas, falsos amigos
e amores perdidos, o sentido olvidado de palavras ocas e um caminho sem rota. Embalados
pelo sonho, Padrinho
e São Nicolau mergulharam como trouxas recém-chegados à capital
e largados pela cegonha de bico
doirado que os deixou à porta dos fundos
perdidos na posição
de recomendados para entrarem numa vaga que os preenchia
nos novos quadros
da tramóia ... Padrinho voava sobre o espaço como
um passarinho enquanto São Nicolau se enlaçava no ar cingindo-o com os braços e as pernas abertas, esforçado
e sem técnica de saltador. Lá em baixo, coberta
de nuvens, aguardando a chegada em cena dos dois
homens, as correntes ventosas e geladas empurraram-nos para a zona designada centro litoral do Norte.
«Já me doíam os meus calos nas solas dos pés»,
cantou Padrinho com a sua voz desafinada, traduzindo uma quadra de um fado
antigo.
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Na cabeça de São Nicolau
um vermelho chapéu
russo agasalhado por um coração português. As nuvens espumosas
vinham ao encontro
deles dando-lhes as boas vindas
e o facto de terem sido poupados
a altos conhecimentos prévios
conferia-lhes um estatuto
de intermediários... mas fosse qual fosse o motivo, os dois homens
condenados àquela separação das carruagens, infinita
mas não acabada, não tomaram
a consciência do facto
em que teve o inicio
do processo da tramóia.
Tramóia?
É verdade, sim senhor,
sujeito ás consequências. Cá em baixo no ar que
respiramos, nesse domínio brando, em que tudo se torna possível,
convertendo-se numa localização que arrasta o movimento
de encher o poder, a mais insegura ilusória
tramóia -que tudo que se atira ao ar tudo cai
-lá em baixo,
como disse, operaram-se neles grandes mudanças
que alegraram os seus corações;
sob uma pressão extrema do sistema cujos programadores foram adquiridos.
Que programadores para cada um deles? Calma!
Mais devagar; julgam que um projecto desta natureza cai do céu aos trambolhões? Claro que não. O que é que notam de especial? Nada. Apenas dois homens altos e
espadaúdos, tipo fura-vidas, que se precipitaram no vácuo, com
inexperiência na política mas experiência no expediente, poderão vocês
imaginar; subiram alto
de mais na escada do sucesso, elevaram-se acima de si próprios,
voaram até demasiado
perto do vale do tombo
caído, será isso?
Talvez
não seja bem isso. Escutem:
O pêras São Nicolau, ante o horror dos ruídos
saídos da boca de
Padrinho, ripostou com versos mais a seu gosto. «Te dou o céu...», trauteou São Nicolau
com os lábios molhados do bagaço. Padrinho, enervado, pôs-se
a cantar cada vez mais alto a cantiga dos seus calos nas
solas dos pés, mas não conseguiu interromper o louco recital de São Nicolau: «E vou transformar os anjos em amantes!» - Era impossível que eles se ouvissem um ao outro,
mais impossível ainda
que conversassem e cantassem ao desafio. Na sua queda acelerada, cercados
pelos ruídos da atmosfera, foi o que aconteceu.
Ia caindo a noite e o frio
do inverno que
lhes encerrava as pestanas
ameaçava gelar-lhes o coração,
estava prestes a despertá-los do seu sonho delirante. Estavam ambos
quase a dar-se
conta do milagre
de tais canções, do espaço e do bagaço de que faziam parte, e
do horror do destino que se precipitava ao seu encontro
quando os acolheu.
Encontravam-se naquilo que parecia ser um longo túnel em forma de labirinto. São Nicolau, empertigado, de pêra enrugada
e ainda de cabeça em baixo,
viu Padrinho, com o sua camisa de flanela de cor azul, vir na sua direcção e teria gritado: «Foge,
afasta-te de mim.» - O começo de um alvoroço
que o levou, em vez de proferir palavras
de rejeição, a abrir os braços até ficarem
enlaçados, cabeça e pés, e a força da colisão fê-los deslizar até ao mundo de Alice no País das Maravilhas. Enquanto eles abriam caminho
através duma ranhura, surgiu uma sucessão
de formas semi-escuras, anjos convertidos em galinhas, deuses
com porcos, mulheres com araras, homens com chimpanzés. Flores
com peitos abonados
de silicone, gatos de lábios carnudos e cães suspensos de antenas
nos cornos, e São Nicolau, na sua semi-inconsciência, foi invadido pela sensação de que também ele fazia parte daquele lote de preciosidades raras e únicas no
planeta.
