Ela pôs-se a mijar em cima do tapete e, a seguir,
desaparece11 calmamente para fora.»
- Padrinho contara
a ela a história num tom franco • e risonho, sugerindo, em princípio, que a tempestade já não Se desencadeava.
O certo é que ela não parava de contar histórias
e ele foi obrigado a
gritar-lhe: «Agora chega», -disse
ele. -Vou-me embora.»
-
Apertando bem o cinto da gabardina ao corpo,
seguiu a passo rápido pela rua em frente. O nariz de Padrinho, escorrendo pingos de orvalho começou a latejar dolorosamente. Nunca fora capaz de suportar
o frio. Deu por si a murmurar uns versos que lhe saíam
à memória repentinamente,
M orrerá
quem suporta o frio? Quem, não se alheie ao abandono,
Embora a ele condenado?
Tu também farias
isso, E te tornarias um oculto, de qualquer das formas,
Mas
longe do frio,
onde pudesses trocar,
Um pouco de sossego e de paz ...
Ele próprio não saberia dizer melhor.
Qualquer pessoa que desse por si no meio da noite, ao relento, a falar sozinho, diria que ali ia um maluco... pôs-se
a limpar o nariz a um lenço de
papel, e murmurou:
«Devias era ter ido para poeta», - opinou voltado
para o candeeiro da rua - Podias muito bem ter tido êxito. Eu sei escrever embora só
tenha a quarta classe, mas que raio? Uma pessoa
não precisa de ter
muitos estudos para saber dizer
uma dúzia de frases bonitas,
não é? É claro que não sou burro de todo; há por aí mais camelos do que eu a
pastar que não vão a lado algum
mas eu cheguei lá! Mais longe do que
eles pensavam, disso tenho
a plena certeza
e mais digo: esses nem daqui por cem anos chegam onde eu cheguei, disso garanto-te, palavra de Padrinho.» -
Ele desvaneceu-se da fúria e até lhe deu para fumar um cigarro,
puxando primeiro pela aba do chapéu para
a frente da cabeça, enquanto tirava umas fumaças de fumo para
o ar. Nesse instante, reparou
que duas
154
pessoas o olhavam com curiosidade, a primeira um jovem de aspecto
aguerrido, com roupas de couro guarnecidas com letras em relevo, um cabelo
cortado à pica e uns olhos de esfomeado;
a outra, uma mulher de meia-idade com um guarda
chuva na mão.
«Vocês tiveram
azar», -gritou Padrinho.
- «Pois já fui assaltado ali atrás e fiquei
teso como um virote.» -
«És mais desgraçado
do que nós», -disse o Pica lançando uma pedra
contra os sapatos
dele. - «Ao menos, deixa ficar o tabaco.» - Depois
dele ter pegado nos cigarros,
retomou o seu caminho; enquanto
a mulher retrocedeu uns passos para trás
e disse: «Tenho a certeza que nos estás a enganar,
mas a tua cara ficará
guardada no meu espólio, ouviste,
6 gamão? 1» - Pelos vistos, aquela era uma noite recheada de atractivos,
compreendeu ele com surpresa. «Mas que noite!
É caso para eu dizer: o que mais falta para vir?»
- Tomou o silêncio
dele como meditação
e sumiu-se por entre a escuridão da noite.
Padrinho ficou persuadido
de que sair à noite
sozinho era um perigo
numa cidade como o Porto.
E, tendo em conta aquilo
que viu, a esmurrada
no nariz, perseguido pelos «Picas»,
a ceguinha a pedir esmola, a amiga das
anedotas, Padrinho ficou mais decidido
a recuar caminho
e mudar de direcção, seguindo até ao Sul; mais propriamente dito,
para a sua morada. Padrinho tinha a certeza
que ali não o incomodavam.
E a cidade, na sua forma moderna
de estilo genuíno e invicto, recusava-se a submeter-se à corrupção e ao domínio
dos chouriços e insurrectos que vagabundavam pelas zonas menos frequentes de transeuntes, impedindo por isso, Padrinho de passear a seu bel-prazer pelas ruas solitárias, durante a noite. Havia dias em que, ao virar duma esquina,
estava um ladrão
à espreita mas, noutros
dias, aparecia uma florista com uma flor
que punha no peito duma
pessoa, acrescentando: «Segue
em paz, irmão, e que o passeio te faça bom proveito.»
- Ele atravessava aos tropeções por entre as ruas e vielas cheias
de lixo e pedras no chão da zona da Banharia e Viela do Anjo, nas quais, para grande consternação
dos ardinas dos jornais , começara de novo a cair a chuva aos
potes, abrindo

brechas por entre
a terra enlameada, vendo-se alguns buracos
nas rua:\
Padrinho dizia mal da sua vida e amaldiçoava aquela
noite em que resolveu
sair de casa para espraiar
um pouco de ar. Foi num triste
estado em que chegou à estação ferroviária de São Bento, roupas encharcadas, pés molhados, nariz a pingar pingos
de água, berrando
para o motorista de táxi:
«Chega aqui, ó minha besta!», - berrou
mais alto. - «Deixa de dormir, meu calhorda.» -
Devia ser manhã
cedo, porque os trabalhadores da estação apareceram diante dos seus olhos
a transportar malas e outras
embalagens de serviço. Padrinho entrou para o do taxí, arrastando os pés e mãos dentro
da gabardina e ergueu os olhos para o motorista.
«Bom dia», -exclamou ele.
- «Há dias em que não se deve sair de
casa.» - O motorista não respondeu e pôs o carro a trabalhar e, depois, seguiu
a indicação dele,
com destino ao Sul.
Chamava-se Olga, tinha vinte e cinco anos,
o filho de seis anos
vivia dependente dela, especialmente agora que a ama do miúdo se metera
com um vagabundo qualquer e «arranjara sarilhos». Olga era motorista de taxi e a primeira rapariga
a instalar-se ao lado dos colegas do volante, sem preconceitos pelo facto de ser ainda uma jovem miúda. Passava
bastante tempo encostada
ao assento, palitando
os dentes e a ver as pessoas a passar e, mal entrou
Padrinho para o banco da frente, deitou
o palito fora. Era o primeiro cliente do dia. Fitou-o com grande espanto para o aspecto dele. «Estava aqui a pensar o que me dava
a mim para andar com este temporal aqui fora!» - Mas ele não sedeixou desconcertar.
«É a primeira
vez que vou ser conduzido por uma motorista de taxi; isso é
um privilégio para mim.» -
Reparou nos olhos dela e descobriu uma cara gaiata e interessante.
