Tuesday, September 12, 2023

 

                                                            ATRIZ DE PORNO…

                                                                        ~~~~

 

   Aveirense aparece, trazendo debaixo do braço um anúncio de jornal com imagem que garante ser uma bela oportunidade de se inscrever para fazer um filme porno… uma oportunidade que ela diz ganhar uma pipa de massa. Aveirense está constantemente a arranjar programas de qualquer jeito e feitio para açambarcar uma pipa de massa… e todos eles se parecem com o anúncio que agora apresenta à colega.

   A imagem parece-se como um zoo, nem mais nem menos, mas ela guarda-o rigorosamente na carteira, enquanto conversa sobre o empresário que lhe telefonou há uns dias atrás.

   «Estávamos a fazer um take num estúdio, pá, e eu fui apanhada à má fé… se não te contasse tu nem acreditavas. Comecei a descascar-me detrás de um biombo, mesmo ali com a panca do empresário a pedir-me que derramasse um garrafão de cinco litros de leite pelo meu corpo todo! Porra, tu nem sabes como é que eu fiquei… passado pouquíssimo tempo ele tinha-me feito entrar um jeco (cão) todo latagão que se pôs a

lamber-me por tudo quanto cheirava a leite.... E estávamos assim quando aquele estupor do empresário se havia de massacrar-me ao deixar entrar o bode!»

   «Claro, para te comer? Foi o que ele fez, não?», pergunta a colega.

   «Aí é que foram elas, pá… nem te passa! E o cão … nem se assustou com a presença do bode. Parou rapidamente de lamber-me, enquanto o bode o encabava por trás! Juro-te, pá, estou a dizer-te a verdade. Eu não queria estar para ali deitada a vê-los engatilhados e ao mesmo tempo ver o bicho a levar nele… fez-me impressão. Depois, quando o take terminou ele perguntou-me se eu ia ficar para o resto do take. Digo-te, pá, que aquele estupor é completamente varrido dos cornos.»

   «Bom, e tu quanto ganhaste?»

   «Ganhei uns cobres, não muitos! Que raio de porno era aquele? Minha Santa, se vais ser comida por um ator porno, com certeza que queres que o gajo te coma bem e te console como se tivesses fodido com um regimento… dessa forma quem fez figura de parva fui eu, tás a ver a cena, pá… Talvez o estupor só me esteja a querer experimentar…»

   Enquanto a Aveirense desfia a história, chega o cliente. Uma rapidinha de linguado… acerta tudo com o cliente, um rústico. Visto que não regateou o preço, ela desperta-o para uma rapidinha de sonho. Vai com ele à porta do bar ver o carro que ele tem. O rústico vem mais tarde buscá-la. Tem estado à sua espera. Um telefonema enviado dele informa-a que está a caminho e vai levá-la a um local não especificado. São quase cinco e meia da madrugada quando a Aveirense finalmente mete a chave à porta do seu pequeno apartamento.

   Na banheira ouve na rádio local uma pequena notícia que quase a põe tesa na água. Marlene da Tatuagem no Cu, etc., etc., uma artista de programas de cama, transformou-se gaja-gajo! A primeira vez que Aveirense a conheceu nos takes viu olhá-la de uma forma bizarra e na noite passada, depois de ter acabado a sua atuação (O cão e o bode, sem dúvida), correra para o hospital e submetera-se a uma operação. Como é que uma mulher-puta TROCA DE SEXO, Santo Meu? Interroga-se. Dias mais tarde, lá estava ele, nos bares e boates a espetar nas gajas… É de rir e chorar por mais…

não que a Aveirense não acredite na estupidez e maluquice de Marlene, mas que foi apanhada de surpresa, isso é um facto. Raio de vida, diz ela, eu não deixaria que agora a gaja-gajo me espetasse, nem por todo o dinheiro do mundo… 

   Ela ainda não saíra da cama… cada hora que passa era um descanso divino. Aveirense, acorda supre mal-humorada do que quando se deitou, está com as rotações aceleradas, tão nervosa como uma barata tonta que atira com a chávena de café à parede e fez um montinho de partículas no chão. Telefona à colega e pergunta-lhe, ao ouvir a sua voz, se ela quer ir tomar um café. Ela aceita e entram num estabelecimento da zona.

