Thursday, December 15, 2011



CONTOS DE RATAZANA
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5. Episódio
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Eis como a paródia mudou o rumo dos acontecimentos e castigou severamente Catanada, Pascácio e Very nice.                           ~~~~



A tarde apresentou-se tão límpida como a idade toca o homem bom. Branco penetrou no espaço solar. As sombras da rua ficaram mais claras e frisadas pelo sol que espelhava pela rua. Os seguranças juniores que acreditam que o chinfrim aquece durante a noite alta deixaram os seus trabalhos, e os seus lugares foram preenchidos por aqueles que estavam convencidos ser na noite baixa que o chinfrim pega a sério. À uma e meia a sombra mudou e refugiou-se de mansinho para o mar, sobressaindo todo o aroma dos cheiros das comidas. Os seguranças, que nos sítios movimentados do Porto vigiavam as entradas, puseram de parte as vigílias e enrolaram conversa nas pontas. Pelas ruas da cidade, homens gordos, em cujas pupilas havia o cansaço e a moleza que tantas vezes se vêem nos olhos de outros, iam sentados em variadas marcas de automóveis a caminho da baixa, a fim de tomarem vinho e café com bagaço. Na rua estreita e funda, o barbeiro, colocou na porta do estabelecimento um letreiro que dizia «Não demoro» e foi para casa passar o resto do dia. Os toldos decoravam estáticos e tesos. Os cães, que, às dezenas, eram livres e passageiros de ruas, regozijaram pacificamente a sua bela sina.

Catanada e Pascácio, sentados, debaixo de um toldo amarelo-torrado na esplanada do café da esquina das Antas, bebiam serenamente o seu uísque e deixavam que a tarde passasse por eles, pouco a pouco, como a barba.

— É bom que a gente não dê ao Pipocas as duas amigas da vizinha — disse Catanada. — É homem que pouco freio põe no sexo.

Pascácio concordou.

— Pipocas tem um ar animalesco — disse — é gente assim que, vai-não-vai, se estoira. Olha o Caga-Milhões, olha a Faroleira.

O realismo de Catanada veio levemente ao de cima.

— Caga-Milhões caiu na banheira do seu apartamento, no Covelo — comentou num tom reprovável —, a Faroleira comeu um gajo que tinha a picha estragada. Mas — prosseguiu, amável — eu sei onde queres chegar. E há muita gente que lerpa por abusar do sexo.

Toda a cidade começou a preparar-se para o inicio da tarde. A cozinheira do restaurante cortou pequenos nabos para a sua sopa preferida. O tasqueiro das pipas ao alto, deitou água no vinho e marcou-o para o vender depois das três da tarde. Depois despejou um pouco de pimenta no bagaço que ia servir ao fim da tarde. No salão de dança Mexe o Pé, o marcador de sala abriu uma caixa de chocolates e dispô-los, envolvendo-os nuns guardanapos de papel vermelho, em pequenos piris de cerimónia. Um pequeno grupo de reformados que tinha passado um bocado da tarde dentro do jardim do Campo 24 de Agosto jogando dados com os amigos pôs-se a caminho da estação de São Bento para a chegada do comboio, vindo de Rio Tinto. Famintos, os pássaros levantaram voo dos telhados em frente das casas e lançaram-se na direcção dos quintais traseiros. Nas lojas de comércio, os proprietários levantaram as cortinas em todas as montras. A mulher gorda da máquina das pipocas, de 114 quilos de peso, levou, como todos nos dias, a sua gata de raça siamesa, e pôs-se a vender na parede exterior da Igreja dos Congregados.

Na vizinha e acolhedora Vila Nova de Gaia, os participantes da Corrida Boas Pernas reúnam-se para tomar café e bagaço e participar, ao mesmo tempo que esperavam pelo presidente da comissão. Uma senhora baixota discutia com ligeireza e cor o problema do vício da prostituição no Porto. Dizia ela que uma brigada devia visitar essas casas do vício carnal a fim de ver exactamente como, na verdade, eram penosas as condições aí existentes. O Sol dirigiu-se para o poente e ganhou uma tonalidade alaranjada. No café da esquina, debaixo do toldo, Pascácio e Catanada beberam o primeiro mata-bicho da tarde. O dono do café saiu do estabelecimento e passou ao lado sem reparar nos seus novos fregueses. Estes esperaram que ele desaparecesse a caminho do mercado; depois, entraram no estabelecimento e, com um conhecimento de causa, levaram a rapariga a acrescentar-lhes uísque. Deram-lhe uns beliscões nos braços, chamaram-lhe «Meu limãozinho», permitiram-se umas bocas levianas com a sua pessoa e, por fim, foram-se embora, deixando-a corada e um tanto despenteada.

Iniciara-se a tarde no Porto e as lojas tinham-se aberto. Nas montras havia uma claridade total. Os panfletos lançados na rua anunciaram em relevo: «Os Socos do Abana-Abana — Os Socos do Abana-Abana». Um pequeno mas endiabrado grupo de homens que acreditam que o chinfrim pega de noite montaram vigilância nas lojas principais do quarteirão. Através da rua deslizou um suave respiro que ficou a flutuar à roda das casas; o ambiente encheu-se do belo aroma que o ar larga ao ser respirado. Pascácio e Catanada voltaram para o toldo e encostaram-se na parede, mas já não estavam tão contentes como antes.

— Está calor aqui — disse Catanada, bebendo um gole de uísque para refrescar.
— Devíamos ir para o apartamento do Pipocas. Não tens aí as chaves? — retorquiu Pascácio.
— Tenho. Mas não temos uísque para beber.
— Bem — continuou Pascácio —, se encontrar ali um amigo da garrafeira, encontro-me já contigo à porta do apartamento.

E foi o que fez, passados quase quinze minutos.

Catanada esperou pacientemente, pois sabia que há coisas que mesmo os nossos amigos não podem resolver. Enquanto isso, Catanada olhava atentamente a rua na direcção que Pascácio havia tomado. A sua vigilância, porém, foi pouca. Passado um bocado, Pascácio veio ter com ele e Catanada reparou com alívio e satisfação ao ver que o amigo trazia uma garrafa embrulhada em jornal debaixo do braço. Até entrarem no apartamento, Pascácio não fez qualquer comentário acerca do seu recente desenrascanço. Depois repetiu as palavras de Pipocas:

— Uma mulher de ajuda, aquele «Meu Limãozinho».

Catanada, no escuro, fez um sinal de concordância ao abanar a cabeça, ao mesmo tempo, que exprimia uma calma sabedoria:

— Raramente se consegue tudo no mesmo café: uísque, comida e amor. Qualquer dia temos de lhe oferecer um presente.

Catanada abriu as janelas para trás. Em breve o ar estabilizava airosamente. Os dois amigos puxaram as cadeiras para o meio da sala e seguraram nas tigelas perto das janelas para relaxaram melhor o ambiente. Nessa tarde a ânsia era enorme, pois Pascácio havia comprado um vibrador para fazer uma pequena brincadeira. Alguma coisa, porém, distraíra o seu pensamento antes de esse camuflado plano ter sido levado avante. Agora o pequeno embrulho jazia, amarfanhado no bolso das calças.

— Dava uma moeda de dez escudos para saber por onde é que Very nice anda — disse Catanada.
— Já passou um bom bocado desde que disse que voltava — disse Pascácio. — Não sei se é homem para se fiar nele, ou não?
— Talvez tenha acontecido alguma coisa que o levasse a perder-se. Very nice, com aquela lábia de locutor e aquele seu coração de galo, anda quase sempre em sarrabulhadas por causa das mulheres.
— Ele tem é cantos de cigarras — respondeu Pascácio. — Nunca leva as coisas a sério.

Não esperaram por muito tempo. Mal tinham emborcado a segunda tigela com uísque quando Very nice chegou meio a cambalear e abraçado em três raparigas de aspecto patusqueiras. A camisa estava aberta e o nariz cheio de ranho. Entrando, a claridade de fora revelou uns olhos pesqueiros que apregoavam estar bem tocado. Pascácio e Catanada precipitaram-se para eles.

— O nosso amigo está bonito!
— Mas trás com ele um comboio, Catanada!

Não havia nestas palavras o mais ligeiro sentido sarcástico, mas, Very nice reconheceu nelas o mais destruidor género de sarcasmo. Encarou-os fixamente com os olhos pesqueiros que em tais circunstâncias ainda tinha algum querer,

— Vós sois uns grandessíssimos bois! — exclamou.

Ambos recuaram estupefactos perante a grosseria da afirmação. Das palavras aos actos, uma das raparigas agarrou-se a Castanada e a outra ficou-se pelo Pascácio. Subiram para o quarto grande tão depressa quanto possível. Very nice dirigiu-se para o quarto de banho e levou os amigos atrás dele.

— São estas as amigas da vizinha? — perguntou Catanada.
— Sim — disse Very nice —, desta vez vieram mais tarde.
— Devem ter uma boa pedalada — comentou Pascácio, a fim de elogiar as conquistas do amigo. — A gente sabe que em engates és um homem habilidoso.

Very nice pareceu ter ganho um novo fôlego.

— São da aldeia — disse. — A vizinha também ajudou. Deu-me uma garrafa de uísque para trazer.
— Essas varredoras das limpezas que não vão por dinheiro são traidoras, amigo — interveio Pascácio. — Sempre lhes destes aquela coisa que põe a cabeça à roda?

Very nice meteu a mão no bolso e tirou um amarrotado papel enrolado numas fotos.

— Não tinha chegado o momento — disse. — Estava no preparo; além do mais, ainda não tínhamos entrado na paródia.

Catanada fungou e tirou as fotografias da mão de Very nice e, passando os olhos por elas, pôs-se a pensar. Passado um instante os olhos brilharam-lhe de intensidade.

— Já sei! — exclamou. — Vamos dar isto ao Pipocas para ele lhes telefonar.

Logo aplaudiram a ideia e voltaram para o quarto grande, onde as raparigas aguardavam impacientemente por eles. A porta é fechada. Há pensamentos ao redor, de ambos os lados, tirando as suas roupas, ao estilo português, como se fossem puros casais. A pouco a pouco, como Catanada gostava, o cenário ia ganhando forma. Dava força de um programa gozá-lo calmamente. Uma boa paródia reside nas brincadeiras meio contadas que devem ser preenchidas pela própria experiência do leitor. Catanada tirou o soutien do peito da rapariga e, passando os dedos pelos peitos dela, pôs-se a massajá-los. Passado um bocado os olhos brilharam-lhe alegremente.

— Que mimosos! — exclamou. — Se o Pipocas visse isto, caía da cama abaixo!

Todos, sem excepção, apalparam-se uns aos outros. Pascácio, com uma dedicada atenção de barman, botou uma porção de uísque nas três tigelas para ser dividido por seis. Instantes depois, os três homens começaram às piadas. Catanada contou uma história super brincalhona a respeito de um caso que acontecera ao tio. A satisfação começou a reinar; cantaram. Very nice levantou os pés numa imitação de número para provar que não estava com a moca toda que não fizesse um, oito. Dentro da garrafa, o uísque ia desaparecendo cada vez mais. Mas antes de se acabar os três amigos começaram a ficar com excitação. Pascácio sacou a vizinha e dirigiram-se para a cama do quarto pequeno, meios grossos. Very nice esticou-se confortavelmente na cama redonda, ao lado do par Catanada e de uma rapariga.

