Saturday, September 15, 2018



Ela pôs-se a mijar em cima do tapete e, a seguir,  desaparece11 calmamente para fora.» - Padrinho contara a ela a história num tom franco  e risonho, sugerindo, em princípio, que a tempestade não Se desencadeava.
O certo é que ela não parava de contar histórias e ele foi obrigado a
gritar-lhe: «Agora chega», -disse ele. -Vou-me embora.» -
Apertando bem o cinto da gabardina ao corpo, seguiu a passo rápido pela rua em frente. O nariz de Padrinho, escorrendo pingos de orvalho começou a latejar dolorosamente. Nunca fora capaz de suportar o frio. Deu por si a murmurar uns versos que lhe saíam à memória repentinamente,

M orrerá quem suporta o frio? Quem, não se alheie ao abandono,
Embora a ele condenado? Tu também farias isso, E te tornarias um oculto, de qualquer das formas, Mas longe do frio, onde pudesses trocar,
Um pouco de sossego e de paz ...

Ele próprio não saberia dizer melhor.
Qualquer pessoa que desse por si no meio da noite, ao relento, a falar sozinho, diria que ali ia um maluco... pôs-se a limpar o nariz a um lenço de papel, e murmurou:
«Devias era ter ido para poeta», - opinou voltado para o candeeiro da rua - Podias muito bem ter tido êxito. Eu sei escrever embora só tenha a quarta classe, mas que raio? Uma pessoa não precisa de ter muitos estudos para saber dizer uma dúzia de frases bonitas, não é? É claro que não sou burro de todo; por mais camelos do que eu a pastar que não vão a lado algum mas eu cheguei lá! Mais longe do que eles pensavam, disso tenho a plena certeza e mais digo: esses nem daqui por cem anos chegam onde eu cheguei, disso garanto-te, palavra de Padrinho.» -
Ele desvaneceu-se da fúria e até lhe deu para fumar um cigarro, puxando primeiro pela aba do chapéu para a frente da cabeça, enquanto tirava umas fumaças de fumo para o ar. Nesse instante, reparou que duas

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pessoas o olhavam com curiosidade, a primeira um jovem de aspecto aguerrido, com roupas de couro guarnecidas com letras em relevo, um cabelo cortado à pica e uns olhos de esfomeado; a outra, uma mulher de meia-idade com um guarda chuva na mão.
«Vocês tiveram azar», -gritou Padrinho. - «Pois fui assaltado ali atrás e fiquei teso como um virote.» -
«És mais desgraçado do que nós», -disse o Pica lançando uma pedra contra os sapatos dele. - «Ao menos, deixa ficar o tabaco.» - Depois dele ter pegado nos cigarros, retomou o seu caminho; enquanto a mulher retrocedeu uns passos para trás e disse: «Tenho a certeza que nos estás a enganar, mas a tua cara ficará guardada no meu espólio, ouviste, 6 gamão? 1» - Pelos vistos, aquela era uma noite recheada de atractivos, compreendeu ele com surpresa. «Mas que noite! É caso para eu dizer: o que mais falta para vir?» - Tomou o silêncio dele como meditação e sumiu-se por entre a escuridão da noite.


Padrinho ficou persuadido de que sair à noite sozinho era um perigo numa cidade como o Porto. E, tendo em conta aquilo que viu, a esmurrada no nariz, perseguido pelos «Picas», a ceguinha a pedir esmola, a amiga das anedotas, Padrinho ficou mais decidido a recuar caminho e mudar de direcção, seguindo até ao Sul; mais propriamente dito, para a sua morada. Padrinho tinha a certeza que ali não o incomodavam.

E a cidade, na sua forma moderna de estilo genuíno e invicto, recusava-se a submeter-se à corrupção e ao domínio dos chouriços e insurrectos que vagabundavam pelas zonas menos frequentes de transeuntes, impedindo por isso, Padrinho de passear a seu bel-prazer pelas ruas solitárias, durante a noite. Havia dias em que, ao virar duma esquina, estava um ladrão à espreita  mas, noutros dias, aparecia uma florista com uma flor que punha no peito duma pessoa, acrescentando: «Segue em paz, irmão, e que o passeio te faça bom proveito.» - Ele atravessava aos tropeções por entre as ruas e vielas cheias de lixo e pedras no chão da zona da Banharia e Viela do Anjo, nas quais, para grande consternação dos ardinas dos jornais , começara de novo a cair a chuva aos potes, abrindo

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brechas por entre a terra enlameada, vendo-se alguns buracos nas rua:\ Padrinho dizia mal da sua vida e amaldiçoava aquela noite em que resolveu sair de casa para espraiar um pouco de ar. Foi num triste estado em que chegou à estação ferroviária de São Bento, roupas encharcadas, pés molhados, nariz a pingar pingos de água, berrando para o motorista de táxi: «Chega aqui, ó minha besta!», - berrou mais alto. - «Deixa de dormir, meu calhorda.» -
Devia ser manhã cedo, porque os trabalhadores da estação apareceram diante dos seus olhos a transportar malas e outras embalagens de serviço. Padrinho entrou para o do taxí, arrastando os pés e mãos dentro da gabardina e ergueu os olhos para o motorista.
«Bom dia», -exclamou ele. - «Há dias em que não se deve sair de casa - O motorista não respondeu e pôs o carro a trabalhar e, depois, seguiu a indicação dele, com destino ao Sul.
Chamava-se Olga, tinha vinte e cinco anos, o filho de seis anos vivia dependente dela, especialmente agora que a ama do miúdo se metera com um vagabundo qualquer e «arranjara sarilhos». Olga era motorista de taxi e a primeira rapariga a instalar-se ao lado dos colegas do volante, sem preconceitos pelo facto de ser ainda uma jovem miúda. Passava bastante tempo encostada ao assento, palitando os dentes e a ver as pessoas a passar e, mal entrou Padrinho para o banco da frente, deitou o palito fora. Era o primeiro cliente do dia. Fitou-o com grande espanto para o aspecto dele. «Estava aqui a pensar o que me dava a mim para andar com este temporal aqui fora!» - Mas ele não sedeixou desconcertar.
«É a primeira vez que vou ser conduzido por uma motorista de taxi; isso é um privilégio para mim.» -
Reparou nos olhos dela e descobriu uma cara gaiata e interessante.
Era conversa a valer. «Mas sabe», -encostou-se para trás do assento. -
«Eu entusiasmei-me com a chuva e atirei-me para fora; mas, senão fosse assim, também não vinha aqui a falar consigo, não é?» - A partir daqui o carro seguiu a sua marcha pelas ruas do centro. As conversas tornavam-se mais acesas e prolongadas . Às vezes ela olhava para ele e sorria quando ele dava uma piada. «Olhe para aquele maluco ali também à chuva!» -
Olga tinha grande afeição pela profissão. Falava com um entusiasmo que desconcertava o mais saloio, e tinha orgulho por dar vida ao serviço