   Aveirense nem sabe o que é que deve dizer, mas não se abre sobre os acontecimentos da noite passada. Ri-se quando a colega lhe pergunta pelos seus cromos… faz-lhe lembrar um desses engates chatos e vagarosos que às vezes a procuram… aqueles que sacam das notas e fodem com elas. Aveirense, os seus risos continuam, está tão à-vontade como qualquer outra gaja, a divertir-se um pouco à custa do seu métier. Tem-se metido em programas de mulheres que convive, conta ela, gozando os seus prazeres em simultâneo. Tira os olhos da chávena para olhar de relance para a colega.

   Enquanto a conversa prossegue, a colega tenta extrair de Aveirense alguns comentários que a façam divertir, mas ela muda-lhe a antena. Tudo o que ela lhe diz é que saberá em pouco tempo…

   De súbito o toque duma mensagem dá entrada. Aveirense agarra no telemóvel. Devido à luz do sol não consegue topar a leitura, mas dá à colega para lhe ler o conteúdo.

   «Este gajo», explica a colega enquanto Aveirense a escuta com toda a atenção, «foi em tempos um teu cliente e quer duas miúdas para uma borga com três gajos. Até paga bem. Cento e cinquenta euros a cada uma de nós…»

   Aveirense retira da saca uns trocos para pagar a conta e chama um táxi.

   O táxi vira por um caminho transversal para uma espécie de ruela e aí desemboca num estreito. O taxista para encostado a um muro bastante alto. Quando elas saem não descortinam o mais leve sinal de pessoas à vista. Caminhando atrás de Aveirense, com

as mãos dentro das calças de ganga, a colega depara com um velho portão de madeira embutido no muro. Seguem por um caminho em mau estado de conservação, que as leva a um edifício de pedra de dois andares e, quando entram, reparam que se encontram dentro de uma velha fábrica de enchidos. Até dá a impressão de ter sido usada há pouco tempo.

   «Olá! Somos o grupo das machorras!», fala um dos tipos quando elas entram numa sala mal-iluminada, onde se encontram sentados mais dois tipos falando em voz grossa. Tanto quanto lhe é dado a perceber, a Aveirense não conhece nenhum daqueles rostos, com a exceção, de um deles lhe ser talvez um pouco familiar, mas não se lembra.  

   Não há problemas, é claro.

   Aveirense deixa a colega a entretê-los e depois afasta-se para ir ao quarto de banho. Fecha a porta por dentro e abaixa as cuecas e enfia um dedo pela vagina… ainda tem o período. Quer que o gajo a coma, para sacar aquela nota, diz pra ela, e da mala de mão puxa por um bocado de algodão e empurra-o pela vagina dentro… A um canto a colega está agarrada pelos dois tipos que a gozam, enquanto o terceiro faz sinais para Aveirense se aproximar. Ela chega-se a ele e, faz pé atrás, mas é obvio que um dos motivos porque ele a chamou é para montá-la…. portanto deve ser já… A colega interroga os dois tipos sobre quem primeiro a vai comer. O gajo que está atrás dela fuzila-a com os olhos e pôs-lhe os braços ao pescoço. Há por todo o lado um cheiro que abunda ao choco.

   «Queremos foder os dois», berra-lhe, «queremos que tu nos fodas aos dois…», responde-lhe, aspirando o ar como se gostasse daquele fedor.