Era conversa a valer. «Mas sabe»,
-encostou-se para
trás do assento.
-
«Eu entusiasmei-me com a chuva e atirei-me
cá para fora;
mas, senão fosse assim, também não vinha
aqui a falar consigo, não é?» - A partir daqui o carro seguiu a sua marcha pelas ruas do centro. As conversas
tornavam-se mais acesas
e prolongadas . Às vezes ela olhava
para ele e sorria
quando ele dava
uma piada. «Olhe
para aquele maluco
ali também à chuva!»
-
Olga tinha grande afeição pela profissão. Falava com um entusiasmo
que desconcertava o mais saloio, e tinha orgulho por dar vida ao serviço
156
público, prestando-lhe uma imagem moderna.
«Olhe, meu caro, o meu realismo não seria correcto
se não tivesse competência para o cargo.»
- As conversas na estrada transformaram-se em confidências picantes.
«Eu sei o que isso
é.» - Proferiu Padrinho, encantado. Agora, Olga evitava sempre o olhar directo
dele.
«Não percebo como é que me pus prá aqui a contar
destas coisas.» - Concluiu ela, hesitante, para si mesmo. Sim, era isso mesmo, no calor das
conversas, permitiu que ela dissesse
coisas que não devia dizer, mas enfim, estava dito, agora nada havia a fazer.
Encostou o cotovelo
à janela da porta e reconfortou-se mais atrás do volante, olhando-a estrada pelo espelho retrovisor.
Mais
à frente, a viagem estava prestes a findar. Até que enfim, pensou Olga. Dentro do carro,
a motorista de taxi Olga olhou e viu as roupas de Padrinho
já um pouco secas mas ensopadas
no assento.
«Pronto. Chegamos
ao local.» - Disse ele.
Nesse instante, ela parou o carro. Ele saltou para fora e passou para o outro lado, entregando-lhe uma nota para a mão.
«Foi a viagem
mais maravilhosa que tive», -olhou para Olga. -
«Fique com o troco que eu ficarei com o seu número para não me esquecer
quando tiver saudades de andar de carro.»
- Padrinho deu um jeito com
as mãos na gabardina, puxou o chapéu
para a nuca e seguiu
o seu caminho.
«Volte
sempre que quizer.» - Atalhou ela; quando ele, se
encaminhou para o prédio
e desapareceu no meio dos degraus da escada. «Eu prometo
voltar.» - Retorquiu Padrinho
levando a mão à aba do chapéu.
Quando chegou ao cima das escadas, Padrinho
abriu a porta de casa e
viu a mulher junto à janela, conforme
era seu hábito, e compôs um, sorriso tolo e desleixado. «Olha como estou?
-exclamou ele -Não tinha sono e deu-me para andar por aí a passear; além de apanhar
uma molha, olha, apanhei
também uma porrada
de frio.» - Olharam os dois, picados
pela observação. Ela começou a vociferar. «Também escusas de dizer
o que fizeste mais, porque isso
não me interessa saber.» - Mas o olhar
dele silenciou-a. Depois de se pôr a caminhar em direcção ao quarto,
fechou a porta sem dizer
mais uma palavra.
Desta vez, o coração recompôs-se calmamente para grande
alívio de Golias que afirmou que as suas melhoras eram obra dela. «Lembra-te
do
157
que eu sofri por ti.», -exclamou. - «Um
homem deve sofrer
pela sua amante, não é, minha
safada?» - Mas a Rapariga
da Saca Preta não esperou
que ele continuasse para lhe responder:
«O teu mal é julgares
que és o único.», _ prosseguiu ela.- «Pois bem, meu querido, deixa-me desenganar-te, sabes bem que eu pertenço ao grupo PT.» - A ultima sílaba
que ela falava
feriu-o de uma súbita interrogação.
Golias perguntou:
«Pode-se saber o que significa essa coisa de PT?», - respondeu ela, já com modos diferentes, toda amabilidade. «Prostitutas e Tarados.»
_
Se ela ao menos dissesse que o desejava.
Ou, ao menos, que lhe apetecia
dar uma amostra
do seu amor.
E que nesta
noite, por ele
escolhida, tudo pudesse
ser como era
dantes, é que era fixe. «Então, eu porei fim às minhas tresloucadas aventuras
amorosas e tu deixarás de ser possuída
por esses mandriões que te querem
comprar, como se fosse um objecto que se vende na loja dos 300;
ficará tudo como de início; e até podes repartir
o teu leito com a tua
partenaire e ser a rainha do forrobodó, porque é que eu havia de sentir ciúmes
de ti, meu estupor, quando
te tenho desde
que te ligue para o teu
número do telefone e te pague, sabes
que basta-me uns minutos de gozo
contigo na cama para entrar logo noutro
planeta. Então, diz lá, minha
safada, só quero ouvir da tua boca urna palavra
de seis letras
apenas, o
que achas,?» -
«Come-me» -
Até o mamilo se iluminou, como um clarão vindo do sol e eles
uniram-se num só bloco carnal.
Não fora bem assim que Golias sonhara a cena, mas a verdade é que nunca imaginaria tal coisa. É como se os dois tivessem
cozinhado aquele combinado; mas que raio de foda,
pensou; que coisa tão louca.
Golias conteve-se um bocado. Aquilo
eram pensamentos a mais,
inspirados no erótico. Se ela estava
a querer puni-lo, pela sua falta de pontaria no bacanal em que estiveram juntos, era esta
a melhor maneira de se redimir. Devia simplesmente continuar, até que sentisse esvaziada toda a sua potência. Voltou a acelerar no carburador. Ele enlaçava agora a cintura
dela por baixo e de repente tivera
a certeza absoluta que a Rapariga
da Saca Preta estava com vontade de estrebuchar. A cabeleira castanha deixou de rodopiar
e o rosto dela suava em bica.
«Pára, passaste
das marcas», -prosseguiu ela,
ofegando um pouco. -
«Não há mulher que te resista
nem amor que te possa valer.» - 158
Golias, também ofegante,
com o suor a pingar-lhe da careca, deixou
-se cair na cama
de barriga para o ar. Chegou-lhe aos ouvidos o som do telefone à entrada do apartamento. Levantou-se e compôs a roupa para se
vestir, deixando a rapariga ali deitada. «Minha querida, sossegue
um pouco, vou atender
a chamada telefónica», -disse em jeito de despedida.
_ «Eu já volto.»
