Sunday, July 16, 2017


                                         


                                               A ladainha de Fernando Abraão

                                            Lutou a vida toda por uma carreira brilhante

Um dos indivíduos menos falado, entre os que contribuiram para fazer do seu bar-club um local onde a permanência fosse melhor, é um tal  Fernando Abraão, residente em Arca d´Água, no Porto. Poucos falam dele, é certo, e é pena, que a glória não lhe tenha batido à porta, porque este Abraão é uma raça de homens que pouco falta para ficar extinta. Abraão foi criador de um dos mais extrovertidos grupos de notívagos de que reza a história. Tudo teve por causa uma ladainha - a ladainha mais extraordinária que ganhou vida na velha Invicta, e a bem dizer em todo o planeta boémio. Uma ladainha fabulosa.
Abraão era rebento de velha e firme cepa tripeira. Sua mãe servira nas casas de gente média e seu pai matara porcos num velho tasco, e os seus quatro filhos andaram de sacolas aos ombros, em 1952, durante o Estado Novo. No ano em que trocou a música pelo serviço de mesas no night-club Marta, ou seja, em 1970, contava ele os seus 23 anos. Ali, sua ladaínha tornou-se logo alvo de picantes insinuações e divertimento. Mas antes de passarmos à narrativa das confusões que se seguiram, é necessário que tracemos, muito rapidamente, a história das ladainhas, no Porto à noite. O Porto à noite, como é bem sabido, é frequentado por homens e mulheres dos mais diversos escalões sociais, e quase todos eles possuidores de admiradas lábias: Loureiro, Hamilton, Margarida, Jotinha, Yá, o tenente Duarte, Ave de Rapina, o empreiteiro Campos - todos eles vaguearam pelo noturno suas ladainhas de diverso estilo e funcionamento. Assim a coisa continuou com o crescer dos anos. Assim pois, quando Abraão passou a servir no night-club Granada, levando consigo a sua bem-humorada ladainha, havia bem quem comentasse, que a moda das ladainhas não era prática geral. A respeito da sua simplicidade e vulgar aparência, Abraão era um tipo honesto e sem maldade, e um empregado exemplar, profundamente tolerante mas não crente, e além disso, interessado em conversas de fundo. Era também bastante duro em questão de princípios, e entre estes não deixava de incluir o direito a expor sua ladainha digna de um profeta. Em toda a parte a freguesia que o ouvia, curtia e jogavam-lhe larachas. As camareiras, ao verem-no aproximar-se, galavam e trocavam de mesas. Mais de uma vez as suas histórias apareceram bisbilhotadas pelas bocas de boémios. Quanto aos céticos, troçavam dele sem cerimónia.
Lá por 1976, Abraão já virara figura típica, de projeção noturna, derivado a dois acontecimentos que se produziram quase instantaneamente: a despeito da abertura do seu pub, de vidros preto-fosco com letras em relevo:"Stop. House of Pleasures". Era um dia de semana, à tarde, e Abraão foi chamado a comparecer na esquadra local perante o oficial de dia, que o ameaçou de não lhe passar licença para abrir o pub, devido ao teor da linguagem provocatória, na fachada do estabelecimento. Revoltado até ao âmago da alma, ele levantou a manga da camisa do braço tatuado, e mostrou-lhe o emblema da unidade militar a que pertenceu voluntariamente no Ultramar. Quando disse ao oficial «que nada o fazia deter, com as ameaças proferidas», ele ergueu-se, encaminhou-se para a porta de saída, e deixou no ar um passe bem. Depois, rodou nos calcanhares e foi para o pub... mas tinha prevalecido a ladainha que era o seu orgulho.