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público, prestando-lhe uma imagem moderna. «Olhe, meu caro, o meu realismo não seria correcto se não tivesse competência para o cargo.» - As conversas na estrada transformaram-se em confidências picantes.
«Eu sei o que isso é.» - Proferiu Padrinho, encantado. Agora, Olga evitava sempre o olhar directo dele.
«Não percebo como é que me pus prá aqui a contar destas coisas.» - Concluiu ela, hesitante, para si mesmo. Sim, era isso mesmo, no calor das conversas, permitiu que ela dissesse coisas que não devia dizer, mas enfim, estava dito, agora nada havia a fazer.
Encostou o cotovelo à janela da porta e reconfortou-se mais atrás do volante, olhando-a estrada pelo espelho retrovisor. Mais à frente, a viagem estava prestes a findar. Até que enfim, pensou Olga. Dentro do carro, a motorista de taxi Olga olhou e viu as roupas de Padrinho um pouco secas mas ensopadas no assento.
«Pronto. Chegamos ao local.» - Disse ele.
Nesse instante, ela parou o carro. Ele saltou para fora e passou para o outro lado, entregando-lhe uma nota para a mão.
«Foi a viagem mais maravilhosa que tive», -olhou para Olga. - «Fique com o troco que eu ficarei com o seu número para não me esquecer quando tiver saudades de andar de carro.» - Padrinho deu um jeito com as mãos na gabardina, puxou o chapéu para a nuca e seguiu o seu caminho.
«Volte sempre que quizer.» - Atalhou ela; quando ele, se encaminhou para o prédio e desapareceu no meio dos degraus da escada. «Eu prometo voltar.» - Retorquiu Padrinho levando a mão à aba do chapéu.
Quando chegou ao cima das escadas, Padrinho abriu a porta de casa e viu a mulher junto à janela, conforme era seu hábito, e compôs um, sorriso tolo e desleixado. «Olha como estou? -exclamou ele -Não tinha sono e deu-me para andar por a passear; além de apanhar uma molha, olha, apanhei também uma porrada de frio.» - Olharam os dois, picados pela observação. Ela começou a vociferar. «Também escusas de dizer o que fizeste mais, porque isso não me interessa saber.» - Mas o olhar dele silenciou-a. Depois de se pôr a caminhar em direcção ao quarto, fechou a porta sem dizer mais uma palavra.

Desta vez, o coração recompôs-se calmamente para grande alívio de Golias que afirmou que as suas melhoras eram obra dela. «Lembra-te do
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que eu sofri por ti.», -exclamou. - «Um homem deve sofrer pela sua amante, não é, minha safada?» - Mas a Rapariga da Saca Preta não esperou que ele continuasse para lhe responder: «O teu mal é julgares que és o único.», _ prosseguiu ela.- «Pois bem, meu querido, deixa-me desenganar-te, sabes bem que eu pertenço ao grupo PT.» - A ultima sílaba que ela falava feriu-o de uma súbita interrogação.
Golias perguntou:
«Pode-se saber o que significa essa coisa de PT?», - respondeu ela, já com modos diferentes, toda amabilidade. «Prostitutas e Tarados.» _
Se ela ao menos dissesse que o desejava.
Ou, ao menos, que lhe apetecia dar uma amostra do seu amor.
E que nesta noite, por ele escolhida, tudo pudesse ser como era dantes, é que era fixe. «Então, eu porei fim às minhas tresloucadas aventuras amorosas e tu deixarás de ser possuída por esses mandriões que te querem comprar, como se fosse um objecto que se vende na loja dos 300; ficará tudo como de início; e até podes repartir o teu leito com a tua partenaire e ser a rainha do forrobodó, porque é que eu havia de sentir ciúmes de ti, meu estupor, quando te tenho desde que te ligue para o teu número do telefone e te pague, sabes que basta-me uns minutos de gozo contigo na cama para entrar logo noutro planeta. Então, diz lá, minha safada, quero ouvir da tua boca urna palavra de seis letras apenas, o que achas,?» -
«Come-me» -
Até o mamilo se iluminou, como um clarão vindo do sol e eles uniram-se num bloco carnal. Não fora bem assim que Golias sonhara a cena, mas a verdade é que nunca imaginaria tal coisa. É como se os dois tivessem cozinhado aquele combinado; mas que raio de foda, pensou; que coisa tão louca. Golias conteve-se um bocado. Aquilo eram pensamentos a mais, inspirados no erótico. Se ela estava a querer puni-lo, pela sua falta de pontaria no bacanal em que estiveram juntos, era esta a melhor maneira de se redimir. Devia simplesmente continuar, até que sentisse esvaziada toda a sua potência. Voltou a acelerar no carburador. Ele enlaçava agora a cintura dela por baixo e de repente tivera a certeza absoluta que a Rapariga da Saca Preta estava com vontade de estrebuchar. A cabeleira castanha deixou de rodopiar e o rosto dela suava em bica.
«Pára, passaste das marcas», -prosseguiu ela, ofegando um pouco. -
«Não mulher que te resista nem amor que te possa valer.» - 158
Golias, também ofegante, com o suor a pingar-lhe da careca, deixou­
-se cair na cama de barriga para o ar. Chegou-lhe aos ouvidos o som do telefone à entrada do apartamento. Levantou-se e compôs a roupa para se vestir, deixando a rapariga ali deitada. «Minha querida, sossegue um pouco, vou atender a chamada telefónica», -disse em jeito de despedida.
_ «Eu volto.» - Ele soprou um beijo com a mão na direcção dela e pôs-se na alheta; ela, encostada na ponta da cama, pôs- -se a alisar os cabelos. «Chamada telefónica», dissera-lhe ele, «Não é nada de especial.» -
«Seu pantomineiro», - berrou a Rapariga da Saca Preta a Golias,
depois de ter .ficado à espera sete minutos e vinte segundos de vigília no quarto. «Raios o partam. Para que é que eu vim aqui dar cabo da minha vida?» -

