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O DOM DOS VÍCIOS
V
A Banheira era o lupanar mais famoso
da cidade, um rés-do-chão
comprido em forma de labirinto, cercado de quartos
com banheiras de imersão, decorados todos do mesmo estilo,
sempre com as mesmas
tendências da caligrafia do Amor, uns
tapetes com figuras
de burros e jericos
no chão, um grande chafariz
de pedra encostado à parede e uma
estátua do Senhor do Chicote,
de pila na mão, simbolizando o amor
afrodisíaco. Poucos dos clientes d 'A Banheira
conseguiam sozinhos descobrir
o caminho para o quarto.
Era necessário ser acompanhado
pela cortesã escolhida ao local especificado. Deste modo, as meninas
estavam protegidas das visitas dos indesejáveis clientes
que não tinham a
menor hipótese de fugir sem
pagar.
Era um mundo
sem janelas nem varandas, dirigido
pela quarentona e sabida
Dona da Banheira, cujas afinidades com
os clientes eram um dado adquirido, ao longo dos anos, para o bom funcionamento da casa. Nem o
pessoal nem os clientes conseguiam desobedecer às suas ordens, que eram
logo postos fora à vassourada, enxovalhados e atirados
para o meio da rua, se isso fosse
necessário, para manter a ordem e o devido
respeito da casa.
Por isso, quando
o emproado Lato, vendedor de trapos e ganga barata, se apresentou diante dela a troco de pôr as suas meninas
a vestir-se em roupas vistosas de várias
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cores, convenceu a Dona da Banheira e foi imediatamente aceite sem vacilações. O negócio para Lano resumia-se na venda de roupas às raparigas e receber em troca «uns favores» de prazer
e gozo com as modelos
que ele escolhia.
E, quando
a força policial fora fazer uma
rusga ao local,
a Dona guiara-a numa viagem curta e mal cheirosa pelos labirintos peçonhentos. Até os guardas ficaram
com a cabeça a andar à roda pelo que, após terem espreitado para dentro daqueles
quartos de massagens e cheiros exóticos e deparado apenas com latas de conserva, restos de pão, casca da maçãs
e garrafas de cerveja, se foram embora
resmungando energicamente, não suspeitando sequer que uma hora antes a Dona recebera um telefonema
a avisá-la daquela rusga, o que lhe dera tempo de pôr os clientes
na rua. Depois disso,
a Dona mandou fazer um fumeiro de eucalipto e, a seguir.
desinfectou com Tide
toda a casa,
deixando um aroma suave e atractivo de forma a não
levantar suspeitas da tramóia que ela pregou
aos polícias.
As visitas de Lato à Dona da Banheira tornaram-se permanentes e nem por sombras o privou de rapidamente ganhar
a sua confiança, tomando-se um recoveiro,
levando e trazendo
confidências. Cada vez se tornava mais importante a sua presença, e a Dona ordenou às prostitutas que lhe tratassem bem do pêlo, autorizando-lho a utilizar a sua
banheira especial hidromania, pois a sua falta de dentes e cabelo
não deixaria de fortalecer e recuperar o mais rápido possível.
Uma vez que os seus favores iam aumentando conforme
as suas vendas, obrigou-se a despender mais horas de exercícios, recebendo com agrado
as carícias das prostitutas e dando ao vendedor de trapos
um alcance de visão superior do que poderia
obter, se acaso andasse pelas ruas à procura
das chamadas «mulheres do povo» ...
A ganância era às vezes um obstáculo;
criava vícios no seu
modo de habituação e Lano, que era obeso, tinha mais olhos que barriga. Depois do
terceiro favor directo que recebera
num dia, ao ouvir os murmúrios
das prostitutas que acompanharam com ele o acto da fornicação, teve um
chilique e caiu na banheira, sendo
socorrido por uma delas que o
tirou pelo cachaço e o pôs no chão esticado num lençol. A seguir,
deram lhe um chã de tília
para ele recuperar.
Pela boca da rabugenta Dona da Banheira
chegou a notícia
que, a partir de agora, era obrigatório o uso do preservativo e o preço para uma espetadela passava de quatro para
oito contos, com
direito a vinte
minutos
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de massagem autêntica ou sintética. As orgias animalescas em que interferiam quatro ou mais
parceiros, só eram
permitidas em dias
feriados.
«Mas que diabo,
estas novas tabelas
são altas e só vieram dificultar o cliente habitual. Quero o livro
de Reclamações para apresentar o meu
protesto.» - Murmurava um deles ao montar
a menina da sua escolha, mas teve que encaixar das boas. «OS preços são altos porque
as mulas são melhores», -respondera a Dona para o cliente que atrevidamente retorquiu: «Por este preço tenho
direito a dois
pratos.» -
E, ao dizer aquilo,
começara ele a guinchar, presumivelmente por motivos de gozo.
E o carniceiro da carne, Coxo, confessou ao ajudante do talho que os
hábitos são difíceis
de quebrar e que, quando
lá ia levar a carne, nunca
vinha de lá sem espetar na sua favorita «duas nas nádegas
e às vezes também na serviçal
do pó; passava o espanador, o que é que um homem
há-de fazer ao vê-las
assim: como vieram ao mundo?»
- E foi assim que o carniceiro aprendeu a lição de que mais vale roer que sofrer.
Lato começara a mudar e a tomar consciência de que, a partir da meia
idade - nunca é demais -enjeitar os desejos quando em demasia.
A notícia que o médico
lhe dera de que o enfarte estivera próximo e que poderia ter sido fatal,
fê-lo mergulhar numa
profunda calmaria pois,
mesmo quando o cio do desejo
lhe chegava aos testículos através
das novidades que iam chegando à Banheira, ele revelava-se mais cauteloso e consciente
de que era preferível comer
pela qualidade do que pela
quantidade.
Mas, quando o primeiro fôlego se espraiou
dentro do seu espírito
voraz, Lato aproveitou - a ocasião para esganar a ilusão -e atirou-se com todas as forças à ultima novidade que chegara, a troco de um
conjunto de roupa variado que se vendia na feira pelo valor de mil escudos. Perdeu o medo e ganhou de novo a segurança
que o amor na Banheira lhe inspirara e, a partir
daí, nada o assustava. «Tens um corpo jeitoso.
Com aquele decote
da Princesa do Cai-Cai e as calças
de caqui do Hommer
Simpson», -disse ele com o rosto sério.-
«Ficavas cá um pito que nem a Shifar te passava a perna.» - E ela muito lampeira
respondeu: «Não é assim que
se diz, mas sim, Claudia Schiffer.» -
No fim de uma vida dev·otadamente aventureira, Lato descobriu, para sua
grande surpresa, que cada vez ganhara mais erecção e desejo sexual
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o que lhe dava motivo de querer estar sempre
a molhar o pincel em cima
das telas que paravam no lupanar. E que capacidade
era essa? -Nunca
tinha entendido muito bem -sem que isso fizesse dele um Gungunhana. Em suma, Lato chegara ao máximo. Começou,
sem hesitar, a deixar para trás a conquista de raparigas sem técnica nem estofo de cabriteiras e estabeleceu uma regra
que determinava a si mesmo;
comer pouco e melhor,
era indispensável.
O facto de essa regra
implicar um aumento
na tarifa que cobrava uma rapariga com estofo de primeira qualidade, nada o impedia
de abrir os cordões à bolsa ou, em segunda
via, cambiar a relação
por um conjunto de vestes
de melhor qualidade. E, quando o carniceiro um dia resmungou com ele a propósito
das raparigas de estofo, no final vai tudo dar ao mesmo, um homem vem-se e pronto,
já está, Lato abanou a cabeça como a dizer:
isso é o que tu pensas, meu artola, mas não será bem
assim.
As meninas da Banheira eram afamadas de possuírem toda a técnica de combate de que uma boa funcionária da Dona pode prezar. Feita
uma apreciação global à equipa de trabalho às suas ordens, a mais velha era uma
mulher de quarenta e picos anos, enquanto a mais nova, com dezoito, tinha mais traquejo
que muitas das outras colegas de profissão. E elas tinham-se afeiçoado ao ardido e rufião Lato, e a verdade era que
lhes agradava a sua companhia, pelo que, fora das horas do
expediente, se punham
a rebolar a bilha numa
casa de dança
sem muitos requisitos que por aí abundam pela cidade, deixando-o exibir a sua mestria
de razoável dançarino de rumba.