O amor acendeu-se. As camas encheram-se dos ruídos profundos que os casais faziam a fazer amor. Na cama do quarto pequeno apenas uma coisa fazia um ruído estranho. O comprido vibrador, de cabeça arredondada como pénis, que a pilha controla, entrava e saía no ânus da vizinha com alguma rapidez. A pouco e pouco a pilha foi ficando mais gasta. Pascácio, cuja gulosa acção era responsável pelo divertimento, gozava ainda mais satisfatoriamente do que os seus companheiros. Mas, uma vez que não há força na pilha, Pascácio colocou um simples cabo eléctrico à tomada da parede. Tal acto gerou um aumento de corrente eléctrica que perpassou através da tomada da parede. O curto-circuito lambeu a corrente e correu direito ao disjuntor que deu um rebentamento. O apartamento encheu-se com a gritaria deles. Very nice assustado, virou-se e, sem se lembrar onde se encontrava, caiu da cama e, começou a vestir as calças. Então, a rapariga em saltos, caiu-lhe em cima. Levantou-se com um berro e ficou perplexo perante o nervosismo que à sua volta se apoderara.

— Catanada! Pascácio! — gritou.

Correu para o outro quarto, abriu a porta de empurrão e ficou boquiaberto a olhar a cena. A vizinha tinha desmaiado e tinha ainda o vibrador preso ao ânus. Ficaram em frente dela, olhando para o interior através da porta aberta. No fundo da parede podiam ver o negro da tomada estilhaçada com os fios todos aos desencontros. Catanada em calafrios, virou-se para Very nice.
— Não mexas nisso? — gritou. — Deve ficar assim até o electricista vir compor a tomada.

O barulho das cortinas e a exclamação das bocas dos moradores que, vindos dos prédios vizinhos, subiam até cima, ainda lhes permaneciam nos ouvidos. As grandes varandas encheram-se e os olhos dos seus moradores dançaram de perguntas. Catanada virou-se apressado para Very nice.
— Vai à rua telefonar ao Pipocas que a vizinha está desmaiada no apartamento. Corre depressa, Very nice.
— Porque é que não vais tu?
— Ouve — responde Catanada. — Pipocas não sabe que é a ti que vai pedir responsabilidades. Foste tu que trouxestes as raparigas, não fomos nós.

Very nice entendeu esta lógica e foi à procura de uma cabine telefónica. Ligou um número.

— Pipocas! — gritou. — Pipocas, a vizinha desmaiou no teu apartamento.

Não obteve resposta.

— Tás-me a ouvir? — gritou de novo. —

Na casa da Senhora do Porto, ouviu-se vozes de raparigas. Pipocas pareceu irritado.

— Que diabo estás tu para aí a dizer?
— No teu apartamento, aquele onde o Catanada teve a prostituta, está lá uma rapariga desmaiada.

Durante uns segundos Pipocas não disse uma palavra. Depois perguntou:

— Está lá a polícia?
— Está a chegar! — gritou Very nice.

A rua estava já tão serena. Ouvia-se o correr das cortinas a baixar.

— Bom — disse Pipocas —, se a polícia fizer alguma coisa, o que eu quero que vós fazeis, é não me meter ao barulho?

Very nice ouviu o auscultador cair com um estrondo; voltou-se e dirigiu-se para o apartamento. Era uma ocasião má para chamar o Pipocas, sabia-o de antemão, mas se não fosse assim, como é que se lhe podia dizer? Se Pipocas não tivesse sabido do desmaio podia ter ficado danado. Very nice sentia-se aliviado por, de qualquer modo, tê-lo informado. Agora a responsabilidade era dos outros. O prédio era pequeno, havia muita gente que trabalhava de dia e às tardes estavam praticamente ausentes. Talvez houvesse gente que não tivesse ouvido os gritos dum curto-circuito tão rápido e tão mordaz. Os polícias deram uma vista de olhos pelo local e depois deram à socapa. Em menos de quinze minutos o carro tinha desaparecido completamente. Só então as raparigas se retiraram para as suas casas e tentar esquecer aquele episódio burlesco. Catanada, Pascácio e Very nice, mãos com mãos, observavam a rua. Metade dos moradores da zona e alguma gente das Antas, excepto Pipocas e a Senhora do Porto, andaram por ali curiosos a saber do curto-circuito. Por fim, quando o descomposto estava composto, quando da tomada eléctrica apenas se topava um montão de fios destorcidos, Catanada afastou-se silenciosamente.

— Aonde vais? — perguntou Pascácio.
— Para casa, dormir. Será bom que também o faças. Durante um certo tempo, temos de evitar que Pipocas nos veja.

Calados e silenciosos, os outros concordaram e seguiram-no.

— É uma lição para todos nós — disse Catanada. — Assim aprendemos a nunca deixar o quadro eléctrico ligado para estas paródias dentro de casa.
— Para a próxima — retorquiu Pascácio, abatido — comemo-las lá no monte e pronto.


Thursday, November 17, 2011


CONTOS DE RATAZANA
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4º Episódio
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Eis como Very nice, um bom rapaz,
se tornou um involuntário transporte do vício

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Para Catanada e Pascácio a vida corria sem ondas. De manhã, quando o sol testava na terra, quando o reluzente dia não é altura para pressas nem para azáfamas, os pensamentos são lentos, profundos e dourados. Pascácio e Catanada, um de calças de ganga e outro de calças de bombazina e camisas escuras de mangas curtas, iam, como dois companheiros, até à esquina situada ao fim da rua e, momentos depois, voltavam para se sentar ao sol no banco do jardim, ouvir as cornetas dos vendedores ambulantes nas ruas de Marco de Canavezes e falar, num tom pachorrento e irónico, dos acontecimentos dos bairros do Porto pois aí, em cada hora que passa, há milhares de excitantes eventos. No jardim estavam eles em paz. Só os dedos das mãos se mexiam sobre as quentes roupas quando as moscas nelas pousavam.

— Se todas as moscas que nos tocam fossem notas — disse Pascácio — muito ricos seríamos. Passávamos a vida entesuados.

Catanada, contudo, acrescentou:

— Toda a gente teria montes de moscas. Deixavam de ter interesse; mas o sexo custa sempre dinheiro. Se ao menos durante um dia oferecessem sexo e nós tivéssemos um harém para o pôr lá.
— Mas sexo de categoria — interrompeu Pascácio —, não daquele foleiro que tu arranjaste da última vez.
— Não o conquistei — retorquiu Catanada. — Alguém mo deu depois de sair do salão de baile. Que é que estás à esperas do sexo que se oferece?

Levantaram-se e sacudiram brandamente as moscas com as mãos.

— Ontem a Xanana Maluca deu com uma garrafa na cabeça do cigano, no pinta — observou Catanada.

Pascácio levantou os olhos, comedidamente interessado.

— Pancadaria? — perguntou.
— Não. O cigano não sabia que a Xanana ontem tinha orientado outro gajo e tentou forçar a porta; de modo que ela deu-lhe com uma garrafa.
— Devia ter-lhe dado com duas garrafas — julgou Pascácio, moralizador.
— Não. Ela só tinha uma garrafa na mão. Mas não estava zangada. O que ela queria era que ele não fosse bisbilhoteiro.
— O cigano é burro — julgou Pascácio. — Agora está de molho?
— Ela só fez uns arranhões na tola. Vá lá que ele tem muito cabelo á frente. O que ela queria era que ele não andasse para ali a cheirar.
— A Xanana não é uma mulher muito atinada — continuou Pascácio. — Mas ainda manda pensos com borato para aliviar as dores do cigano, que já está de choco há três dias.
— E ele bem precisa deles — observou Catanada. — É um bom malvado e no entanto nunca lhe acertaram uma. Xanana disse-me uma vez que o cigano era mais mafarrico que o burro quando saiu com ele pela primeira vez. Mais tarde, ela afirmou que só aceitava metade dele por causa do cheiro que ele botava.

Pascácio num movimento de cão, mijou numa parede esquinada que se deparara à sua frente.

— O cigano sempre foi assim — disse. — Muita garrafa aquele diabo vai levar. Mas achas que uma mocada de uma garrafa faz efeito quando o dinheiro para ela sai dos bolsos dos cabritos que dormem borrachos em casa de Xanana?
— Uma garrafa é uma garrafa — respondeu Catanada. — Ao vendedor que te vende a garrafa está-se borrifando donde tu vens com o pilim. O bêbedo também não quer saber donde vêm as garrafas. Gosta delas, assim como tu gostas de beber. O bêbado Arcanjo costumava passar a vida nos tascos e, semanas a fio, a primeira gota sabia a lixívia, mas isso não a fazia menos gota. Os bêbedos é que têm de explicar essas coisas. Não somos nós que temos de nos preocupar com explicações. Gostava era de saber onde é que a gente pode arranjar umas boas bifanas. Uma boa bifana agora vinha a calhar.

Pascácio puxou os óculos do sol para cima da nuca para que o longe se tornasse perto.

— O Carlos Matos contou-me que o Pipocas está com a morena, a filha dos Cabaços.

Pasmado, Catanada sentou-se em frente.

— Talvez a cachopa queira casar com o Pipocas. Esses Cabaços andam sempre a querer casar, gostam mais de dinheiro do que eu de chocolate. Depois de casado, o Pipocas é capaz de nos cortar o hábito de usarmos o apartamento. Essa tal morena vai querer vestidos novos, jóias; todas querem, eu conheço-as.

Pascácio também parecia aborrecido.

— E se a gente fosse falar com o Pipocas, talvez pudéssemos… — sugeriu.
— Pode ser que ele queira ir comer uma bifana — disse Catanada. — As bifanas da Conga, são picantes.

Enfiaram-se dentro do carro e dirigiram-se velozmente para o apartamento de Pipocas. Catanada abaixou-se e evitou levar com uma ponta de um cigarro ainda acesa na cara; depois, atirou-a fora com um palavrão.

— Foi algum cabeçudo que a mandou para aqui para nos assustar.
— A tarde passada fui eu que levei com uma — disse Pascácio.

Foram encontrar Pipocas no apartamento, sentado na cadeira de baloiço, atrás da mesa, atirando as fumaças da cigarrilha para afugentar as teias de aranha.

— Ei, companheiros! — saudou-os ele, com moleza.

Puxaram das cadeiras e sentaram-se ao lado de Pipocas e Pascácio atirou com a pasta para um canto. Pipocas puxou de uma caixa de pastilhas e algumas cigarrilhas e passou-as a Catanada. Este pareceu um pouco assolapado, mas não fez qualquer restrição.

— A Xanana Maluca deu com uma garrafa no cigano branco — disse.
— Já ouvi dizer — retorquiu Pipocas.

Pascácio interveio com mau humor.

— Essas mulheres não têm problemas de espécie alguma.
— É perigoso um homem fazer amor com elas — disse Catanada. — Disseram-me que há cá no Marco de Canavezes, uma rapariga, uma Cabaços, capaz de pôr um homem levado da breca para toda a vida se ele se meter na ilusão de querer saber o que é.

Pascácio deu alguns estalidos provocados pela pastilha com a língua. Abriu as mãos puxando os dedos.

— Como é que um homem há-de saber? — perguntou. — Pode lá ter-se confiança em alguma?

Olharam o rosto de Pipocas e viram que este não revelava sinais de inquietação.

— A rapariga é conhecida pela morena — disse Catanada. — Agora o resto não é preciso.
— Oh, estás a referir-te à Maria Morena — observou Pipocas muito pouco entusiasmado. — Bom, o que é que se pode esperar de uma Cabaços?

Pascácio e Catanada respiraram aliviados.

— Então que tal irmos comer uma bifana à Conga? — perguntou Catanada como por instinto.

Pipocas abanou rapidamente a cabeça.

— Nem pensar. Comi agora um prato de feijões que me encheram e fiquei como um sapo.
— Como vão agora os teus borrachos? — interveio Pascácio na mudança da conversa.

Pipocas agitou um dedo para a frente e para trás em sinal de reflexão.

— Telefonou-me a Senhora do Porto para ir lá ver os borrachos que chegaram dos bairros, que ia ficar babado por dentro e por fora.
— É alguém que eu conheço? — quis saber Pascácio.
— Sei lá. Acho que os borrachos devem ser todos novos.
— Já lá abriste uma garrafa de uísque, não? — sugeriu Catanada.