Durante todo o dia, Golias andou pelas cidades a tratar de alguns apontamentos para a sua actividade profissional; enquanto a Rapariga da Saca Preta -flutuava na sua imaginação à sua frente nas pedras das ruas, como um artista da passarela, um pouco acima do nível da cabeça dele -lhe fazia uma serenata romântica de amor, acompanhando-se de um guitarrista e de um viola, fazia-lhe chegar aos ouvidos, cantando de tudo, desde os faduchos de Neca Rafael à melhor música da canção nacional. Como o sensual fado-vadio cantado pela cantadeira Rosa do Tasco, na presença do Grupo-Ramadolas-do-Fado, um clássico dos anos setenta, em pleno Stadium, - no qual a fadista (depois duma garrafa maduro entornado no seu estômago) declara, perante a plateia dos presentes na sala, que o amor impossível é sempre o amor mais apetecível. -E Golias, que ela abordava no jardim dos seus anseios, sentiu que a música lhe ia prendendo fio a fio o seu coração, puxando-o para a Rapariga da Saca Preta, pois o que esta pedia era afinal uma coisa bem pequena, como ela própria dizia. Chegou perto do banco dos correios e sentou-se, fechando os olhos. A Rapariga da Saca Preta cantava o fado:

E tudo o que eu te dei foi o amor que mo doou...
Não peças mais a mim, por favor, daquilo do que não sou Capaz de satisfazer os teus vícios; E fugir aos teus encantos sem fim
Não peças mais a mim, por favor. Pois tudo o que eu te dei, foi amor...

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Golias levantou-se e começou a caminhar. De novo a imagem da Rapariga da Saca Preta, por trás das pálpebras cerradas, atormentou-o com palavras mesquinhas que muito lhe custava ouvir, mas não teve outro remédio senão escutá-la; a sua voz arrastada e confusa dificultava a leitura... Gostaste da letra do meu fado? Espero que compreendas que, para satisfazer os teus caprichos, uma mula dessas que aviam dez homens a «lá minuta» é capaz de sustentar os teus vícios - esse tipo de mulher eu não sou. -
«Então, quem és tu?» - Perguntou Golias em voz alta.
«Sou apenas «mais uma.» -
Golias voltou a sentar-se, agora, no banco do jardim e curvou a cabeça para trás. Sentindo-se cansado, deparou com a sua consciência e viu, então, aquele nome saltar-lhe para a frente do cérebro: Rosa da Tasca. Lembrava-se duma noite em que entrou no Stadium para ir petiscar algo. Eram quase duas da manhã, quando viu entrar um grupo de artistas e cantadeiras de fado que, depois de entornarem umas pingas, puseram-se a cantar ao desafio. Às tantas, a fadista resolveu tirar os óculos e saltar para cima da mesa, dedicando a ele um fado da dor de corno. Pelos vistos, eram os ciúmes que ela sentia pelo tocador da viola que a acompanhava. Na parte final da letra, a fadista, ao desdobrar a voz, deu um passo mal dado no tampo da mesa, estatelando-se no chão. Deu com a cabeça contra a porta e ficou a sangrar abundantemente, indo parar ao hospital, onde ficou internada.
A corrente do trânsito passava próximo dele e Golias voltou a si e encheu o peito de ar. Levantou-se vagarosamente do baco do jardim e avançou para a rua enfrentando o movimento citadino.

Padrinho, abrindo os olhos pela tarde, reparou que não estava ninguém em casa. Ligou o rádio e, logo a seguir, saiu da cama e pôs-se a cantarolar, tentando relembrar as cenas da noite anterior. «Que noite mais amalucada. E, para terminar, nada mais apetitoso que aquela motorista de taxi.» - Deu um sorriso e foi-se lavar. Quando saiu do quarto, vinha vestido, barbeado e penteado; quando nada mais lhe restava que se escapulir dali, deu uma olhadela para dentro de casa e saiu em direcção à rua. Para não voltar tão cedo a casa, excepto no fim, quando chegasse a altura de regressar. Convencido que os assuntos da escola seguiam no

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bom caminho, Padrinho apercebeu-se de que lhe fora retirado dos ombros um grande fardo; o seu humor britânico voltava rapidamente, de forma a poder estar em forma perante os seus amigos. Ora bem: era tempo de proporcionar à falange de amigos uma grande farra, pois quando eles vissem o grande Padrinho convidar toda a gente para uma grande festança, ficariam cheios de emoção e mortos por ir matar o apetite com prazer.
Começou a preparar a festa. Agora é que as coisas iam aquecer: a amizade de uns, a tirania de outros e, no fundo, todos aqueles que queriam arredá-lo da cadeira do poder; sentia que o seu peso começava a diminuir, mesmo atrás da sua cabeça. - Como era estranho que, apesar disso tudo, muito poucos eram aqueles que o olhassem frontalmente, embora, no final do repasto, alguns deles lhe dessem palmadas nas costas a agradecer o gesto. Era na verdade uma falange de amigos que deixavam dúvidas. E como a relação entre homens e amigos de Peniche é caso para se precaver - ganhar experiência e ficar a saber - não havia mais nada que o bondoso e agradecido Padrinho pudesse fazer para pôr cobro àquela situação. «Que gente esta! Alguém me tinha prevenido, logo de início à jantarada, que alguns não iam aparecer. Que bando de mal agradecidos, que sabem fazer cagada e mostrarem-se que são importantes. Pulhas de merda.» - Desabafara a um deles que abanou a cabeça. Pois bem, ali estavam eles, os seus amigos, os bons, os maus, e os vilões. O resto ficaria para a história.
Padrinho foi transportado num carro dum amigo à soleira da porta da Pina-Colada, bastante chateado, com muito nervoso à mistura, com a razão pelo seu lado e, para acalmar, pediu à empregada um whisky velho com gelo. «Quando preciso de desabafar, a patroa da casa nunca está!» - A empregada encolheu os ombros e conseguiu pôr Padrinho a rir. Depois, arregaçou a perna direita das calças e pôs o joelho à mostra, anunciando enquanto encostava a perna à dele. «Desabafe para aí, eu cá estou para o alegrar.» - Padrinho usava óculos de cineasta, mas via bastante bem ao perto. E aquele joelho merecia uma leitura mais perfeita.
«Se é assim, nos entendemos melhor.» - Foi a terceira rodada que silenciou Padrinho, abrindo a boca para dizer a frase mais velha da história dos bares: Serve-me o último copo para a estrada, e a empregada foi buscar a garrafa e voltou a servir mais uma rodada. Abriu a boca e mandou
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abaixo dum lance só.
«Foi muito simpático da sua parte ter trazido o Padrinho ao bar.» _ Disse a empregada ao amigo dele que demorou algum tempo a perceber onde ela queria chegar. «Beba um copo, também.» -
«Com certeza! Ponha o que quiser que eu bebo!» - A empregada batia as palmas. «Você manda nesta casa o cliente ordena.» -