E, depois da dança dos pés, aparecia a dança do corpo, num quarto qualquer, onde as duas
mulheres se punham a provocá-lo maliciosamente, exibindo
o corpo e fazendo topless, mostrando-lhe os seios
e, depois, enlaçando-lhe a cintura
com as pernas, beijando-se ardentemente uma à outra a um passo dele, até que o vendedor de trapos ficava loucamente excitado;
e então elas riam-se como malucas de vê-lo de pau feito
e tanto se riam que o faziam
voltar à estaca zero. Ou seja; de vela em baixo . A partir daí, Lato já perdera a ideia de passar
um bom bocado e já trocava os favores pela roupa que voltou a parar nas suas mãos. E assim, qual pau qual caraças,
deitou mão ás roupas
e deu o piro dali, deixando-as a chupar
uma à outra, pensando na forma de se vingar, mas ainda foi capaz de mandar o seu palavrão
da ordem. «Ordinárias, sois mas é cá um putedo. 1» -
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1Roscaria.
Foi numa dessas pausas do trabalho
em que a casa não
tinha um cliente sequer, quando as mulheres estavam a sós na galhofa umas
com as outras, que se puseram a cochichar. Falara a mais nova delas acerca do seu
cliente Coxo, o carniceiro. «Que tolo de homem!», - disse ela. - «A grande mania dele são os pêlos. Cisma que eu tenho pêlos
nos seios e obriga-me a tapá-los com uma toalha
e depois só se excita
quando lhe ponho a fazer cócegas
no ânus. E depois diz-me
tantas asneiras que eu
até me venho a rir. Que eu sou parecida
com a vaca da mulher
dele, que tenho as mesmas curvas físicas que ela, só que, para me realizar, rio-me, enquanto a mulher
dele chora...» -
A quarentona interveio
também na conversa.
«Escutem só, os homens não falam de outra coisa a não ser do preservativo, que
não se excitam
com
aquela
camisa
transparente
plastificada, que têm nojo de pôr aquilo nas mãos, e as mulheres de cá
têm de fazer como eu faço. Meto antes a camisinha debaixo da língua e depois, sem o pascácio dar
por ela,
já está:
trigo limpo e farinha
amparo.» - Concordou uma delas. «É o que se deve fazer. Tens que nos ensinar.» -
«Especialmente para certos
clientes», - acrescentou a mais nova -
«Para aqueles de quem nós não temos a mínima
confiança. Sobretudo os que
não se lavam, ou aqueles
que querem fazer
fantasias com o pau a nu
a boiar em cima da água na banheira.»
Depois, comentou outra prostituta que estivera calada até então. «As pessoas também fazem mais fantasia daquilo
do que parece. Eu pergunto sempre ao cliente: com ou sem? Se ele diz com, eu vou por baixo, se ele diz sim, eu vou por cima.»
-
«E como é que fazes?» -
«Como disse a nossa veterana colega.
Enfio antes o artigo
na vagina enrolado numa esponja e ninguém dá por ela.» -
«Meu Deus», -disse a rapariga. - «Se eles topam,
ainda te fritam os mamilos
com molho de tomate.»
-
A de dezoito
anos tornou a confidenciar às outras que a escutavam com curiosidade. Acto contínuo
acendeu uma luz nos olhos
dela.
«Eu conto-lhes tudo», -disse.
- «Como nasci, quando comecei a ler, o primeiro beijo que dei foi quando fui desflorada numa cavalariça, aos treze anos, pelo ferreiro do meu pai. No fim, ele deixou-me
dar uma volta em cima da égua mas, no fundo, não gozei nada e ainda estou à
espera de passar os melhores
anos da minha vida.»
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As seis prostitutas do lupanar desde há muito tempo que davam conta do recado, aumentando os lucros à gananciosa Dona e prometendo ainda aumentar
mais. Onde há vício e beleza não falta chouriço
nem mesa. Lato revelou
à Dona a sua ideia de
lhe arranjar umas estrangeiras para A Banheira; esta ajuizou do problema com a polícia.
«Isso é muito perigoso».
•
exclamou. - «Mas é capaz de ser aliciante para o negócio.
Eu vou nessa. Podes avançar, meu sacana.»
Quando se espalhou
pelas casas de passe a notícia de que tinham chegado umas caras novas
e brasileiras na casa da Banheira, a excitação
dos clientes da cidade foi
notória; porém, tinham
medo que a casa fosse vistoriada - quer por saberem que numa rusga ao local poderiam ter chatices com a polícia, quer pela nova tabela do lupanar de que o novo
serviço cobrado ia quase ao dobro. - mas a notícia não chegou aos
ouvidos das autoridades. Por essa altura, Lato tinha falado
a toda a gente que conhecia do ambiente e levou-os lá a troco
de tomarem uma
bebida e prevenira-os que iam conhecer
a fina flor do nordeste
brasileiro. «As brasileiras são tão doces como o mel», - fez referência perante eles. - «É melhor conhecê-las com calma.» -
Assim, os novos clientes atracaram-se às beldades brasileiras e logo o negócio
registou um aumento
de quinhentos por cento no total do apuro.
Por motivos óbvios, era aconselhável marcar hora para não haver bicha na
entrada da porta e, para muitos, o tempo da massagem encurtava cinco minutos por sessão.
Cada cliente recebia
como bónus um preservativo e a Dona, ao observar através
do vidro camuflado
no escritório as figuras dos clientes
com os preservativos na mão, punha-se
às gargalhadas que até assustava o papagaio em cimo duma gaiola a palrar;
Enfia camisinha, sim...
Nos tempos a seguir, o pessoal da Banheira afeiçoou-se à nova realidade. A prostituta de dezoito anos,
«Elizabete», era a mais solicitada da clientela pagante, tal como a sua partenaire, «Beta», o era em segundo plano e, depois, vinha a «Seu Bombom» que vivia com o seu prostituto nos aposentos da Dona. Esta Beta mamona começou a mostrar-se ciumenta do lugar que ocupava de mais amada.
Ficava contrariada quando
via as outras registar
um maior número
das saídas e receber gorjetas
mais generosas.
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A prostituta mais velha e mais redonda,
que adoptara o nome de
«Bolacha Maria» , dizia à sua clientela -de resto, farta dela, pois
muitos eram aqueles
que a procuravam para lhe oferecer o lanche da tarde (chá e
bolachas) e outros
para um corridinho
à moda do Minho -a história de como o Barão da Piroca praticara com ela a primeira vez o coito,
numa tarde à chuva, quando ela era principiante no ofício. «Ele deu-me três tão
mal dadas», -dizia ela, excitando imensamente os clientes. - «Que eu chorei todo o dia. Deu-me a primeira molhada, a segunda recriada
e a terceira bombeada, que só me lembro de ficar toda ensopada.» - Ouviram-se risos. A prostituta
«Bibi» fez-se, por seu turno, tão
melodramática como a sua colega
e exclamou: «Ó filha,
tiveste mais sorte
do que eu, que perdi os três a cagar; ouvi falar na bomba atómica e olha;
não aguentei a pressão ...» - As gargalhadas subiram ao rubro.
Todas as prostitutas têm os seus quês. Quer pelos seus encantos
maternais, quer por outras agradáveis surpresas. Mas tinham
um lado negativo. Por exemplo, entravam
constantemente em guerrinhas por tudo e por nada, em conflitos com as duas prostitutas brasileiras mais formosas. As outras sempre as tinham achado um bocado peneirentas e que tinham o
vício de lhe sacarem os clientes mais requintados do bordel. No fundo
da questão, o trivial é sempre o mesmo. As prostitutas só falavam em dar
mocadas e mais mocadas para fazer dinheiro
e mais dinheiro, de dinheiro e de sexo a conversa era sempre a mesma, mas não julguem que era só
falar, por falar.
Ao fim de alguns meses,
as seis beldades, conforme o tempo
avançava, as suas performances começavam a apagar-se e a deixar
de dar o rendimento desejado. Lato, mais desdentado e com menos cabelo de mês
para mês, viu também
as suas vendas
fraquejarem e os favores a diminuírem, acabando por cavar e deixar ali apenas o seu rasto. As raparigas também começaram a demandar-se para as casas da
concorrência e a Dona não teve outro
remédio senão alterar
as regras.
Nesse tempo era usual as prostitutas, ao entrarem para o trabalho, deixarem os seus amantes à porta, ou então, nos cafés
mais próximos do local
a fazer horas -enquanto
elas esgravatavam o graveto para a noite darem uma de pé de dança,
beber uns copos, e ficar com algum pataco
para o almoço do dia seguinte. -Mas agora essas regras foram quebradas e chegou o dia em que as raparigas pediram
autorização à Dona para deixar entrar os seus amantes, pois sentiam necessidade do seu apoio,
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além de que consumiam
despesa para a casa, coisa que, afinal de conta\ era
importante para os cofres da Dona. Esta a princípio
tentou dissuadi-las, dessa ideia mas, quando
viu que elas não desarmavam, não teve outra saída senão ceder nas pretensões delas, embora citando de que a primeira bronca que houvesse, corria à latada,
fôsse com quem fôsse
pela porta fora.
