Saturday, September 29, 2018

O DOM DOS VÍCIOS - V CAPÍTULO - DO ROMANCE: GENTE DE VÍCIOS
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                                        O DOM DOS VÍCIOS
V

A Banheira era o lupanar mais famoso da cidade, um rés-do-chão comprido em forma de labirinto, cercado de quartos com banheiras de imersão, decorados todos do mesmo estilo, sempre com as mesmas tendências da caligrafia do Amor, uns tapetes com figuras de burros e jericos no chão, um grande chafariz de pedra encostado à parede e uma estátua do Senhor do Chicote, de pila na mão, simbolizando o amor afrodisíaco. Poucos dos clientes d 'A Banheira conseguiam sozinhos descobrir o caminho para o quarto. Era necessário ser acompanhado pela cortesã escolhida ao local especificado. Deste modo, as meninas estavam protegidas das visitas dos indesejáveis clientes que não tinham a menor hipótese de fugir sem pagar.
Era um mundo sem janelas nem varandas, dirigido pela quarentona e sabida Dona da Banheira, cujas afinidades com os clientes eram um dado adquirido, ao longo dos anos, para o bom funcionamento da casa. Nem o pessoal nem os clientes conseguiam desobedecer às suas ordens, que eram logo postos fora à vassourada, enxovalhados e atirados para o meio da rua, se isso fosse necessário, para manter a ordem e o devido respeito da casa.
Por isso, quando o emproado Lato, vendedor de trapos e ganga barata, se apresentou diante dela a troco de pôr as suas meninas a vestir-se em roupas vistosas de várias
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cores, convenceu a Dona da Banheira e foi imediatamente aceite sem vacilações. O negócio para Lano resumia-se na venda de roupas às raparigas e receber em troca «uns favores» de prazer e gozo com as modelos que ele escolhia.
E, quando a força policial fora fazer uma rusga ao local, a Dona guiara-a numa viagem curta e mal cheirosa pelos labirintos peçonhentos. Até os guardas ficaram com a cabeça a andar à roda pelo que, após terem espreitado para dentro daqueles quartos de massagens e cheiros exóticos e deparado apenas com latas de conserva, restos de o, casca da maçãs e garrafas de cerveja, se foram embora resmungando energicamente, não suspeitando sequer que uma hora antes a Dona recebera um telefonema a avisá-la daquela rusga, o que lhe dera tempo de pôr os clientes na rua. Depois disso, a Dona mandou fazer um fumeiro de eucalipto e, a seguir.
desinfectou com Tide toda a casa, deixando um aroma suave e atractivo de forma  a   não
 levantar suspeitas da tramóia que ela pregou aos polícias.
As visitas de Lato à Dona da Banheira tornaram-se permanentes e nem por sombras o privou de rapidamente ganhar a sua confiança, tomando-se um recoveiro, levando e trazendo confidências. Cada vez se tornava mais importante a sua presença, e a Dona ordenou às prostitutas que lhe tratassem bem do pêlo, autorizando-lho a utilizar a sua banheira especial hidromania, pois a sua falta de dentes e cabelo não deixaria de fortalecer e recuperar o mais rápido possível.
Uma vez que os seus favores iam aumentando conforme as suas vendas, obrigou-se a despender mais horas de exercícios, recebendo com agrado as carícias das prostitutas e dando ao vendedor de trapos um alcance de visão superior do que poderia obter, se acaso andasse pelas ruas à procura das chamadas «mulheres do povo» ...
A ganância era às vezes um obstáculo; criava vícios no seu modo de habituação e Lano, que era obeso, tinha mais olhos que barriga. Depois do terceiro favor directo que recebera num dia, ao ouvir os murmúrios das prostitutas que acompanharam com ele o acto da fornicação, teve um chilique e caiu na banheira,  sendo socorrido por uma delas que o tirou pelo cachaço e o pôs no chão esticado num lençol. A seguir, deram­ lhe um chã de tília para ele recuperar.
Pela boca da rabugenta Dona da Banheira chegou a notícia que, a partir de agora, era obrigatório o uso do preservativo e o preço para uma espetadela passava de quatro para oito contos, com direito a vinte minutos

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de massagem autêntica ou sintética. As orgias animalescas em que interferiam quatro ou mais parceiros, eram permitidas em dias feriados.
