Sunday, July 5, 2020




                                     CAPÍTULO I


   Neste dia cinzento de Maio de 1928 começa a história de Marco António. A lenda, numa só palavra, de Marco António, começa, pois é impossível separar os traumas da sua vida e da sua obra.
   Mais tarde, ao recordar o seu amor, Dona Lena teceu um comentário, num estilo simples e gracioso: «Nós morávamos na mesma ilha. Quando ele pôs os olhos em mim, eu também pus os olhos nele. Lançou-me uns piropos…. Eu era uma jovem de dezasseis anos!»
    José Vilela afirmará que ele teria preferido ser um Falsificador a ser um grande serralheiro. Sem exagerar muito, podemos dizer que Marco António foi simultaneamente um e outro. Ele queria ser reconhecido como artista de pintura, mas não encontrou espaço no mercado de arte para as suas obras originais. Então, ele começou a replicar tudo que achasse que seriam obras bem vendidas. Se teve apenas uma paixão pelo trabalho que fazia, teve uma infinidade de encontros passageiros, para não falar dos seus relacionamentos com mulheres de reputação duvidosas, que nunca desprezava.
   Por isso, as mulheres, que ele nunca considerava como «divinas ou bonecas» - dizia ele a Cardinal - e amava como uma espécie de maldade, foram, paradoxalmente, o estímulo constante da sua obra, à qual deram um caráter sem palavras humano e sensual. Cortês, confidente e observador de parte da sua vida, dirá: «Nunca realmente a sua imaginação se manifestará com tanta força como na crise das suas experiências amorosas. A cada nova experiência amorosa, vemos a sua obra progredir, aparecer uma nova ideia, uma outra técnica, que coincidem sempre com períodos de exaltação…»

   Não podemos afirmar por isto que ele conheceu o amor. Dona Lena censurá-lo-á de nunca ter amado nem saber o que era amar e, finalmente, Luísa partilhará dessa opinião. Sentindo-se mais curioso por seres e por novas experiências que pelo amor, não viu em cada aventura mais que um fermento necessário ao seu trabalho. O seu trabalho, o único e constante objeto da paixão que arrebatava a sua vida. Tudo, durante a sua longa existência, espantosamente fértil, foi submisso à enologia e condicionado por ela. Amigos, esposa, amigas, foram submetidos a este tom autoritário. Isto deve-se a um aspeto diferente do seu temperamento: nele, a inspiração é constante, donde a necessidade de trabalhar constantemente, donde a necessidade de impulsos constantes, donde esta curiosidade devoradora pelos seres, ideias e coisas.
   «Este homem de aspeto triste, sarcástico, um tanto hipocondríaco às vezes, nunca encontrou consolação – porque parecia trazer sempre em si uma grande dor, - mas encontrou o esquecimento no seu trabalho e no seu amor por ele», notará Rosália, sua companheira do grupo excursionista, que a solidão tornou perspicaz.
   A sua atitude não impediu Marco António de ser amado e de provocar paixões que, uma vez pacificadas, nunca se extinguiram completamente. Durante toda a sua vida trouxe atrás de si o acompanhamento submisso, frenético ou barulhento das antigas amizades. Dona Lena, a esposa fiel, permaneceu sempre a seu lado; Luísa, depois de o ter abandonado, viveu apenas da sua recordação, constantemente presente. Rosália, rosto pálido e desesperada do fim de os passeios do grupo excursionista… Ele próprio nunca podia romper completamente e ao seu amor de momento falava frequentemente dos que o tinham preterido, menos por maldade que por ser incapaz de renunciar a um momento da sua vida, a qualquer coisa que lhe tivesse pertencido. Como guardava os velhos isqueiros ou as pontas de lápis, conservava também as antigas amadas à mão.
   Acontecesse o que acontecesse!
                