Pipocas sorriu-lhe cinicamente.

— Ofereceu-me a Senhora do Porto quando eu fui lá a casa ontem à noite. É uma boa mulher em certos aspectos e também não é lá nenhuma carcaça.

Pascácio e Catanada voltaram a ficar alarmados.

— Um nosso amigo diz que ela tem mais de 50 anos — disse Catanada com alvoroço.

Pipocas estendeu os pés.

— É letra. Poucos mais têm de 40 anos. E que impedimento tem ser quarentona? — afirmou filosoficamente. — É uma mulher cheia de fúria. Tem um apartamento e uma dúzia de gajas a atacar. — Depois ficou um tanto baralhado. — Gostava de lhe dar uma foda.

Catanada e Pascácio puseram-se a olhar para o chão e tentaram sacar da cabeça uma ideia mais flutuante, mas os seus esforços não deram nenhum efeito.

— Se eu tivesse uns patacos agora — disse Pipocas — levava a ela e às suas meninas a dar um passeio de barco pelo Douro abaixo. — Olhou os seus companheiros das andanças com uma expressão significativa, mas nenhum deles se pronunciou. — Só precisava de uns cinco ou dez contos — sugeriu.
— O meu cliente do banco anda na observação das acções — observou Catanada. — Pode ser que tu orientes no advogado por um dia.

Pipocas retorquiu com azedume.

— Parecia mal que um homem que é proprietário de duas casas fosse pedir emprestado. Agora se me pagassem umas continhas que andam por aí…

Catanada ergue-se com estrebucho.

— Sempre as continhas — exclamou. — Tu atiravas connosco para dentro das grades… para a cadeia, enquanto gozas como um barão. Anda, Pascácio — disse irritadíssimo. — Vamos desandar daqui, senão ainda nos cobra a permanência, este miserável, este semítico.

Saíram ambos.

— Onde é que a gente vai agora? — perguntou Pascácio.
— Vamos indo — retorquiu Catanada. — Talvez ele nos volte a chamar.

A maneira exigida, tinha, contudo, entrado a fundo no espírito dos dois homens.

— Quando o apanharmos vamos chamá-lo «Gordo semítico» — disse Catanada. — Há anos que somos amigos dele. Quando ele teve dificuldades, demos-lhe de cobertura; quando ele teve solidão, demos-lhes companhia.
— Há quanto tempo foi isso? — perguntou Pascácio.
— Bom, isto é o que a gente teria feito se ele necessitasse de alguma coisa e nós tivéssemos para lha dar. É este o grau da amizade que tivemos por ele. E ele agora, para levar numa viagem de barco pelo Rio Douro acima ou abaixo uma velha histérica, chuta-a fora?
— Deixa lá. As viagens ao rio só fazem enjoos.

Catanada ficou cansado de tanta emoção. Sentou-se numa entrada alta ao lado dum velho prédio e pousou o queixo entre as mãos, abatido. Pascácio sentou-se também, mas para fumar, pois a sua amizade para com Pipocas não era tão antiga e forte com a de Catanada. O fundo da rua estava atafulhada de circulação de carros e de pessoas, Catanada, ao olhar para o fundo, triste e aborrecido, viu um carro ligeiro familiar surgir de um cruzamento. Catanada agarrou o braço de Pascácio e apontou. Pascácio fechou o olho direito e olhou fixamente.

— É capaz de ser quem nós pensámos…

O carro aproximou-se, afrouxou devagar e ladeou o passeio contrário, aparecendo o rosto sorridente e o cabelo grande e despenteado de Very nice.
— Ó, Catanada. Ó, Pascácio — disse, perturbante. — Que fazeis aqui?

Catanada e Pascácio ergueram-se e passaram para o pé dele.

— Amigo, Very nice! Tu não estás sóbrio.

Very nice sorriu docemente.

— Alegre, é só — murmurou. — Vamos ao café, amigos. Hoje entro eu.

Entraram no café e sentaram-se. Catanada pediu um Martini com gingar ale e Pascácio foi num Vinho do Porto Reserva. Very nice pediu uma amostra ao empregado de Favaios e cheirou o vinho. Sorveu primeiramente dois ou três goles e emborcou um copo traçado de vinho com groselha para familiarizar. Por fim exclamou:

My God, que mistura!

Catanada encarou o seu amigo Very nice com uma expressão simpática e admirativa.

— Descobristes alguma mina para estes lados? — perguntou. — Ou foi alguma viúva rica que se prendeu a ti no pub, meu amigo?

Very nice era um simplório e a manobra nunca o abandonava. Tossicou para pôr a garganta limpa e chamou o empregado:

— Dê-me daí outro igual — disse. — Tenho a garganta a reclamar. Já vos conto como a minha vida anda.

Bebeu uma boa dose, o olhar sonhador como o de um homem que tem tanto apetite que pode gastar todo o seu tempo a apreciá-lo e até mesmo a fazer uma dieta um dia sem problema.

— Estava na ressaca em casa há quase uma semana — disse. — Em casa ao pé do gato. Durante a noite a vizinha do lado bateu-me à porta. Era uma bonita figura e trazia umas velas de aniversário para iluminar. Fui com ela para sua casa e festejei até às tantas. Meti-me a beber à vontade, mas apareceram os amigos e só me deram para trás.

— Arranjastes problemas? — perguntou Catanada, sobressaltado.
— Estou a contar-te as coisas por partes — retorquiu Very nice com certo respeito. — Dancei as duas primeiras danças e levei-a para um canto da sala; depois dei-lhe uns beijos pelo pescoço abaixo que ela gostou muito, tão ternos e tão doces que eles eram. Dei-lhe também um ferrão numa mama; passado um bocado, porém, entraram uns moinantes e ela foi com eles.

— Ai os filhos da mãe, roubar assim a vizinha de um homem carinhoso! — exclamou Catanada, apavorado.
— Não é bem assim — disse Very nice, fantasista. — De todas as maneiras era altura dela se pirar. Depois, vim por aqui atrás dela e perdi-me no caminho.
— Então já não tens mulher?
— Não sei — respondeu Very nice. — Ora deixa-me ver. — Rebuscou os bolsos e tirou um papel amarrotado com um número de telefone e uma direcção de uma morada. — Esta noite vou levá-la a ver um daqueles filmes de pôr a cabeça assim à roda.
— É um filme daqueles da gente se agarrar a uma amiga, não é?
— Yá! — respondeu Very nice —, mas não é assim tão picante como tu julgas.

Tossicou mais uma vez. Catanada encheu-se logo de atenção.

— É restos da ressaca — afirmou. — Não faz bem senão apanhares outra. Que dizes, Pascácio, vamos convidá-lo para o nosso apartamento e levamos a sua vizinha. A vizinha já está bastante coçada, mas a gente põe-na fina.
— Que é que vocês estão para aí a tramar? — indagou Very nice. — Eu estou de olho vivo.
— Isso vimos nós — retorquiu Catanada. — Não te esqueças que te apresentamos a Joaquina Racha, faz agora um mês que andas com ela. A Maria Carola também foi no grupo e deixaste-a a semana passada.

Very nice ficou sereno.

— Que é que vocês querem que eu faça?
— Uma parodiazinha — respondeu Catanada, com rapidez. — A tua vizinha vai gostar de nos conhecer.

Very nice envolveu a nota grande numa grande enroscada, de tal modo que qualquer cliente que passasse teria ficado sem saber que nota seria aquela. Pagou a conta e meteu o troco no bolso do casaco. Catanada e Pascácio seguiram o carro de Very nice, tocando de vez em quando na buzina para lhe lembrar que o seguiam na traseira. Entraram na casa dele e deixaram-se cair numas cadeiras almofadadas; depois, embora a manhã estivesse amornar, abriram a janela da sala. Very nice apareceu de dentro com meio galão de uísque enxertado em cima dum carrinho de bar ao lado duma bandeja com copos. A partir daí começaram a fumar e a beber. Pascácio, divertido, falou das pobres criaturas a quem a falta de sexo fazia passar momentos insuportáveis. Depois, foi a vez de Catanada pôr na sua voz um toque de meiguice e falar com reverência da alegria que era viver numa independência. Manhã soalheira, quando já a conversa se esvaziara e o uísque tinha batido no fundo da garrafa e, lá fora, os bafos quentes se infiltravam na sala como nuvens voadoras, Very nice foi baixar as cortinas. E foi no retorno que espreitou pela frincha da porta a chegada da vizinha. Catanada e Pascácio tiveram de puxá-lo para o lado para espreitarem também. Depois Catanada falou enternecido das borgas em que se ficava consolado na cama até a noite ir chegando. No apartamento de Pipocas, ninguém precisava de andar vestido de um lado para o outro a fugir dos olhos da vizinhança e a fechar as cortinas para não ser visto.

Por fim, Catanada e Pascácio acercaram-no de Very nice como dois cães de fila prontos a ferrá-lo. Deixavam que ele se servisse da vizinha em primeiro. Very nice aceitou sorridente. Houve palmadinhas nas costas. O meio galão foi substituído por uma garrafa. Catanada bebeu um longo trago, pois sabia que tinha diante de si a mais difícil manobra. Então, enquanto Very nice estava a desenrolar a rolha, exclamou:

— E agora só a trazes aqui para a gente ver.

Very nice deixou a garrafa e olhou para ele, horrorizado.

— Não! — explodiu. — Prometi à vizinha que lhe levava um filme daqueles. Trago a mulher mas é quando chegar a altura.

Catanada viu que tinha falado demais.

— Quando estavas a dançar lá nos anos, ela mandou os amigos entrar e tu lerpaste. Achas que ela fez isso para que tu comprasses filmes tarados aí numa lojita de gays? Não, meu menino! Ela procedeu assim por que tu não alinhaste num grupo de cavalaria. Achas que ela está interessada nos filmes de roço? E, além demais, aceitamos que atires primeiro — continuou. — Podes comprar os filmes que quiseres que, nós para levantar o pau, só precisamos dela a fazer-nos umas meiguices.

Mesmo assim Very nice reclamou.

— Vou dizer-te uma coisa — continuou Catanada. — Se não apresentarmos a vizinha ao Pipocas somos todos prejudicados e és tu quem aguenta com a maior fatia. Que a gente depois te deite o ganilho, é coisa que a tua alma há-de levar para sempre.

Sob tantas conversas, vinda de vários lados, Very nice aceitou. Passou por Catanada e fechou a porta. Depois, instalou-se o sossego e uma atmosfera calma entrou na sala. Catanada descontraiu. Pascácio levou o copo para o seu lado e a conversa restabeleceu-se.

— Temos de apresentar a vizinha ao Pipocas.

Catanada tornou-se mais falador. As suas mãos puseram-se a brincar com a beira do copo como se estivessem a tocar castanholas.

— O Pipocas, o nosso bom amigo Pipocas, anda a piscar o olho à Senhora do Porto. Não julgues que Pipocas é burro. A Senhora do Porto tem quase cem gajas a atacar para ela. Pipocas quer viajar com ela num bonito cruzeiro pelo Douro para a paparicar.
— Os cruzeiros são coisas chatas — observou Pascácio —, fazem dores de barriga.
— Isso é lá com ele e com ela — disse Catanada. — Se fizerem dores de barriga a ambos, que se tratem.

De repente, uma onda reveladora iluminara o rosto dele.

— Mas, se o nosso amigo Pipocas fizer bem a paparica à Senhora do Porto, come também algumas meninas e, portanto, seremos nós que as comeremos a seguir.

Pascácio abanou a cabeça, irrequieto.

— Seria bom que o passeio de barco de Pipocas não lhe causasse enjoos.

A conversa foi interrompida pela entrada na sala de Very nice, que saltou imediatamente para a brecha.