No fim, pôs-se aos risinhos
e às cotoveladas a elas, ordenando com a sua voz autoritária: «Ide a eles, não os poupeis.» -
Os proxenetas das raparigas deixaram
bem claro que esperavam
cumprir à risca os seus deveres como clientes e criaram
entre eles um sistema rotativo no qual, um de cada
vez por semana,
passava a acumular as funções de porteiro, sendo o dia para o trabalho e negócios e a noite para o divertimento com as suas parceiras.
Assim que eles embarcaram nessa missão, as prostitutas trabalhavam com maior convicção, ou seja, entregavam-se mais afincadamente à função
para mostrarem aos seus «homens» que eram umas autênticas máquinas de fazer dinheiro.
«Porque
é que não vais fazer aquele tipo?», -perguntou a indignada «Bolacha Maria», mas logo se opôs «Beta» terminantemente .
«Aquele gajo não faço porque o meu homem não gosta dele.», - declarou, - além disso, tenho a minha ética.
Não gosto de fazer os amantes
das minhas colegas de trabalho. A minha tarefa é fazer uns gajos,
não sei se entendes.» -
«Bom, seja lá corno for»,
- disse «Maria,
a gorda», encolhendo os ombros.
- «Eu aqui dentro
não conheço ninguém. Por isso, vou lá aviar o tipo.» -
No fundo da moral, as prostitutas d ' A Banheira eram as mulheres mais convencidas e antiquadas da cidade. O seu metier
que tão propício
se tornava a deixá-las cínicas
e amarguradas (e elas, eram evidentemente
capazes dos piores raciocínios) tinha-as,
em vez disso, feito numas incorrigíveis sonhadoras.
Presas do mundo exterior, tinham
concebido uma fantasia da vida
normal em que não queriam outra coisa senão ser pessoas obedientes e submissas dum homem que fosse reguila, amante e cavalão.
Quer dizer: todos estes anos a dar o corpo ao manifesto das fantasias dos outros
tinham acabado por lhes aniquilar
aos poucos os sonhos, ao ponto de, mesmo no fundo do íntimo dos seus corações,
já não sentirem uma
sensibilidade que superasse
um novo sonho.
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E o perverso
Lato começou a aparecer de novo e a ganhar
confiança com as novas atracções da casa. E descobriu que, de seis mulheres, ainda lhe faltava
comer três, pelo que se pôs a competir com os seus trapos em câmbio dos seus favores,
pela graça de um sorriso
seu, e aguardar a melhor altura para atacar.
Certa ocasião em que as disputas
com elas o irritaram, repudiou-as a todas ao mesmo tempo.
«Ainda haveis de vir a cair à minha mão.» - Quando, passados dez minutos foi ter com «Sua Bombom», ela zombou dele
e chamou-lhe: «Você é um bobo.» - Mas,
naquele dia, «Sua
Bombom» apanhou-o no quarto com «Bolacha
Maria» e, minutos depois, com «Beta». Ele pediu a «Sua Bombom»
para não contar.nada a «-Elizabete», por quem estava
redondamente apaixonado; mas ela contou à outra e Lato viu-se
obrigado a evitar
durante alguns dias a «Rainha dos ovos de ouro» do bordel. A obsessão que assim
nascia era a mais atractiva que alguma vez sentira. Às vezes, quando estava com outras na cama, sentia-se tomado como se uma droga
tivesse ingerido e ficava
lento, as pernas
pesavam-lhe o triplo
e tinha de acalmar.
« É estranho» ,-dizia ele. - «É como se tivesse comido um boi, ou tivesse
pegado em dez sacos de batatas.» - Estas sintonias começaram a baralhar-lhe as ideias. Certa vez, deu-lhe
o sono e adormeceu no sofá
do quarto ao lado de «Sandra». Quando acordou, horas mais tarde, doía-lhe o corpo, parece que tinha partido o pescoço, que mal conseguia endireitar a cabeça e repreendeu-a: «Porque
é que não me acordaste?» - Ela respondeu: «Estavas
a ressonar que nem um justo, até tive pena.»
- Ele abanou a cabeça. «OK, já entendo. O que quiseste
foi deitar-me abaixo para dizeres às tuas amigas
que já foste para a cama com o grande Lato. Mas fica a saber de
quem eu gosto, não é de ti.» -
Duas semanas e dois dias depois de Lato fazer
uma abstinência aos seus
apetites sexuais, Coxo, o carniceiro, viu-o de cor amarelada no rosto
e de calças justas à gigolô e os sapatos bicudos de sola.
Lato saía do quarto
de Sandra quando
o carniceiro o topou e apontou para ele,
gritando: «Então, já acabou o jejum?» - Sandra saiu à porta do quarto,
pondo-se a espreitar. Mas Lato disse:
«Pira-te para dentro,
antes que o Coxo te coma com os olhos.» - Convidou o carniceiro para beber um copo
e, instantes depois, abriu no bar uma garrafa
de whisky escocês
e enfiaram dois dedos
de conversa animada
e sempre relativa aos barretes. «Ande lá, beba um copo», - expressou Lato com
a garrafa na mão,
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enquanto, o carniceiro insinuou: «Nunca bebas o primeiro
copo. Foi um marroquino que me disse isso, derivado à sua religião
.» -
Lato
olhou surpreendido para
ele.
«E você como o faz?»
- Perguntou.
«Bebo sempre a partir do segundo .» - Respondeu Coxo, muito risonho.
«Essa tem piada . Estamos sempre a aprender.» - Concordou Lato, bebendo o primeiro copo com sofreguidão.» -
Coxo abriu os braços num gesto de desencanto e disse: «Estou
aqui porque marquei um encontro com as brasileiras que me encomendaram miúdos de pato para o jantar», -disse ele, com um brilho no olhar.
- «E vou aproveitar a ter uns momentos de prazer, isto
é, se elas vierem com disposição para fazermos -o carrossel do amor! -
Depois de Lato
ter soltado uma
risada pelo dito
dele, o Coxo
sentou-se de pernas esticadas
e cruzadas na cadeira estofada
de napa. A sua
esperança e a sua ambição
tinham sido bem regadas pelo álcool.
«As mulheres só nos pregam
ilusões», -disse ele, bebendo muito rapidamente. -«Mas sem essas ilusões estamos
feitos ó bife! Vou esperar mais uns minutos;
se elas não aparecerem até o ponteiro
estar entre as duas,
deixo-as ao seu critério.» - Mas Lato não ficou muito convencido disso. «Deixe lá isso.
Você nem a um cão dá um osso, quanto mais dar duas trutas dessas
que fazem o consolo a um moribundo.» - À medida que a garrafa
se ia esvaziando, Coxo voltou outra vez a focar o tema, como
Lato já esperava, das brasileiras terem-lhe enfiado o urso ou o
barrete como se costuma dizer. Contou ele a Lato uma história
curiosa, entre ele e a rapariga
do boate, relatando o barrete como facto humilhante.
«A rapariga do nigth-club chupou-me de bandeja
quatro garrafas de champanhe francês,
prometendo que depois do fecho da casa ia ter comigo ao quarto do hotel, para me brindar
com uma cena
das mil e uma noite», -disse Coxo. -Ela falava
tão meiguinho e não sei
que mais que eu deixei-me escorregar. Como havia
eu de saber? Depois, no fim, ela entrou em transe -estava-se mesmo a manjar -e atirou-se para a alcatifa
com um desmaio
prolongado e, pouco
depois, saiu para
um taxi que a
levou não sei para onde.
E eu caí como um patinho, na mesa de braços
cruzados, a olhar para a bola giratória da pista cheia
de efeitos especiais. Ora bem; fui ter com o empregado. O que é que ele me ia dizer? Sabes o que é que o estafermo me disse? Ele disse assim:
"A menina ficou inchada do estômago e foi ao hospital esvaziar
as tripas. Quando recuperar, vai dar-lhe uma explicação." Caraças! Apeteceu-me mandar
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o empregado àquela
parte, mas olhei de lado e aguentei
os nervos, não fosse ele enervar-se mais do que eu e dar-me uma porrada.» -
Lato deixava Coxo falar sem cortar o diálogo. Os barretes das raparigas da noite chateavam bastante o carniceiro. «Já estou cheio
de levar com eles»,
- exclamou .-Cada vez perco mais a paciência de ser sempre
o mesmo Cristo.» -
Ao fim dum bocado de tempo, Lato começou, também,
a contar os seus barretes e Coxo ficou pasmado ao ouvir tanta fita à americana.