«O que é que te aconteceu? - saudou-o Padrinho. - Perdeste-te no caminho do céu?» - São Nicolau,
apertando as pernas,
falou sem compreender o que se passava à volta: «0 que está a acontecer?»-
«Não vês? -berrou Padrinho. -Não vês o tapete da sorte?» - Teve que segredar-lhe ao ouvido; não esperes que ele venha parar à tua mão. Ele
não está aqui apenas pelos teus lindos
olhos, talvez seja a nossa
única oportunidade e não podemos
deixá-la fugir em vão. Com a sorte vem o dinheiro, meu caro, e com o dinheiro vem o poder,
por isso, abre-me
os olhos.
São Nicolau acabou por ver o tapete
da sorte mas não disse
nada. Foi a vez de Padrinho ter que enfrentar a situação sozinho.
«Não
devias ter feito o que fizestes. - disse, em tom de censura. -Não,
senhor.» -
«Não deixa de ter a sua graça,
ouvir-te falar em moral. Foste tu
que o quiseste - lembrou o voz dele ao seu ouvido. - Foste tu, meu
querido amigo.» -
Agarraram-se um ao outro e ambos irromperam pelo túnel abaixo, à velocidade dum
raio. «Voa, - gritou
São Nicolau para
Padrinho -Agora, voas tu.» -
E quando a luz do sol incidiu
em Padrinho, deu-lhe a novidade
para trazer ao mundo. E como é que ela nasce?
De fusões, de várias conjunções
em que entram os compromissos, os acordos, as traições da sua natureza comercial
e, depois, como é obrigada a fazer parar essa conjectura?
Será no fim da queda? Ou será preciso voar no espaço?
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Foram eles os únicos sobreviventes do desastre, os únicos que
caíram do comb6ío e escaparam. Encontraram-nos à porta dum boteco onde deram à costa e foram
bebeu um caneco. O mais falador
dos dois, o de
camisa de flanela em tom de azul,
jurou nas suas
divagações que já tinha
comido o pão que o diabo amassou; mas o outro não lhe ficou atrás e
disse: «Tiveste sorte, ou melhor,
nunca julguei que se pudesse
ter tanta sorte.» -
Eu sei a verdade, obviamente. Ouvi tudo. Não quero por agora,
afirmar quaisquer pretensões, mas São Nicolau
ordenou e Padrinho
fez o que foi ordenado.
Foram estas as primeiras palavras
que Padrinho disse ao balcão
do bar: «Vamos viver a vida, tu e eu, e o resto
são cantigas da gente.»
-
Ao que São Nicolau tossiu,
resmungou e, como lhe competia, pôs-se a
beber para aquecer.
A noite foi sempre
uma paixão muito especial
de Padrinho, há vinte
anos a esta parte, ainda antes dele derrotar os medíocres. Por isso talvez alguém devesse ter previsto,
só que ninguém o fez, por assim dizer. E onde
os medíocres tinham falhado, ele foi bem sucedido e saiu para sempre da sua velha vida, um mês antes do seu quadragésimo quinto aniversário, desaparecendo da sua terra sem mais nem menos, como um passe
de magia, fazendo
puf!.
As primeiras pessoas
que deram pela sua ausência
foram os dois elementos da sua equipa. Padrinho
recordava o seu passado entre os
refilões distribuidores de confusões e palavras anárquicas da fábrica de molas
(aos quais tornarei
a referir-me). E, no fim desse tempo,
Padrinho instalava-se na cadeira do poder e tornava-se no maior, onde
o cortejavam, aplaudiam e lhe entregavam os documentos para
preencher do FPB (Fundos pró Bolso), com todas as benesses. «Uma cadeira do poder -dizia ele à sua fiel equipa
- é tal e qual como eu correr
o País de lés a lés e já está!» -
E onde
foi parar Padrinho:
Os glutões, deixados
em péssimos lençóis,
entraram em pânico acelerado. E diziam entre
eles: «Vejam, ali, no campo de golf do Club Elite - Acolá, nas salas de jogo dos bingos, ou mais acima nas
casas de passe
que flutuam a rodos por aí e nos folhetins das donas-marias
baralhadas no meio das mulheres
por aí à toa, só lhes restavam
um único nome - a taberna
do Rato - mas isso os
glutões não sabiam, excepção
àparte de meia dúzia de amigos, somente.