   Enquanto isso, dentro de um quarto minúsculo, o tipo prega cum empurrão na Aveirense que cai na cama com alguma violência e fica a mandar vir com ele durante

largos segundos. A seguir, o tipo começa a despir-se em silêncio… em silêncio também a Aveirense começa a arrancar o vestido do corpo… de repente, o tipo corre para o centro da cama e lança-se sobre ela, nu. Gemendo aos solavancos, a Aveirense fica para ali deitada de pernas esticadas com o corpo flexível, pressionando e dobrando os dedos sobre os lençóis da cama, enquanto o tipo coloca as mãos sobre o seu rabo e

lhe percorre todo o corpo com elas. Mantendo um ritmo infernal, sempre a bombar, baloiçando-se num ritmo trote até que algo se prende à cabeça da sua gaita funcionando como um tampão, e quando tira a ferramenta para fora, cai-lhe os tomates ao chão… e vê na cama um enchumaço de algodão envolto em sangue…

   Antes que ela lhe explique, o tipo atirou-lhe com o enchumaço à cara e gritou qualquer coisa como ininteligível. Enquanto limpa a cabeça da gaita, começa a vestir-se e sai. Termina a borga, e os restantes comparsas fazem constar os seus comentários. É o momento para que eles acertem as contas. Começam a abrir as carteiras, e fazem contas à moda do Porto… um estilo usual que é corrente neles, mas um berro alto, faz-se ouvir…

   O cliente de Aveirense chama a si os colegas da borga e ambos discutem sobre o não pagamento e começam a insurgir-se também contra ela. Finalmente um deles paga à colega… depois o outro cospe num copo de vinho espumoso! E enquanto o terceiro sacode a gaita e atira com o resto do enchumaço do algodão para o meio do chão.

   «Estive a gozar com o algodão», diz-lhes. «A puta que me calhou é uma artista. Comeu-me, mas não vai comer o meu dinheiro.»

   A seguir são conduzidas até à entrada e, como se fossem um lixo, lançadas para fora. Aveirense em primeiro lugar. As raparigas caminham pela ruela como se estivessem drogadas e tropeçam nas pedras baixas e altas. Já não têm disposição para falar, mas conservam ainda um pouco de humor. Puxando pelo telemóvel Aveirense chama um táxi. Atingem o muro, e lá se conseguem orientar até encontrar o caminho para aguardar pelo táxi que as leve de regresso. Ainda não tinham acabado bem de sair quando qualquer coisa se meteu no sapato de Aveirense que se desequilibrou.

   Segue cambaleando enquanto a colega a puxa através do estreito em direção ao muro. A sua mão solta-se da colega quando ela cai, e apoia-se nos joelhos sobre a terra húmida, com ambas as mãos abertas rogando:

   «Oh, pá! Fodam-se estes cabritos!»


Monday, March 29, 2021

 




Dois amantes reencontram-se após alguns anos separados.

Ele: «Eu pensava que eu era bravo. Mas tu és muito mais que eu.»

Ela: «Já não te via há anos.»

Ele: «Tenho andado por aí.»

Ela: «Mentiroso. Quem é a garota que tu andas agora?

Ele: «Que garota?»

Ela: «Não mintas. Eu ouvi dizer que tu andas aí atrelado. Quem é ela?»

Ele: «Uma amiga.»

Ela: «E o que fazia no seu quarto?»

Ele: «Não sejas curiosa, tá bem? Volta para o teu quarto. Tenho serviço a fazer.»

Ela: «Não quero! Esta noite durmo aqui.»

Ele: «O meu preço é alto.

Ela: «Eu pago. Diz quanto queres?

Ele. «Não quero nada.»

Ela: «Trata todas as mulheres assim?

Ele. «Exceto uma.»

Ela: «Quem?»

Ele: «A minha mãe.»

Ela: «Não me importava que andes com outras mulheres. Mas não quero ser tratada como elas. Não me importo se me amas ou não. Eu te amarei de qualquer jeito. Desde que nos separamos nunca mais estive com outro homem. Esperava que também tenhas feito o mesmo. Tu prometes-me?

Ele: «Não.»

Ela: «Por favor, como não pode ser como dantes?

Ele: «Tu lembras-te? Uma vez me perguntaste… se havia alguma coisa que eu não emprestaria a ninguém? Pensei muito nisso. E agora já sei. Há uma coisa… que nunca emprestaria a ninguém.»

