Sunday, December 1, 2019


O drama de um rapazinho que em tenra idade se vê envolvido num caso de saúde, que o transportou às portas do infortúnio!

                              AS MINHAS PICADELAS
   O meu nome é Padro Teixeira.
   Nasci no mês de Março de 1998. Naquele dia a Primavera brilhava intensamente nos céus à noite. E só voltaria a brilhar uns tempos depois. Nasci num lugar que eu descrevo como “povoado” quase invisível da Lixa, em Amarante. O povoado não tinha mais de uns 200 habitantes e eu aumentei a população em mais um. Fui uma criança sadia, e motivo de alegria para a família e os amigos, por ter conseguido alegrar a primeira Primavera radiante de Amarante.
   Depois de crescido, perguntei certa ocasião, há minha mãe se ela não se tinha preocupado comigo, quando era pequenino. Com uma calma quase patética, respondeu:
   “A princípio, tive receio que te magoasses por aí”, e acrescentou: “E depois fiquei com receio que não te magoasses!”
   PRATICAMENTE desde que aprendi a jogar joguinhos, tornei-me um maravilhoso praticante, e alguns deles eram de facto difíceis. Certa ocasião, um vizinho, ao ver-me num dos meus jogos, objetou: “Espero que tu não te deixes derrotar do que este bandido te faz!”, respondi-lhe: “Ah, já conheço os truques dele.”
   NO VERÃO DE 2000, meu pai, Pedro Fonseca, mudou-se com a família para Vila Cova, um lugar a cerca de 15 quilómetros do Rio Tâmega. Ali, trabalhava ele como caixeiro de balcão numa empresa de produtos alimentares, e a minha mãe, tratada por Nelinha, trabalhava numa fábrica de calçado, em Felgueiras, enquanto Daniela, minha irmã, de 8 anos, frequentava a escola, o orgulho da família. Éramos crianças obedientes e comportadas. Foi, de facto, pouco tempo depois de nos mudarmos para Vila Cova que eu senti a primeira das muitas outras picadelas de que fui vítima, antes de saber a minha doença. Fui levado para o posto-médico da terra e lá feito uns exames. Depois de voltar à forma, com abanões e outros remédios para aviar-meninos, a minha mãe disse: “Acho que a picadela não foi grande. Vamos ter de aguardar.”
   Eu tinha 5 anos e pico, quando os meus pais acharam que era altura de me enviar para a escola, para ter-me fora de casa durante algumas horas por dia. A escola de Vila Cova funcionava numa casa perto da Igreja, e situava-se na artéria, principal. Lembro-me do meu primeiro dia naquela pequena casa junto há igreja. Desobedeci a um regulamento qualquer por ter dado um pontapé num farrapo tipo-bola, e fui advertido para não voltar a dar chutos naquilo que se vê no chão, disseram-me que o castigo seria levar com umas reguadas, mas tal não aconteceu.
   A professora desferiu um longo olhar de desaprovação; e então, chamou-me ao quadro e levei uma ensaboadela. Eu iria aprender mais tarde que, quando uma professora chama um menino ao quadro, isto significa estorvo.