«Não sei se ouviste contar a história do Chupador das Vaginas­ Carecas, aquele paranóico que diz que a vagina da mulher sem pêlo é mais higiénica e, então, quem puser de talco é uma maravilha, um tipo sai de feito num pasteleiro!» - A empregada do bar, comendo um pão com uma fatia de carne assada, brandiu um copo de sumo da laranja diante do nariz da Preta, a partenaire da Pina-Colada. «Parece que é um drogado chamado Chicras, dizem que a polícia, quando o interrogou, perguntou-lhe: «Então, é você ou não o Chupador? E ele respondeu, com um sorriso maldoso: Você é alguma mulher para saber? Dizem que os chuis lhe arriaram no físico dizendo que ele estava a mentir.
«E que é feito dele?» - Perguntou a Preta.
«Anda por a monte. Sabes que todos os drogados acreditam que seja ele.» - Respondeu a empregada.
«Mudemos de conversa. E aquela cena de ontem com o cliente que levaste para a cama a troco dele dizer que era o Príncipe do Minete, é das tuas relações nocturnas? desculpa-me ser directa no assunto, mas doutra forma não entendes - acho que ele precisa é duma mulher do estilo da Dama da Língua.» -

«Pelos vistos, eras bem capaz de o deitar a vaguines  
não eras?» -
Ripostou a empregada.
«Hmmm», -resmungou a Preta, exibindo a sua expressão de mula de modo a enfurecer a outra. «Não faz o meu programa.» -
«Não te preocupes, ele tem tudo o que lhe faz falta.» - Calou-se de repente, com um na garganta, e foi com a voz alterada, muito baixinho, de olhos postos no prato de sopa em que ainda não tocara, que disse a ultima palavra. «é loucura».
«Ah, o poder do amor» - Disse a Preta, dando uma palmadinha no ombro (que logo se esquivou) da empregada. «Começas agora a experimentar essa boa coisa que existe. E quem é que havias de ir escolher?» - Atacou
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1Deitar abaixo.
De novo. «Um profissional. Aprende miúda! Os homens estão sempre prontos a exigir privilégios especiais, mas esse abusa.» - A empregada já não escutou as ultimas palavras pois fora atender o próximo cliente que entrara no bar.
Um dos motivos pelo qual a empregada do bar da Pina-Colada não mais largou o Príncipe do Minete fora o facto de haver nele uma expressão dura e um olhar esgazeado, que a impressionaram profundamente. Ele enfrentara com toda a sua descontracção a sua taradice, não a largando um instante (pelo menos, por enquanto) e tinha olhos para ela, que 0 considerava o seu «grande e louco amor». O Príncipe do Minete jurou a si mesmo fazê-la feliz e aguentá-la até ao fim dos seus dias. E ele era de facto o mais dócil e diplomático dos clientes, algo drogado em consequência da medicação para o caruncho administrado pelo farmacêutico da zona, dormindo quinze horas por dia e acedendo, quando acordado, a tudo o que ela lhe pedia, fazendo-lhe todas as vontades com rigor e disciplina dum verdadeiro profissional. Nos momentos mais lúcidos, levantava-a ao ar e percorria-lhe todas as partes do corpo com a língua, classificando cada parte do corpo dela como um continente. «Ü Oceano Atlântico é o mais brando deles todos mas ali o Oceano Vermelho é o mais esquentado e explosivo.» - Dizia ele, seguindo a marcha com lentidão.
«Amará quem sabe explora r o seu amor!» - Murmurou ele ferrando-lhe no umbigo. Quando ela estrebuchou, ele prosseguiu a sua lambidela até ela ficar doida de prazer e pronunciar versículos mouros, língua que não sabia: chu-pa-aí-ui-que-goso, ago-ra não-pár-es, pondo-o com os cabelos em pé: «Ele vem, o leite 1...» - Ele encarava cada sessão nocturna como uma obra de arte de um artista genial até à raiz dos cabelos. E deu tanto à empregada do bar da Pina-Colada que esta teve que ser socorrida pelos psiquiatras do Centro de Saúde. Eles ficaram com a impressão que o Príncipe do Minete estava no caminho do esgotamento total, a ponto de ser visto como o próximo cliente a ser internado no Hospital de Conde de Ferreira (Manicómio). Ela, por seu turno, perdeu durante algum tempo a sensação aborrecida de estupidez absoluta, de ter ido longe demais com aquele conto estranho e inédito; ao meter-se com o Príncipe do Minete, galardoado como o Rei do Linguado, como dizia para consigo própria, ao pensar que se tinha excitado tanto na luta do seu amor. O mais provável era esquecer e partir para outra.