E saiu perante um jorro de lágrimas.

                                                                                                      Abraão, Porto.


Tuesday, February 9, 2021

 

                                       Um conto ao estilo de F. Abraão

4

                                                                                                               

PARTE 1

                                    OS INCOMPATÍVEIS

 

   No primeiro dia, Óscar aguardou com impaciência a hora do recreio. Assim que a campainha tocou, dirigiu-se para o pátio das raparigas para falar a Bianca. Um bando de raparigas aos berros não foi suficiente para o afugentar e tornou-se necessária a intervenção de uma professora para que se fosse juntar aos rapazes.

   À hora do almoço, não conseguindo contatar com ela, porque o pai a foi buscar no cabriolé de teto de abrir para a levar para casa. Óscar resolveu esperá-la à porta, quando acabaram as aulas. Bianca saiu, rodeada pelas colegas. Resolvera compor uma atitude e fingiu que não via Óscar. Ela era a aluna mais bonita, mas é pouco provável que Óscar o tivesse notado.

   O pequeno bando pôs-se em marcha. Óscar seguia atrás, a quatro passos de distância e nada embaraçado com as piadas que as miúdas lhe atiravam de vez em quando. O grupo acabou por desfazer-se e Bianca entrou em casa.

   Óscar sentou-se à beira do passeio. Passado alguns minutos, a porta abriu-se e Bianca surgiu. Atravessou o passeio e contemplou Óscar.

   - Que é que queres?

   Óscar ergueu para ela os seus tristes olhos.

   - Tu não estás noiva?

   - Palerma – disse ela.

   Ele fez um esforço para se levantar.

   - Ainda teremos de esperar muito tempo para nos podermos casar – observou ele.

   - Quem falou em casamento?

   Óscar não respondeu. Talvez não tivesse ouvido. Puseram-se a andar lado a lado. No outro extremo do terreno, reinava uma penumbra acolhedora e segura. Bianca sentou-se no chão, com a saia longa com botões. Depois, cruzou as mãos em cima dos joelhos, como se fosse rezar.

   Óscar sentou-se ao lado dela.

   - Ainda teremos de esperar muito para nos podermos casar – repetiu ele.

   - Nem tanto como isso – disse Bianca.

   - Quem me dera que pudesse ser já.

   - Pouco falta. – disse Bianca.

   Óscar perguntou:

   - Achas que o teu pai dará o consentimento?

   Ela nunca tinha pensado nisso. Voltou-se e olhou para Óscar.

   - Talvez não precise de lhe pedir.

   - E a tua mãe?

   - Deixa lá os pais em sossego – disse ela. – Achavam logo que não estava bem ou que era esquisito. Tu não és capaz de guardar um segredo?

   - Está visto que sou. Não há como eu para guardar segredos. Já tenho alguns.

   - Então põe este ao pé dos outros.

   Óscar quebrou um pauzito e traçou um risco na terra negra.

   - Bianca, sabes como é que nascem os bebés?

   - Sei – disse ela. - Quem foi que te explicou?

   - Foi um amigo de meu pai. Ele contou-me tudo. Acho que teremos de esperar muito para poder ter bebés.

   - Não tanto como pensas.

   - Um dia, havemos de ter a nossa casa – disse Óscar. – Entrámos, fechamos a porta e ficamos à nossa vontade. Mas ainda falta muito tempo.

   Bianca estendeu a mão e tocou-lhe no braço.

   - Não te preocupes com o tempo. Isto aqui é como se fosse uma casa. Podemos fazer de conta que vivemos aqui, enquanto tivermos de esperar. Tu serás o meu marido e poderás tratar-me por «minha mulher».

   Óscar remexeu os lábios e pronunciou em voz alta:

   - Minha mulher?

   - Assim sempre nos vamos treinando – disse Bianca.

   O braço de Óscar estremeceu sob a mão dela. Bianca retirou a mão e colocou-a em cima do joelho com a palma virada para cima.