- Ele soprou um beijo com a mão na direcção dela e
pôs-se na alheta; ela, encostada na ponta da cama, pôs- -se a alisar
os cabelos. «Chamada telefónica», dissera-lhe ele, «Não é nada de especial.» -
«Seu pantomineiro», - berrou a Rapariga da Saca Preta
a Golias,
depois de ter .ficado à espera sete minutos e vinte segundos
de vigília no quarto. «Raios o partam.
Para que é que eu vim aqui dar cabo da minha vida?» -
Durante todo o dia, Golias
andou pelas cidades
a tratar de alguns
apontamentos para a sua actividade profissional; enquanto a Rapariga
da Saca Preta -flutuava na sua imaginação à sua frente nas pedras das ruas, como um artista da
passarela, um pouco acima do nível da cabeça
dele -lhe fazia
uma serenata romântica de amor, acompanhando-se de um guitarrista e de um viola, fazia-lhe
chegar aos ouvidos,
cantando de tudo, desde os faduchos de Neca Rafael à melhor música
da canção nacional.
Como o sensual fado-vadio cantado pela cantadeira Rosa do Tasco,
na presença do Grupo-Ramadolas-do-Fado, um clássico dos anos
setenta, em pleno Stadium, - no qual a fadista (depois duma garrafa
maduro já entornado no seu estômago) declara, perante a plateia dos presentes na sala, que o amor
impossível é sempre o amor
mais apetecível. -E Golias, que ela abordava
no jardim dos seus anseios,
sentiu que a música lhe ia
prendendo fio a fio o seu coração, puxando-o
para a Rapariga da Saca Preta, pois o que esta pedia era afinal
uma coisa bem pequena, como ela própria dizia. Chegou perto do banco dos correios e sentou-se, fechando os olhos. A Rapariga
da Saca Preta cantava o fado:
E tudo o que eu te dei foi o amor que mo doou...
Não peças
mais a mim, por favor, daquilo
do que já não sou Capaz de satisfazer os teus vícios;
E fugir aos teus encantos sem fim
Não peças mais a
mim, por favor.
Pois tudo o que eu te dei,
foi amor...
159
Golias levantou-se e começou a caminhar. De novo a imagem
da Rapariga da Saca Preta,
por trás das pálpebras cerradas,
atormentou-o com palavras mesquinhas que muito lhe custava ouvir,
mas não teve
outro remédio senão escutá-la; a sua voz arrastada e confusa dificultava a leitura... Gostaste da letra
do meu fado? Espero que compreendas que, para satisfazer os teus caprichos, só uma mula dessas que aviam dez homens a «lá minuta» é capaz de sustentar
os teus vícios - esse tipo de mulher eu não sou. -
«Então, quem és tu?» - Perguntou Golias
em voz alta.
«Sou apenas «mais uma.» -
Golias voltou a sentar-se, agora,
no banco do jardim e curvou a cabeça
para trás. Sentindo-se cansado, deparou com a sua consciência e viu, então, aquele nome saltar-lhe para a frente do cérebro:
Rosa da Tasca. Lembrava-se duma noite em que entrou
no Stadium para
ir petiscar algo. Eram quase
duas da manhã, quando viu entrar um grupo de artistas
e cantadeiras de fado que, depois de entornarem umas pingas, puseram-se a cantar ao desafio. Às tantas, a fadista resolveu
tirar os óculos e saltar para cima da mesa, dedicando
a ele um fado da dor de corno.
Pelos vistos, eram os ciúmes que ela
sentia pelo tocador da viola que a acompanhava. Na parte final da letra,
a fadista, ao desdobrar a voz, deu um passo mal dado no tampo da mesa,
estatelando-se no chão. Deu com
a cabeça contra a porta e ficou a sangrar abundantemente, indo parar ao hospital, onde ficou internada.
A corrente do trânsito passava
próximo dele e Golias
voltou a si e
encheu o peito de ar. Levantou-se vagarosamente do baco do jardim e avançou para a rua enfrentando o movimento citadino.
Padrinho, abrindo os olhos
pela tarde, reparou que já não estava ninguém em casa. Ligou
o rádio e, logo a seguir, saiu
da cama e pôs-se a cantarolar, tentando relembrar
as cenas da noite anterior. «Que noite
mais amalucada. E, para terminar, nada mais apetitoso que aquela motorista de taxi.» - Deu um sorriso e foi-se
lavar. Quando saiu do quarto,
vinha vestido, barbeado e penteado; quando nada mais lhe restava
que se escapulir dali,
deu uma olhadela
para dentro de casa e saiu em direcção
à rua. Para não voltar
tão cedo a casa, excepto
no fim, quando
chegasse a altura de regressar. Convencido que os assuntos
da escola seguiam
no
160
bom caminho, Padrinho
apercebeu-se de que lhe fora
retirado dos ombros um grande fardo; o seu humor britânico voltava rapidamente, de forma a poder
estar em forma perante os seus amigos. Ora bem: era tempo de
proporcionar à falange de amigos uma grande farra, pois quando eles
vissem o grande
Padrinho convidar toda
a gente para uma grande
festança, ficariam cheios de emoção e mortos por ir matar o apetite
com prazer.
Começou a preparar
a festa. Agora é que as coisas iam aquecer: a amizade de uns, a tirania de outros e, no fundo,
todos aqueles que queriam
arredá-lo da cadeira do poder;
sentia que o seu peso
começava a diminuir,
mesmo atrás da sua cabeça.
- Como era estranho que, apesar disso tudo, muito poucos eram aqueles que o olhassem frontalmente, embora,
no final do repasto, alguns deles lhe dessem palmadas
nas costas a agradecer o gesto. Era na
verdade uma falange de amigos que deixavam dúvidas. E como a relação
entre homens e amigos de Peniche é caso para se precaver - ganhar experiência e ficar a saber - não havia mais
nada que o bondoso e agradecido Padrinho
pudesse fazer para pôr cobro àquela situação. «Que gente esta! Alguém me tinha prevenido,
logo de início à jantarada, que alguns não iam aparecer. Que bando de mal
agradecidos, que só sabem fazer cagada e mostrarem-se que são
importantes. Pulhas de merda.» - Desabafara a um deles que abanou a
cabeça. Pois bem, ali estavam eles, os seus amigos, os bons, os maus, e os vilões. O resto ficaria
para a história.