Pela cidade inteira, depois do esforçado mas inútil labor
de telefonemas e contactos para aqui e para acolá, num dos sete palcos
nocturnos que rodeavam o jardim do Marquês do Pombal,
a menina Fífia,
a mais recente
aquisição apimentada - é uma verdadeira pólvora
pura, capaz de pôr a cabeça dum homem feita num morteiro
- vestindo um vestido curtíssimo e justo de bailarina
do tempo da pedra, rebolava-se pela sala toda, proporcionando um espectáculo delirante aos clientes entretidos a beber e a fumar os seus cigarros. Ladeada por umas
colegas do ofício,
exclamou num tom irónico.
«Hoje era capaz
de fazer uma
cena de amor
com chichi com o batateiro das batatas podres e pô-lo a beber do meu chichi» - Ouviu-se a zombaria das colegas, enquanto ela batia com os pés no chão.
«Ainda bem que os whiskys não têm paladar
do chichi senão eles
fartavam-se de ir à casa de banho
para mijarem!.» -
Sai de cena Fífia.
correndo um bocadinho
em direcção da retrete.
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As exaltações proferidas de Padrinho, essas nuvens carregadas de vícios fragmentadas de enxofre podre,
sempre lhe haviam
dado - juntamente com o seu nariz aguçado
e cabeleira de pêlo encurtado - um ar mais nocturno que diurno, apesar
da rima não ser muito académica.
Depois dele desaparecer, houve quem
dissesse que era fácil procurá-lo, que bastava ir atrás
duma «fífia» ... e, uma semana depois da sua partida, uma saída em grande
de uma cena-ás-três-pancadas mais a Fífia, contribuiria para lançar umas bocas para a fogueira
do boato que começava a associar-se a esse nome de cheiro
tão intensificado como de
mau era repudiado. As pessoas sabem quem fede e quem não fede. - Fedeis que tombais. -
No apartamento privado
de Padrinho, situado
no nono piso do arranha céus Dallas, em plena
Boavista, o alojamento com vista para o mar,
de onde se via o pôr do sol, permitiu
a ele relaxar pelo bom trabalho que havia
feito na escola
de formação da sua parvónia. Tinha gasto uma
pipa de massas
a criar uma vertiginosa ideia
para tempos futuros, enquanto se pôs a seleccionar os melhores títulos que dessem mais entoação
à sua ilusão sonhadora. A ESCOLA DO PADRINHO, achava não estar lá
muito bem assim, e se fosse antes,
JOVEM, APRENDE NOS
FUNDOS PRÓ BOLSO. Depois
de algumas hesitações, acabou por ausentar-se, dormindo uma boa soneca,
em cima do sofá junto
da janela virada
para o mar.
Depois de ele partir, perdera-se à porta das grandes casas de Lisboa, vendo enormes efígies
dos conquistadores dos mares de andarilho e pôs- se a ler os seus pergaminhos escritos em placas de ferro.fundido. Por fim comprou
os jornais e revistas da época cheias de fotografias de pessoas famosas,
perdendo algum tempo a olhar.Andou mais meio caminho a pé
e, depois, entrou numa casa de relaxamento espiritual com muita gente à volta.
Padrinho passara a maior parte desse tempo a viver com perfeita convicção dos seus ideais
de infância. Fazia
parte da sua
ilusão de fantasia. De pele branca como Simone, viu-a cantar, de microfone na mão, uma canção de embalar:
Luar de Agosto
Quem faz um filho fá-lo por gosto...
Os fãs bateram com as palmas
das mãos erguidas
ao alto. Sereno,
ele
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meditava, como Camões,
sobre o valor artístico
dum povo à luz dum candeeiro frouxo. Nas raras ocasiões em que eles se encontraram, a fronteira que separa a cantora do fã deixara
muitas pistas para o bom enquadramento duma amizade de copos. E o rosto
de Padrinho, reduzido ao tamanho de estrela,
no meio dos comuns imortais, revelava-se um bom comediante. Gostos não se discutem, pois claro. Seja como for, concordarão com certeza que não é pequena a surpresa detectar
num bom comediante uma qualquer
coisa, talvez, até
mesmo em São
Nicolau, mas especialmente nele.