   - Enquanto nos vamos treinando, talvez pudéssemos fazer outra coisa – lembrou Óscar, de repente.

   - O quê?

   - Talvez tu não gostes disso.

   - Mas o que é?

   - Podemos fazer de conta que tu és a minha mãe.

   - Isso não custa nada – disse ela. – Queres começar já?

   - Está bem – aprovou Óscar. – Como é que fazemos?

   - Vou mostrar-te.

   Bianca começou a falar com voz mimalha:

   - Vem, meu amorzinho. Deita a tua cabecinha nos joelhos da mamã. Anda, meu filhinho, para a mamã te embalar.

   Enquanto dizia isto, segurava-lhe na cabeça e Óscar encostou-lhe a cabeça e Bianca ia-lhe fazendo festinhas na cara e penteava-lhe os cabelos soltos.

   - Meu bebezinho adorado – disse Bianca, - fala-me da tua namorada?

   - Que queres saber dela?

   - O que tu pensas. Ela é demasiada fraca para suportar o que tu possas suportar?

   Óscar disse:

   - Não é isso, mamã. Ela é boa, de verdade. Nunca faz mal a ninguém. Nunca diz

mal seja de quem for. Nunca se queixa e é forte. Ela não é má por natureza. Não gosta de jogar às casinhas, mas fá-lo sempre que é necessário.  

   - Tu gostas da tua namorada, não é verdade?

   - Gosto sim. E ás vezes faço-lhe mal. Engano-a, induzo-a em erro. Às vezes até a pico sem motivo.

   - E depois sentes-te infeliz?

   - Pois é.

   - A Bianca nunca se sente infeliz?

   - Não sei. Quando pisco os olhos às colegas no recreio, parece ficar enciumada. E uma vez quando lhe quis pôr uma mão no peito, ela chegou a dar-me uma bofetada.

   Bianca comentou com espanto:

   - Porque te bateu a Bianca?                   

   - Não sei se devo dizer.

   - Então, não digas.

   - Não foi nada de importante. Sabes, mamã, eu não quero ir à igreja. Mas a Bianca quer. Eu disse-lhe que nunca me casaria e que talvez me retirasse do mundo.

   - Como um buda? E tu não queres casar na igreja?

   - Não, mamã. Não, mamã. Prometi ao Santo Inocente!

   - E a Bianca não gostou que tu lhe pusesses a mão no peito dela?

   - Pois não. Ficou doida varrida. Às vezes põe-se assim. Pegou nos meus óculos de sol, atirou-os para o chão e desfez-lhos a pontapés. E depois disse que tinha desperdiçado metade da sua vida por minha culpa.

   Bianca riu-se. 

   - Podias ter aproveitado a oportunidade para lhe roubares a virgindade.

   Óscar manteve-se calado e Bianca ficou inquieta.

   - O que foi? Perdeste a língua?

  Óscar contemplava o pôr do sol. Bianca perguntou, extremamente embaraçada. 

   - Ficaste zangada comigo? – (E acrescentou, para ver a reação): - Meu marido.

   - Não, não estou zangado contigo. Estava só a magicar numa coisa.

   - O que é?

   - Uma coisa.

   Bianca continuou, imperturbável:

   - Gostavas de casar?

   - Mas que parvoíce – disse Óscar. – Claro que gostava. Toda a gente gostava. Estarás tu a ver se me magoas? O meu pai já o tem tentado e, depois, pôs-se a rir.

   Bianca desviou o olhar para o sol poente.

   - Tu disseste-me que era capaz de guardar um segredo.

   - Pois claro que sou.

   - E não terás nenhum no género: «se eu disser o meu segredo, ao inferno irei ter?»

   - Tenho, tenho um.             

   - Então diz-me o que é, Óscar.

   E a palavra de «Óscar» parecia uma carícia.

   - Digo-te o quê?

   - O maior segredo que tu tiveres.

   Óscar recuou, inquieto.

   - Não posso – disse ele. – Com que direito mo pedes? Nunca o direi a ninguém.