Lato concluiu: «O meu sistema é que faço isso de propósito, deixo-as primeiro enfiarem-me o barrete»,
-raciocinou Lato. -«Para depois ser eu a seguir; não pago e remeto-lhes uma factura de despesas.»
«E elas não se zangam por isso?»,
-perguntou calmamente Coxo. E Lato respondeu rapidamente: «E isso faz-me
cá uma diferença do carago! É da maneira que ficamos quites e não nos chateamos mais.»
Por esta altura
já Coxo estava bem embriagado e começou a olhar
para o relógio aos esses
e a praguejar acaloradamente, mas Lato levantou a mão e disse:
«Não vale a pena esperar
mais. No seu lugar», - disse - «amanhã, punha-lhes junto à borda da cama uma saca de plástico
com os miúdos de pato e, a seguir,
dava-lhes duas de borla que elas não enfiavam o barrete a mais ninguém.» -
Mas Coxo coçou o pescoço
e abanou a cabeça. «Deixe-me
antes contar-lhe a última.
Uma história do outro mundo. Hummm! E relaciona-se com o que estamos
a conversar.»
O conto de Coxo: O maior barrete
de que eu tomei conhecimento passou-se na minha terra com a filha do carniceiro de lá. No dia da sua
boda e depois de toda aquela cerimónia, o noivo preparava-se para comer a febra da noiva quando um caso insólito
aconteceu. Ao que consta, a noiva, no acto importante, começou aos berros
e, no momento em que o
noivo se encontrava como que transportado para um mundo invisível,
sentiu-se todo arranhado com as unhas da noiva
que não lhe poupou uns valentes rasgões na pele. E, pior que isso, veio a seguir, quando
o sangue vindo
da noiva, começou
a trespassar pelo lençol numa
mancha vermelha, aterrorizando o noivo
que se passou dos carretos
e fugiu da cama, trancando -se nos arrumas do quintal. E, mais tarde, começou a sair o boato
cá para fora que a noiva
era uma jovem com uma rodagem bastante
alargada nos «nocturnos», e que o noivo era afinal de contas, muito mais velho
do que ela e que fora redondamente enganado na história
daquela
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virgindade por uma saca forjada de sangue de porco agarrada à cintura
dela e pelas unhas aguçadas
de javali, escondidas no soutien. Portanto,a noiva armou todo aquele
banzé para se sentir atraída
por alguém que a desposasse. Um escândalo
de ficar solteiro toda a vida.» - Comentou Coxo, bebendo mais
um copo.
«E o que
é que o noivo agora vai fazer?» -
«Nada, já
fez», -respondeu Coxo. -Foi
falar com os sogros e depois deu de frosque
1 tendo repudiado a noiva e amaldiçoado o dia em que a conheceu. Só isso.» - Coxo colocou
o copo sobre a mesa.
«E desta vez, meu
amigo, o barrete
cheirou a esturro!» -
Lato, o vendedor de trapos, partiu
na manhã seguinte
com a carrinha carregada de roupas, para vender
pelas aldeias de Trás-os-Montes,
seguindo sempre o rumo ao norte. Ao despedir-se de Coxo, estendeu-lhe a mão e disse: «Espero que para a próxima,
quando cá estiver, possamos fazer uma farra e comer um peixinho
melhor.» - Coxo respondeu: «Afinal de contas, você tinha razão.
As brasileiras deram-me
uma seca e não apareceram.» - O rosto de Lato ganhou uma expressão. «Talvez não tivesse perdido
muita coisa .» - E foi-se embora.
Quase uma hora depois, Lato passou pela serra do Marão e não deixou de
contemplar a beleza da região
transmontana até chegar a uma aldeia
chamada Capeludos de Aguiar onde acampou, junto aos moinhos
de vento, para visitar
os clientes. As vendas duraram
a parte de manhã, antes de chegar a hora do almoço. É que o Lato era, afinál de contas, um bom prato e um bom copo e, por conseguinte, mal se sentou à mesa, bateu palmas,
chamando a atenção do tasqueiro. «Amigo, estou com
uma fome que nem um lobo», -disse ele. - Abra-me o apetite com um prato de presunto
de Lamego e depois sirva-me
o tradicional: Posta Mirandesa. E, para beber, fico-me numa garrafa de vinho Favaios.
Ah! já me esquecia; traga-me
também um «Folar» da região.» - E logo os
olhares presentes se voltaram para ele. Depois de aquecer
o estômago com uma copada de vinho, Lato virou-se para os presentes:
«Há duas coisas em que um transmontano se orgulha: - O amor duma mulher
e um bom copo de vinho.» - E mais não disse, porque o manjar veio logo a
seguir e o apetite era imenso.
202
lFugiu.
Naquela manhã, uma ordem veio através do comando geral
e os guardas foram
comunicar à Dona da Banheira que tinham ordens para
encerramento do lupanar.
Chegava de imoralidade. E já bastava
os vizinhos que passavam
o tempo a queixar-se daquelas
poucas vergonhas. por detrás
das suas lamúrias, a Dona pediu ao oficial
da guarda que lhe
desse uma hora e que não fizesse
grande alarido de maneira a permitir
que os clientes saíssem sem serem incomodados, e o oficial fez-lhe a vontade.
A Dona deu ordem aos amantes
das raparigas que avisassem as meninas para conduzirem os clientes sem espalhafato pela porta de emergência. «Façam favor
de pedirem desculpa
por esta interrupção. Vou cortar a luz de propósito, para fazer de conta que o quadro
geral da electricidade teve uma avaria
eléctrica.» - Ordenou aos amantes: «E digam que hoje
a corrida é grátis, não pagam nada. É tudo por conta
da casa.» - Foram as suas últimas palavras.
Quando as assustadas
raparigas compareceram diante dela querendo saber se aquilo
era mesmo verdade, a Dona não respondeu a nenhuma das perguntas assustadas. Então vamos ficar sem o nosso
emprego, sem direito
a subsídio de desemprego, logo agora que estava a ganhar alta
nota? Ponha umas
velas nas banheiras!. ..
Até que a Dona deu um berro: «Calem-se suas histéricas e vão-se mas é
arranjar.» -
Quando ela se afastou, todas
viram uma mulher
frágil e amargurada, fazendo lembrar
uma grande dama
que acabara de perder o seu tesouro mais valioso -o sagrado tostão.
O comandante Fiúza não se coibiu de manifestar o seu apoio por
acabar com semelhante esterqueira que abalava a estrutura da nova cara que
a cidade estava a querer implantar aos seus habitantes. Voltou-se
para as meninas: «Bem, arranjem-se lá e tragam os B.I. na mão, para vos tirar as vossas identificações.» Gritou e ordenou aos seus homens
que deitassem os olhos às «galdérias», não fossem elas pirarem-se dali à
má fila. As mulheres fizeram um vasqueiro
desenfreado e desataram a
dar pontapés nas portas e a lançar palavrões, pedindo ajuda aos amantes que ficaram a ver sem poderem
fazer nada se não serem espectadores de cena, pois Fiúza tinha-lhes dito: «Elas vão ser identificadas mas: quanto
a vocês, não há provas nenhumas da vossa
actividade. Por isso, pirem-se daqui para fora e não armem sarilho
nenhum, se não querem levar umas chicotadas nesse lombo.» -
203
Eles mantiveram-se em respeito e quietinhos, observando a cena. Momentos depois,
a mais nova das prostitutas voltou-se para o oficial e gritou: «Vou fazer queixa aos índios do meu
bairro, tu vais ver, vão-te pôr o canastro a arder!» - O comandante do pelotão achou graça àquilo.
«Qual de vocês é o chulo dela?» - Perguntou, olhando atentamente
um a um. «Confessem, ou ponho-vos já a toque de cavalo
marinho.» - Um deles
respondeu: «Ela é virgem; e não quer
um chulo.» - O oficial deteve-se diante dele: «Ouvi
dizer virgem? Tás a gozar-me ou quê?» - O
mesmo indivíduo acrescentou: «Bom,
é uma maneira de dizer.
Nem todas
as raparigas querem
ter amante; como é este o ca...» - Sem aviso prévio,
o oficial puxou o proxeneta pelos cabelos e apertou-lhe o pescoço com as duas mãos.