Padrinho foi transportado num carro dum amigo à soleira da porta da Pina-Colada, bastante
chateado, com muito nervoso à mistura, com a razão pelo seu lado e, para acalmar,
pediu à empregada um whisky velho só com gelo. «Quando preciso de desabafar, a patroa da casa nunca está!» - A empregada
encolheu os ombros e conseguiu
pôr Padrinho a rir. Depois, arregaçou
a perna direita das calças
e pôs o joelho à mostra,
anunciando enquanto encostava
a perna à dele. «Desabafe para aí, eu cá
estou para o alegrar.» - Padrinho usava
óculos de cineasta,
mas via bastante bem ao perto.
E aquele joelho
merecia uma leitura
mais perfeita.
«Se é assim, já nos entendemos melhor.»
- Foi a terceira rodada
que silenciou Padrinho, abrindo a boca
para dizer a frase mais
velha da história dos bares: Serve-me o último copo para a estrada,
e a empregada
foi buscar a garrafa e voltou a servir
mais uma rodada.
Abriu a boca
e mandou
161
abaixo dum lance só.
«Foi muito simpático
da sua parte ter trazido
o Padrinho cá ao bar.» _
Disse a empregada
ao amigo dele que demorou
algum tempo a perceber
onde ela queria chegar. «Beba um copo, também.» -
«Com certeza! Ponha aí o que quiser que eu bebo!» - A empregada batia as palmas. «Você manda nesta casa o cliente só ordena.» -
«Não sei se já ouviste
contar a história do Chupador das Vaginas Carecas, aquele paranóico que diz que a vagina da mulher sem pêlo é
mais higiénica e, então, quem
puser pó de talco é uma maravilha, um tipo sai de lá feito
num pasteleiro!» - A empregada do bar, comendo
um pão com uma fatia de carne assada, brandiu um copo de sumo da laranja diante do nariz da Preta, a partenaire da Pina-Colada. «Parece que é um
drogado chamado Chicras,
dizem que a polícia, quando
o interrogou, perguntou-lhe: «Então,
é você ou não o Chupador? E ele respondeu, com um sorriso maldoso:
Você é alguma mulher
para saber? Dizem que os chuis lhe arriaram no físico dizendo
que ele estava
a mentir.
«E que é feito dele?» - Perguntou a Preta.
«Anda por aí a monte.
Sabes que todos
os drogados acreditam que seja ele.» - Respondeu a empregada.
«Mudemos de conversa. E aquela cena de ontem com o cliente que levaste para a cama a troco
dele dizer que era o Príncipe do Minete, é das
tuas relações nocturnas? –desculpa-me ser directa no assunto, mas doutra forma não entendes
- acho que ele
precisa é duma mulher do estilo
da Dama da Língua.» -
«Pelos vistos,
eras bem capaz de o deitar a vaguines
não eras?» -
Ripostou a empregada.
«Hmmm», -resmungou
a Preta, exibindo
a sua expressão de mula de
modo a enfurecer a outra. «Não faz o meu programa.» -
«Não te preocupes, ele já tem tudo o que lhe faz falta.» - Calou-se de repente, com um nó na garganta, e foi com a voz alterada, muito
baixinho, de olhos postos no prato de sopa em que ainda não tocara, que disse a
ultima palavra. «é loucura».
«Ah, o poder do amor»
- Disse a Preta, dando
uma palmadinha no ombro (que logo se esquivou) da empregada. «Começas agora a experimentar essa boa coisa
que existe. E quem é que havias
de ir escolher?» - Atacou
162
1Deitar
abaixo.
De novo. «Um profissional. Aprende
miúda! Os homens
estão sempre prontos
a exigir privilégios especiais, mas esse abusa.»
- A empregada já não escutou as ultimas palavras
pois fora atender
o próximo cliente
que entrara no bar.
Um dos motivos pelo qual a empregada do bar da Pina-Colada não mais largou o Príncipe do Minete fora o facto
de haver nele
uma expressão dura e um olhar esgazeado, que a impressionaram profundamente. Ele
enfrentara com toda a sua descontracção a sua
taradice, não a largando um só instante (pelo menos, por enquanto) e só tinha olhos para ela, que 0 considerava o seu «grande
e louco amor». O Príncipe do Minete
jurou a si mesmo fazê-la feliz e aguentá-la até ao fim dos seus dias. E ele era de
facto o mais dócil e diplomático dos clientes, algo drogado em consequência da medicação para o caruncho
administrado pelo
farmacêutico da zona, dormindo quinze
horas por dia e acedendo, quando acordado, a tudo o que ela lhe pedia, fazendo-lhe todas as vontades com rigor e disciplina dum verdadeiro profissional. Nos momentos mais
lúcidos, levantava-a ao ar e percorria-lhe todas as partes do corpo com
a língua, classificando cada parte do corpo dela como um continente. «Ü Oceano Atlântico é o mais
brando deles todos
mas ali o Oceano Vermelho
é o mais esquentado e explosivo.» - Dizia ele, seguindo a marcha com lentidão.
«Amará quem sabe explora
r o seu amor!» - Murmurou
ele ferrando-lhe no umbigo.
Quando ela estrebuchou, ele prosseguiu a sua
lambidela até ela ficar doida de prazer
e pronunciar versículos
mouros, língua que não sabia: chu-pa-aí-ui-que-goso, ago-ra
não-pár-es, pondo-o com os cabelos
em pé: «Ele aí vem, o leite 1...» - Ele encarava
cada sessão nocturna como uma obra de arte de um artista genial
até à raiz dos cabelos. E deu tanto à empregada do bar da Pina-Colada que esta
teve que ser socorrida pelos
psiquiatras do Centro
de Saúde. Eles ficaram
com a impressão que o Príncipe do Minete estava
no caminho do esgotamento total, a ponto de ser visto como o próximo
cliente a ser internado no Hospital de Conde de Ferreira (Manicómio). Ela, por seu
turno, perdeu durante
algum tempo a sensação aborrecida de estupidez absoluta, de ter ido longe demais
com aquele conto
estranho e inédito; ao meter-se com o Príncipe do Minete, galardoado como o Rei do
Linguado, como dizia para consigo
própria, ao pensar que se tinha excitado tanto na luta
do seu amor. O mais
provável era esquecer
e partir para outra.