   - Vamos, meu filhinho, conta tudo á mamazinha – sussurrou ela.

   Os olhos de Óscar mostravam grande exaltação de fúria.

   - Já não tenho a certeza de querer casar contigo. – disse ele. – Acho que vou

para casa.

   Bianca pôs-lhe a mão no pulso e ali a deixou ficar. Quando falou, a voz readquirira o tom natural.

   - Era para te experimentar. Já vi que sabes guardar um segredo.

   - Porque fizeste isso? Agora fiquei furioso. Até me dói o coração.

   - Tenho a impressão de que te vou confiar um segredo – disse ela.

   - Ora vejam! – escarneceu ele. – Então eu é que não sabia guardar segredos? 

   - Eu estava a ver se me resolvia – disse ela. – Mas acho que te vou dizer porque te faz bem. Há-des ficar contente.

   - E quem foi que te pediu para não contares?

   - Ninguém. Eu é que tinha resolvido.

   - Isso já é outra coisa. Então o que é?

   Bianca disse docemente:

   - Lembras-te daquele dia em que fomos a tua casa?

   - Aí não, que não me lembro!

   - Pois fica sabendo que adormeci no cabriolé e, depois tornei a acordar, mas os meus pais não deram por nada. Os meus pais iam a conversar e não viram a tua mão descair pela minha saia e apalpar a minha perna.

   Óscar disse em voz rouca:

   - As minhas mãos estavam nos bolsos.

   - Isso dizes tu. Pensavas que eu ia a dormir, mas não…

   Bianca continuou:

   - Não seria estupendo se pudéssemos reviver a cena? Supõe que a tua mão ganhou

o sentido ou qualquer coisa assim. Já li uma história no género. Podia tornar a acordá-la e fazê-la recuperar o sentido.

   Bianca deixara-se empolgar pela maravilhosa história. Óscar disse, com ironia:

   - Hei-de perguntar à mão.

   - Óscar – observou ela em tom severo, - o que eu te contei é segredo.

   - Quem disse que era?

   - Fui eu. E agora repete comigo: «Se eu disser o meu segredo, ao inferno irei ter.»

   Ele hesitou uns instantes e, depois repetiu:

   - Se eu disser o meu segredo, ao inferno irei ter.

   - Agora, cospe na mão… Assim…. Está bom. Agora, dá-me a tua mão…. Estás a ver? Agora misturamos o nosso cuspo e limpamos a mão ao cabelo.

   Executando o ritual, Bianca disse com a maior serenidade.

   - Conheço uma rapariga que contou um segredo depois duma jura igual a esta e morreu afogada num poço.

   O sol desaparecera, levando a sua luz brilhante. Bianca disse:

   - Eles vão me esfolar viva. Anda, despacha-te. O meu pai deve estar à minha espera com a trela do cão para me bater.

   Óscar olhou-a, incrédulo.

   - Para te bater? Costumam te bater?

   - O que é que julgas?

   Óscar exclamou apaixonadamente:

   - Eu que os apanhe! Se eles te quiserem bater, diz-lhes que os hei-de matar.

   Os arregalados olhos castanhos lançavam chispas.

   - Ninguém tem o direito de bater na minha mulher.

   No meio do escuro que reinava debaixo das ramagens das árvores, Bianca passou os braços pelo pescoço de Óscar e beijou-lhe a boca aberta.  

   - Querido, gosto muito de ti, meu marido – disse ela.

   Depois voltou-se e saltou, levantando as saias acima do joelho e mostrando a renda da combinação que esvoaçou quando largou a correr para casa.


(Fim do 1º ato.)