— Já tratei o assunto com a vizinha que vai arranjar umas amigas. Uma boa farra é o melhor programa para o Pipocas — sugeriu num tom divertido.

Catanada e Pascácio ficaram abismados com a ideia.

— Podemos dizer ao Pipocas que para as contas dele as nossas contas estão arrumadas — apontou Pascácio.
— Mas Pipocas na altura é capaz de não ligar ao que a gente diz. Quem lhe der um pito fica logo a saber o amigo que ele é. De qualquer forma pode viajar no cruzeiro, e lá se oriente, que nós cá esperamos.

Tinham aproveitado de Very nice, a chave de resoluções difíceis.

— Se nós levarmos as raparigas e as oferecermos ao Pipocas, talvez haja festa grande.
— Ora aí está — exclamou Catanada —, é isso tudo!

Very nice sorriu modestamente ao sentir que o crédito pelas suas palavras tinha sido valorizado. Pascácio dividiu os últimos goles de uísque dentro dos copos e todos, fatigados, embutiram após o seu esforço. Orgulhava-os terem chegado a um consenso geral.

— Agora estou com fome — disse Pascácio.

Catanada, levantou-se, dirigiu-se à janela e olhou para o sol.

— Já passa do meio-dia — disse. — Pascácio e eu vamos preparar o terreno, enquanto tu, Very nice, vais a casa da vizinha e das amigas buscá-las, e vê se lá apanhas alguma coisa para comer. Talvez no frigorífico as raparigas te dêem uns enlatados. Talvez consigas sacar umas tantas frutas.
— Não, eu vou convosco — disse Very nice, pois suspeitava que uma manobra, tão normal como inevitável por parte das raparigas, estava a começar a formar-se na sua cabeça.
— Não, Very nice — retorquiu Catanada, firmemente. — É uma hora menos um quarto. Dentro de meia hora estamos lá os três. Encontramo-nos então e desenrasca-se qualquer coisa. Talvez na dispensa haja qualquer coisa que entretenha os dentes.

Very nice pôs-se a caminho da casa da vizinha com alguma relutância, mas Catanada e Pascácio entraram no carro e seguiram, felizes, a rua direitos ao apartamento das Antas.


Saturday, October 29, 2011


CONTOS DE RATAZANA
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3º Episódio
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Com o veneno da posse entranhado dentro de Catanada, logo o mal
triunfou provisoriamente nele



No dia seguinte, Catanada foi conhecer a amante no apartamento. Esta era precisamente aquilo que Pipocas dissera, mas mais alta. Lá estava a sua palmeira-do-brasil, de perna alçada sobre a colcha, a sua almofada cheia de bolinhas, as suas bugigangas diversas espalhadas na gaveta, os seus chinelos vermelhos e o pijama de calções curtos ao lado da cama.

Pipocas tornou-se uma pessoa importante na terra devida a ter casas para rendar e Catanada subiu um patamar por alugar uma prostituta. Não é possível saber se Pipocas contava receber qualquer aluguer ou tirava contra-partidas ou se Catanada contava pagar algum. Se contavam, ambos ficaram associados. Com tudo isto, Pipocas nunca o chateou e Catanada jamais foi chateado.

Os dois companheiros apareciam muitas vezes juntos. Arranjasse Catanada um pacote de investimentos ou juros promissores, que tinha pela certa a presença de Pipocas. E se Pipocas tivesse outra sorte ou engenho no engate, Catanada passava com ele uma paródia de arromba. O bom Catanada teria pago o que fosse se alguma vez tivesse muito, mas nunca teve… pelo menos durante o tempo que demorou para encontrar Pipocas. Catanada era um homem de princípios. Havia alturas em que o chateava pensar na generosidade de Pipocas e na sua própria falta de nota. Um dia arranjou dez contos de uma maneira tão extraordinária que imediatamente tentou esquecer-se do amigo com medo de que a lembrança o fizesse enlouquecer. Em frente do Banco Português do Atlântico um cliente havia-lhe posto um cheque assinado em branco na mão dizendo:

— Anda lá, joga aí nas acções o que palpitares e dou-te percentagem a dobrar. O meu palpite esgotou-se.

Estas coisas acontecem como um milagre — pensou Catanada. Uma pessoa devia aceitá-las como é e não se importar com o resto nem fazer perguntas. Subiu a rua levando a notícia a Pipocas, mas, mais adiante, encontrou alguém e perdeu-se na ladainha. Catanada era um conversador e adorava o convívio. Ergueu os olhos em direcção às horas e a sua paciência esgotou-se para a visita que ia fazer ao amigo. Nova viragem, e fez o retorno. Depois disto, Catanada sentiu-se bem relativamente ao atraso do pagamento do aluguer. Não tido sido o pagador das suas despesas?

Passaram algumas semanas. Catanada começou a preocupar-se agora com a prostituta. À medida que o tempo corria, a preocupação tornava-se maior. Por fim, movido pelo desespero, primeiro, despachou a prostituta do apartamento para fora e, segundo, trabalhou horas a fio a palpitar acções para o cliente do Banco Português do Atlântico e ganhou cinco contos. À noite, pôs a roupa de trazer por casa, toda desportiva, colocou sobre os ombros o coçado casacão de antílope do pai e pôs o carro a descer a rua a fim de dar a Pipocas a notícia da prostituta. Na viagem, porém, comprou um maço de cigarros, e pôs-se a fumar.

«Foi melhor assim», pensou. «O meu amigo, se quiser, que tome conta dela. Do meu dinheiro que me custou os pingos da cabeça a ganhar, não leva nem um chavo. E digo-lhe que a prostituta custava cinco contos por foda.» Isto era parvoíce e Catanada sabia-o bem; no entanto, ficou satisfeito consigo mesmo. Não havia ninguém em Marco de Canavezes que soubesse melhor o preço das prostitutas do que Pipocas.

Catanada guiava, feliz. Decidira-se enquanto avançava em direcção ao apartamento de Pipocas. Os seus pés nos pedais mal tinham deixado de mover-se. Em cima de uma das pernas um caderno de folhas, em cada folha uma cotação da bolsa. O estômago de Catanada nem sequer estava à prova das alturas, visto que, ao contemplar as gaivotas, lembrou-se de que a Senhora do Porto usava algumas vezes gaivotas nas suas comezainas, e essa lembrança deu-lhe apetite, e o apetite aumentou-lhe a ânsia. Catanada prosseguiu na sua viagem. Acabava de chegar à cabana do campo e já estava a pensar como poderia divertidamente passar-se com os telefonemas para os amigos e no tempo em que seria capaz de manter-se divertido.

A escuridão era agora quase cerrada. Já não se via nem a berma da estrada nem o resto que a ladeava. Mas, naquele momento em que a aceleração oscilava entre o depressa e o devagar, nesse momento preciso, Pascácio surgiu, por acaso, a pé, à beira do entroncamento com a pasta da publicidade e com vontade de beber um copo de uísque e de falar um pouco. Pascácio, primeiro, ouviu o ruído do motor, depois viu uma figura obscura e depois reconheceu Catanada.

— Ei, bancário! — chamou entusiasmado. — Que pressa é essa que tu levas?

Catanada estacou e olhou para a berma.

— Julgava que estavas no bairro — disse de malandro. — Ouvi falar numa história com uma mulher da prostituição.
— Estive — retorquiu Pascácio, sarcástico. — Mas não fui bem aviado. A pequena disse que o broche não me fazia nada bem depois do jantar e eu disse a ela que não queria mais nada do que aquilo que estava interessado. E pronto — acabou ofegante —, cá estou mal aviado.

Catanada estava ouvinte. Na verdade, não falou com Pipocas, mas convidou de imediato Pascácio a compartilhar com ele no apartamento que tinha a chave. Catanada e Pascácio entraram alegremente no apartamento. Catanada acendeu a luz e foi buscar duas tigelas para fazer de copos. Trouxe também a garrafa de uísque.

— À tua, meu! — disse Pascácio.
— Chim-chim! — retorquiu Catanada.

E, passados instantes:

— Ao tesão! — disse Pascácio.
— Que nunca se vá! — retorquiu Catanada.

Depois de saborear os primeiros tragos, botaram abaixo o conteúdo da garrafa de uísque, o que é muito, mesmo para uns aficionados. Logo depois do bota abaixo surgiram as conversas com propósitos e despropósitos, contaram recordações suavemente tristes, evocações de antigos e insatisfeitos amores. Um arroto, e reflexões acerca de antigos e infelizes problemas familiares, tristeza geral e confusa. Outro arroto a seguir, canções à desgraça ou à saudade, e todas aquelas lérias que todo o embriagado sabe. Ficam por aqui os arrotos e seus derivados. A partir daí voltam à conversa normal com propósitos e despropósitos, uma vez que foi aí que ambos deram o início.

— Pascácio —, nunca te cansas de andares a dormir em bairro, com a amante, todo feito galifão, sujeito a levares uma farinhola, sem ajuda de ninguém, sempre sozinho?
— Não — respondeu Pascácio.

Catanada pôs na sua voz o doce da simpatia.

— Era o que eu pensava, meu bom amigo, quando era um insignificante rato de aldeia; também eu andava a lestes, pois desconhecia como é bom a gente ter uma vida dupla, e uma amante e um refúgio. Ó, Pascácio, tu é que sabes viver!
— Realmente é outra vida — concordou Pascácio.

Catanada lançou o canto:

— Ouve lá, Pascácio, não gostavas de me alugar uma parte da tua amante? Diminuía para ti a mesada. No teu dia não ia eu; no meu dia não ias tu. Não gostavas que fosse eu e não outro?

— Lá isso gostava — respondeu Pascácio.
— Então, diz lá — perguntou Catanada.
— Olha, pagas só metade da mesada. São trinta contos por mês. E a amante toda fica à tua disposição. Podes dormir com ela e tudo menos aos fins-de-semana. E se ela te autorizar a ires lá a casa tens que pagar mais qualquer coisa.
— Ai, tenho? — disse Catanada. — Isso vamos conversar!

Pascácio puxou de um cigarro e Catanada imitou-o. A sala parecia uma chaminé de fumo. Catanada respirou profundamente. Não tinha entendido como a dívida para com Pipocas se instalara nos seus pensamentos. O facto de ter quase a certeza de que Pascácio nunca lhe aceitaria dinheiro algum não acalmava a sua audácia. Apresentava a prostituta a Pipocas para se servir dela, uma ou mais vezes, e o assunto ficava aviado. Se algum dia Pipocas lhe pedisse contas, Catanada podia responder: «Paguei-te com os favores da prostituta.»

Acabaram de fumar e atiraram com as baronas para o cinzeiro e Catanada recordou-se como havia sido feliz nos seus tempos de menino.

— Nessa altura não tinha eu consumições, Pascácio. Não sabia o que era o pecado. Era bem mais feliz.

— Desde então nunca mais fomos como éramos — concordou tristemente Pascácio.


Friday, October 14, 2011










CONTOS DE RATAZANA
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2. Episódio

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        Catanada foi atraído pela ambição de alcançar uma
    posição de destaque, 
e renunciou a generosidade de Pipocas


Pipocas meteu Catanada no seu Renault, circulou ao ritmo desenfreado a distância até às Antas, no Porto, e só parou à porta da primeira casa. Ficaram em frente do prédio de tijoleira sem pinturas e olharam com admiração o imóvel, um prédio alto e esguio, com varandas por fora, e janelas com cortinas. No corredor, porém, havia uma grande palmeira enfiada num vaso coberto de areia e os halogéneos sobressaíam por entre as tábuas do tecto envernizadas.

— Esta é a mais pequena das duas — disse Pipocas. — Mas é a minha preferida.