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O homem das ideias, Voz Calada, brilhante génio das invenções de aviário, (foi ele quem levou Padrinho ao bar) era agora o seu motorista particular e tornou-se uma visita assídua - duas a três vezes semanais _ durante a convalescença que Padrinho fizera para tratar da cura de um certo enfartamento do seu quotidiano. «Ele daqui por uns tempos vai ficar super-bom», - dizia Voz Calada a Pina-Colada, a dona do bar, esfregando as mãos quando o olhar ganhou brilho ao ver o copo de whisky JB 15 acima da medida, em cima do balcão. Durante algumas horas, Voz
Calada começou a beber whisky e a comer diversas iguarias que o bar tinha à discrição dos clientes, como por exemplo: -pipocas, línguas de gato, amendoins com casca, caju com piri-piri, biscoitos, língua da sogra, peles de bacalhau recesso - para um Voz Calada cada vez mais esfomeado. -E tornara-se claro que não demorou muito tempo a falar de tudo e sobre todos, fazendo referência a este ou àquele nome sonante; que R. Veloso gostava de fazer «meninos», e o genial Abrunhosa tinha feito embirra de não mostrar os olhos às suas fãs. Amália, Pinto da Costa, Futebol, Ratazana, foram todos evocados.
«Uma estrela deve estar em paralelo às outras estrelas.» - Voz Calada era ele próprio uma estrela viva, como a empregada do bar soube pela boca de Padrinho, na noite em que ambos estiveram a beber. Sendo uma figura bem-falante do seu ofício, tinha conseguido lançar uma série de «ideias» de boa qualidade, vivendo de puras vigarices constantes, até que pouco tempo resolveu mudar de profissão e passou a ser o motorista de Padrinho, sem que alguém percebesse bem porquê, mas não pareciam importar-se muito com isso. Uma vez ele esmurrara o carro da marca Mercedes - por negligência de condução - ao querer entrar com ele na Travessa dos Caldeireiros, local normalmente acessível a carrinhos de mão e assadores de castanhas. Nunca ninguém soube como ele conseguiu sair dali com o carro. «Procure outra profissão que não motorista, porque a sua condução é medíocre.» - Disse o proprietário do carro, no dia em que o despediu do emprego.
Presentemente era conhecido, graças a uma serie de ideias e anúncios publicitários baseados nas suas fantochadas Aprenda a Ser Criativo - O Mundo dos Não Criativos -um almanaque ao estilo das histórias do Tio Patinhas e sistematicamente imaginoso. Amiúdas vezes falava que tinha contribuído com ideias para o cineasta Manoel de Oliveira nos seus filmes de cores nacionais, e trazia fotos na carteira do filme O Tubarão, Chinês Limpa Limpou Limparás, mestre em limpezas domésticas na televisão

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E herói de Voz Calada que, ás vezes, até era incapaz de repetir o seu nome. «Ás vezes, diz tantos Limpas, que  nem  sei quem  é que ele vai  querer
«limpar»!» - Gracejou a empregada do bar para a dona Pina-Colada que começou a rir-se. «Acho que é a pinga a falar por ele.» - Acrescentou ela.
Pina-Colada sentia-se grata pelas atenções dele. O genial homem de ideias parecia dispor de todo o tempo do mundo, enquanto ela estava cheia de o aturar mais às suas histórias malucas. Combinara um encontro com uma bailarina e dissera à empregada que ia cear qualquer coisa ligeira como -sumo de leite, torrada com marmelada, um café de saco - tudo nas loja dos combinados, conforme o perfil dela. Por isso não perdeu tempo e desmarcou-se de Voz Calada acenando alegremente com um dedo no ar.
«Eu vou-me indo, deixe-se estar à vontade e cumprimentos a Padrinho que tenho muitas saudades dele.
Ela  saiu  e deixava-o  ali  a entusiasmar  a assistência  com o  seu inesgotável repertório que nunca tinha fim. Voz Calada acabou por trazer a lume um tema interessante; nomeadamente um conjunto de afirmações sobre o problema dos alcoólicos portugueses. «O  problema dos Portugueses é beberem demais, por isso eles não conseguem parar de beber. O segredo duma boa pinga é ter bebedores em maioria sentados a uma mesa. Se eles estivessem em minoria não tinha o apetite da maioria e assim bebiam menos. Quem quiser ver, que aos tascos ou às tabernas ver quem bebe mais e sabe logo o problema dos Portugueses. Éque  eles são loucos mesmo de nascença por mamar. Enchem os copos e as malgas e depois se vêm os jornais cheios de sangue e mortes pelas estradas.» - Esta profundidade de análises e ideias feitas com um tom moinante irritou profundamente Preta, até ali calada e silenciosa, a ouvir a conversa. Resolveu intrometer-se, perguntando se a única coisa que ele conseguia ver num bêbedo eram todas aquelas atrocidades! «Não, isso não», - admitiu Voz Calada com um sorriso de troça. - «Há dias apanhei semelhante serapilheira e. para não acordar a patroa, tirei os sapatos e deitei-me a dormir no carro sem fazer o mínimo de barulho.» -

Tinham contactado, via telefone, alguns colegas da actividade comercial, aqueles que Padrinho deixara pendurado quando tomara conta da escola. «Ficaram felizes com a notícia de que estás porreiro de saúde.» -

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Comunicou Voz Calada a Padrinho. «Infelizmente, levanta-se 0 problema da violação dos contratos.» - Mas havia mais partes interessadas em processar Padrinho, exigindo-lhe grossas maquias, especialmente os gabinetes governamentais. «Com este dinheiro todo, melhor seria irmos
passar umas férias às Ilhas Maurícias.» - Disse Voz Calada com um sorriso amarelo entre os lábios.
Padrinho, estava ainda um pouco zonzo por causa dos medicamentos.
«Vamos ter calma», -esclareceu Padrinho, prosseguindo - «Em pequeno sempre me disseram: os cães ladram e a caravana passa -
Segundo Voz Calada, ninguém na terra estava interessado em processar Padrinho, em levar a tribunal a galinha de ovos de ouro para muitos deles. O problema vinha da coroa, segundo parece, a nível ministerial. Todas as partes reconheciam que os projectos não se coadunavam com o tempo actual: administradores, professores, alunos e até mesmo os técnicos das maquinarias. Em suma, era tempo de Padrinho pensar em sair do seu retiro e entrar na reforma. «Não era ideia, não senhor», -explicou Voz Calada a Padrinho que se sentara numa cadeira afim de pôr as ideias em ordem -«Se eles avançam e te deitam a luva, nem a tua boa chega para te salvar do suplício.» -
Voz Calada conseguira que lhe fosse atribuído o lugar de chefe de equipa, e tinha todos os poderes para o representar perante os outros que faziam parte da escola de formação.