Alguns dias passados, o correio bateu-lhe à porta e entregou-lhe a licença provisória. Após quatro semanas de abertura, foi o pub assaltado por uns mânfios à solta que, além de vandalizar o bar, roubaram tabaco, uns trocos e a aparelhagem sonora. Na esquadra, disseram-lhe sem rodeios que o melhor seria ele prevenir-se, e tentar sacudir os tais mânfios do lugar. Mas ele conseguiu tirar da cachola uma ideia, e, chamando o carpinteiro, arquitetou uma antecâmera com medidas certas, de modo a evitar que o chefe do gangue, dificiente físico, pudesse lá entrar de cadeira de rodas... e, quando o gangue lá voltou, os capangas tiveram que o erguer nas pernas e levarem-no ao colo para dentro, nada de muito anormal, mas enfim o bastante para o desanimar de não voltar lá a entrar. Um ano depois da abertura do pub, foi levado a dissolver a sociedade que tinha com um sócio, sob a argumentação de «desunião não-provocada.» Aceitou receber o trespasse que ele impôs. Princípios de boas intenções, alegou. Meteu-se numa empresa imobiliária em Campo 24 de Agosto, de um ex-chefe que lhe fez um convite para fazer parte de uma equipa de vendedores, onde ficou experimentando mais de um ano, sendo que parte desse tempo passou incomunicável! Até ali teve que defender a sua preciosa ladainha. Um dia, o amigo número um do mundo da noite acompanhou-o à zona alta da Invicta, na intenção dele tomar conta de um negócio à passagem. Abraão tomou notas e dias depois, fechou o negócio com êxito, metendo mãos à obra, com a ajuda de dois companheiras do ofício.
No interregno das obras em que afirmava aos futuros clientes estar para breve abrir um bar-club de fazer furor, e insistiu na sua ladainha; e tinha persistência, indicustível... os clientes conseguiram fazer passar essas mensagens no boca-a-boca, e nas casas concorrentes, até que no dia 3 de Outubro de 1980, o bar-club abriu a sua porta ao público, sedento de curiosidade. Na porta, estava um homenzarrão de calça preta e casaco aveludado em tom de azul-escuro por cima de uma camisa branca. Tinha barbas sobre o queixo. Só entra quem tiver cartão, disse ele. Não tenho, respondeu o cliente: tanta etiqueta, isso é que não! O homenzarrão instou para que ele se fosse. Abraão, dono do bar-club, ficou de pé no seu balcão do bar, móvel como um pica-pau tagarela, até que os clientes, meninas, e convidados, se sentassem nos sofás e bebessem os seus drinques com show e tudo, e o foram elogiar na saída. Ninguém voltou mais a duvidar da ladainha de Abraão. Agora independente, em breve encetaria ele a sua campanha para a criação de um grupo especial. Foi muitas vezes à ribalta noturna para captar clientela, concorrendo com o seu bar e o seu tempo para a angariação. Conheceu ene gente da alta, que nele acharam qualidades de bom estofo, e, se já era popular, tornou-se sobejamente conhecido.
 E assim, de aprendiz de ofício que fora, Abraão se encontrava agora guindado a uma espécie de fama. Os anos correram, e com eles a sua ladainha progrediu como a folha de um eucalipto. Uma foto desse tempo mostra-a tão destacado, que ao lado dele Don Oliveirinha, seu primeiro cliente, parece um rapazote! Anos mais tarde depois da sua ascensão, os seus contos passaram no pasquim O Jornal dos Traidores, que ele tinha criado, com quase 2000 personagens alcunhadas, dando lugar a que, num ápice, o rosto de Abraão fosse o rosto da noite.
Por fim, alguns anos antes de se aposentar, em 2.009, após 30 anos de serviço interrupto quando as ladaínhas estavam francamente em declínio, Abraão desapareceu do métier, e foi assim poupado ao espetáculo confrangedor do seu desaparecimento avançado. O autor destas linhas, foi o repórter Ratazana (alcunha) quem de modo hábil lhe traçou os dados passados, servindo-se para isso de fotografias tiradas pelos Maus-Olhados, repórteres do Grupo de Traidores, por ocasião de eventos. Mostram os seus convívios e concursos semanais que eram tradição lordesca.
Houve muita gente que pensou mesmo que o velho Abraão avalou portanto na hora certa, mas não sem se dar a alguns comentários para ter a certeza de que não ficaria de todo esquecido: numa residência ao pé do jardim de Arca d´Água, um espaço comparado ao paraíso terrester. Por esse asfalto adiante, sente-se a presença de Abraão, ladeado de velhos amigos, que nos bancos do jardim, ainda ele espalha a sua nobre ladainha.    


                                                                              (Reproduzido do «Jornal dos Traidores») por Ratazana, Porto.