«Mas que diabo, estas novas tabelas são altas e vieram dificultar o cliente habitual. Quero o livro de Reclamações para apresentar o meu protesto.» - Murmurava um deles ao montar a menina da sua escolha, mas teve que encaixar das boas. «OS preços são altos porque as mulas são melhores», -respondera a Dona para o cliente que atrevidamente retorquiu: «Por este preço tenho direito a dois pratos.» -
E, ao dizer aquilo, começara ele a guinchar, presumivelmente por motivos de gozo.
E o carniceiro da carne, Coxo, confessou ao ajudante do talho que os
hábitos são difíceis de quebrar e que, quando ia levar a carne, nunca vinha de sem espetar na sua favorita «duas nas nádegas e às vezes também na serviçal do pó; passava o espanador, o que é que um homem -de fazer ao vê-las assim: como vieram ao mundo?» - E foi assim que o carniceiro aprendeu a lição de que mais vale roer que sofrer.
Lato começara a mudar e a tomar consciência de que, a partir da meia idade nunca é demais -enjeitar os desejos quando em demasia. A notícia que o médico lhe dera de que o enfarte estivera próximo e que poderia ter sido fatal, fê-lo mergulhar numa profunda calmaria pois, mesmo quando o cio do desejo lhe chegava aos testículos através das novidades que iam chegando à Banheira, ele revelava-se mais cauteloso e consciente de que era preferível comer pela qualidade do que pela quantidade.
Mas, quando o primeiro fôlego se espraiou dentro do seu espírito voraz, Lato aproveitou - a ocasião para esganar a ilusão -e atirou-se com todas as forças à ultima novidade que chegara, a troco de um conjunto de roupa variado que se vendia na feira pelo valor de mil escudos. Perdeu o medo e ganhou de novo a segurança que o amor na Banheira lhe inspirara e, a partir daí, nada o assustava. «Tens um corpo jeitoso. Com aquele decote da Princesa do Cai-Cai e as calças de caqui do Hommer Simpson», -disse ele com o rosto sério.- «Ficavas um pito que nem a Shifar te passava a perna.» - E ela muito lampeira respondeu: «Não é assim que se diz, mas sim,  Claudia Schiffer.» -
No fim de uma vida dev·otadamente aventureira, Lato descobriu, para sua grande surpresa, que cada vez ganhara mais erecção e desejo sexual
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o que lhe dava motivo de querer estar sempre a molhar o pincel em cima das telas que paravam no lupanar. E que capacidade era essa? -Nunca tinha entendido muito bem -sem que isso fizesse dele um Gungunhana. Em suma, Lato chegara ao máximo. Começou, sem hesitar, a deixar para trás a conquista de raparigas sem técnica nem estofo de cabriteiras e estabeleceu uma regra que determinava a si mesmo; comer pouco e melhor, era indispensável.
O facto de essa regra implicar um aumento na tarifa que cobrava uma rapariga com estofo de primeira qualidade, nada o impedia de abrir os cordões à bolsa ou, em segunda via, cambiar a relação por um conjunto de vestes de melhor qualidade. E, quando o carniceiro um dia resmungou com ele a propósito das raparigas de estofo, no final vai tudo dar ao mesmo, um homem vem-se e pronto, está, Lato abanou a cabeça como a dizer: isso é o que tu pensas, meu artola, mas não será bem assim.