Pipocas tirou o porta-chaves do bolso. Atravessou em passos pesados a gasta mármore e abriu a porta principal. O quarto estava tal qual ele havia deixado quando da última noite lá estivera. As roupas da cama com vestígios de alguém lá ter feito uma boa farra, e almofadas sem fronhas. Na mesa o calendário de Marco de Canavezes para 1980, a bandeira de seda no alto com a equipa do F.C. do Porto a olhar para a taça de campeão do último título ganho, o ramo de flores de papel colorido que figuravam nas jarras vermelhas, os apliques de luz indirecta e cestos cobertos de roupas, a cama, os maples de veludo meio sujos.


Catanada espreitou para dentro.

— Um quarto e peras — disse, ofegante. — E uma cama em redondo. Aqui é que a gente vai bombar, Pipocas.

Pipocas avançou rapidamente. Tinha boas recordações dali. Era o seu refúgio à socapa do patrício. Catanada dirigiu-se antes dele, direito à cozinha.

— Olha, uma cozinha em kitchenette! — exclamou. Fez rodar o fogão. — Não tem gás. Tens de chamar um técnico para pôr isto a funcionar.

Sorriram um para o outro. Catanada reparou que no rosto de Pipocas se instalavam os problemas que a propriedade ocasiona. Aquele rosto nunca mais estaria livre de preocupações. Agora que Pipocas tinha propriedades suas, nunca mais queria saber dos outros. Catanada tivera razão. Pipocas elevara-se num patamar acima dos amigos. O seu corpo tinha-se engrossado para superar à complexidade da vida. Pipocas, porém, deixou escapar um grito de lamentação.

— Catanada — disse amargamente. — Quem me dera que esta casa fosse ao pé da outra para que tu pudesses servir dela.

Enquanto Pipocas foi ao banco para lhe mostrarem o extracto, Catanada percorreu o corredor do apartamento que estava cheio de portas separadas umas das outras. Ali havia também caixas de vinho, maduros e verdes, e enlatados diversos que se encontravam em prateleira na dispensa. Catanada, olhou, por cima da vidraça para a marquise do vizinho e viu duas estudantes em topless a apanhar banhos de sol e, depois dum momento de reflexão, pegou nos binóculos e pôs-se à espreita.

«Elas vão gostar de saber que estão ao lado de dois galifões», pensou maliciosamente.

Pensou igualmente na forma de lhes armar uma ratoeira no caso de elas serem lésbicas e nada quererem com os homens.

«A gente aqui vai ser rei», disse novamente de si para si.

Pipocas voltou do banco inconformado.

— O banco não me quer dar o dinheiro.
— Porquê?
— Só me querer dar quando eu tiver vinte e cinco anos.
— Vinte e cinco anos? — disse Catanada com olhar severo.
— Sim. É o que está escrito no testamento.
— Mas tu podes pedir um adiantamento.
— Eu sei — retorquiu Catanada. — Talvez eu possa pedir um adiantamento ao advogado.

A tarde passou.

— Amanhã — disse Pipocas — voltamos cá e trazemos e fazemos umas prostitutas boas. Agora, tapa aí as vidraças para não se ver lá para fora.
— As vidraças? — exclamou Catanada, assustado. — As vidraças, não.

Catanada contou o seu plano acerca das estudantes do vizinho. Pipocas concordou logo.

— Amigo, estou satisfeito por teres vindo ver o apartamento comigo
. Agora, enquanto vou bater uma soneca, tens tu de ir buscar alguma coisa para se comer.

Catanada, lembrando-se do papel dos moços de recados, achou que isto não era correcto.

«Estou a ficar cheio dele», — disse tristemente de si para si. — «A minha paciência vai acabar. Não tarde muito que eu não passe a ser um ajudante de campo por causa deste semítico.»

No entanto, sempre saiu à procura de comprar qualquer coisa para comerem. Passado um quarteirão, perto da rua principal, deu com uma loja de assar frangos do monte, a girar no ferro. Os frangos tinham aspecto de serem novatos, pois eram pequenos, e as pernas, os pescoços e os peitos ainda estavam descobertos de penas. Talvez fosse por Catanada ter estado a pensar, entretido, nas estudantes do vizinho, que estes franganitos lhes despertaram a fome. Continuou na bicha a olhar para o assador, enquanto os frangos giravam à sua volta.

Catanada disse de si para si: «Coitaditas das franganitas sem penas. Porque não vos deixaram crescer mais quando estáveis no vosso tempo de miudagem. Os donos nem sempre são assim tão generosos para os coitados bichinhos.» E pensou: «Andais a dançar aqui no espeto, minhas pobres avezitas. Mas agora chegou a hora que alguém vos vai comer; e se fordes comigo, ainda é a melhor coisa que vos pode acontecer. Mas podeis ficar descansados que, desde as pernas, pescoço, asas e até os ossos, sereis comidos consoladamente. A vida foi demasiadamente cruel para vós, minhas pequenitas.»

Catanada fungava suavemente. De vez em quando, os frangos paravam no ferro, altura do empregado os pincelar com um molho especial, e voltavam outra vez a girar no ferro para a frente. Por fim, chegou a sua vez e Catanada pediu dois frangos como se quisesse ficar bem aviado. Quinze minutos depois, Catanada emergiu da rua e entrou no apartamento de Pipocas. Os pequenos frangos, assados e em bocados, iam embrulhados numa saca de plástico. Ainda a noite não tinha entrado, puseram a mesa com apetrechos. O arrastar da mesa produziu um ruído rasgado. Pipocas e Catanada, bem comidos e bebidos, sorridentes e felizes, estavam sentados voltados um para o outro, e riram-se constantemente. Tinham fumado um charuto de Havana, mas, agora, o fumo que voava através do espaço da cozinha espalhava-se adiante pelo aposento. Para ficar mais perfeito o convívio, o telefone começou a iluminar no mensageiro. Apenas alguns segundos passaram para cair algumas mensagens. Pipocas ouviu rápido de quem eram os envios.

— Está-se a ver que elas querem — disse Catanada. — Pensa nas rapidinhas que curtimos na Xangô. Isto aqui é que vai ser malhar.
— Pois vai. Durante anos curti nas pensões; agora tenho o apartamento. Não posso dormir aqui todas as noites.

Catanada detestava perder uma.

— É isso mesmo que tenho estado a pensar. Porque não metes aqui uma prostituta? — sugeriu.

Pipocas bateu violentamente com a mão na mesa.

— Ó, pá! — exclamou. — Porque é que eu não pensei nisso à mais tempo?

A ideia tornou-se mais atraente.

— Mas depois quem é que toma conta dela?
— Tomo eu. Dou-te dez contos para as despesas do mês.
— Vinte — insistiu Pipocas. — A prostituta consome mais. A despesa dobra.

Catanada aceitou, refilando. Mas teria aceitado de qualquer forma, só para não se separar do homem que tinha propriedades, e ele aspirava chegar a essa ascensão.

— Ficamos então acordados — finalizou Pipocas. — Alugas tu a prostituta. Eu hei-de ser um bom compincha, Catanada. Não te deixarei ficar mal. Vou mandar fazer uma chave dupla.

Nunca Catanada, exceptuando o ano que viera da tropa, tivera vinte contos. Porém, pensou, que antes de ter de pagar as despesas ainda se passava trinta dias, e quem sabe o que pode acontecer nesse prazo. Gingavam nas cadeiras, sorridentes, junto da mesa. Uns momentos depois, Pipocas saiu por um bocado, mas, no caminho, comprou uma garrafa de uísque e, utilizando a cabine telefónica, atraiu duas matronas prostitutas para seu apartamento. Catanada, que ia a sair da casa de banho, ouviu a algazarra e sorriu todo contente.

Pipocas caiu-lhe nos braços e pôs-lhe tudo à sua disposição. Mais adiante, depois de Catanada ter colaborado, dispondo de uma das prostitutas e de metade do uísque, houve uma bela cena de abandalho. Pipocas deu um peido e Catanada ficou com a camisa cheia de leite. As prostitutas assistiam à cena lançando risos histéricos e dando pontapés naquilo que estava mais a jeito. Por fim, Pipocas levantou-se do chão e deu uma patada no cu de uma das prostitutas, que saiu do apartamento a coxear como uma rã. A outra roubou dois copos de cristal e seguiu atrás da primeira. Durante alguns minutos, Pipocas e Catanada carpiram a traição das mulheres.

— Tu não conheces o calibre destas cabras do ataque — disse Pipocas prudentemente.
— Sei, mais ou menos — confirmou Catanada.
— Não sabes nada
— Sei, sei.
Aldra.

Uma paragem, embora não muito longa. Depois disto, Pipocas e Catanada sentiram-se mais relaxantes, mas nenhum se importou quem dera mais coça nelas, visto as excitações os terem estoirados. O silêncio sossegou-os, a respiração foi abrandando, à medida que os corpos arrefeceram. O sinal de televisão extinguiu-se na sua emissão. O apartamento ficou silencioso, envolta em paz.

Saturday, October 1, 2011





Prefácio
    …



Esta é a história de Pipocas, dos seus amigos e da sua herança. Esta história conta como os três se tornaram inseparáveis, de tal modo que, na terra de Marco de Canaveses, quando se comenta da herança de Pipocas, não se tem em ideia uma avaliação tão aproximada do valor real que ela engrossa. Esta é a história de como esse grupo de rapazes se constituiu, de como cresceu e se transformou numa sábia e inteligente organização.

Esta história trata das façanhas dos amigos de Pipocas, do bem que praticaram, das suas borgas e dos seus sacrifícios.

Em Marco de Canaveses, essa pequena povoação do distrito do Porto, sabem bem estas coisas, passam-nas de umas para as outras e, normalmente, acrescentam-lhe uns pós. É bom que este ciclo seja anotado no papel para que, um dia mais tarde, os estudiosos, ao ouvir contar as lendas, não possam dizer, tal como fazem do poeta Bocage, do Gungunhana, e de Zé do Telhado: «Não houve nenhum Pipocas, nem nenhum grupo de amigos de Pipocas, nem nenhuma herança, nem nenhumas casas.

Pipocas é um ídolo da População e os seus amigos são símbolos primitivos da fortuna, do azar e da sorte. Esta história destina-se a evitar agora e sempre, os sorrisos trocistas das bocas de amargos eruditos.



CONTOS DE RATAZANA
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1.Episódio
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                                           A TRUPE DE PIPOCAS

                          Ao chegar a casa vindo das vendas, Pipocas viu-se
                               a braços com a morte do pai que lhe deixou
                           uma herança; e logo pensou proteger os amigos


Quando o Pipocas, depois de se tornar adulto, regressou à terra, soube que tinha herdado uma fortuna. O patrício, isto é, o seu pai, tinha falecido e deixara-lhe uma grossa maquia e propriedades, em Marco de Canaveses e no Porto. Ao ter conhecimento disso, Pipocas sentiu-se um tanto vergado sob o peso da sua responsabilidade de proprietário. Antes mesmo de ir ver a sua conta bancária levou uma prostituta para o apartamento e deu-lhe três fornicadas de seguida sem tirar fora… O peso da responsabilidade deixou-o e o pior de si próprio veio à tona. Berrou, deu alguns apalpões num bar de alternos da Rua Freire de Andrade e teve duas faíscas nas vitoriosas conquistas. Ninguém se preocupou muito com isso. O seu gordo corpo e pesado dentro do seu potente carro acabaram por levá-lo ao porto do rio, onde, àquela hora nocturna, os seguranças da noite, de fatos pretos, estacionavam à porta duma casa de diversão a fim de manterem a ordem. Uma antipatia de momento, dominou o bom senso de Pipocas. Fez-se aos seguranças: insultou-os:

— Corja de rufiões; escória do cais da ribeira, azeiteiros, filhos de azeiteiros, — E gritou: — Fuck you, os dois!

Pôs a mão de fora e fez um gesto obsceno de dedo levantado. Os seguranças limitaram-se a arregaçar os punhos num sorriso, trocaram o passeio e disseram:

— Olá, Pipocas! Quando é que nos pagas um copo? Vem ter connosco agora. Temos sardas novas.