163
O homem das ideias, Voz Calada, brilhante génio das invenções
de aviário, (foi ele quem levou Padrinho
ao bar) era agora o seu motorista particular e tornou-se uma visita assídua
- duas a três vezes semanais _ durante
a convalescença que Padrinho fizera
para tratar da cura de um
certo enfartamento do seu quotidiano. «Ele daqui por uns tempos vai
ficar super-bom», - dizia Voz Calada a Pina-Colada, a dona do bar,
esfregando as mãos quando o olhar ganhou brilho ao ver o copo de whisky
JB 15 acima da medida,
em cima do balcão. Durante
algumas horas, Voz
Calada começou a beber whisky e a comer diversas
iguarias que o bar
tinha à discrição dos clientes, como por exemplo:
-pipocas, línguas
de gato, amendoins com casca, caju com piri-piri, biscoitos, língua da sogra,
peles de bacalhau recesso - para um Voz Calada
cada vez mais esfomeado. -E tornara-se claro que não demorou muito tempo a falar de tudo e sobre todos,
fazendo referência a este ou àquele nome
sonante; que R. Veloso só gostava de fazer «meninos», e o genial
Abrunhosa tinha feito
embirra de não mostrar os olhos às suas fãs.
Amália, Pinto da Costa,
Futebol, Ratazana, foram
todos evocados.
«Uma estrela deve
estar em paralelo às outras estrelas.» - Voz Calada era ele próprio
uma estrela viva, como a empregada
do bar soube pela boca de Padrinho, na noite em que ambos
lá estiveram a beber. Sendo uma
figura bem-falante do seu ofício,
tinha conseguido lançar
uma série de «ideias»
de boa qualidade, vivendo de puras
vigarices constantes, até que
há pouco tempo
resolveu mudar de profissão e passou a ser o motorista de Padrinho, sem que alguém
percebesse bem porquê,
mas não pareciam importar-se muito com isso.
Uma vez ele esmurrara o carro
da marca Mercedes - por negligência de condução - ao querer entrar
com ele na Travessa dos Caldeireiros, local normalmente acessível
a carrinhos de mão
e assadores de castanhas. Nunca
ninguém soube como ele conseguiu sair dali com o carro. «Procure
outra profissão que não
motorista, porque a sua condução
é medíocre.» - Disse o proprietário
do carro, no dia em que o despediu do emprego.
Presentemente
era conhecido, graças
a uma serie de ideias
e anúncios publicitários baseados
nas suas fantochadas Aprenda a Ser Criativo
- O Mundo dos Não Criativos -um almanaque ao estilo das histórias do Tio Patinhas
e sistematicamente imaginoso. Amiúdas vezes falava que
tinha contribuído com ideias para o cineasta
Manoel de Oliveira
nos seus filmes de cores
nacionais, e trazia fotos na carteira do filme O Tubarão,
Chinês Limpa Limpou Limparás, mestre
em limpezas domésticas na televisão
164
E herói de Voz Calada
que, ás vezes,
até era incapaz
de repetir o seu nome. «Ás vezes, diz tantos Limpas, que já nem sei
quem é que ele vai
querer
«limpar»!» - Gracejou
a empregada do bar para a dona Pina-Colada
que começou a rir-se. «Acho que já é a pinga a falar por ele.» - Acrescentou ela.
Pina-Colada
sentia-se grata pelas atenções dele. O genial
homem de ideias parecia
dispor de todo o tempo do mundo, enquanto ela já estava cheia de o aturar
mais às suas histórias malucas. Combinara um encontro
com uma bailarina e dissera
à empregada que ia cear qualquer coisa ligeira como -sumo de leite,
torrada com marmelada, um café de saco - tudo nas loja dos combinados, conforme o perfil dela.
Por isso não perdeu tempo e desmarcou-se de Voz Calada
acenando alegremente com um
dedo no ar.
«Eu vou-me indo, deixe-se estar à vontade
e dê cumprimentos a
Padrinho que tenho muitas saudades
dele.
Ela saiu e deixava-o ali a entusiasmar a assistência com o
seu
inesgotável repertório que nunca
tinha fim. Voz Calada
acabou por trazer
a lume um tema interessante; nomeadamente um conjunto
de afirmações sobre o problema dos alcoólicos portugueses. «O problema dos
Portugueses é beberem demais, por isso eles não conseguem
parar de beber. O segredo duma boa pinga é ter bebedores
em maioria sentados a uma mesa. Se eles estivessem em minoria já não tinha
o apetite da maioria e assim bebiam
menos. Quem quiser
ver, que vá aos tascos
ou às tabernas ver quem bebe mais e sabe logo o problema
dos Portugueses. Éque eles
são loucos mesmo de nascença
por mamar. Enchem
os copos e as malgas e depois só se vêm os jornais
cheios de sangue e mortes pelas estradas.» - Esta profundidade de análises e ideias feitas com um tom moinante irritou profundamente Preta, até ali calada e silenciosa, a ouvir a conversa. Resolveu intrometer-se, perguntando se a única coisa
que ele conseguia ver num bêbedo eram
todas aquelas atrocidades! «Não, isso não», - admitiu Voz Calada com um sorriso
de troça. - «Há dias apanhei semelhante serapilheira e. só para não acordar a patroa, tirei os
sapatos e deitei-me a dormir
no carro sem fazer o mínimo de barulho.» -
Tinham contactado, via telefone, alguns colegas da actividade
comercial, aqueles que Padrinho deixara
pendurado quando tomara
conta da escola. «Ficaram
felizes com a notícia de que estás
porreiro de saúde.» -
165
Comunicou Voz Calada a Padrinho. «Infelizmente, levanta-se 0 problema da violação dos contratos.» - Mas havia
mais partes interessadas em processar Padrinho, exigindo-lhe grossas maquias, especialmente os gabinetes governamentais. «Com este dinheiro todo, melhor seria irmos
passar umas férias às Ilhas Maurícias.» - Disse Voz Calada
com um sorriso amarelo entre os lábios.
Padrinho, estava ainda um pouco
zonzo por causa dos medicamentos.
«Vamos ter calma», -esclareceu Padrinho, prosseguindo - «Em pequeno
sempre me disseram:
os cães ladram e a caravana passa .» -
Segundo Voz Calada,
ninguém lá na terra
estava interessado em processar Padrinho,
em levar a tribunal a galinha de ovos de ouro para muitos deles. O problema
vinha da coroa, segundo parece,
a nível ministerial. Todas as partes reconheciam que os projectos já não se coadunavam com o tempo actual: administradores, professores, alunos e até
mesmo os técnicos
das maquinarias. Em suma, era tempo de Padrinho
pensar em sair do seu retiro e entrar na reforma. «Não era má ideia, não senhor», -explicou Voz Calada a Padrinho
que se sentara numa cadeira
afim de pôr as ideias
em ordem -«Se eles avançam e te deitam a luva, nem a tua boa fé chega para te
salvar do suplício.» -
Voz Calada conseguira
que lhe fosse atribuído o lugar de chefe de equipa, e tinha todos os poderes
para o representar perante os outros
que faziam parte da escola
de formação.