Sunday, July 5, 2020




                                     CAPÍTULO I


   Neste dia cinzento de Maio de 1928 começa a história de Marco António. A lenda, numa só palavra, de Marco António, começa, pois é impossível separar os traumas da sua vida e da sua obra.
   Mais tarde, ao recordar o seu amor, Dona Lena teceu um comentário, num estilo simples e gracioso: «Nós morávamos na mesma ilha. Quando ele pôs os olhos em mim, eu também pus os olhos nele. Lançou-me uns piropos…. Eu era uma jovem de dezasseis anos!»
    José Vilela afirmará que ele teria preferido ser um Falsificador a ser um grande serralheiro. Sem exagerar muito, podemos dizer que Marco António foi simultaneamente um e outro. Ele queria ser reconhecido como artista de pintura, mas não encontrou espaço no mercado de arte para as suas obras originais. Então, ele começou a replicar tudo que achasse que seriam obras bem vendidas. Se teve apenas uma paixão pelo trabalho que fazia, teve uma infinidade de encontros passageiros, para não falar dos seus relacionamentos com mulheres de reputação duvidosas, que nunca desprezava.
   Por isso, as mulheres, que ele nunca considerava como «divinas ou bonecas» - dizia ele a Cardinal - e amava como uma espécie de maldade, foram, paradoxalmente, o estímulo constante da sua obra, à qual deram um caráter sem palavras humano e sensual. Cortês, confidente e observador de parte da sua vida, dirá: «Nunca realmente a sua imaginação se manifestará com tanta força como na crise das suas experiências amorosas. A cada nova experiência amorosa, vemos a sua obra progredir, aparecer uma nova ideia, uma outra técnica, que coincidem sempre com períodos de exaltação…»

   Não podemos afirmar por isto que ele conheceu o amor. Dona Lena censurá-lo-á de nunca ter amado nem saber o que era amar e, finalmente, Luísa partilhará dessa opinião. Sentindo-se mais curioso por seres e por novas experiências que pelo amor, não viu em cada aventura mais que um fermento necessário ao seu trabalho. O seu trabalho, o único e constante objeto da paixão que arrebatava a sua vida. Tudo, durante a sua longa existência, espantosamente fértil, foi submisso à enologia e condicionado por ela. Amigos, esposa, amigas, foram submetidos a este tom autoritário. Isto deve-se a um aspeto diferente do seu temperamento: nele, a inspiração é constante, donde a necessidade de trabalhar constantemente, donde a necessidade de impulsos constantes, donde esta curiosidade devoradora pelos seres, ideias e coisas.
   «Este homem de aspeto triste, sarcástico, um tanto hipocondríaco às vezes, nunca encontrou consolação – porque parecia trazer sempre em si uma grande dor, - mas encontrou o esquecimento no seu trabalho e no seu amor por ele», notará Rosália, sua companheira do grupo excursionista, que a solidão tornou perspicaz.
   A sua atitude não impediu Marco António de ser amado e de provocar paixões que, uma vez pacificadas, nunca se extinguiram completamente. Durante toda a sua vida trouxe atrás de si o acompanhamento submisso, frenético ou barulhento das antigas amizades. Dona Lena, a esposa fiel, permaneceu sempre a seu lado; Luísa, depois de o ter abandonado, viveu apenas da sua recordação, constantemente presente. Rosália, rosto pálido e desesperada do fim de os passeios do grupo excursionista… Ele próprio nunca podia romper completamente e ao seu amor de momento falava frequentemente dos que o tinham preterido, menos por maldade que por ser incapaz de renunciar a um momento da sua vida, a qualquer coisa que lhe tivesse pertencido. Como guardava os velhos isqueiros ou as pontas de lápis, conservava também as antigas amadas à mão.
   Acontecesse o que acontecesse!
                