Pipocas sentiu-se na merda. Berrou:

— Ponde as línguas numa amêijoa! Os seguranças retorquiram:
— Adeus, Pipocas. Vai nanar.

Pipocas ficou na lua. Voltou à rua Freire de Andrade, e, à medida que a subia, ia lançando blasfémias aos transeuntes. Na segunda rotunda, um porteiro chamou-o. A grande simpatia que Pipocas sentia pelos homens das portas fê-lo parar de repente. Se não tivesse parado depois de o porteiro o chamar, não teria perdido umas seis horas. Mas, assim, passou, um tempo sentado na mesa dum cabaré do Porto, ora a fazer chupões marcantes nas camareiras ora a pensar na vida que levava nas vendas. Muito gozo lhe dava o tempo que passava naquelas casas do prazer. De vez em quando, lá punham uma striper a entreter a noite, mas a maioria das vezes o barulho mantinha-se estagnado e Pipocas ficava sisudo. A princípio, as camareiras ainda o chateavam um pouco, mas como se foram habituando ao gosto da sua língua, e ele se foi acostumando às suas carícias, passaram a viver em comunhão. Pipocas arranjou então um joguinho sarcástico. Dava um chupão numa camareira, pagava-lhe uma bebida, fazia-a desandar e chamava a «next». Em pouco tempo tinha a mesa decorada com copos escarrapachados. Depois, pegava neles e punha-os debaixo do sofá. O empregado ficou escandalizado, mas não se queixou, visto Pipocas ter a despesa já incluída na sua conta. Uma hora em que havia muito público na sala, a striper entrou na mesa de Pipocas e bebeu duas garrafas de Moêt et Chandon. Minutos depois saiu para ir dançar para a pista e Pipocas foi com ela. Era alegre a dança. Deixaram-se ficar aos pulos na pista do cabaré, onde dançaram “Ó Malhão, Malhão”, até o disco-jockey trocar de música e os por dali a andar. Quando, cerca das seis horas da manhã, o sono intermitente do cansaço o abanou, Pipocas decidiu pagar a despesa e enfiar-se no apartamento durante o dia para escapar ao calor. Deitou-se ao comprido e espreitando por dentro dos lençóis como uma raposa ciente de estar no melhor sítio. Ao meio da tarde, recuperadas as forças que de si despendera, saiu do apartamento e foi tratar da vida. E fê-lo sem problemas. Foi sentar-se num banco de um snack-bar.

— Tem aí carne de vazio para fazer um prego no pão para um gordo? — perguntou ao cozinheiro.

E, enquanto o refinado cozinheiro cortava o bife, Pipocas comeu dois ovos cozidos, dois bolinhos de bacalhau, uma vasilha de batatas fritas e embutiu dois príncipes.

— Um é pouco. Faça já outro — disse.
— Não perde tempo. Eu faço-os quantos você quiser.

Pipocas sentiu-se mais tranquilo em relação ao apetite que trouxera. Se o apetite o devorava daquele modo, nesse caso estava no local certo. Pegou no carro, deu voltas à cidade e ultrapassou uma mão de sinais vermelhos e entrou numa loja de conveniências para comprar uma garrafa de uísque e salgadinhos, e retirou-se para a terra a fim de tratar de negócios. O fim da tarde estava azul vivo e quente. O sol, qual brando, estava fixo dos espaços celestes que, marcava os limites de Marco de Canaveses. Pipocas levantou os olhos e dirigiu o carro para o refúgio da cabana do campo. Adiante topou um indivíduo de andar apressado e logo reconheceu o passo apressado do seu amigo Catanada. Pipocas era um amigo do seu amigo, mas lembrou-se de que comprara uma garrafa de uísque e umas sacas de salgados e ficara sem dinheiro, menos os dois cheques dos clientes.

«Vou fingir que o vou atropelar», pensou e decidiu. «Vai ficar como se estivesse a afogar cheio de ganas e de outras coisas mais.»

Então, de repente, Pipocas reparou que Catanada apertava maciamente a mão contra o pescoço.

— Olá, Catanada, Catanadazinha! — gritou.

Catanada atrasou mais o passo. Pipocas parou numa bolina desenfreada.

— Catanada, ó Catanada, amigo! Nunca mais perdes o vício de andar apressado?

Catanada olhou com admiração a surpresa e aguardou. Pipocas aproximou-se nas calmas, embora se notasse na sua voz uma entoação entusiasmada.

— Andei a pensar em ti, Catanada, ó Catanadazinho, amigo mais querido entre todos os amigos bons que eu tenho. Eu procurei-te porque tenho aqui dois pequenos cheques que os clientes me pagaram, e um saco de aperitivos e uma garrafa de uísque do outro mundo. Serve-te aqui, do meu lanche, ó Catanada querido.

Catanada encolheu os ombros.

— Sem problemas — murmurou, seco.

Entraram juntos na cabana. Catanada estava surpreendido. Por fim, parou e voltou-se para o amigo.

— Pipocas — perguntou numa voz quente —, como é que adivinhaste que eu tinha um apetite devorador debaixo da garganta?
— Apetite? — exclamou Pipocas. — Tu tens apetite? É capaz de ser bom para alguma velha histérica — prosseguiu timidamente. — Talvez estejas à espera que caia alguma do ar. Queres lanchar ou não? Eu sei sempre ao certo o que os amigos consomem. Eu não estou com muita sede. Fico muito feliz em te dar do meu uísque que aqui trago, dos salgadinhos, mas, com respeito aos meus cheques, conto contigo mesmo.

Catanada respondeu-lhe com firmeza:

— Pipocas, não me importa de cambiar os cheques, se não tiver para os dois, tenho para um. Põe aqui o uísque, Pipocas. Põe de maneira que eu o veja antes que tu o bebas todo.

Pipocas, então, trocou de conversa:

— Vou primeiro passar os salgadinhos para as tigelas e tu trazes os copos daquele móvel. Puxa para aqui as cadeiras. Vamos ficar onde a gente veja bem a porta.

Armaram uma mesa e comeram os salgados. O uísque descia rapidamente na garrafa. Depois de terem comido, sentaram-se frente um ao outro, bebendo pequenos goles, suavemente, como moscas moribundas, o líquido da garrafa. O calor desceu sobre eles e pôs-lhes as t-shirts escuras de suor. À sua volta a ventoinha refrescava levemente entre os móveis. Instantes depois a solidão baixou sobre Pipocas e Catanada. Pipocas pensou nos amigos que amava.

— Onde anda o Pascácio? — perguntou, acendendo um cigarro e deitando fumo para o ar. — No bairro, com a prostituta — respondeu a si próprio, ao mesmo tempo que mandava uma bola de fumo contra a parede e deixava estender as pernas, desalentado. — Com a prostituta do vício. Com a prostituta num bairro municipal. Dentro duma casa passam pessoas que não o vêem e não sabem que ele está ali.

Voltou de novo as pernas para cima.

— Onde anda o esponja do Very nice?— Na pub — respondeu Catanada. — O Very nice palmou uns patacos e foi embebedar-se no meio dos amigos; os patacos aqueceram-lhe, Very nice esticou e, tac!, está de cama. Agora está no piano a curá-la por duas semanas.

Pipocas esmagou a ponta do cigarro no cinzeiro e mudou de conversa, pois entendeu que havia assunto a mais. A solidão, todavia, ainda pesava sobre ele e exigia uma saída.

— Aqui estamos nós… — começou por dizer.
— … os nossos corações solitários — acrescentou Catanada, com prosa.
— Não, isto não é nenhum recital poético — disse Pipocas. — Aqui estamos nós, sem um mimo. Damos o cabedal ao manifesto e agora nem uma carícia para nos consolar.
— Nunca falaste tão acertado — acrescentou Catanada, solidário.

Sonhador, Pipocas encheu o copo até Catanada lhe tocar no cotovelo e lhe apontar a medida.

— Isto faz-me recordar — disse Pipocas — o caso de um azeiteiro que era dono de duas prostitutas de rua… — Ficou a olhar. — Catanada! — exclamou. — Ó Catanadazinho amigo! Já me esquecia. Recebi uma herança em dinheiro. E umas casas.
— De azeiteiros? — perguntou Catanada, esfrangalhado. — És um mentiroso e um regador — acrescentou.
— Não, estou a falar verdade. O meu patrício morreu. Agora, sou o herdeiro. O único.
— O único — retomou Catanada, realista. — Onde estão as casas?
— Aqui em Marco de Canavezes e no Porto.
— E essa herança em dinheiro chega para alguma coisa?

Pipocas levantou-se rapidamente, saturado pela comoção.

— Eh, pá! Tinha-me esquecido que tenho que ir ao banco.

Catanada continuou sentado em pause e imerso. O seu rosto tornou-se abatido. Atirou a ponta dum amendoim para o chão e observou as formigas aproximarem-se freneticamente por entre elas e morder. Durante uns minutos olhou minuciosamente para o rosto de Pipocas; depois, suspirou ruidosamente e tornou a suspirar.

— Agora acabou — disse melancolicamente. — Os belos tempos já lá vão. Os teus amigos vão ter pena, mas as penas não servirão de nada.

Pipocas pôs a garrafa no chão; Catanada agarrou nela e pô-la entre mãos.

— Mas agora acabou o quê? Que pretendes tu dizer com isso?
— Não é a primeira vez — continuou Catanada. — Quando uma pessoa é remediada, logo pensa: «Se eu fosse rico ajudava os meus amigos.» Mas venha lá a riqueza que lá se vai a vontade. É o que se passa contigo, meu amigo dos outros tempos. Agora estás em alta. Vais esquecer-te dos amigos que contigo partilharam o bom e o mau, até a solidão.

As palavras de Catanada tornaram-se tristes para Pipocas.

— Eu não sou dessa raça! — exclamou. — Eu nunca te esquecerei, ó meu bom amigo.
— Isso dizes tu agora — disse Catanada com indiferença. — Mas, quando tiveres o dinheiro à mão de semear, vais ver no foguete em que te tornas. Catanada continuará a ser um simples empregado do banco, ao passo que tu comerás com carrinhos de chá.

Pipocas ergue-se, trémulo, e encostou-se direito a uma cadeira.

— Catanada, juro-te por quanto é mais sagrado; o que tenho é para repartir. Enquanto tiver um tecto e nota no bolso para se gastar, o que é meu é teu. Dá um gole.

— Tenho de ver para crer — volveu Catanada, numa voz sem ânimo. — Se isso se passasse como dizes, o mundo ficava surpreendido. Havia de aparecer por aí milhares de escritores a escrever esta história. E, além disso, o uísque foi-se.


Saturday, September 17, 2011







CONTOS DE RATAZANA

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Nuno – Vendedor Ambulante


Nessa época já vivia, na sua agonia do mal que o apoquentara, o vendedor ambulante Nuno — e já por toda a rua se louvava o espírito de sacrifício com que enfrentava o seu mal. Nuno, na verdade, completara nos hospitais uma série de exames ao corpo. Pela incerteza e complexidade da doença que ainda não fora descoberta pelos médicos, ele arrancava dentro de si as pragas mais profundas que lhe ia na alma, e tornava-se um triste e sisudo como um desses velhos resmungões em que o chão anda a querer fugir-lhe dos pés. O seu tormento, durante dez anos de angústia, fora tão duro e tão forte que já não temia o Diabo; e agora, só com o diagnóstico positivo do médico, dominava as suspeições, por mais pavorosas ou por mais satisfatórias, como se fossem apenas sonhos inacabados. Atravessava ele uma rua, quando um rapaz de rosto traquina, lhe sorria e murmurava:

— Bom dia, senhor Nuno!

