Monday, August 20, 2012






CONTOS DE RATAZANA
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17. Episódio


Como o luto dos amigos do Faísca enlutou a povoação. Como os amigos se foram embora sozinhos


A morte é um caso pessoal que provoca dor, agonia ou desespero. Os enterros, por um lado, são funções sociais. Imagine-se ir a um funeral sem primeiro dar brilho aos sapatos. Imagine-se estar-se junto da campa sem se levar o melhor fato escuro e vestido a melhor camisa branca, primorosamente adornada por uma gravata preta. Ah, também não pode esquecer-se, de levar flores para um funeral sem fazer acompanhar o ramo de um cartão para se provar que se fez a atitude correta. Calcule-se o choque se, nos velórios, não se usasse uns bancos de madeira ou umas cadeiras para as pessoas se sentar, mesmo de assento duros. Não. Moribundo, um homem pode ser amado, odiado, chorado; mas, uma vez falecido, passa a ser o principal ornamento de uma celebração social e formal. O Faísca estava morto há um dia; e já deixara de ser o Faísca. Embora o rosto das pessoas estivesse sentidamente abatido pela tristeza, havia alvoroço nos corações. A Comarca prometera um funeral simples a todos os seus filhos nascidos e criados na terra que o desejassem. O Faísca foi o primeiro sem-abrigo da terra a morrer e o povo estava pronto a pôr em marcha as promessas da Comarca. Já se tinha informado as entidades, e o corpo do Faísca tinha sido embalsamado a custo da Comarca. Já se tinha tirado os despojos da casa do Faísca e entregue aos amigos, incluindo o cão, e feito uma limpeza à casa que fora colocada, à espera de novos inquilinos. Já fora redigido o adeus final referente a quinta-feira:

      «Faísca, foste um carola da gente. Um camaradão. Partes como um guerreiro.»

Na noite do segundo dia, os amigos estavam reunidos na casa do velório. O choque e o vinho tinham passado; estavam exaustos, visto que, em toda a Comarca, só eles, os amigos, é que mais tinham amado o Faísca, que mais tinham recebido do seu coração, só eles, é que faziam parte da sua família. A impaciência que se lhes esvaziava do corpo era frenética. Amaldiçoaram o dia. Pela porta do velório viam alguns moradores afastarem-se dali. Os amigos estavam sentados, de mãos dentro dos bolsos das calças, torturados pelo seu mau dia. Todas as ideias tinham sido postas em discussão. Pela primeira vez na sua vida, o Pipocas descera ao absurdo.

— Cada um de nós podia, esta noite, ir engatar uma gaja — sugeriu.

Sabia que era uma proposta doida, pois nessa noite todos os sentidos estariam vocacionados para o luto. Era bronca certa engatar uma gaja.

— O Motel do Pedaço às vezes dá dormida às gajas soltas — disse Very nice.
— Já lá estive — retorquiu Pascácio. — Desta vez têm meia dúzia de gajos, mas nem uma gaja.

De todos os lados não havia volta a dar-lhe. Nino Cardoso entrou com o seu novo lenço vermelho enrolado no pescoço, mas o ambiente que encontrou fê-lo rumar de volta dizendo já volto.

— Se tivéssemos mais uns dias à nossa frente, podíamos ir à Senhora do Porto — disse o Pipocas sem cerimónia—, mas o funeral é amanhã. Temos de nos concentrar nas horas. Não podemos deixar de ir ao funeral.
— Então? — quiseram os outros saber.
— Podemos ir visitar as nossas amigas, enquanto elas ainda estão de pé. Há sempre uma pinga para oferecer. Podemos deitar-nos com elas e dividi-las por todos, como fez o Cristo.

Os amigos olharam para o Pipocas com admiração. Sabiam como o seu fino traquejo tinha estado a pensar todas as soluções. Mas a presença no funeral era importante. Era a melhor homenagem que se pode prestar a um amigo. Deixaram as coisas neste ponto, mas sentiam que não tinham hipóteses. Durante a noite vaguearam pelas ruas. De manhã, a campa no cemitério que iria receber o corpo do Faísca estava quase coberta por montes de ramos das mais bonitas flores dadas pela maioria dos moradores do Marco de Canaveses. Quis a natureza que o dia de quinta-feira, o tempo estava bonito. O Sol raiou como se nesse dia fosse haver um piquenique. Os pássaros voaram através do espesso monte para as grandes árvores e pinheiros. As lojas do comércio fecharam meia portada em sinal de respeito pelo falecido. O barbeiro pôs um letreiro na janela: «Volto daqui a pouco», e foi para casa equipar-se para o enterro. Um camião entrou na rua carregado de pipas de vinho. O Papagaio pintou o casco e mudou-lhe o nome para «Faísca». José Gabardines, o guarda-noturno, prendeu um casal de motoqueiros no trequibrec, deixou-os ir embora e bebeu duas ginjinhas. Os amigos do Faísca acordaram melancólicos e levantaram-se da sala, improvisada de camas, na casa do Pipocas. No lugar do Faísca estava apenas o cão, de orelhas em baixo e olhar triste. O Sol aqueceu com entusiasmo e colou no chão as delicadas sombras das teias das aranhas.

— O Faísca ficava tão feliz em manhãs como esta — disse Catanada.

Depois de terem ido à ravina, os amigos sentaram-se por uns momentos, como de costume, no quintal e elogiaram a lembrança do amigo. Honestamente, recordaram e anunciaram a virtude do Faísca. Honestamente, esqueceram-se dos seus defeitos.