O empresário sediado no Algarve,
Sábio Sabichão, manifestara grande interesse em investir
na formação de alunos tanto em escudos
como em dólares,
negóciofifthy-fifthy, obtidos através de vários robots de fabrico
timorense e que Sabichão
comprara em sistema leasing. (com um prazo dilatado de vinte e cinco anos) em troca do pagamento em dólares. Todos os técnicos
das maquinarias entrariam
também com algum
dinheiro para aprenderem a lidar com os robots e, no final de
cada curso, receberiam um diploma para-morcão-ver, devidamente encaixilhado
em alumínio e assinado pelos administradores.
Os primeiros robots
repartir-se-iam pelas duas secções -Comercial e Industrial. -Padrinho ficava com direito
a que o seu nome a relevo continuasse a figurar na escola e a dez por cento e mais despesas
de ocasião, para além da sua quota-parte no negócio.
166
«Mas qual é o meu
trabalho?», quis saber
um técnico. «Meu
querido amigo», - disse
Padrinho - «Ó Sr. Voz Calada
vai-vos apresentar o projecto.» -
O projecto previa uma série de encomendas aos três níveis;
ao mesmo
tempo, queria-se um trabalho inovador
e categórico, no mínimo, com estilo
da arte. «Deixem-me dar-vos uma ideia», - disse Voz Calada coçando
a orelha - «E que
tal: Cristas de galo
nas palmilhas do sapato,
Redenho de porco nas mangas
da camisa e um Comutador da merda para invertê-la em dinheiro? (A maior invenção do século XX)» - Voz Calada ficou um bocadinho curioso
a olhar para eles. «As grandes
tinhas da moda saem da cabeça
dos estúpidos.» - Aquilo era o máximo para o técnico 'dos sapatos. «É fantástico»,
- exclamou ele e o outro disse:
«Fabuloso.» -
A ideia correu
pelas várias secções,
centrando-se cada um deles na sua
missão de colocar
os robots a fazer a mão de obra mais barata e, ao
mesmo tempo, satisfazer as encomendas.
«Isto nada tem a ver com aquilo
que sonhamos mas, de momento, qualquer ideia faz jeito.»
- Exclamou Padrinho,
parando de anotar alguns apontamentos no bloco. Voz Calada parou de fumar o cigarro.

«Num quê?» -
«Num caixão
de madeira.» - Era a outra maneira
dele se escapar.
Assim renasce uma amizade. «Padrinho! É um enorme prazer
conhecê-lo» - Sábio Sabichão
foi uma surpresa:
não era já o messias da vida mundana com o cabelo
cheio de gel e os dedos dourados;
estava discretamente vestido com um sobretudo que era maior
do que ele, usava chapéu à Búfalo Bill e, em vez de bazófia de taberna que Padrinho
esperava, deu mostras de uma fraqueza preocupante. Tinha deixado crescer o cabelo que lhe dava uma imagem de Judas
do Agramonte.

167
Sabichão apertara calorosamente a mão de Fífia e depois precipitara-se na direcção de Voz Calada,
abraçando-o num ímpeto para não cair ao chão. A sua companheira, Estica do Castelo,
foi
bastante
menos
entusiástica. «A mesa está
pronta. Temos
frutas, alheiras de Mirandela
caracóis do Mindelo, vinho do garrafão e muito mais. Ponham-se à
vontade.» -
Era assim mais ou menos como ela dizia, pensou
Padrinho. A sua posição inicial
em todo aquele
projecto revestia-se no interesse que ele
próprio manifestara. Pelo seu turno levava o pessoal todo da escola a aceitar a ideia, afirmando que talvez fosse
a maneira dele vencer aquela batalha - e livrar-se
das pragas - que o atormentavam e que para ele
poderia ser muito benéfico.
E o modo como Voz Calada se intrometera nas narrativas e contos de anedotas poderia ser considerado positivo
para o bom engrandecimento do convívio,
e talvez se tornasse mais fácil para todos que encararam
aquelas histórias artificiais boas para o cinema.
No fundo as coisas não correram tal e qual como previam
os planos. Fífia deu por si incomodada com o à-vontade com que Sabichão
se atirou a ela, inclusive, levou a mão por debaixo da mesa, apalpando-lhe as coxas.
Mimi foi mais descarada ao ponto de enfiar a sua mão no bolso das calças de Voz Calada. «Está doida ou quê?»,
- dizia ele, mas
ela insistindo, perguntava: - «O que é que foi? Não gostas?»
- Vá lá que acabaram
por não serem apanhados, senão era o raio do caneco.
Passaram dois dias
no novo apartamento de Padrinho, de apenas três pequenas divisões, cujo requinte
era a retrete coberta de latão e cobre,
situado num prédio
antigo na zona
de Serpa Pinto,
denominado «Zaire»,
forrado o chão a tacos de madeira
e tinta nas paredes. A aceitação
passiva, por parte de Padrinho,
de toda esta transacção comercial
era no fundo para deixar para trás aquilo
que para ele manifestamente
considerava uma segunda
escolha de vida,
quando resolvera acabar
com alguns vícios, tais como: guarda-costas, acompanhadores de copos, motorista, criada diária e hotéis com pequeno almoço
servido no quarto, em bandeja de prata
e gratificações abonadas.
168
Padrinho espreitava nas páginas dos jornais e revistas e écran da TV, na presença dos acompanhadores de copos, mostrando
curiosidade de saber - Como Vai o Mundo. - Às vezes ele detestava tudo aquilo e punha-se a falar para
si mesmo: «Não te rales,
pá!», -dizia tranquilamente afundando-se no sofá todo roto e tão largo que cabiam
lá seis pessoas -
«São só notícias de caca para encher o programa.» -
A sua ligação
às mulheres da noite fez dele um curioso. À medida
que o tempo avançou (entre
ele e Fífia), começou a dominá-lo aquela desconfiança irracional, descontrolada e cega, que até os «Mikis» do Rato Mickey
e o Popeye da banda
desenhada originavam briga entre eles. De cada ve·z-que se desencontravam, ele fazia-lhe urna data de perguntas mais estrambólicas, querendo
saber, com quem é que foste
hoje, já deitaste ali o carniceiro abaixo,
aquela fuinha da mirolha ainda não foi na tua
lábia?... Fífia sentia-se encurralada com tantas perguntas chaladas, que se deixou pregada
na cadeira a olhar pró tecto. A nova
mudança na vida de Padrinho e agora também, noite após noite, este tratamento não lhe faltava, deixando-a com vontade
de dizer: Então e eu? Só sirvo para criada de recados? À beira
dum nervosinho miúdo, resolveu dar de espiante e ausentar-se por uns dias.