Golias encontrava-se instalado
num gabinete esverdeado, atrás duma porta branca, por cima de uma loja de velharias. Figura imponente, forte como buda, uma das grandes forças vivas do nocturno, possuindo o dom de permanecer absolutamente de copo
de whisky na mão, enquanto
falava com alguém, nunca saindo da sala e travando conhecimento com todas as pessoas que cruzavam o seu espaço privado .
A Menina da Saca Preta
era uma rapariga
de baixa estatura, arredondada como uma bola de Berlim e transbordava de boa a tal ponto que
Golias babava-se todo quando ela abria a saca e mostrava os utensílios sexuais mais actualizados da moda.Ao fim da tarde, quando
ela chegava ao seu pequeno
apartamento, metia-lhe bolas de açúcar na
boca e regava-as com champanhe
bruto fresco. De seguida, ela punha-se ás cavalitas em cima dele e gritava:
«Yo, yo!» - E ouvia os protestos do grande secretário-geral do «GAS» 1
«Larga-me, mulher, deixa-me primeiro
despir.» - A seguir a um pequeno
aquecimento de pernas
e mãos, obrigava a Menina da Saca Preta a utilizar alguns dos seus utensílios que ocultava na mala, enquanto
lhe preparava um chá especial
de marmelo e, antes
de saltarem para o piano, escovava-lhe as costas e penteava-lhe o cabelo.
Eram um
casal perfeito, e a rapariga
entendeu que naquela
noite o Golias queria
compartilhar consigo o seu peso e os seus desejos.
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1Tradução da sigla: «Grupo
de atiradores do sexo».
Durante o aquecimento, porém, Golias tratou
a rapariga com todas as honras de uma grande
senhora de cama,
rendendo-lhe os maiores
atributos sexuais que um cavalheiro pode
render a uma senhora. «Bem
vês, que só uma
boa tecnicista sabe fazer um bom linguado!» - Disse ela ao ouvido dele que confirmou: «Sim,
já reparei nas suas qualidades e não deixo
de tratá-la com o máximo respeito.» - A Rapariga
da Saca Preta rompeu
em risadas histéricas, exclamando por fim: «Mas, espera aí! - olhou
firmemente para ele -tens tudo
o que me falta; és meu pai, o meu senhor
e o
meu amante. Se não te agrado nem sei o que será de mim.» - Golias voltou a entusiasmar-se com os ditos
dela e atirou-se de novo ao tapete. De facto, era um homem
bondoso, embora ás vezes distribuindo insultos por dá cá uma palha, mas logo recebia um consolo e ficava tudo como
dantes.
Um dia (contou a Rapariga da Saca Preta)
a saca tinha sido requisitada por uma criatura tão enigmática que eu me lembrei de a apelidar
de Jeremias e pus-lhe
algumas questões como estas. Queres o sexo
livre?, e a saca, que até aí tinha estado parada, começou
a correr dum lado
para o outro dando saltos
como a macaca até que parou de repente, sem se
mover um milímetro sequer, nestes, quietinha. OK, disse
eu e peguei na saca, voltei a fazer-lhe
outra pergunta. Ou queres o sexo comercializado?. Então a saca começou
a rodopiar tão depressa como um
combóio, pôs-se aos saltos no ar e bateu na parede tantas
vezes que acabou por despedaçar-se totalmente quando caiu no solo.
«Acreditas ou não? - disse ela ao seu pupilo. - aprendi a lição: nunca te metas
naquilo que não saibas entender.» -
Esta história teve um profundo efeito na consciência do jovem pupilo, que dias
antes se convencera que existia um mundo irreal.
Especialmente à noite, quando
olhava à sua
volta, quando o ar se tomava mais sofisticado
e a
luz se tornava mais obscura,
o mundo visível,
nos seus contornos, davam-lhe a impressão de que tudo
se prolongava para além da superfície do ar. Pestanejava e a ilusão
desvanecia-se, mas o rasto desta quimera
nunca o abandonava. O jovem
pupilo cresceu acreditando em Deus, nos anjos, nos demónios, em tudo, como se tratasse
de acreditar nos nabos,
nas cebolas ou nos carros
de bois e sentia uma aberração por nunca ter conhecido um fantasma. Sonhava descobrir um porco oculista
a quem comprasse umas lentes para descobrir uma porca do seu tamanho que corrigisse a sua miopia; veria então, através do ar denso,
o mundo fabuloso do lado de lá.
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