O empresário sediado no Algarve, Sábio Sabichão, manifestara grande interesse em investir na formação de alunos tanto em escudos como em dólares, negóciofifthy-fifthy, obtidos através de vários robots de fabrico timorense e que Sabichão comprara em sistema leasing. (com um prazo dilatado de vinte e cinco anos) em troca do pagamento em dólares. Todos os técnicos das maquinarias entrariam também com algum dinheiro para aprenderem a lidar com os robots e, no final de cada curso, receberiam um diploma para-morcão-ver, devidamente encaixilhado em alumínio e assinado pelos administradores.
Os primeiros robots repartir-se-iam pelas duas secções -Comercial e Industrial. -Padrinho ficava com direito a que o seu nome a relevo continuasse a figurar na escola e a dez por cento e mais despesas de ocasião, para além da sua quota-parte no negócio.

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«Mas qual é o meu trabalho?», quis saber um técnico. «Meu querido amigo», - disse Padrinho - «Ó Sr. Voz Calada vai-vos apresentar o projecto.» -
O projecto previa uma série de encomendas aos três níveis; ao mesmo
tempo, queria-se um trabalho inovador e categórico, no mínimo, com estilo da arte. «Deixem-me dar-vos uma ideia», - disse Voz Calada coçando a orelha - «E que tal: Cristas de galo nas palmilhas do sapato, Redenho de porco nas mangas da camisa e um Comutador da merda para invertê-la em dinheiro? (A maior invenção do século XX - Voz Calada ficou um bocadinho curioso a olhar para eles. «As grandes tinhas da moda saem da cabeça dos estúpidos.» - Aquilo era o máximo para o técnico 'dos sapatos. «É fantástico», - exclamou ele e o outro disse: «Fabuloso.» -
A ideia correu pelas várias secções, centrando-se cada um deles na sua missão de colocar os robots a fazer a mão de obra mais barata e, ao mesmo tempo, satisfazer as encomendas.
«Isto nada tem a ver com aquilo que sonhamos mas, de momento, qualquer ideia faz jeito.» - Exclamou Padrinho, parando de anotar alguns apontamentos no bloco. Voz Calada parou de fumar o cigarro.
« É importante não pararmos com esta cena. Além disso, desculpa lá, se isto pró estouro, temos vinte e cinco anos para pagar, mas aí, estamos de certeza num sobretudo de pau!» -
«Num quê?» -
«Num caixão de madeira.» - Era a outra maneira dele se escapar.
Assim renasce uma amizade. «Padrinho! É um enorme prazer conhecê-lo» - Sábio Sabichão foi uma surpresa: não era o messias da vida mundana com o cabelo cheio de gel e os dedos dourados; estava discretamente vestido com um sobretudo que era maior do que ele, usava chapéu à Búfalo Bill e, em vez de bazófia de taberna que Padrinho esperava, deu mostras de uma fraqueza preocupante. Tinha deixado crescer o cabelo que lhe dava uma imagem de Judas do Agramonte.
Ao receber os três, (Voz Calada tinha ido buscá-los no Rover, a ele, ao motorista e a um janota de Miranda do Corvo), passou a viagem a contar a Padrinho quantos corvos tinha matado nas suas viagens, entretido nos negócios espantosos envolvendo somas incríveis.
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Sabichão apertara calorosamente a mão de Fífia e depois precipitara-se na direcção de Voz Calada, abraçando-o num ímpeto para não cair ao chão. A sua companheira, Estica  do  Castelo,  foi  bastante  menos
entusiástica. «A mesa está pronta. Temos frutas, alheiras de Mirandela caracóis do Mindelo, vinho do garrafão e muito mais. Ponham-se à
vontade.» -
Era assim mais ou menos como ela dizia, pensou Padrinho. A sua posição inicial em todo aquele projecto revestia-se no interesse que ele próprio manifestara. Pelo seu turno levava o pessoal todo da escola a aceitar a ideia, afirmando que talvez fosse a maneira dele vencer aquela batalha - e livrar-se das pragas - que o atormentavam e que para ele poderia ser muito benéfico.
E o modo como Voz Calada se intrometera nas narrativas e contos de anedotas poderia ser considerado positivo para o bom engrandecimento do convívio, e talvez se tornasse mais fácil para todos que encararam aquelas histórias artificiais boas para o cinema.
No fundo as coisas não correram tal e qual como previam os planos. Fífia deu por si incomodada com o à-vontade com que Sabichão se atirou a ela, inclusive, levou a mão por debaixo da mesa, apalpando-lhe as coxas. Mimi foi mais descarada ao ponto de enfiar a sua mão no bolso das calças de Voz Calada. «Está doida ou quê?», - dizia ele, mas ela insistindo, perguntava: - «O que é que foi? Não gostas?» - que acabaram por não serem apanhados, senão era o raio do caneco.

Passaram dois dias no novo apartamento de Padrinho, de apenas três pequenas divisões, cujo requinte era a retrete coberta de latão e cobre, situado num prédio antigo na zona de Serpa Pinto, denominado «Zaire», forrado o chão a tacos de madeira e tinta nas paredes. A aceitação passiva, por parte de Padrinho, de toda esta transacção comercial era no fundo para deixar para trás aquilo que para ele manifestamente considerava uma segunda escolha de vida, quando resolvera acabar com alguns vícios, tais como: guarda-costas, acompanhadores de copos, motorista, criada diária e hotéis com pequeno almoço servido no quarto, em bandeja de prata e gratificações abonadas.