Outra das suas ligações
amorosas era Pina-Colada, a dona do bar da zona centro da cidade e que lhe havia dado toda a sua amizade.
A um canto da sala, lá mesmo nos fundos, Pina-Colada, quando o viu, serviu-lhe urna bebida e sentou-se ao seu lado,
oferecendo-lhe um pouco de companhia.
«Já em tempos falamos disso», - disse
ela sem vontade de bater naquela tecla -«Uma mulher nesta
vida não pode
fazer planos, sem correr o risco de ir parar ao malagueiro. 1»
-
Ele respondeu-lhe:
«Estou a ver que para ti não existe
o amanhã nem o futuro.»
- E ela confessou: queria dizer para
ele deixar de exprimir certas
coisas mas não era
capaz. Não só por tirar-lhe
a esperança vã, como sentir
por ele uma paixão bacoca, conforme
ela preferia dizer.
«Não pensas ter um filho?»,
-disse Padrinho pondo o dedo na ferida. A principio Pina-Colada protestou: - Mas qual é a tua? - mas depois, acalmou-se, bebendo um pouco
de whisky e limpando a boca ao guardanapo
ICharco.
169
de papel que trazia entre as mãos. «Quero ter um filho, mas só meu,
e da Preta!...»
«Tu deves é estar doida dessa cabeça.»
-Insinuou Padrinho.
Havia quanto tempo
que não falava
assim. E desta
vez, quem sabe,
se não seria a
última...
Quando descobriu, por um relatório encontrado por acaso
na gaveta da sua escrivaninha, que o Juiz
das Finanças começara a mandá-lo seguir, Padrinho rabiscou um bilhete - estas coisas liquidam-me - e meteu dentro do relatório, que deixou em cima do monte de papeis; e foi-se
embora sem dizer agua vai, agua vem. Estava na altura de preparar
a estocada final e preparou-se afincadamente para entrar em cena,
contactando uma série
de empresários apresentados pela mão de Sábio Sabichão
numa reunião de negócios.
O ponto alto do programa
foi anunciado no último minuto e dizia respeito à venda da escola de formação, de que andava,
havia semanas, a preparar
o relatório de contas. Os rumores acerca da identidade do Juiz do Ministério Público, foram cuidadosamente preparados e
devidamente controlados pelas relações públicas
de Sabichão. A agencia
de publicidade de Voz Calada tinha
sido contratada para
coordenar uma campanha
gratuita na rádio e colocação
de cartazes gigantes
na via pública. Pretendia-se levantar amoral do Gabinete
Ministerial da Comarca
- vendo-se na praça,
a árvore da forca e uma corda ao dependuro -o clarão do próximo passo
para o regresso ao inferno;
paragem seguinte, debaixo dos torrões.
O problema maior foi que, a seguir, Sábio Sabichão foi preso em
Marrocos por causa das suas vigarices. Voz Calada,
ao ler as noticias sobre o caso
nos jornais de sábado, engoliu em seco e telefonou para a escola onde
Padrinho ensaiava um novo tipo
de contas para se prevenir contra os encargos fiscais.
«Sabichão foi preso»,
- insistiu ele. -Todo o comportamento dele não me enganou, era teatro e golpe do baú. Aquele
Judas de Agramonte
é um principiante de raiz. Meu Deus, como é que a gente se deixou levar por aquele dez reis de gente?» - Mas Padrinho
mostrou-se frio e reservado no seu raciocínio, preferindo aguardar por mais informações, para se certificar onde morava
a realidade dos factos.
170
No Central Parque,
um teatro de luxo todo ele pavimento
de taco chinês e espelho fosco nas paredes,
estava repleto de público sedento para assistir ao grande espectáculo variado da época. O engenho de Voz Calada em arranjar
dois bilhetes para o show; foi só possível
comprar na candonga duas frisas pelo triplo do preço real. Mesmo assim valeu a pena, pensou ele. Depois deles transporem as grandes portas de aço inoxidável, deram-lhes um camarim que tinha colado
na porta uma estrela
de cinco pontas. Logo de seguida, o locutor apresentou
o programa. - Os palhaços aos pinotes no cenário do Circo Arroyales; As Manas Fífia e Não Fífia (nada tem a ver com a outra),
dançando ao som das cornetas dos tocadores, uma-entrevista em cena com a vedeta
Firmina a opinar
que a mulher é vulnerável depois de despida - «A mulher nua e, depois
duma boa troçada,
não sabe o que diz nem sabe o que faz; é um perigo público, mete tudo ao barulho e troca
os ás pelos bês !» - E chegou o
momento de entrar em palco, a artista
internacional vinda directamente de Paris: Paola Maria.
Gente de todas as cores e feitios
variados aplaudiram a artista do flamengo. Padrinho
olhou para a sala cheia de
público requintado, reconhecendo os empresários pelas
gravatas italianas à volta das camisas de seda, os artistas pelos seus penteados exóticos e coloridos e os viajantes (como ele) porque
não sabem vestir,
«todos eles são cor-de-rosa e douradinhos.» - O espectáculo descera à cidade.
De volta a casa, quando
Padrinho o deixou
-ou melhor, o apeou à porta
-viu-se a caminhar pelo
caminho e sentiu-se lento, pesado, alheado
até da sua própria consciência e, então, percebeu que não fazia
a menor ideia de qual o caminho que ia tomar
para chegar a casa. Os médicos tinham errado,
agora compreendia ele, quando lhe diagnosticaram
caruncho na garganta; o problema não
estava nele (nele,
homem) mas sim, na maldita garganta. Quando iniciou adescida em direcção ao prédio onde morava, lá em baixo,
exclamou a sua primeira dor - Vocês não sabem mais, o génio é que sabe - e ouviu
o eco da voz, por assim
dizer, em estereofonia, no preciso instante
em que sentiu
o sinal menos
e viu o universo a cair por
cima da sua cabeça.