   Mas quem era este Marco António, este sedutor moço que, depois de ficar isento do serviço militar, fez «cair» muitos corações aos seus pés!
   Assim o descreveu Rosália: «Marco António, moreno, atarracado, inquieto e desconfiado, de olhos castanhos, perspicazes e astutos. Gestos desastrados, mãos pequenas e grossas, bem vestido, muito cuidadoso. Meio-boémio, grande trabalhador, os cabelos curtos e bem penteados anteviam o colarinho de um casaco ainda novo.»
   José Vilela: «Um homem pálido, com o ar de quem confessa que a vida é por vezes dura de roer. Era notável por um penteado curto e bigodinho aparado, e pelo vivo colorido das suas camisas e gravatas.»
   Com isto, nota o patrão Anselmo, um ar de artista. E era mesmo um ar de diferenciar superior que emanava deste serralheiro bem cuidado, vestido de fato e gravata. Um pouco surpreendente: artista, não o era de nascença, nem pelos dons que recebera, nem pelas origens. A família paterna, onde se constavam muitos ramos de carência real, era de maneira particular remediada.»
   O pai de Marco António, de nome Manuel António, era um homem trabalhador e espirituoso, de estatura média e rosado como um romã; a mãe, de nome Maria Antónia, era uma mulher pequena e muito morena – é com ela que se parece o filho, - pertencia a uma família, outrora pobre, de pequeno comércio fixados para cá do Marão.
   A despeito das suas origens indecisas, a família António-Antónia estava com dificuldades para sustentar o lar e não contava então com algum descendente que pudesse deitar mão àquilo. Depois de revista a situação, o pai fez contas à vida e verificou que as suas finanças estavam em queda livre, salvo algumas pequenas poupanças.
   Cedo, desde os estudos em Vila Boa do Vispo, os seus amigos criaram o hábito de o chamar pelo diminutivo de António e, assim ficou a ser conhecido, pelo Tonito. São imensas as variantes de António à volta do mundo. É também um dos nomes portugueses mais focalizados pelos diminutivos. Dos dois lados, a família inclinava-se para as artes. O pai António, abriu uma pequena oficina de sapateiro e… fazia uns biscates; a mãe era trabalhadora doméstica.
   Tonito nasceu numa pequena freguesia chamada Vila Boa do Bispo, em 17 de Maio de 1928, ao meio da tarde, sob o signo do Touro. Pensou-se que ele estava morto, então a parteira teve a ideia de soprar o fumo da chaleira para o nariz do recém-nascido, dando origem a uns miados de gato assanhado.
   Como segundo rapaz da família, a mais velha era a irmã Freira e o irmão mais novo Atílio, tiveram uma infância pacata e sem amedrontamentos. Com o martelo pousado diante dele, punha-se então a martelar numa chapa ou num bocado de madeira, sem se preocupar com o barulho que fazia. Quando estava cansado de bater com o martelo, levantava-se, ia à varanda fazer sinais às pessoas que passavam na rua, na cozinha, da empregada da vizinha, por quem se apaixonara… Não devia ir muito mais longe no caminho dos estudos, e se, mais tarde, deu ares ao traçar linhas milimétricas, o que provocou a admiração de pais e amigos, foi provavelmente graças à sua prodigiosa facilidade de assimilação que o conseguiu.
   O facto não tem nada de surpreendente se considerarmos a sua fabulosa carreira, mas é necessário assinalar que, desde a sua meninice, e os estudos pouco contavam para o seu crescimento, as únicas coisas que o interessavam realmente foram a serralharia e o martelo. Até hoje, conservou na sua oficina um molde representando um par de guitarra e viola cortado aos nove anos, surpreendente pela habilidade com que os instrumentos, estão combinados. Quando o interrogam sobre os seus princípios, frisa que nunca cortou um molde como uma criança. «Os meus primeiros moldes», conta a João, um colega do ofício, «nunca teriam podido figurar numa exposição de moldes infantis… Ultrapassei rapidamente o estado desta maravilhosa visão… É fabuloso!», diz ele ao
voltar a ver os seus moldes. Este dom, evidentemente, acrescentava a admiração ao amor que lhe oferecia uma família em que as artes ocupavam o primeiro lugar. A irmã, Freira e o irmão Atílio, adoravam-no como a um ídolo. E ele maravilhava-os recortando para eles, com a tesoura de cortar, animais em alumínio.
   «Por onde querem que eu comece?», perguntava-lhes, preparando-se para cortar um passarinho.
   «Pela cauda… respondiam-lhe maliciosamente, pensando atrapalhá-lo. Mas ele cortava o passarinho começando pela cauda.