As meninas da Banheira eram afamadas de possuírem toda a técnica de combate de que uma boa funcionária da Dona pode prezar. Feita uma apreciação global à equipa de trabalho às suas ordens, a mais velha era uma mulher de quarenta e picos anos, enquanto a mais nova, com dezoito, tinha mais traquejo que muitas das outras colegas de profissão. E elas tinham-se afeiçoado ao ardido e rufião Lato, e a verdade era que lhes agradava a sua companhia, pelo que, fora das horas do expediente, se punham a rebolar a bilha numa casa de dança sem muitos requisitos que por abundam pela cidade, deixando-o exibir a sua mestria de razoável dançarino de rumba. E, depois da dança dos pés, aparecia a dança do corpo, num quarto qualquer, onde as duas mulheres se punham a provocá-lo maliciosamente, exibindo o corpo e fazendo topless, mostrando-lhe os seios e, depois, enlaçando-lhe a cintura com as pernas, beijando-se ardentemente uma à outra a um passo dele, até que o vendedor de trapos ficava loucamente excitado; e então elas riam-se como malucas de vê-lo de pau feito e tanto se riam que o faziam voltar à estaca zero. Ou seja; de vela em baixo . A partir daí, Lato perdera a ideia de passar um bom bocado e trocava os favores pela roupa que voltou a parar nas suas mãos. E assim, qual pau qual caraças, deitou mão ás roupas e deu o piro dali, deixando-as a chupar uma à outra, pensando na forma de se vingar, mas ainda foi capaz de mandar o seu palavrão da ordem. «Ordinárias, sois mas é um putedo. 1» -

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1Roscaria.
Foi numa dessas  pausas do trabalho em que a casa não tinha um cliente sequer, quando as mulheres estavam a sós na galhofa  umas com as outras, que se puseram a cochichar. Falara a mais nova delas acerca do seu cliente Coxo, o carniceiro. «Que tolo de homem!», - disse ela. - «A grande mania dele são os pêlos. Cisma que eu tenho pêlos nos seios e obriga-me a tapá-los com uma toalha e depois se excita quando lhe ponho a fazer cócegas no ânus. E depois diz-me tantas asneiras que eu até me venho a rir. Que eu sou parecida com a vaca da mulher dele, que tenho as mesmas curvas físicas que ela, que, para me realizar, rio­-me, enquanto a mulher dele chora...» -
A quarentona interveio também na conversa.
«Escutem só, os homens  não falam de outra coisa a não  ser do preservativo,  que não  se excitam  com  aquela  camisa  transparente plastificada, que têm nojo de pôr aquilo nas mãos, e as mulheres de cá têm de fazer como eu faço. Meto antes a camisinha debaixo da língua e depois, sem o pascácio  dar por  ela,  está: trigo limpo e farinha amparo.» - Concordou uma delas. «É o que se deve fazer. Tens que nos ensinar.» -
«Especialmente para certos clientes», - acrescentou a mais nova -
«Para aqueles de quem nós não temos a mínima confiança. Sobretudo os que não se lavam, ou aqueles que querem fazer fantasias com o pau a nu a boiar em cima da água na banheira.»
Depois, comentou outra prostituta que estivera calada até então. «As pessoas também fazem mais fantasia daquilo do que parece. Eu pergunto sempre ao cliente: com ou sem? Se ele diz com, eu vou por baixo, se ele diz sim, eu vou por cima.» -
«E como é que fazes?» -
«Como disse a nossa veterana colega. Enfio antes o artigo na vagina enrolado numa esponja e ninguém por ela.» -
«Meu Deus», -disse a rapariga. - «Se eles topam, ainda te fritam os mamilos com molho de tomate.» -
A de dezoito anos tornou a confidenciar às outras que a escutavam com curiosidade. Acto contínuo acendeu uma luz nos olhos dela.
«Eu conto-lhes tudo», -disse. - «Como nasci, quando comecei a ler, o primeiro beijo que dei foi quando fui desflorada numa cavalariça, aos treze anos, pelo ferreiro do meu pai. No fim, ele deixou-me dar uma volta em cima da égua mas, no fundo, não gozei nada e ainda estou à espera de passar os melhores anos da minha vida.»
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As seis prostitutas do lupanar desde muito tempo que davam conta do recado, aumentando os lucros à gananciosa Dona e prometendo ainda aumentar mais. Onde vício e beleza não falta chouriço nem mesa. Lato revelou à Dona a sua ideia de lhe arranjar umas estrangeiras para A Banheira; esta ajuizou do problema com a polícia. «Isso é muito perigoso».
     exclamou. - «Mas é capaz de ser aliciante para o negócio. Eu vou nessa. Podes avançar, meu sacana.»