   Mas quem era este Marco António, este sedutor moço que, depois de ficar isento do serviço militar, fez «cair» muitos corações aos seus pés!
   Assim o descreveu Rosália: «Marco António, moreno, atarracado, inquieto e desconfiado, de olhos castanhos, perspicazes e astutos. Gestos desastrados, mãos pequenas e grossas, bem vestido, muito cuidadoso. Meio-boémio, grande trabalhador, os cabelos curtos e bem penteados anteviam o colarinho de um casaco ainda novo.»
   José Vilela: «Um homem pálido, com o ar de quem confessa que a vida é por vezes dura de roer. Era notável por um penteado curto e bigodinho aparado, e pelo vivo colorido das suas camisas e gravatas.»
   Com isto, nota o patrão Anselmo, um ar de artista. E era mesmo um ar de diferenciar superior que emanava deste serralheiro bem cuidado, vestido de fato e gravata. Um pouco surpreendente: artista, não o era de nascença, nem pelos dons que recebera, nem pelas origens. A família paterna, onde se constavam muitos ramos de carência real, era de maneira particular remediada.»
   O pai de Marco António, de nome Manuel António, era um homem trabalhador e espirituoso, de estatura média e rosado como um romã; a mãe, de nome Maria Antónia, era uma mulher pequena e muito morena – é com ela que se parece o filho, - pertencia a uma família, outrora pobre, de pequeno comércio fixados para cá do Marão.
   A despeito das suas origens indecisas, a família António-Antónia estava com dificuldades para sustentar o lar e não contava então com algum descendente que pudesse deitar mão àquilo. Depois de revista a situação, o pai fez contas à vida e verificou que as suas finanças estavam em queda livre, salvo algumas pequenas poupanças.
   Cedo, desde os estudos em Vila Boa do Vispo, os seus amigos criaram o hábito de o chamar pelo diminutivo de António e, assim ficou a ser conhecido, pelo Tonito. São imensas as variantes de António à volta do mundo. É também um dos nomes portugueses mais focalizados pelos diminutivos. Dos dois lados, a família inclinava-se para as artes. O pai António, abriu uma pequena oficina de sapateiro e… fazia uns biscates; a mãe era trabalhadora doméstica.
   Tonito nasceu numa pequena freguesia chamada Vila Boa do Bispo, em 17 de Maio de 1928, ao meio da tarde, sob o signo do Touro. Pensou-se que ele estava morto, então a parteira teve a ideia de soprar o fumo da chaleira para o nariz do recém-nascido, dando origem a uns miados de gato assanhado.
   Como segundo rapaz da família, a mais velha era a irmã Freira e o irmão mais novo Atílio, tiveram uma infância pacata e sem amedrontamentos. Com o martelo pousado diante dele, punha-se então a martelar numa chapa ou num bocado de madeira, sem se preocupar com o barulho que fazia. Quando estava cansado de bater com o martelo, levantava-se, ia à varanda fazer sinais às pessoas que passavam na rua, na cozinha, da empregada da vizinha, por quem se apaixonara… Não devia ir muito mais longe no caminho dos estudos, e se, mais tarde, deu ares ao traçar linhas milimétricas, o que provocou a admiração de pais e amigos, foi provavelmente graças à sua prodigiosa facilidade de assimilação que o conseguiu.
   O facto não tem nada de surpreendente se considerarmos a sua fabulosa carreira, mas é necessário assinalar que, desde a sua meninice, e os estudos pouco contavam para o seu crescimento, as únicas coisas que o interessavam realmente foram a serralharia e o martelo. Até hoje, conservou na sua oficina um molde representando um par de guitarra e viola cortado aos nove anos, surpreendente pela habilidade com que os instrumentos, estão combinados. Quando o interrogam sobre os seus princípios, frisa que nunca cortou um molde como uma criança. «Os meus primeiros moldes», conta a João, um colega do ofício, «nunca teriam podido figurar numa exposição de moldes infantis… Ultrapassei rapidamente o estado desta maravilhosa visão… É fabuloso!», diz ele ao
voltar a ver os seus moldes. Este dom, evidentemente, acrescentava a admiração ao amor que lhe oferecia uma família em que as artes ocupavam o primeiro lugar. A irmã, Freira e o irmão Atílio, adoravam-no como a um ídolo. E ele maravilhava-os recortando para eles, com a tesoura de cortar, animais em alumínio.
   «Por onde querem que eu comece?», perguntava-lhes, preparando-se para cortar um passarinho.
   «Pela cauda… respondiam-lhe maliciosamente, pensando atrapalhá-lo. Mas ele cortava o passarinho começando pela cauda.