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Padrinho espreitava nas páginas dos jornais e revistas e écran da TV, na presença dos acompanhadores de copos, mostrando curiosidade de saber - Como Vai o Mundo. - Às vezes ele detestava tudo aquilo e punha-se a falar para si mesmo: «Não te rales, pá!», -dizia tranquilamente afundando-se no sofá todo roto e tão largo que cabiam lá seis pessoas -
«São notícias de caca para encher o programa.» -
A sua ligação às mulheres da noite fez dele um curioso. À medida que o tempo avançou (entre ele e Fífia), começou a dominá-lo aquela desconfiança irracional, descontrolada e cega, que até os «Mikis» do Rato Mickey e o Popeye da banda desenhada originavam briga entre eles. De cada ve·z-que se desencontravam, ele fazia-lhe urna data de perguntas mais estrambólicas, querendo saber, com quem é que foste hoje, deitaste ali o carniceiro abaixo, aquela fuinha da mirolha ainda não foi na tua lábia?... fia sentia-se encurralada com tantas perguntas chaladas, que se deixou pregada na cadeira a olhar pró tecto. A nova mudança na vida de Padrinho e agora também, noite após noite, este tratamento não lhe faltava, deixando-a com vontade de dizer: Então e eu? sirvo para criada de recados? À beira dum nervosinho miúdo, resolveu dar de espiante e ausentar-se por uns dias.
Outra das suas ligações amorosas era Pina-Colada, a dona do bar da zona centro da cidade e que lhe havia dado toda a sua amizade. A um canto da sala, mesmo nos fundos, Pina-Colada, quando  o viu, serviu-lhe urna bebida e sentou-se ao seu lado, oferecendo-lhe um pouco de companhia.
«Já em tempos falamos disso», - disse ela sem vontade de bater naquela tecla -«Uma mulher nesta vida não pode fazer planos, sem correr o risco de ir parar ao malagueiro. 1» -
Ele respondeu-lhe:
«Estou a ver que para ti não existe o amanhã nem o futuro.» - E ela confessou: queria dizer para ele deixar de exprimir certas coisas mas não era capaz. Não por tirar-lhe a esperança vã, como sentir por ele uma paixão bacoca, conforme ela preferia dizer.
«Não pensas ter um filho?», -disse Padrinho pondo o dedo na ferida. A principio Pina-Colada protestou: - Mas qual é a tua? -    mas depois, acalmou-se, bebendo um pouco de whisky e limpando a boca ao guardanapo
ICharco.
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de papel que trazia entre as mãos. «Quero ter um filho, mas meu, e da Preta!...»
«Tu deves é estar doida dessa cabeça.» -Insinuou Padrinho. Havia quanto tempo que não falava assim. E desta vez, quem sabe, se não seria a última...
Quando descobriu, por um relatório encontrado por acaso na gaveta da sua escrivaninha, que o Juiz das Finanças começara a mandá-lo seguir, Padrinho rabiscou um bilhete - estas coisas liquidam-me - e meteu dentro do relatório, que deixou em cima do monte de papeis; e foi-se embora sem dizer agua vai, agua vem. Estava na altura de preparar a estocada final e preparou-se afincadamente para entrar em cena, contactando uma série de empresários apresentados pela mão de Sábio Sabichão numa reunião de negócios.
O ponto alto do programa foi anunciado no último minuto e dizia respeito à venda da escola de formação, de que andava, havia semanas, a preparar o relatório de contas. Os rumores acerca da identidade do Juiz do Ministério Público, foram cuidadosamente preparados e devidamente controlados pelas relações públicas de Sabichão. A agencia de publicidade de Voz Calada tinha sido contratada para coordenar uma campanha gratuita na rádio e colocação de cartazes gigantes na via pública. Pretendia-se levantar amoral do Gabinete Ministerial da Comarca
- vendo-se na praça, a árvore da forca e uma corda ao dependuro -o clarão do próximo passo para o regresso ao inferno; paragem seguinte, debaixo dos torrões.
O problema maior foi que, a seguir, Sábio Sabichão foi preso em
Marrocos por causa das suas vigarices. Voz Calada, ao ler as  noticias sobre o caso nos jornais de sábado, engoliu em seco e telefonou para a escola onde Padrinho ensaiava um novo tipo de contas para se prevenir contra os encargos fiscais.
«Sabichão foi preso», - insistiu ele. -Todo o comportamento dele não me enganou, era teatro e golpe do baú. Aquele Judas de  Agramonte é um principiante de raiz. Meu Deus, como é que a gente se deixou levar por aquele dez reis de gente?» - Mas Padrinho mostrou-se frio e reservado no seu raciocínio, preferindo aguardar por mais informações, para se certificar onde morava a realidade dos factos.

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No Central Parque, um teatro de luxo todo ele pavimento de taco chinês e espelho fosco nas paredes, estava repleto de público sedento para assistir ao grande espectáculo variado da época. O engenho de Voz Calada em arranjar dois bilhetes para o show; foi possível comprar na candonga duas frisas pelo triplo do preço real. Mesmo assim valeu a pena, pensou ele. Depois deles transporem as grandes portas de aço inoxidável, deram-lhes um camarim que tinha colado na porta uma estrela de cinco pontas. Logo de seguida, o locutor apresentou o programa. - Os palhaços aos pinotes no cenário do Circo Arroyales; As Manas Fífia e Não Fífia (nada tem a ver com a outra), dançando ao som das cornetas dos tocadores, uma-entrevista em cena com a vedeta Firmina a opinar que a mulher é vulnerável depois de despida - «A mulher nua e, depois duma boa troçada, não sabe o que diz nem sabe o que faz; é um perigo público, mete tudo ao barulho e troca os ás pelos bês - E chegou o momento de entrar em palco, a artista internacional vinda directamente de Paris: Paola Maria. Gente de todas as cores e feitios variados aplaudiram a artista do flamengo. Padrinho olhou para a sala cheia de público requintado, reconhecendo os empresários pelas gravatas italianas à volta das camisas de seda, os artistas pelos seus penteados exóticos e coloridos e os viajantes (como ele) porque não sabem vestir, «todos eles são cor-de-rosa e douradinhos.»  - O espectáculo descera à cidade.

De volta a casa, quando Padrinho o deixou -ou melhor, o apeou à porta -viu-se a caminhar pelo caminho e sentiu-se lento, pesado, alheado até da sua própria consciência e, então, percebeu que não fazia a menor ideia de qual o caminho que ia tomar para chegar a casa. Os médicos tinham errado, agora compreendia ele, quando lhe diagnosticaram caruncho na garganta; o problema não estava nele (nele, homem) mas sim, na maldita garganta. Quando iniciou adescida em direcção ao prédio onde morava, em baixo, exclamou a sua primeira dor - Vocês não sabem mais, o génio é que sabe - e ouviu o eco da voz, por assim dizer, em estereofonia, no preciso instante em que sentiu o sinal menos e viu o universo a cair por cima da sua cabeça.
A versão oficial do que depois se passou, e que todos os órgãos da comunicação oficial aceitaram, foi que Voz Calada tinha sido retirado do
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caminho por uma ambulância e conduzido ao hospital mais próximo d,, zona e ao qual não chegara com vida. Esta versão teve importante página1 de destaque no pasquim GAS. O relator encarregado de dar a notícia aos amigos sublinhou que, depois da descida da urna de Voz Calada, 0 carro fúnebre permanecera no cemitério durante alguns dias, provocado pela exaltação dos seus fãs; e tinham sido pagas somas substanciais ao pessoal da agência fúnebre.
A notícia de que Voz Calada deixara este mundo e desaparecera sem deixar rasto no meio da terra espalhou-se rapidamente entre os inventores e fantasistas de ideias. Não foi de estranhar que, pouco depois dos sete dias passados, os vendedores de novidades vendiam bonecos descritivos com design (preto e branco) guarnecidos de asas de anjo em que se lia: As ideias não morrem...