«Uma prostituta sem amante?», - disse. - «Essa
é boa. Pois fica a saber
que nunca ouvi
dizer tamanha besteira.
Só por isso,
vou-te mandar rapar o cabelo à escovinha para aprenderes a não dizer mais asneiras.» - E voltou-se para
os outros amantes.
«Desapareçam já daqui»,
-ordenou.- «E que não volte
a pôr-vos a vista em cima; senão
meto-vos no xelindró uns tempos.» -
Os amantes saíram para fora do lupanar e sentaram-se no passeio, alguns com as mãos
na cabeça e outros a chorar aperda das suas mulheres. O Comando Geral mandou
identificar as seis prostitutas da Banheira e cada uma
delas foi obrigada
a pagar uma multa simbólica, como castigo das suas actividades, que reverteu para os cofres da comarca,
sendo advertidas para procurarem outro modo de vida. E o oficial,
depois dum raspanço, concedeu-lhes uma ultima oportunidade de se regenerarem.
E assim o bordel foi encerrado e, quando os guardas fecharam a porta e puseram
um cadeado à volta da fechadura, o senhorio colocou um cartaz
na janela: Aluga-se para mudança de actividade.
O oficial entregou a chave ao senhorio, dizendo
na sua boa fé. «Espero que tenha mais sorte
na próxima vez e não alugue a casa à prostituição
ou a
gente dessa ralé.» -
O senhorio respondeu: «Prostitutas e ralé, não vejo muita diferença.
O que eu quero é o dia 8 de cada mês para receber o aluguer.
Acabou assim o lupanar.
204
Quando o vício
da droga seduziu
Fífia, numa vitrina de sonhos doirados e substituiu a sua beleza pela anarquia dos seus desejos, os amigos
retiraram-se aos poucos e deixaram-na sozinha a seguir aquela estrada da maldição sem saída. Trancou-se no seu quarto do bairro com uma quantidade de bebidas diversas
e um saco de farinha
Branca de Neve (pó branco) e chutava doses que mais nenhum
ser humano no bairro
conseguia aguentar.
E, durante dois anos, viveu como uma vivalma do mundo
obscuro. Depois, certo dia de madrugada, entrou no seu quarto, meio despida, roupas transando a merda, pondo-se aos berros: «Vou deitar
fogo a isto tudo», - e regou com gasolina o chão. - «Hoje vou experimentar ser a
Joana d' Arc.» - Com a transe
que estava pareceu-lhe ouvir ecos de uma
voz a perguntar-lhe: « Experimentar o quê?» - Fífia respondeu: «Posso não ser capaz de voltar ao passado,
mas a sede, tal como o vício, pelo
menos é uma coisa bem mais doce.»
-
Não era passada
meia hora quando
chegou a notícia
que a Fífia pusera fogo ao pequeno quarto
onde morava e escapara por pouco ao incêndio, encontrando-se no leito do
hospital com a cabeça a arder como se dela saíssem fogos.
Mas era evidente
que ninguém viria vê-la naquele
dia no hospital, pois
ninguém sabia do sinistro. Caiu a noite e veio o dia e Fífia recolheu a casa de uma amiga que a recebeu,
envolta em ligaduras, com algumas escoriações pelo corpo. A amiga serviu-lhe uma refeição simples
epôs-lhe um jarro de água em cima da mesa. Fífia já não se lembrava do sucedido e nem queria ouvir falar de semelhante coisa,
enquanto ia mastigando pão com manteiga. «Ó mulher, tu nem sabes do que escapaste», -berrou a amiga. - «Se não fossem os bombeiros, a esta hora eras uma mulher morta.»
-
Ela riu-se e, instantes depois,
ficou séria, com as mágoas
a projectarem estranhas sombras
nos seus olhos. Deixou-se ficar inerte, alheia a tudo e a
todo o seu pensamento.
E quando a cabeça dela começou a esquentar-se como nunca antes lhe
esquentara, ela soube
que era chegado
o momento de escolher entre a
vida e o vício.
Pois um drogado
não pode viciar-se antes de ter provado o VÍCIO e sem depois se lhe pedir que escolha entre a saúde e a doença!
Com a cabeça deitada sobre a mesa, fechou e abriu os olhos
interruptamente uma dúzia de
vezes , olhando a vida que pareceu
querer abandoná-la: logo após, voltou
a si;
205
E disse para a amiga: «Já tracei o meu destino e já fiz a minha escolha
e escolhi o vício da droga.» -
A seguir ela chorou como
nunca tinha chorado,
sabendo que o vício era mais
forte do que ela alguma
vez imaginara. Os olhos da amiga desviaram-se dos dela, dir-se-ia que não lhe interessava fitá-la
e abandonou o quarto, deixando-a a sós com o peso da sua cruz.
Fífia, de repente, voltou-se
e pareceu-lhe ouvir vozes a cantar:
«Quem anda aí?»,
-perguntou. - «És tu, minha amiga?»
-
Mas Fífia ouvia uma voz sobrenatural, meiga e sensual,
uma voz de anjo a retorquir:
«Não, alma perdida. Sou o teu anjo da guarda.» -
E a voz calou-se; e no escuro Fífia voltou a falar: «E então és tu que
iluminas omeu caminho?» -
E ele disse: «Sou, mas tens o demónio
dentro de ti; e só te largarei quando deres uma cabeçada
numa parede e atirares com o vício aos
lagartos do deserto.» -
E, com estas palavras, a voz do anjo mais não disse.
Ainda assim, Fífia murmurou:
«Eu te agradeço. Vai à tua vida que eu vou à minha. Adeus.» -
Não tardou muito a adormecer. A amiga veio vê-la a ressonar e
pôs-lhe
uma manta sobre as costas, afim de a agasalhar
melhor. E a amiga deixou verter duas lágrimas
de tristeza e disse para consigo: «Se alguém te quer
bem, que se compadeça da tua alma ou, então, que reze por ti
uma Ave Maria, pois é certo que agora bem precisas de todos nós.» -
206
No seu quarto
tão solitário onde não restava
mais viva alma,
Padrinho meditava sobre o equilíbrio, o poder mágico que une as coisas numa só forma
e o tónico essencial para a sobrevivência do ser humano.
Um dos mais valiosos poderes
que ele considerava em dias sombrios (infelizmente,
teve muitos), e que
incluía, entre as suas imagens do passado,
o suave Equilíbrio da Mocidade e Juventude, até ao Desequilíbrio Final, conforme este ultimo constava de uma cena a que assistiu no Central Parque de
Tony Arroyales e seus artistas
... «Quando um homem não sabe para que lado
deve cair, o melhor a fazer é não cair porque, senão, vai-se aleijar mesmo e, a partir da queda, nunca se sabe o que
pode advir daí. Toda a herança
natural de um indivíduo
sujeita-se às mais duras tragédias que a vida proporciona quando começa a pressentir que a vida não é uma farsa de
abismos profundos onde mergulham as raízes
do sujeito.» Eo que é que tu sabes do teu?...
E, num outro
ângulo, mais forte
que o que Padrinho fantasiava, quando novo e mais feliz, criava
uma cena publicada num livro do Papa-Léguas
a Voar Sobre Cabeças, que partilhava o equilíbrio com a inteligência.
O equilíbrio, uma noção onde cada
um que desejasse chegar ao top e ter uma experiência humana capaz de sobrepor-se a todas as coisas, não podia
dar-se ao luxo de
não tentar semelhante varinha mágica, se não
queria mesmo correr o risco de cair ao fundo do vale dos fracassados.
«O equilíbrio é irmão do poder», recita Tony Arroyales, que é
a própria ideia do sujeito no seu modelo perfeito, entre o sucesso
e o insucesso,
«Para
te manteres firme,
não vaciles um milímetro
sequer.» -
207
Pela parte que
lhe tocava, Padrinho tinha feito durante
os tempos muito mal o seu equilíbrio (ou pelo menos
disso se apercebeu) a querer viver uma vida fantasiosa de empresário moderno.
Das coisas boas da vida que
mais amara fora a sua grandeza superficial. Dissera uma ocasião, enquanto cortejava a sua futura mulher,
que um dia,
havia de ser grande
como Gulliver, embora tivesse
no fundo de si mesmo
a consciência de que se tratava de uma aberração. (A mulher, é claro, fazia assíduos
esforços para não ligar ao que ele dizia e declarou-se felicíssima por aquilo que ela
própria alcançara na vida, dando
graças a Deus
por ambos terem saúde.)
Padrinho empenhara-se ao máximo, como antes dele fizera
o compincha São
Nicolau, embora sem tirar o mérito à Sombra Política, própria
da inteligência capitalista, de passar por Papa Notas -em estar à altura dos seus argumentos, representado pelas linhas de orientação
acerca dos fundos perdidos.