— É ágil — disse Pascácio. — Ágil como uma lebre. Era capaz de correr as ruas para vender um santinho.

Contaram pequenas histórias acerca do Faísca, da sua bondade, da sua lealdade, do seu bom coração. Em breve se fez horas de irem para a igreja. Atravessaram a rua albergando uma roupa de cada cor. Cheiraram interiormente tanta Água-de-Colónia dos outros que até aspiraram. Do seu lugar de observação viram o grupo coral da igreja interpretar uma música missal. O sonoro oh-oh das gargantas dos coristas encheu de ânimo o coração dos amigos do Faísca. Viram o caixão ser colocado em cima da carrinha fúnebre e ornamentado pela bandeira dos Sem-Abrigos que o cobriu. A carrinha fúnebre movimentou-se. Atrás, num passo imponente, caminhavam os homens e mulheres aprumados e de olhar sério. Toda a gente estava lá, Xanana Maluca, a Senhora do Porto, o Papagaio e a sua rechonchuda cara-metade, Nino Cardoso, o fugitivo, Roque, José Gabardines e o Barbeiro. Enfim, todos, os que na Comarca valiam alguma coisa e também os que não valiam coisa nenhuma. Durante o percurso, os amigos foram pelo passeio fora, um tanto colados ao muro, sustentados pelo heroísmo. Foi uma cerimónia breve e simples. Baixaram o caixão; as pessoas deitaram os olhos na terra. Very nice, baixou a cabeça e desatou a chorar e, ao ouvi-lo, o Vigília atirou a cabeça para trás e pôs-se a uivar. O Pipocas ficou orgulhoso do seu novo companheiro! A cerimónia acabou depressa demais; os amigos afastaram-se rapidamente para que as pessoas não os topassem. Ao irem para casa passaram pela adega do Papagaio. Catanada entrou pelo postigo aberto e trouxe duas garrafas de uísque. Depois, dirigiram-se lentamente para a acolhedora casa do Pipocas. Encheram com cerimónia as tijelas e beberam.

— O Faísca gostava da pinga — disseram. — Era feliz quando bebia uma boa pinga. 

A tarde passou e a noite chegou. Com o uísque bebido levou-os a navegar pelo passado. Às sete e pico, um tímido Nino Cardoso entrou, trazendo uma caixa de cigarrilhas que lhe tinham oferecido. Os amigos acenderam as cigarrilhas e abriram a segunda garrafa. O Pipocas tentou entoar algumas notas do tango «Adeus Muchachos...» para ver se a voz estava nos trinques.

— Hoje a Xanana vinha sozinha — disse Catanada especulativo.
— Talvez não fosse mal de nossa parte irmos cantar umas cantiguinhas tristes — opinou Very nice.
— Mas o Faísca não gostava nada de cantigas tristes — retorquiu Pascácio. — Do que ele gostava era daquelas músicas pimba, que as letras falavam de coisas atrevidas.
   
Seriamente, todos exprimiram a sua concordância, com um aceno de cabeça.

— Sim, para as músicas pimba não havia pai para ele.

Pipocas tentou o último verso do «Adeus Muchachos...» e Catanada ajudou-o um bocado; os outros acompanharam-no na parte do fim. Terminado o tango, o Pipocas tirou umas trincadelas numa maça, mas a maçã caíra-lha ao chão.

Very nice — disse —, chega aí o tambor para a gente fazer mais acompanhamento?

Estendeu a mão e atirou fora o caroço com um piparote. O caroço engrossado foi cair em cima do carrito que estava encostado à parede. Levantaram-se para segui-lo com os olhos; mas voltaram a sentar-se; tinha-lhes acorrido um pensamento cinematográfico. Fitaram-se nos olhos e exibiram o sorriso sabedor de homens para quem a fé e a morte não existem. Olharam, numa fantasia o carrito imóvel e inclinado para o lado. E os homens continuaram a sorrir à medida que a ideia e o rápido pensamento era apanhado.
Assim vai ser, ó malandros amigos do Faísca. O elo que vos unia, rompeu e perdeu o poder. O carrito passara para as mãos do Pipocas. Agora este objeto da amizade sincera, este excêntrico carrito de bugigangas e ganha-pão, de amor e trabalho, parta como partiu o Faísca, num último, honroso e significativo gesto de solidariedade. Sorriam. Então os amigos levantaram-se e, como se estivessem a viver o sonho, pegaram no carrito e saíram para a rua. Catanada, que tirava proveito de toda a sua habilidade, ligou o motor e pô-lo a trabalhar. Os amigos sentaram-se nos lados. O Pipocas tomou conta da condução. O carrito desceu a rua em segunda. O toque da buzina chamou atenção a um monte de gente do Marco de Canaveses. Estavam fascinados, ao ver o carrito transformar-se numa carripana de passeio e turismo. Depois, o carrito dos amigos deu uma volta, afastando-se. A população do Marco de Canaveses dissolveu-se no escuro da noite. Os amigos do Faísca iniciaram a subida ao monte com o carrito. Ao chegar ao cume, pararam. Olharam-se uns aos outros estranhamente e em seguida viram o carrito voar até aos baixos como um pedregulho e, saltitando, escaqueirou-se aos bocados contra as árvores do monte.

Instantes depois, voltaram-se e saíram dali lentamente.