   Disse há minha mãe, quando cheguei a casa, na primeira aula, que não gostava da escola nem daquela professora por ser rabugenta. No dia seguinte voltei, mas nunca aprendi a gostar daquela, ou de qualquer outra escola, que cursei mais adiante. Ao chegarem os primeiros dias de Outono, quando podia ver, da minha janela, as folhas caírem das árvores, o verde suave do arvoredo que circulava Vila Nova, com a igreja ao fundo e o centro em primeiro plano, movia-me o caminho da aventura, para o infinito. Sentava-me a um canto da escada, durante horas, e sonhava.
   QUANDO atingi 7 ou 8 anos, começaram os dias da meninice, e apareceram de novo as picadelas, que eu descrevia com tanto desencanto. Nesta época, já tinha fraca saúde e, com ela, uma dependência preocupante de não poder cuidar de mim mesmo. Não era alto para a minha idade, mas era forte e rijo. Tinha um encaracolado de cabelo castanho-escuro, que eu emplastrava para não encaracolar. Meus olhos eram castanhos; minha pele, quando não estava ao sol, era branca. Tinha um jeito e um sorriso cativante que, com o meu arrastado modo de falar, me faziam querido dos companheiros.
   FOI DURANTE as picadelas de 2006. Meus pais estavam tomados de medo. Depois de uma consulta no Hospital de Penafiel, ficaram a saber que eu tinha uma malformação cerebral grave. A única esperança residia em eu ser submetido imediatamente a uma grande operação. A cirurgia, cujo diagnóstico ainda um pouco reservado, era extremamente
arriscado. “Tu és um bom menino”, disse o médico em tom ameno. “Vais ver que vai tudo correr bem.” As palavras do médico tocarem em mim.
   Mas, na mente dos meus pais residia um só desejo: curar-me. A minha mãe tinha-se apercebido de que nem tudo estava a correr bem comigo. A minha cor amarela, as minhas mãos e pés pareciam atados, ficava incapaz de andar quando caminhava e os movimentos que faziam eram dolorosamente custosos. Nessa ocasião, minha mãe meteu baixa ao trabalho, e passou a fazer-me tomar os medicamentos. Prometeu trazer-me um docinho se eu me portasse benzinho.
   De início, era minha intenção manter a promessa mas, naquele tempo, quando apareciam as picadelas, eu ia ao tapete. Numa dessas vezes, um cão rafeiro veio sacudindo a cauda e cheirando, como a pedir remédios (que lhe dei), e então ficou meio sonolento, acabando deitado no tapete até que, finalmente espevitou e saiu pela porta aberta, arrastando consigo os chinelos e os sapatos. Foi aí que a minha mãe chegou, olhou por baixo dos óculos de sol, admirados de espanto, e perguntou: “Que diabo está havendo aqui, Pedro?”
   NO GRUPO de crianças de Vila Nova, o meu preferido era o Zeca das Filoses, filho do sapateiro da terra. Ele era estúpido, bruto e mal- amanhado, mas tinha um coração maior que o de uma montanha. Sua liberdade era inteiramente sem restrições. Era o único menino realmente independente em todo o povoado e, por isso, estava sempre feliz e era invejado por nós. Gostávamos dele; tínhamos prazer em tê-lo como companhia. E quando não andámos com ele, tínhamos saudades dele. As lembranças da infância sempre ficaram em mim e, delas, criei o meu mundo – a fantasia universal dos meninos de todo o mundo.
   No meu irreal, a minha namoradinha, era a Maria Albina. Lembro o nosso primeiro encontro. Eu estava nas escadas, quando a vi chegar e ela não me viu. Eu tinha uma flor na mão. Coloquei-a entre os dedos das mãos e, com uma espécie de salto felino, coloquei-me junto dela, e pendurei-lhe a flor no cabelo. Logo nos tornamos amigos depois disso.
   Recordo outra lembrança que um sonhador poderia sonhar, concretizou-se quando na noite da morte do Tio Zé, houve um trovão tão forte que eu, na cama, em casa, estava sonhando de que o diabo tinha vindo buscar a alma pachorrenta do Tio Zé. Cobri a cabeça, e rezei fervorosamente, para que o demónio não decidisse aproveitar a viagem e me levasse também. Foi uma noite horrorosa, que só desapareceu com o amanhecer.
   MEU TIO, Artur Fonseca, era reformado, e a sua casa ficava a uns 5 quilómetros da nossa zona. Vivia com ele, um filho mongoloide, Fernando, nós tratamo-lo por ´Nando`de 37 anos. Era um homem gordo e afável. O benjamim da família. Desde bebé, até hoje, era um ritual para a minha família aos fins-de-semana, irmos visitá-lo. Era um lugar recatado para um menino. A casa era independente e ficava numa curva da estrada e tinha um pequeno terreno à frente. Atrás da casa, um grande terreno com cerca de 1000 metros quadrados, onde se plantavam couves, tomates e hortaliças, do lado da vedação, havia uns anexos para as galinhas, coelhos, adega e, depois deste a arrecadação para as ferramentas e outros – um lugar fresco e pacato para confraternizar; e havia até mesas, cadeiras e bancos que serviam para os piqueniques caseiros e festas comemorativas.
   QUANDO eu era puto, havia só uma ambição permanente entre os meus sonhos: ser bombeiro da corporação da minha terra. Tinha ambições passageiras e diferentes, mas eram apenas passageiras. Um dia, quando um circo apareceu e se foi, eu queria ardentemente me tornar um palhaço, com o rosto pintado de branco que apareceu por esta zona e me deixou ansioso por aquela espécie de vida; de vez em quando, tinha esperança de que, se vivesse e fosse bom, Deus permitiria que fosse um pirata. Essas ambições desapareciam, cada qual por sua vez, mas, a de me tornar bombeiro da corporação da terra, era permanecia sempre.
   COMECEI a escrever o meu diário, com a ingenuidade confiança de minha idade. Se não tivesse confiança do que iria escrever e nem acreditasse nas minhas aptidões, não teria nem coragem de começar. Achava que um aprendiz precisava apenas manter minha memória no rumo, e mais do que isso, acreditar em mim, e na frescura da imaginação. Durante quase um ano, adquiri a forma de datilografar na informática, rasurando e escrevendo a preceito; como era norma, à luz do dia, à luz da vela, no escuro cinzento, ao luar brilhante ou no peito da escada. Naquele lento e custoso aprendizado, conheci basicamente vários tipos de programas computorizados que se possa imaginar. Quando me lembro de um caso bem timbrado, ou de uma ficção bem elaborada, geralmente tenho um interesse caloroso e pessoal nele, por tê-lo retratado n as minhas páginas.
   NAS CELEBRAÇÕES eufóricas das festas das Vitórias, em Vila Cova, não pude deixar de recordar aqueles momentos do Verão e todos os que os antecederam. As raparigas de saia azul e camisa branca marchavam pelas ruas ao som de tambores, acompanhadas pelos rapazes de calça-azul e camisa branca a tocar instrumentos de sopro, homens, vestidos ornamentados carregavam o andor aos ombros do Santuário da Nossa Senhora. Passeantes e ricos proprietários mostravam-se nas janelas de suas casas entusiasmados de emoção. Famílias completas. Faziam fila em passeios e bermas, muitas com crianças ao colo e outros apinhavam-se nas barracas de bugigangas ávidas de recordações. Era um espetáculo bonito. Fiquei de cama durante 4 dias e alguma gente me congratulava, chamando-me ´valente`, porque eu estava no átrio da igreja quando o cortejo chegou. Deus me ajudou.
   ISTO foi no dia 7 de Março de 2007. Dois dias depois, quando uma visita a Amarante, vi um primo meu no meio do passeio dando-me notícias. Disse isto: “A Albina descansou em paz hoje.” Ela tinha apenas 16 anos e quatro meses. No dia 26, a mãe e as irmãs assistiram ao seu funeral – ela havia sido o meu sonho prodígio e a minha adoração. Albina foi enterrada na sua terra natal. Encontraram um pequeno poema de que eu gostava, e gravaram-no na pedra da campa:

Sol quente do Verão, vem brilhar junto a mim; Vento quente do Sul, vem soprar junto a mim;
Terra cinzenta de cima, não me peses, não;
Bom dia, bom dia, bom dia, coração.

   ENTRETANTO, do Hospital de Penafiel, vieram notícias para o meu internamento. O doutor, um médico de clínica geral e a sua equipa tinham estado a pensar em mim, e chamaram a minha mãe aparte.
   “Receio que o seu filho tenha um nervo deslocado no tronco cerebral”, disse um deles. “Vamos ter de o operar. A mínima lesão nessa área do cérebro pode causar paralisia e até perda de fala.”
   Meus pais estavam conscientes da gravidade do meu caso. Apesar disso, eles tinham sido corajosos.
   “Hei-de ter forças seja lá onde for”, afirmou minha mãe ao doutor. “O Pedro tem de ficar bom. Temos de rezar por um milagre.” Meus pais decidiram confiar no médico e sua equipa. “Ele é um bom médico”, pensaram. “Ele há-de compreender o problema do Pedro.” Corajosamente um médico da especialidade, disse-lhes que atualmente
os meninos com o meu problema, ficavam normalmente curados com uma única operação. Encantada com a ideia de eu poder ser curado, meus pais tentaram pôr de lado as emoções e pensar na operação a que eu ia ser submetido. Discutiram ambos os riscos. Meu pai sussurrou ao ouvido da minha mãe que tinha um olhar assustado: “Vai tudo correr bem.” Noite dentro, sentados a um lado da minha cama, o meu pai sentiu-se invadido pelo terror. “Não posso perder o rapaz”, pensou.
   NA MANHÃ, naquele dia de 2008/, pouco antes do amanhecer, fui operado no Hospital de Penafiel. Poucos dias depois, ao fim da tarde, os meus pais entraram no quarto do hospital e, minha mãe, deitando um longo olhar sobre mim, ficou gelada.
   “Oh, meu filho, tu não estás bem?”, afirmou. “O Pedro está muito amarelo.” Quando ligou para o cirurgião, este aconselhou-a a ter calma e fé. “Ele vai ficar bom com o tempo”, acrescentou o cirurgião. À medida que o tempo passava, o meu estado clínico não passava de um

                     (CONTINUA NO PRÓXIMO NÚMERO)