A escola de formação já não existia
mas, apesar disso,
Padrinho tomara plena consciência de que «tudo
que ele fez» foi de «boa vontade» e, com «a melhor das intenções», nada foi feito
ao acaso, embora
também se diga que a sorte não o ajudou nos momentos mais cruciais em que
precisara dela. - Das coisas
materiais, dera o seu
amor a uma cidade, Monte Corgo,
preferindo-a à cidade
da diversão ou a qualquer
outra. Nela crescera a ideia, com excitação impressionante, ficando sereno corno uma estátua
quando ela olhava
na sua direcção, sonhando vir a ser o
homem que havia de a moldar ao seu gosto. De outra maneira,
transformá-la em pioneira, entre
outras coisas, em inventos de ideias,
como aquela, no jogo da ignorância, uma criança diz ao pai que a professora lhe ralhou por não saber a tabuada
e o pai diz-lhe para não
responder na aula e dizer à professora que não está lá para aprender - mas sim para ensinar. - Como diriam os jovens corguenses, saloio
esperto. Como, ainda,
no mito da natureza, Monte
Cargo era dominado por uma lenda do tempo dos romanos, o seu monte era o espelho da própria
natureza, de uma reserva que se alongava por toda a vasta zona onde
escorre a água
de uma fonte,
os rugidos dos animais no momento
da correria.
E a sua hospitalidade - sim! - apesar
da pouca cultura
e da falta de experiência do seu povo,
Padrinho continuava a ter, na veracidade dessa ideia, um acolhimento saloio
mas simpático. Às vezes, até roçava um acolhimento hospitaleiro demais, como o comprovava a existência num lugar, a norte de Monte Cargo,
de uma tasca onde só se falava
em calão
208
da terra, ou seja; não se dizia uma palavra
que não fosse o corguense. Como o comprovava também
a reunião mensal em São João,
centralizada à volta da tasca do tio-Manel com um concurso
de copo à mesa, rodeado de copos e garrafas
- e de mais de vinte bebedores, habitantes de uma aldeia
chamada Baralhas. - «Nós os montecorguenses orgulhámo-nos da nossa capacidade de beber.» - Dissera ele uma vez a um amigo de outra
povoação mais próxima, e ele, morto de riso, levara-o
a ver uma cena na tasca da
sua freguesia, em que, um bebedor de refrescos bebera mais
de cinquenta e três copos
de pirolito de água, limão
e açúcar e não lhe
fizera mal nenhum;
simplesmente enchera um garrafão de cinco litros
de mijo..
Nesse tempo,
esses concursos divertiam-nos e, no fim de cada
bebedeira, eles quase sempre
acabavam no chão e outros
na cama dum hospital...
Padrinho tomou a encaminhar os seus pensamentos errantes para o tema citadino -disse teimosamente para consigo -e a sua longa história, conservada em manuscritos no seu solitário
quarto, apesar da ingratidão
de uns tantos amigos, que nem achava valer a pena sujar o tinteiro com
os seus nomes e os apelidou de molestas. Teriam eles hoje ou amanhã com os seus ditos, diz-me-se-alguma-vez-me-ajudaste-ou-eu-te-ajudei
em-quê?, permitido que ele desse
com a boca na botija. E o que diria à sua cidade se alguma vez denunciasse a sua própria
fraude e mais alguns
deles a um juiz feroz e cruel dos nossos tempos?
Ó digna Lei! Dura de expressão em forma sentida
que perdura pelos processos adormecidos, prolongando as suas novas datas às ardentes certezas dessa nova Lei Dura, opaca, com
a sua justiça de retardança que usa na aplicação do julgamento
a sentença final, através do homem vestido
de negro e martelo na mão, a silenciar os seus ocupantes humanos no seu veredicto: - culpado ou inocente?
-
O primo de Padrinho sempre
tinha evitado comentar as rapsódias desta espécie de maneira menos dramática. «Isso são problemas teus»,
- costumava Mequinho dizer-lhe. -«Quem as ate que as desate.
Ó moço, meteste-te numa que, francamente, não sei como te vais sair dessa embrulhada.»
- Mequinho nunca
tivera paciência para
as coisas obscuras. Transparência! Como a água límpida e pura. Ele dizia: «Se conseguires
pôr o cu em cima daquela pedra e
não te molhares, é sinal que estás limpo, senão, estás porco.»
- Ele regozijava-se com esta filosofia da sua própria invenção.
209
Padrinho pedira licença
para contestar, mas nessa altura já tinham começado a andar pelo passeio da rua em direcção
ao café, o que 0 levou a dar-se
por vencido quanto
a tudo o resto.
Tinha havido um ano em que o Governo decidira
mandar averiguar todos os pedidos de fundos perdidos
a firmas e grupos empresariais de
forma a penalizar os faltosos
no cumprimento das suas obrigações para com o Estado
e saíra, num dos jornais
da capital, uma
grande reportagem, o que levou a criar
uma bronca à volta do caso. Ao ver isto, Padrinho quisera fazer um cartaz-de-protesto solitário. Saberia aquela gente
que o valor dos FPB que recebera
era vultoso? Ali estavam
eles todos na rua e nos passeios a cochichar, enchendo
os pulmões com cigarros
enquanto outros saiam dos tascos, já com o estômago cheio de vinho, contra os quais alguns
habitantes se manifestaram ... Mequinho bateu o
pé. «Não te atrevas a discutir com esta gente»,
- disse. Ele defendia o seu ponto de vista que o calado
é sempre o mais atinado.
Daí ter acrescentado o «não te atrevas» e, para sua própria
surpresa, Padrinho
compreendeu que realmente era melhor
estar calado. O que ele queria
dizer não era certamente o que as pessoas
queriam ouvir se o vissem falar.
Queria dizer tanta
coisa, mas aquelas
circunstâncias não o ajudariam. Por isso
não podia levar a sério os ditos daquela gente. Via bem, no entanto, que a sua posição era pouco clara e muito
difícil de perceber.
-
E
dos primos, Mequinho,
tu foste o único de que mais gostei.
- Grandeza,
mulher, cidade, e um ultimo desejo de que nunca falara a ninguém: a obsessão de um sonho.
Nos bons tempos,
o s.onho repetia-se
mais ou menos uma vez
de longe a longe. Um sonho simples, passado no pais irmão,
o Brasil, numa altura em que resolvera emigrar com a ambição
de se tornar rico depressa. Nessa terra longínqua, Padrinho via-se a si
próprio, acompanhado de uma dúzia de pretos,
seus funcionários, e resolvera montar uma fábrica
para fazer fósforos de duas cabeças
e tivera um sucesso
estrondoso. O Padrinho
do sonho correu para cá com o barco
carregado de dinheiro e logo voltou para lá. Depois teve a ideia infeliz de fazer pregos
de duas cabeças
(mas aí não
teve o mesmo êxito) e o equilíbrio caiu-lhe
como o dom de baixar
e, agora, deslizava pela alameda abaixo, quando lhe surgiu uma nova ideia
de relançar o negócio.
Padrinho foi a correr e mandou chamar o encarregado a quem sugeriu que fizesse um cenário
com a fotografia de Cristo pregado na cruz apenas
210
com um prego
numa mão e outro num pé, em posição vertical
e com os dizeres em letra maiúscula: «Se fosse hoje, com os pregos
do Padrinho isto não acontecia.» - O encarregado felicitou-o pela ideia. «Conseguiu. Bravo!», e Padrinho
não teve tempo de saborear
o triunfo pois, logo a seguir, o pároco da igreja, não menos
eufórico, contestava: «Olhai senhores! Olhai para aquela
imagem!» - E Padrinho mandou tirar Cristo
e deixou
apenas a cruz mas mudou o texto: «Se fosse hoje, com os
pregos do Padrinho, Ele não fugia.» - Era um sonho que dava vontade de rir -e, quando Padrinho
acordava, não havia dinheiro nem ideias à volta.
«0 que é que vai fazer
agora?», -perguntara-lhe o antigo funcionário entre os despojos
da escola de formação, e ele respondera, com excessiva clareza: «Eu?