Ora, um bom dia, é sempre um bom dia, desde que estejamos vivos e sãos. Nesse dia, seguia Nuno para uma consulta no centro de saúde, e olhando o azul e o sol da manhã, passou por algumas casas de hotelaria em baixa, e pensou no seu amigo Fernando, antigo colega como ele no negócio de vendas, em Vale Formoso, que se retirara daquele negócio para se dedicar à terceira idade, e habitava num andar de tijoleira creme e castanho, em frente do jardim de Arca d´Água, passeando e orientando uns part-times, porque a sua vontade era não ficar parado. E como mais de três semanas tinham passado desde que encontrara o colega Fernando, largou a rua, passou o portão de ferro que estava escaqueirado, entrou no posto de saúde de Arca d´Água, e começou a subir, lentamente, as escadas em ziguezague. Depois dos primeiros passos, era amarga a ponta de dor que lhe massacrava os pés doridos. Àquela hora, numa altura onde se esperavam os utentes, ouvia-se o chiar e o bater de portas. Sentada em frente da secretária, rodeada de papelada, atendia o telefone, falando constantemente, uma funcionária gorda, que de caneta na mão, ia marcando as consultas, e devorando uma maçã. O posto de saúde, recentemente restaurado de paredes pintadas em azul do céu e branco, conservava ainda algumas lacunas no funcionamento. A sala de espera, limpa e fresca, não caberiam mais de vinte pessoas que permanentes lá iam às suas consultas. Nuno tirou uma senha, verificou os exames que trouxera dentro dum envelope grande e sentou-se à espera. Em breve pensou na doença, e lamentou a sua sorte desdita. Por fim perdeu-se na contagem das chamadas que a funcionária ia atendendo, e acabou por deitar as costas para trás da cadeira e através daquela paz, daquela frescura, embalou… E asperamente, para não o deixar alongar àquela hora de sesta, a enfermeira abriu a porta de contraplacado branco, que não tinha entrada à passagem de utentes.

— Senhor Nuno!

Do fundo da sala branda, repleta de utentes, que mais parecia grupo de coro, veio um ronco murmúrio:

— Alguém me chama? Aqui neste fundo, neste fundo não ouço nada, menina!

Nuno surgiu em grande estilo; buscou o envelope preso entre as pernas, e com algum cuidado avançou em frente.

— Há quanto tempo estou neste sonambulismo, menina?

Bem-haja, desde á três horas! Só três horas atrás, depois de chegar ali em primeiro e não viu ninguém, se viera esticar naquele canto para meditar… Mas havia semanas que nele se instalara um cansaço, que nem podia dar uma volta ao quarteirão quando voltava do médico.

— E o senhor Nuno trouxe todos os exames que eu possa ver?

O médico de bata branca pegou nos exames e nas radiografias dentro do envelope; olhou para o paciente esticado na cadeira, absorvido em pensamentos, e tão abstracto que o seu rosto, outrora cheio e moreno, era como um velho peregrino muito destroçado, perdido entre as encruzilhadas do caminho. Com elevada estima e amizade o pôs à vontade:

— Ora, vamos lá ver o que você tem feito pela sua saúde!

Compenetrado, amarrotando no peito a gravata lilás em que nas mãos prendia, como se fosse ponta dum lençol, o triste Nuno exclamou:

— Senhor doutor, não sei se é maluqueira, mas durante esta noite, em boa verdade lhe digo, me apeteceu apanhar uma boa borracheira, uma borracheira de cair para o lado!... Mas será maluqueira?

O médico, com a sua imensa paciência, logo o informou. Maluqueira? Sim, claro! Aquele que, por doença, oferece ao seu corpo uma felicidade desequilibrada, desacredita o doutor. Não aconselhava ele aos seus pacientes que bebessem as boas pingas que há no mundo? O corpo nem sempre é servo!

— É uma boa borracheira que lhe apetece? — exclamou sorridente o médico, colocando o aparelho de medição de tensões, no braço transparente do paciente. — Pois acalme-se, senhor Nuno, que bem há-de chegar o dia em que pode fazê-lo!

E logo a seguir, com os olhos a controlar a alta e a baixa, agarrou o aparelho das pulsações, que pousava sobre o carrinho de assistência. Arregaçando as mangas da bata, e pondo um lençol fresco sobre a marquesa, mandou deitar o paciente em tronco nu e, enquanto lhe fazia um exame cardiovascular, correu para uma secção onde se encontrava o telescópio, a fim de visionar as radiografias. E aí, anotando concentradamente os dados na ficha clínica do paciente, desandou até à sala, a ver se estava tudo a ir em ordem. Depois, com os dados todos inseridos na ficha, o doutor passou a sala, entrou no gabinete, gritou para fora contente:

— Senhor Nuno, a tensão alta já não a tem! O colesterol já vai abaixo um pouquinho! O ritmo cardíaco já subiu, meu caro!

Pesado, amuado, Nuno deu um suspiro, recaiu na cadeira de forma brusca. Que mal apanhara, que mal apanhara! O doutor, no seu saber, descobrisse aquele problema que tinha na sua saúde! Só de pensar nisso, até sentia a alma de almeidinha mais forte para a caminhada!.. E o doutor com as mãos cruzadas, mandou-o apertar os punhos da camisa, vestir o casaco, e voltado para ele, murmurou:

— Meu caro, você não pode nunca desanimar… Eu vou estudar estes exames mais profundamente. Mas passarei por cá na semana que vem, e ficarei à espera que você faça esses exames que eu marquei, aí nessas receitas. Deus vos acompanhe entretanto, e vos ampare com a sua fé divina!

Mas Nuno fechara os olhos, nem se pronunciou, tendo guardado as receitas no bolso do casaco. Cumprimentou o médico, tomou o seu rumo, desceu as escadas vagarosamente, de sobrolho cabisbaixo e um pouco abatido… Alargando o passo, pensava quanto era triste a sua situação que não permitia que usufruísse duma vida estável e coesa. Retomou a rua, andou para a rua Vale Formoso. E extraordinário foi, desde esse dia, o dinamismo do seu bem. Através da cidade do Porto, sem parar, andou por muito lado, falando com amigos e não amigos que encontrava na rua. A sua grande força ia para além dos que padecem, até aqueles que vendem saúde de ferro. Durante as mudanças das estações, vezes sem conta dava aos pedintes a sua moeda, as suas palavras amigas; os donos dos restaurantes ricos, as empregadas novas induziam, para aumentar o espírito do seu querer através das pessoas; e sem pejo, na próxima esquina, perante qualquer desgraçado, ele se alargava em falas sorrindo. Quando um dia, em Águas Santas, a cigana saiu ao seu encontro, com sinas prometedoras, às melhoras de saúde, ele correu para uma tabacaria, onde jogou numa rifa e comprou uma cautela, para que se a sorte sorrisse, oferecesse àqueles que o vinham a apoiar uma festa de arromba! Enfim, uma tarde, em véspera de S. João, estando a circular na rua das Fontainhas, avistou de repente, no fundo da rua, uma mulher que assava sardinhas sobre um grelhador que ardia e faiscava. Pensativo, murmurou:

— Eis o que me faz falta; uma sardinhada e um bom verdinho, que se não me fizer mal, bem em mim me cairá!

Deu logo ordem a uma outra mulher que ali servia, que pusesse numa mesa o pedido, que era um desejo muito antigo e muito desejado. Comer, sentir o verdinho, eram, para ele, os dois prazeres completos; nada o satisfazia mais do que chegar jantado a casa, regado, consolado, já era um bom pretexto para se afundar em sonhos… No dia seguinte, sábado, no café, ao levantar a chávena, orou. Sentindo então que ia desmaiar ali, pediu que o ajudassem até à porta de casa, o deixassem lá que ele se desenrascava. E, respirando fraco, só se queixava do seu sofrer.

— O doutor, que tanto estudou, porque não me põe a mim no patamar da saúde?

Não há nada como realmente. De madrugada fugiu da cama, por causa do pesadelo, ao ver o coveiro à entrada, da porta da rua. Veio para a janela, e olhou o céu que clareava, ouviu os pássaros que, na frescura e no silêncio, começavam a cantar sobre o beiral da clarabóia e, sorrindo, lembrou uma aurora assim de frescura e silêncio, em que, passeando com um amigo perto da Residencial Vale Formoso, ambos se detiveram ante uma antiga camareira cheia de caruncho, que, amavelmente, lhe recomendara que olhasse sempre pela saúde! «Meu irmão, porta-te bem, senão queres ir para os anjinhos!» Depois, beijando amigavelmente a face de Nuno que a fitava, a antiga camareira foi-se. Logo que ele fechou os olhos no seu leito, um grande sonho penetrou limpidamente no quarto e levou a alma de Nuno. Durante um instante, na fina flor da madrugada, deslizou por sobre a planície fronteira tão suavemente que nem tocava as pontas húmidas das nuvens altas. Depois, abrindo as alas, radiantes e brandas, transpôs, num voo directo, o espaço, as estrelas, todo o céu que os homens conhecem.

Thursday, August 11, 2011



CONTOS DE RATAZANA
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A RARA PINTURA
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Nesse tempo Glória Isabel ainda se não demarcara de Vilar de Andorinha e das tranquilas, vistosas casas do lugar de Lijó — mas a nova dos seus hobbies chegara já até Avintes, vila volumosa, de muros altos, entre campos e arvoredos, no concelho de Vila Nova de Gaia.

Uma manhã uma mulher de olhos cadentes e mal-amados passou no fresco lugar, e fez-se ouvir que uma nova artista, uma pintora simpática, percorria as ruas e aldeias de Vilar de Andorinha, declarando a chegada da Boa Sorte, pintando todas as coisas boas da vida.

E enquanto descarregava as telas do carro, próximo à beira do Rio da Fonte, contou ainda que essa pintora, no largo de Oliveira do Douro, pintara o rosto dum lavrador, só com escorregar sobre ele a lata de tinta das suas mãos; e que noutro dia, atravessando numa embarcação pequena para a zona da Afurada, onde começava a pesca da enguia, escorraçara o cão que ferrara a filha do pescador, homem amável e instruído que comprava o seu quadro do cavalo imponente de dentes cerrados.

E como se isso não bastasse, maravilhados, serralheiros, doutores, mulheres de ancinho, e os trolhas morenos com a trincha na caiadela, lhe perguntassem se essa era, em boa verdade, a Picasso de Vilar de Andorinha, e se nas telas dela havia o rosto de Mona Lisa, e se outros como os girassóis de Van Gogh, os escuros de Velásquez e de Degas — a mulher, sem mesmo pintar daquela tinta tão pura de que pintara Renoir, apanhou as telas, sacudiu o pó, e meteu-as no carro, logo sumindo entre a espessura dos arbustos ao alto.

Mas uma atracção, deliciosa como o fadista nos tempos em que canta o fado, avivou as gentes simples: logo, por toda a parte que verdeja até ao bairro de Vila d´Este.

Ora então vivia nas Devesas um velho, por apelido Estrela, sem família, que dormitava nas matas do Monte da Virgem, homem de fartos caminhos e de fartas barbas — e com a alma tão vazia de nada como os seus bolsos cheios de cotão.

Mas uma aragem amena e aconchegada, essa aragem de satisfação que ao cuidado da Sorte sopra dos gastos paralelepípedos de Coimbrões, mandara um desconhecido atirar as notas mais gordas dos seus bolsos, e só se detiveram nos degraus onde as pernas do velho se enroscavam ao chão. E Estrela, agachado à soleira da porta da igreja, com a mão estendida à procura dos fiéis, palpava o saco e olhava as notas, cantava a alegria, soltava elogios a favor da Sorte bendita.