Estava a ficar quente e escaldante o ambiente à porta do bar! -Agora é que iam ser elas, esses chulos dos azeiteiras que se tinham metido com ele à porta dum bar! -Olhou para eles e sorriu para o seu acompanhante. O problema dos chulos era cheirarem a azeite: raio de gente essa! - Passam todo o tempo na cama com as amantes no «sobe e desce». - Mas agora estava ali com ele o grande Sansa-Cagão, um indivíduo de um metro e meio de altura por cento e vinte quilos de peso e usava o pseudónimo de Sansa, em memória do bíblico Sansão, que, como ele
era  pequeno, os amigos eliminaram a ultima letra.
«Que é que quereis, cambada de chouriços sem nível?» - Pois bem: ia mostrar-lhes toda a força - A dos seus músculos -Estes chulos só têm é letra e conversa de ilha.
O lutador, o boxeur da rua, é um indivíduo capaz de derrubar uma cambada de mulas à galheta e mandá-las todas para o maneta! não havia homens capazes de fazer tremer os lutadores da rua. Havia que dar uma lição àquela corja de esfomeados.
Era o Sansa-Cagão, era Padrinho. -Ides levar uma lição.
Os adversários, de rostos ameaçadores, surgiram ante os olhos deles. Uma cara de tísico, com os lábios contorcidos num sorriso de estupor, mandou para fora da boca um palavrão. «Pensas que nos assustas, ó pote da  merda? Ponho-te a dançar, queres ver?» - Mas Sansa-Cagão não

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·ra 0 estilo de adversário que se deixava amedrontar por palavras; ele era um ser que, com um caneco a mais, se odeia a si próprio e está bem a
dar cacete nos outros. Deste modo o indivíduo tornou-se agressivo.
Primeiro, eu dou-te o ritmo!» - Deu um passo em frente e, com as suas
grossas mãos, enlaçou o corpo do tísico e atraiu-o a si, espetando
..sernelhante cabeçada na cornadura que o adversário logo caiu por terra,
sangrando como um porco.
«Que tal? Dançaste Mambo e agora queres dançar o Malhão?» -
...Não! - Gritou ao rolar nas pedras da rua, espantando o periquito no passeio.
«Chega, seus medricas ou quereis levar mais nessas ventas?» -disse
ele voltado para os restantes adversários, que estavam arrepiados de medo. Este Sansa-Cagão não era nenhuma pêra doce.
A verdade é que ele, para a cabeçada, era um autêntico demónio. -Era
um boxeur, por isso se revoltou. -
ópernas para que te quero! -Os adversários deram o fora e piraram­
se  à fila. Com tal oposição, não havia hipóteses de fanfarronices. Como ele tivera razão, por exemplo, em banir aqueles facínoras, pois como Padrinho dissera: Ides levar uma lição, não houvera dúvidas que a lição fora bem dada. Agora, restava entrar no bar e beber para animar. - mesmo dentro, no  calor do ambiente. - Como ele, Padrinho e o acompanhante, gostavam de conviver.
Whisky de 18 anos com gelo! Puríssimo!
E que mais havia de faltar ? -Ora bem, o problema deles era apenas a
manobra.
Padrinho, olhando à sua volta, confrontou-se com a opinião de que o jogo das mulheres da noite tinha a sua origem na carteira.
«Quando o cliente não puxa das lecas 1 à vista grossa», -explicou ao outro -«quando o cacau não reluz como a luz dos candeeiros, é evidente que a mulher deixa-se adormecer e não nada à sua frente.» -
Padrinho enumerou diversas vantagens sobre o sistema ao seu acompanhante que o ouviu atentamente. Numa instituição de vício e prazer, onde os modelos de comportamentos variam entre a casta de clientes, é deveras importante: música popular ou enlatada de boa qualidade, caras giras e atraentes (de preferência, nacionais).
Mais higiene e limpeza na sala e nas retretes, jarros de flores berrantes

!Dinheiro
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(cor de pêssego com lilás) a adornar os cantos. Um novo sistema sem pagamento de alternos e contas vultosas, ar condicionado e ventoinhas de tecto em todas as divisões, separadores para os fumadores e não fumadores. Maior atracção do mercado, melhores bailarinas e uso de água destilada para os pés, além do papel, nos quartos de banho e bolas de naftalina para os mal cheirosos.
Desvantagens: chatos, lêndeas, baratas, barulho, chulos, preços em demasia.
O acompanhante estava de boca aberta. Abrindo os braços, gritou:
«É assim mesmo. Diz-me lá, ó parceiro, onde mora uma casa dessas?» - Mas três coisas aconteceram, muito depressa.
A primeira foi que pararam de conversar. A segunda foi que, assim que a garrafa acabou, eles pararam de beber.
E a terceira foi que Padrinho abriu os olhos e olhou para o relógio; os ponteiros passavam do limite e ele achou que era tarde demais. «ÓMeu Deus, a que horas é que me vou deitar! »
Ele, mal chegou a casa, meteu-se na cama; sentia-se para dos confins do sono, mergulhado de cabeça enrolada entre o travesseiro e os lençóis, com a miragem da cena do bar. Para do acontecimento tenebroso, passara horas de bom convívio.
«É um vício lixado; os bebedores atraem os bebedores», - disse o seu subconsciente. - «Nunca mais ganho juízo.» - Deu uma volta para o outro lado da cama. Por fim, deixou escapar o  ultimo suspiro da noite.

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