Sei lá bem. Acho que preciso
de resolver o meu
problema.» - Era bem mais fácil
de dizer do que fazer;
fora o destino que afinal
premiara o seu amor por uma mulher,
que agora sabia
mais do que nunca que sempre o amou, acompanhando-o nos bons e maus momentos da vida; o seu amor por uma obsessão,
com uma ideia luminosa, a grandiosidade, a ilusão do poder. Ilusão
que, apesar de todas as coisas,
sobrevivera; adquirira a sua identidade e não esquecia o exemplo de
Dom Pablo da Madeira, um homem injustiçado que se transformara em sinónimo de desgraça, quando na verdade o seu firme propósito
era apenas o de querer o seu próprio
bem. E levara-o
à sala da justiça, onde apanhou duas dezenas de processos de cinco, ou seriam oito anos, a ficar
a ver o sol aos
quadradinhos. - O suficiente, em todo o caso, para pôr qualquer homem de bons sentimentos a ficar meio grogue, só porque
apenas se intitulou mais um entre mil! - E, no entanto, ele aguentara firme a barra, uma vez que não achara qualquer crime ao serviço
do Ministério Governamental; se Dom Pablo
da Madeira pudera
sobreviver às suas penas
e escrever uma rábula, talvez
um pouco triste,
da literatura do «Monte
dos Vendavais», então em cena, assim,
também ele, Padrinho, não precisava com certeza de recear a derrota. Era como
um doente tomar uma injecção de penicilina; toca
a enfiar e já está;
curado e o resto que vá para o diabo que os carregue a todos.
Os Quatro levaram
Padrinho ao bar de Pina-Colada e seguiram na carrinha do Compridão, que era larga
e espaçosa e toda a gente cabia
bem.
211
Era ao meio da tarde.
Baixote ainda devia
estar no clube desportivo
«Boa sorte», - disse-lhe Compridão dando-lhe um aperto de mão
Escovado perguntou se queria que esperassem por ele. «Não,
obrigado Eu depois arranjo
uma boleia», - respondeu Padrinho. -«Quando um homem
sabe para o que vai, dificilmente se perde ou raramente cai numa contradição de não saber o que deve fazer. Não é este o caso, por isso meus senhores, nada mais me resta senão agradecer-vos a boleia.» _ Disse
adeus com a mão. «Acho muito bem
dito.» - Respondeu Magricelas abrindo o vidro do lado dele e foram-se embora.
À esquina da rua estavam, como sempre, os carros da vizinhança e alguns
clientes à porta a observar.
Ele
avançou para o lado do passeio, a ritmo acelerado,
cheio de acção para o que viesse a seguir.
Seja benvindo, pensou Padrinho, e transpôs a porta. Pina-Colada, quando 0 viu, cruzou
os braços sobre o peito. «Julguei que nunca mais vinhas ver-me», - disse ela. - «Pelo
menos, desde que houve aquele caso à porta com o teu segurança, nunca
mais ninguém te pôs a vista em cima.» - O sorriso dela
era visível; ele aproximou-se da sua beira
e cumprimentou-a de mão. Ela corou e
rapidamente se sentaram. Um café e um copo de água
do bar veio com vários
compassos de espera
(ela «ficava-se» pelo seu
bourbon, bebendo aos poucos); mas a verdade
é que Padrinho sentia-se um furo abaixo dela do principio ao fim da sua passagem. Pina Colada achara naquele
encontro que ele devia estar
numa posição difícil. Foram dela as primeiras
palavras confortantes para o tentar
aliviar da dor, pelo menos três vezes; mas ele estava tão nervoso e tão cheio de vergonha como ela. O motivo do desconcerto de Padrinho -e recorde-se que ele não chegara ali com aquela
atitude, mas sim numa posição
enérgica e combativa - foi ter compreendido,
ao ver Pina-Colada, com o seu
sorriso de rapazinho e o seu ar jovial, ter percebido que ela já sabia
de tudo e não valia a pena estar a contar mais histórias. No instante em que
se apercebeu desse facto, começou,
vá lá saber-se porquê, a sentir-se a mais no meio daquela sala e, por conseguinte, em desvantagem na conversa com ela. A partenaire também
o olhava de canto. Padrinho lembrou-se que nunca gostara
muito dela. «Imagino», -disse Pina-Colada,
dirigindo-se ao seu copo, sentada à velha mesa de pinho. - «a tristeza
que sentes deve ser dolorosa,
é?» - Aquele pequeno é abrasileirado era chique: mais um toque em voga muito usual no bar. Padrinho achou ter
chegado ao momento para sair dali. O calor sufocava-lhe a garganta seca e ele não pretendia tomar mais nenhuma
bebida. Agora que já não queria
212
nada dela, usou um vocabulário impróprio para a altura. «Acho
que já não faço falta nenhuma
aqui», - respondeu ele, - «Ó que tu tens mais são amigos. Aconteça
o que acontecer, nunca te irei esquecer.» - Ela não gostou do que ele disse
e foi ao bar tirar dois cafés para ambos. Pina-Colada sempre tirara mal
o café da máquina cimbalino. Mas agora isso também
não tinha lá grande importância. «Vou voltar
para casa», - disse ele.
- «Instalo-me na minha
cama e repouso um pouco;
quem sabe, e as ideias
não melhorarão o meu estado
psíquico.» -
Pina-Colada ouviu calada, sabendo,
de antemão, que ele preferia
vê-la silenciosa, oferecendo-lhe um sorriso todo gaiato e virado prá frentex, como quem adormece passarinhos ...
«Adeus», -concluiu ele. - «Porta-te bem. Quando eu voltar, quero ver esse teu sorriso
sempre a bailar nos teus lábios.» -
Saiu à pressa e
afastando-se dali, antes que lhe dessem as tremuras
nas ganchêtas 1 e conseguiu
chegar à rua, onde apanhou
um carro de aluguer
que o levou para casa. Pina-Colada veio à porta
vê-lo partir e acenou
com a mão um gesto de despedida.
Sozinho em casa, Padrinho sentou-se no sofá defronte
do aparelho de televisão e entreteve-se a ver um conto e cujo tema lhe fez recordar
uma história de há vinte
e cinco anos.
Nem o nome do título
nem o autor lhe ocorriam, mas a história
veio-lhe espevitar o espírito, com toda a certeza.
O patrão e a empregada eram amigos íntimos
(sem nunca terem sido
amantes), desde que ambos começaram a trabalhar debaixo do mesmo tecto. Quando ele fez trinta e três anos (ela apenas
tinha dezassete), ele convidou-a por brincadeira, depois
do serão de trabalho, a jantarem no casino. Ela aceitou e lá foram. Na altura em que estavam a jantar, ele chamou o empregado e pediu-lhe para
falar ao maestro
que tocasse uma certa música. Passado um bocado, a música soou pela sala.
Ele levantou-se da mesa e pediu-lhe respeitosamente se ela aceitava dançar com ele aquela
música, cujo nome se chamava
Love Story. A moça ficou meio encavacada e acedeu ao pedido. Debaixo
daquelas lâmpadas coloridas a mil cores, tudo se tornou
em paródia e em alegria
demasiado alegre.
1Pernas.
213
Só Deus
soube quantos sonhos se empanturraram nas suas sensações. Vinte e cinco anos depois, sendo ele já de cabelo grisalho e ambos bem sucedidos na vida, ela encontrou-o por acaso e convidou-o a tomar um café numa esplanada, revivendo
aquele tempo antigo.
A meio da conversa, a mulher
reparou na velha gravata de azul, que ele conservava ainda em homenagem à sua lembrança e, sem interrompê-lo, deu-lhe um beijo nos lábios e afastou-se a correr pela rua até se perder na primeira esquina. Ela nunca mais o viu na sua vida. Meia dúzia de anos mais tarde,
ela foi visitá-lo no leito de morte
e foi ao funeral, muito embora distante da comitiva familiar que o acompanhou à ultima morada.
O ultimo adeus, na
velha capela de duas encostas.
Aí, ela derramou a lágrima
difícil e tremeu por
todo
o corpo.
Aproximou-se de alguém
da comitiva
e disse-lhe: «Diga-lhe», - disse ela. -«Que eu nunca soube o valor que ele dava às minhas
prendas.» - O homem olhou estupefacto. Se ela
ignorava a enorme afeição que ele dera ás suas lembranças, como podia
ele em boa hora censurá-la? E não fizera
ele algumas tentati
vas, ao longo dos anos, para lhe mostrar
a sua devoção? E morreu , que diabo; sem poder dizer-lhe o que tinha vontade
de dizer-lhe! Tinham perdido os dois
uma vida de amizade; nem ao menos podiam agora despedir-se?
«Não», -disse o homem incapaz
de conter-se. - «E
é
mesmo por causa disso?
Ou está a esconder-me algo
mais?»
Ela não respondeu. Achara o homem
mesquinho e cínico
e deu meia volta, afastando-se dali.