O velho pedinte já ouvira falar dessa nova artista de pintura de Vilar de Andorinha que aproximava as pessoas, sensibilizava os cépticos, emendava todas as más sortes — Estrela, homem analfabeto, que viajara por toda a Gaia, logo pensou que Glória seria mais uma dessas habilidosas, tão habituais no Porto, como Lebrac, ou Conde do Pincel, ou Albertino «o futebolista». Esses, mesmos nas noites confusas, murmuram para as estrelas, para eles sempre brancas e fáceis nos seus enquadramentos; com um pincel atraem de sobre as nuvens os trovões gerados nas tempestades de Portugal.

Glória de Vilar de Andorinha, ainda nova, com artes mais vistosas decerto, se ele a acompanhasse e a seguisse, recolheria mais sacas de notas, cresceria os seus proveitos. Então Estrela começou a seguir os seus passos por toda a vila de Gaia a pintora nova, sem que ela se apercebesse, e apertou os cordões das botas já rotas das longas passadas — largou pela estrada das praias que, rodeando a costa, se estende até Lavadores.

Uma manhã avistou sobre o poente, branco como uma mármore muito baça, as areias finas da praia da Madalena. Depois, na secura duma tarde ventosa, a praia de Salgueiros resplandeceu diante dos seus olhos, transparente, praticamente deserta, mais azul que o céu, de rochas de tamanho grandes e pequenas, e de poucas casas por entre os pinhais, sob o uivo dos cães.

Um homem que tirara preguiçosamente a sua cana de pesca duma motorizada, atada num poste, escutou sorrindo, o velho pedinte.

— A pintora de Vilar de Andorinha? Oh! Desde a semana da Páscoa, a pintora passara, com as suas pinturas, para os lados para onde o rio Douro encosta as águas.

O pedinte, andou, seguiu pelas margens do mar, até adianta dum alto, onde se via num ermo, o imóvel duma antiga fábrica de bacalhau, que descansa em completo abandono. Pela beira da água, repousava um velho carro, que era dum corpulento homem, de aparência dum errante, todo vestido de roupas grossas, deitava lentamente pedras para a água, com um livro agarrado à mão. O pedinte humildemente saudou-o, porque o pobre gosta daqueles homens de corpo tão atlético e alto, e sisudo como as suas vestes uma vez por ano lavadas em enxurradas abundantes. O corpulento homem murmurou que a pintora atravessara o hotel Casa Branca, depois se adiantara para baixo…— Mas onde, baixo? — Levando um dedo ao ar, o corpulento homem mostrou as praias de baixo-Lavadores, o areal de Cabedelo.

Na taberna de cor branca, que ladeia o caminho, paravam lá uns indivíduos à procura dumas especialidades de peixes e dumas boas canecas de vinho, contaram ao Estrela que em General Torres, pela lua cheia, uma pintora fabulosa, maior que Miguel Ângelo ou Malhoa, vendera três cus virgens a um picheleiro, e que, com a sua pintura, um sem-abrigo apanhado a palmar pelo agente Cáta-Nada lhe oferecera a sua pintura e recolhera ao seu porto de abrigo.

Mas Glória, nessa tarde, pintava ao lado de um horto, apreciada por uma plateia que mirava e cochichava em sintonia, e em baixo tom, e arrumara as suas trouxas, e no carro rumara em direcção Norte.

Um dia, já com a exposição aberta ao público, pintando já uma jovem manequim, olharam um fuinha sombrio, que se detivera a olhar para o Cristo, sentado na sua cadeira de rodas. Com devota paixão, acabou por adormecer com a cabeça encostada ao Cristo. E grandes foram os seus roncos, sentado na sua cadeira, uivando: «Rru!Rru!», e sem intervalos. O público advertiu para o calar. Um viajante encostou-se à cadeira e deu-lhe um encontrão, ao mesmo tempo, que a peruca do fuinha se soltou, encolheu, e ficou colada ao Cristo — e a sua cólera ecoou como um tambor furioso:

— Oh, ladrões danados! Oh, bandidos! A minha peruca? Onde esconderam a minha peruca? Se eu tivesse a força do Sansão, reduzia-vos a pó e à marreta…

Por essa altura, um professor biológico, de nacionalidade espanhola, Jonas Galego, professava aulas numa escola de Mafamude, próxima de uma estação de televisão. Galego, homem macio, veterano na matéria, aparecera durante o período de férias a dar aulas a algumas alunas, possuía multiplicas funções, e gozava, como favor das suas borlas, a amizade de Flora, filha única, dum sapateiro.

Mas um problema roía o seu plano muito cauteloso, como um mágico rói um cordel muito firme. A filha do sapateiro, era para ele mais desejada que comer ou beber, alinhava com um bem prendado e querido, falara mesmo ao sentir o amasso que ele se aproveitara nas descidas e subidas da sala.

Branca e tímida como a lua num parque ao ar livre, sem um dizer, sorrindo docemente ao seu professor, alinhava, sentada na cadeira da escola, sob uma transparência, alongando curiosamente os negros olhos risonhos pelo azul do quadro de Goya, por onde ela reparara no Museu Teixeira Lopes, numa galeria exposta.

Perto de si, por vezes, um tocador de flauta nos horários nocturnos, entre as cadeiras do meio, riscava vagarosamente numa folha branca, e desenhara uma camareira de bar, olhando de forma melancólica uma taça de bebida, ao lado dum cromo abstracto, num bar. A filha do sapateiro seguia um momento a camareira meditabundo até o tocador de flauta parar de pintar — depois, mais seriamente, com um suspiro, e mais calma, recomeçava a olhar para o Goya.

Então Galego, ouvindo contar, a vendedores de Santo Ovídio, desta pintora excelente, tão grandiosa sobre os acasos, que virava as sortes tenebrosas da alma, pediu a dois alunos para que a procurassem por Vilar de Andorinha, e outras freguesias.

Os alunos enfiaram pela estrada e correram todos os caminhos até à baixa Vilar de Andorinha — e, da pintora, só encontraram o rasto brilhante nos corações. À entrada da ponte ferroviária do Arco do Prado, dois vendedores de farináceos que vinham do Candal com um carregamento de aves, e a quem nunca esqueceram a pintora Glória, pagaram uma bagatela por duas telas de galos de Barcelos para os seus viveiros de pitos, e viram as suas galinhas porem mais ovos que nunca. E da beira do cemitério, as velhas sacudiam como balões as flores, e arremessavam sobre os mortos as Boas Sortes, evocando o bem-estar de Abraião, o Mata-Porcos, da Estação.

Assim, devagar, com a cabeça à roda, como numa partida de ténis, demandaram até ao largo da Lavandeira: não encontraram Glória: e retorceram ao direito da estrada, batendo com os pedantes no asfalto quente.

Uma noite, perto de Canidelo, caminhando numa secundária, avistaram sobre um monte um verde-claro dum pinhal de eucaliptos, os restos duma estrutura duma garagem, onde albergava um grupo de insurrectos, malcheirosos, e drogados. Um rapaz, de compridos cabelos castanhos, vestido com um casaco sem mangas, fazendo um charro de folhas de loureiro e papel cartão, esfregava calmamente as mãos, sobre um resineiro. Em baixo, agitando uma bandeira de cruzes, alguns bradaram à Boa Sorte. Conhecia ele uma nova pintora que surgira em Vilar de Andorinha, e tão ocasional em casos que suscitava os infelizes e pintava o vulgar em invulgar? Calmamente, abrindo os braços, o calmo rapaz exclamou por sobre o verde do campo:

— Oh, vocês! Ainda acreditam que em Vilar de Andorinha ou Alentejo apareçam artistas invertendo sortes? Como podem acreditar em semelhantes baboseiras?... Artistas e Artes são vendedores ambulantes, que pintam a manta à sua cor, para arrebatar os patacos dos mais simples… Acreditem, não há artistas, não há sortes… Só o Invisível conhece o saber das coisas!

E grande foi o pesadelo do sapateiro, porque sua filha era desflorada, sem uma queixa, olhando o quadro (fotocópia) de Goya — e contudo a fama de Glória, criadora dos incríveis acasos, crescia, sempre mais consistente e firme, como a aragem do dia que sopra do alto do Mosteiro da Serra do Pilar.

Então, os drogados enfiaram a boca no charro, embutiram para dentro os fumos de loureiro — e os seus olhos, de noite, brilhavam no topo da garagem, por entre a fumaça ondeante das puxadas seguidas. Assim puseram o corpo em relaxe e, ficaram à espera da chegada do Sol.

Ora ente Olival e Sandim, numa casota desgarrada, sumida num canto duma colina, vivia a esse tempo uma prostituta, mais desventurada mulher que todas as mulheres de Portugal. O seu amante, todo corcovado, passara a maior parte da sua vida a ver obra feita, onde estacionara, dezassete anos vividos, chulando e comendo. Também a ela o vício a pegara dentro do ofício nunca mudado, mais magra e semítica, que um esqueleto arrancado. Até no lugar do cão não se ouvia há muito os seus latidos. E, sobre ambos, densamente a podridão cresceu, como a ferrugem sobre as sucatas deixadas num lugar despovoado. Tão fora de mão do povoado, nunca o correio ou o polícia entrava o portal feito de latões.

Um dia um rico entrou na casota, ofereceu um churrasco, aos dois infelizes, e um momento de pé na frente da cozinha, sacudindo as moscas da cara, espreitou por cima do sofá se o que estava a ver era uma pintura a sério. Os infelizes comiam, com bocas famintas. E essa bonita pintura, tem boa qualidade, onde a apanharam? A prostituta suspirou. Oh, essa bonita pintura! Quantos a desejavam! Depois, chupando uma parte do frango, contou dessa grande protagonista das sortes, essa pintora que aparecera em Vilar de Andorinha, e de um quadro fazia casos, e pintava para todas as classes, e corria todos os cantos. A sua fama andava por toda a vila de Gaia, como o vento que até por qualquer velho guarda-chuva se sente e se espalha; mas para obter uma graça das suas artes, só aqueles ditosos que a sua vontade escolhia.

E então o chulo, num murmúrio mais forte que o troar de uma gaita, disse à mulher que vendesse a pintura ao rico, tão endinheirado, que não largara os seus olhos daquela pintura. A mulher apertou a cara enrugada:

— Oh, homem! E como queres que venda a pintura, e depois perca a sorte, da pintora de Vilar de Andorinha? Ela tem-nos dado sorte! Como queres que venda a pintura? Glória não volta a pintar outra pintura como esta. E mesmo que quisesse, não seria tão igual, nem tão perfeita como esta.

O chulo, com duas boas goladas pela goela sequiosa, murmurou:

— Oh, mulher! Glória não precisa de saber nada. E nós ainda não gozámos tudo, e com um fardo tão pesado, já é hora, não é? E podíamos ter uma abundância maior que a casa do Presidente da Câmara.

E a mulher, em gargalhadas:

— Oh, meu homem, como me fazes rir? Longas são as minhas horas, e curto o dinheiro dos clientes. Tão pouco, tão afanado, tão triste, até as forças me estão a abandonar. Ninguém saberia de nós, é verdade, e logo arranjaríamos uma morada nova. Oh, homem! Talvez tenhas razão… Nem sempre a sorte nos bate à porta. O senhor quer a pintura, o senhor a leve.

O rico, tão rico, pegara a sua carteira recheada de notas de cinco mil, e passou para a mão da prostituta, que por sua vez, lhe passou para as mãos, a pintura de Glória.

O céu escurecia. O rico apanhou o seu carro, desceu pela estreita colina, entre o pinhal e a estrada. A prostituta retocou o seu traje, a prostituta mais tesa, mais corada. O amante seguiu atrás dela até à estrada que conduzia à vila.

De entre uma curva traiçoeira, surgiu um camião desenfreado sobre eles, que os deixou esticados na poeira, erguendo as mãos que tremiam, o chulo desabafou:

— Mulher, vamos ficar aqui…

E logo, aparecendo devagar entre as nuvens e sorrindo, a Sorte disse a ambos:

— Aqui estou.