A versão oficial
do que depois se passou,
e que todos os órgãos da
comunicação oficial aceitaram, foi que Voz Calada
tinha sido retirado do
171
caminho por uma ambulância e conduzido ao hospital
mais próximo d,, zona e ao qual não chegara
com vida. Esta versão teve importante página1 de destaque
no pasquim GAS. O relator
encarregado de dar a notícia aos amigos sublinhou que, depois da descida da urna de Voz Calada,
0 carro fúnebre permanecera no cemitério durante
alguns dias, provocado pela exaltação
dos seus fãs; e tinham sido pagas somas substanciais ao pessoal da agência fúnebre.
A notícia de que Voz Calada
deixara este mundo e desaparecera sem deixar rasto
no meio da terra espalhou-se rapidamente entre os inventores e fantasistas de ideias. Não foi de estranhar que, pouco depois dos sete dias
passados, os vendedores de novidades vendiam
já bonecos descritivos com design (preto e branco) guarnecidos de asas de anjo em que se lia: As ideias não morrem...
Estava a ficar quente e escaldante o ambiente à porta do bar! -Agora é
que iam ser elas, esses chulos dos azeiteiras que se tinham metido com
ele à porta dum bar! -Olhou para eles e sorriu
para o seu acompanhante. O problema
dos chulos era cheirarem a azeite: raio de gente essa! - Passam todo o tempo na cama com as amantes no «sobe e desce». - Mas agora estava ali com ele o grande Sansa-Cagão, um indivíduo de um metro e meio de altura por cento e vinte quilos de
peso e usava o pseudónimo de Sansa, em memória do bíblico Sansão, só que, como ele
era pequeno, os amigos eliminaram a ultima letra.
«Que é que
quereis, cambada de chouriços sem nível?» - Pois bem: ia
mostrar-lhes toda a força - A dos seus músculos -Estes chulos só têm
é letra e conversa de ilha.
O lutador, o boxeur da rua, é um indivíduo capaz de derrubar
uma cambada de mulas à galheta
e mandá-las todas para o maneta! Já não
havia homens capazes de fazer tremer os lutadores da rua. Havia que
dar uma lição àquela corja
de esfomeados.
Era o Sansa-Cagão, era Padrinho.
-Ides levar uma lição.
Os adversários, de rostos ameaçadores, surgiram ante os olhos deles. Uma cara de tísico, com os lábios contorcidos num sorriso de estupor,
mandou para fora da boca um palavrão. «Pensas que nos assustas, ó pote da merda? Ponho-te
já a dançar, queres ver?» - Mas Sansa-Cagão não
172
·ra 0 estilo de adversário que se deixava
amedrontar por palavras; ele era um ser que, com um caneco a mais, se odeia a si próprio e só está bem a
dar cacete nos outros.
Deste modo o indivíduo tornou-se agressivo.
Primeiro, eu dou-te
o ritmo!» - Deu um passo em frente e, com as suas
grossas mãos, enlaçou o corpo do tísico e atraiu-o a si, espetando
..sernelhante cabeçada na cornadura que o adversário logo caiu por terra,
sangrando como um porco.
«Que tal? Dançaste Mambo
e agora
queres dançar o Malhão?» -
...Não! - Gritou ao rolar nas pedras da rua, espantando o periquito no passeio.
«Chega, seus medricas
ou quereis levar mais nessas ventas?» -disse
ele voltado para os restantes adversários, que estavam
arrepiados de medo. Este Sansa-Cagão não era nenhuma pêra doce.
A verdade é que ele, para a cabeçada, era um autêntico
demónio. -Era
um boxeur, por isso se revoltou. -
ópernas para que te quero! -Os adversários deram o fora
e piraram
se à má fila.
Com tal oposição, não havia hipóteses de fanfarronices. Como ele tivera razão, por exemplo, em banir aqueles
facínoras, pois como Padrinho dissera: Ides levar uma lição,
não houvera dúvidas que a lição
fora bem dada. Agora, só restava entrar
no bar e beber para animar.
-Só mesmo lá dentro, no
calor do ambiente. - Como ele, Padrinho e o
acompanhante, gostavam de conviver.
Whisky de 18 anos só com gelo! Puríssimo!
E que mais havia de faltar ? -Ora bem, o problema deles era apenas
a
manobra.
Padrinho, olhando à sua volta, confrontou-se com a opinião de que o
jogo das mulheres da noite
tinha a sua origem na carteira.
«Quando o cliente
não puxa das lecas 1 à vista grossa», -explicou ao outro
-«quando o cacau não reluz como a luz dos candeeiros, é evidente que a mulher
deixa-se adormecer e não vê nada à sua frente.» -
Padrinho enumerou diversas
vantagens sobre o sistema ao seu
acompanhante que o ouviu atentamente. Numa instituição de vício e prazer,
onde os modelos
de comportamentos variam entre a casta de clientes, é deveras
importante: música popular ou enlatada
de boa qualidade, caras giras e atraentes (de preferência, nacionais).
Mais higiene
e limpeza na sala e nas retretes,
jarros de flores
berrantes
!Dinheiro
173
(cor de pêssego
com lilás) a adornar os cantos. Um novo sistema sem
pagamento de alternos e contas
vultosas, ar condicionado e ventoinhas de tecto em todas as divisões,
separadores para os fumadores e não
fumadores. Maior atracção
do mercado, melhores
bailarinas e uso de
água destilada para os pés, além do papel, nos quartos de banho e bolas
de naftalina para os mal cheirosos.
Desvantagens:
chatos, lêndeas, baratas,
barulho, chulos, preços em demasia.
O acompanhante estava de boca aberta. Abrindo os braços,
gritou:
«É assim mesmo.
Diz-me lá, ó parceiro, onde mora uma casa dessas?» - Mas três coisas aconteceram, muito depressa.
A primeira foi que pararam
de conversar. A segunda foi que, assim que a garrafa acabou,
eles pararam de beber.
E a terceira
foi que Padrinho abriu os olhos e olhou para o relógio;
os ponteiros passavam do limite e ele achou que era tarde demais.
«ÓMeu Deus, a que horas é que me vou deitar! »
Ele, mal chegou
a casa, meteu-se
na cama; sentia-se para lá dos
confins do sono, mergulhado de cabeça enrolada entre o travesseiro e os lençóis, com a miragem da cena do bar. Para lá do acontecimento tenebroso, passara horas de bom convívio.
«É um vício lixado; os bebedores atraem os bebedores», - disse o seu subconsciente. - «Nunca mais ganho
juízo.» - Deu uma volta
para o outro lado da cama. Por fim, lá deixou escapar
o ultimo
suspiro da noite.
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