Já nessa altura se dera conta da inexplicável interrogação da questão. «Ninguém sabe avaliar a dor de um coração»,- dissera então. - «Se não souber extrair
dele a sua verdadeira comoção.»
-
Padrinho, durante alguns momentos, ficou tenso com as lágrimas nos olhos. Deixou-se
estar, a princípio, praticamente imóvel no seu canto do
sofá, deixando que as imagens
da televisão o tornassem a envolver pouco a
pouco. Via tanta televisão enquanto
não pensava em coisa nenhuma, mudando de canal constantemente, utilizando
o controlo à distância. Tal como o puto dos olhos de morcego que costumava
estar na esquina
a vender gelados. Também ele utilizava
o controlo dos vários botões
à sua frente que tiravam
gelados...Que bom nivelador aquele mecanismo
dos botões, um autêntico
suga-suga deste tempo; carregava nos chocolates brancos e reforçava
os pretos até todos os outros programas, o controlo à distância não tinha mãos a medir.
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Padrinho podia ficar
esticado no seu cantinho
e confiar os seus dedos à tarefa
da uniformização. No programa seguinte,
O Mundo do Xico-Fíninho, ele viu como se
fazia uma cena chamada Anedótica (por mera casualidade ou sorte); e, embora a sua concentração fosse total, a imagem do indivíduo reguila propriamente
dito fê-lo endireitar-se no sofá e tomar toda a atenção. Ali estava, bem visível à sua frente, uma pessoa com raízes na esperteza,
firmemente calma e mostrando todo o seu vigor ao plantar
no quintal melancias que rejuvenesciam vinte anos no corpo humano;
essa é boa, pensou para si, digna de ocupar um lugar de destaque no museu dos fenómenos do Entroncamento. Se tal coisa fosse possível, também ele a queria; vinte anos mais novo? Que maravilha, pá! Até nem se
importava de ir a Fátima
num ano, vinte
vezes a pé... Padrinho achou
que a televisão, desta vez,
dera-lhe uma boa prenda para dormir. E dormiu mesmo, depois de desligar a televisão.
Lentamente, a sua fogosidade foi diminuindo. E o mal da doença
que o apoquentara recentemente dava sinais de querer aparecer
de novo. Com efeito,
com o passar do tempo,
tudo o que sucedera com ele acabou por tornar-se de certo modo irrelevante, como até o mais inofensivo dos programas televisivos o aborrecia e obrigava a desligar o aparelho.
Começou por falar com os amigos profissionais, advogado, conselheiros e a comandita do costume, a que a mulher costumava chamar «A Quadrilha
dos Comilões» e, ao ver-se na solidão
aterradora, atravancado de
documentos e pastas de dossiers, daqueles escritórios onde esperava
impacientemente que pudesse
acontecer um milagre, foi-se habituando a falar no seu «esgotamento psicológico», -«a mudança da panela política», -e assim por diante, explicando a tudo e a todos a teia
em que estava
envolvido. Como se nunca tivesse sonhado
com aquela fraude nem suspirasse por experimentar aquela
dolce-vitta, cantando «Eu vi a vida por aí em tanta dimensão» enquanto São Nicolau
uivava «E vou transformar os calos em calotes». Notava-se
nele que fazia um esforço para retomar
a sua antiga vida nocturna, cheia de requintadas borgas, comezainas, concertos, peças de teatro e arte mas, se as suas
hipóteses cada vez eram mais frouxas, -se estas
tentações estavam muito longe de regressar ao passado -então murmurava para consigo que a
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sensação estava finita. Na sala, sentado ao
canto do sofá, rodeado pelos seus objectos pessoais,
bibelôs de marfim e jarras de porcelana, as pinturas a óleo
de Vieira da Silva, o espelho de cristal em forma de losango,
o Gulliver segurando os duendes
na mão, congratulava-se por ser o género
de indivíduo que não conseguia ganhar ódio a ninguém por muito tempo. Talvez
o amor fosse mais profundo
que o ódio; ainda que o amor
mudasse, ele tinha a certeza que em relação
à esposa, por exemplo, o sentimento
que os unia era um forte elo de ligação,
puramente duradoiro.
Padrinho tornou-se bastante
pessimista, e as relações com os seus amigos estavam a revelar-se menos interessantes do que ele pensara. O crédito estava a esfumar-se aos poucos e, por conseguinte, viu-se obrigado a desfazer-se de alguns valores
por «dá cá aquela palha».
A sua advogada, Elisa Alves, dizia-lhe
ao telefone: «Está à espera
de quê? - disse-lhe.- Eles, se puderem, comem-no
todo e, no fim, você é que passa por ser «O mau da fita»»
- Elisa, que aos trinta e picos anos de idade
ainda parecia uma rapariguinha sonhadora e cheia de fibra, dava a impressão de estar na onda dele com o seu ponto de vista dos amigos.
«O melhor que tem a fazer é conservar tudo», -aconselhou. -«Isto vai passar, vai ver. Afinal
de contas -há o ir e voltar
-e você ainda está na fase do ir!» - És uma bacana, Elisa.
O sonho ofuscado de Padrinho em conseguir
uma imagem poderosa e
excêntrica -tudo isso eram águas passadas, aspectos
de uma realidade incompatível com o pensamento ardente que ele tinha idealizado. Nem mesmo
o lendário Gulliver, herói da banda
desenhada, o desviava
do seu caminho. O que ele lamentava acima de todas as outras
coisas era ver o
retrato de si próprio ao espelho e de descobrir
essa maldita doença
que o apoquentava constantemente. Que coisa mais repugnante! Havia no
mundo tanta coisa bela - concursos de beleza, romances
de amor. O Adão
e Eva. - Bastava um indivíduo ligar a televisão
na altura dos anúncios publicitários, em qualquer
hora da semana,
para ver homens apaixonados a trocar beijos com os lábios amorosos das suas parceiras.
A mulher, naturalmente, defendia que «O amor» era sempre eterno. A paixão, explicava
ela, controla a nossa mentalidade, como que um fruto
proibido do nosso tempo. A paixão, retorquia ele, descontrola o nosso
corpo e faz-nos ter desejos
dele. «És sempre o mesmo»,
- respondera ela, então, no
seu tom de voz crítico.
- «Vais buscar argumentos em toda a parte
da conversa.» -
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E outros romances
de amor, ainda,
não menos verdadeiros do que os amorosos da televisão: o ciúme, a inveja, o egoísmo,
o ódio, a separação. Amores e desamores que falta faziam?
«Amores para quê, se o próprio
homem é um animal e um só amor basta para
o tomar feroz?», perguntava ele próprio
para consigo, no seu reflexo
de não ignorar nem os prós nem os contras. E logo acrescentava: «E os
desamores também para que servem
se um homem, quando se zanga, o que
quer é estar com os amigos e embebedar-se
nas tascas do vício?» - Se isto não
fosse verdade, que
dizer, por exemplo, do Amor de Perdição?
Estaria realmente bom da cuca
Romeu para cravar
um punhal no peito?
Mas, na verdade, um indivíduo tinha de reconhecer -era esse o raciocínio de Padrinho - que as circunstâncias do nosso tempo
não exigiam explicações tão satisfatórias.
Era à noite que mais lhe custava
a passar o tempo. Aborrecido, frágil, indeciso e frio e tudo o resto mais. À noite não era tão fácil negar esse problema que roía na consciência. E havia também
o controlo do fisco que tinha começado a assombrar-lhe os pensamentos.
O nervosismo
de Baixote ao ver Padrinho
com um aspecto
desleixado, ocupando a mesa junto à parede, era uma coisa aflitiva à primeira vista e enfurecera o próprio Padrinho
que nem soube o que dizer.
«Ó, pá, mas o que é que tu tens hoje?» - Perguntou Baixote e Padrinho resolveu contar-lhe que tinha passado
mal a noite com dores na vesícula.
Ainda por cima, recebera
uma intimação fiscal para se apresentar com os livros na secção de Finanças. Tudo isso junto criara nele um
stress diabólico.
«Vai ao hospital, não sejas tolo», -ordenou Baixote, mas ele abanou
energicamente a cabeça e arregalou os olhos, balbuciando:«Mas como é que eu posso
...?»
E, ao dizer aquilo, deitou a mão à cabeça e vomitou
para o chão, gemendo de dor.
Baixote deu um pulo a tempo para
não se sujar e pôs a
mão sobre o ombro dele.
«Pronto! Agora já tens um motivo
para ires ao hospital», - disse ele. - «Limpa-te a esse guardanapo e anda cá para fora que eu vou
levar-te ao hospital.» -
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