Quando se espalhou pelas casas de passe a notícia de que tinham chegado umas caras novas e brasileiras na casa da Banheira, a excitação dos clientes da cidade foi notória; porém, tinham medo que a casa fosse vistoriada - quer por saberem que numa rusga ao local poderiam ter chatices com a polícia, quer pela nova tabela do lupanar de que o novo serviço cobrado ia quase ao dobro. -  mas a notícia não chegou aos ouvidos das autoridades. Por essa altura, Lato tinha falado a toda a gente que conhecia do ambiente e levou-os a troco de tomarem uma bebida e prevenira-os que iam conhecer a fina flor do nordeste brasileiro. «As brasileiras são tão doces como o mel», - fez referência perante eles. - «É melhor conhecê-las com calma.» -
Assim, os novos clientes atracaram-se às beldades brasileiras e logo o negócio registou um aumento de quinhentos por cento no total do apuro. Por motivos óbvios, era aconselhável marcar hora para não haver bicha na entrada da porta e, para muitos, o tempo da massagem encurtava cinco minutos por sessão. Cada cliente recebia como bónus um preservativo e a Dona, ao observar através do vidro camuflado no escritório as figuras dos clientes com os preservativos na mão, punha-se às gargalhadas que até assustava o papagaio em cimo duma gaiola a palrar; Enfia camisinha, sim...
Nos tempos a seguir, o pessoal da Banheira afeiçoou-se à nova realidade. A prostituta de dezoito anos, «Elizabete», era a mais solicitada da clientela pagante, tal como a sua partenaire, «Beta», o era em segundo plano e, depois, vinha a «Seu Bombom» que vivia com o seu prostituto nos aposentos da Dona. Esta Beta mamona começou a mostrar-se ciumenta do lugar que ocupava de mais amada. Ficava contrariada quando via as outras registar um maior número das saídas e receber gorjetas mais generosas.

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A prostituta mais velha e mais redonda, que adoptara o nome de
«Bolacha Maria» , dizia à sua clientela -de resto, farta dela, pois muitos eram aqueles que a procuravam para lhe oferecer o lanche da tarde (chá e bolachas) e outros para um corridinho à moda do Minho -a história de como o Barão da Piroca praticara com ela a primeira vez o coito, numa tarde à chuva, quando ela era principiante no ofício. «Ele deu-me três tão mal dadas», -dizia ela, excitando imensamente os clientes. - «Que eu chorei todo o dia. Deu-me a primeira molhada, a segunda recriada e a terceira bombeada, que me lembro de ficar toda ensopada.» - Ouviram-se risos. A prostituta «Bibi» fez-se, por seu turno, tão melodramática como a sua colega e exclamou: «Ó filha, tiveste mais sorte do que eu, que perdi os três a cagar; ouvi falar na bomba atómica e olha; não aguentei a pressão ...» - As gargalhadas subiram ao rubro.
Todas as prostitutas têm os seus quês. Quer pelos seus encantos maternais, quer por outras agradáveis surpresas. Mas tinham um lado negativo. Por exemplo, entravam constantemente em guerrinhas por tudo e por nada, em conflitos com as duas prostitutas brasileiras mais formosas. As outras sempre as tinham achado um bocado peneirentas e que tinham o vício de lhe sacarem os clientes mais requintados do bordel. No fundo da questão, o trivial é sempre o mesmo. As prostitutas falavam em dar mocadas e mais mocadas para fazer dinheiro e mais dinheiro, de dinheiro e de sexo a conversa era sempre a mesma, mas não julguem que era só falar, por falar.
Ao fim de alguns meses, as seis beldades, conforme o tempo avançava, as suas performances começavam a apagar-se e a deixar de dar o rendimento desejado. Lato, mais desdentado e com menos cabelo de mês para mês, viu também as suas vendas fraquejarem e os favores a diminuírem, acabando por cavar e deixar ali apenas o seu rasto. As raparigas também começaram a demandar-se para as casas da concorrência e a Dona não teve outro remédio senão alterar as regras.
Nesse tempo era usual as prostitutas, ao entrarem para o trabalho, deixarem os seus amantes à porta, ou então, nos cafés mais próximos do local a fazer horas -enquanto elas esgravatavam o graveto para a noite darem uma de pé de dança, beber uns copos, e ficar com algum pataco para o almoço do dia seguinte. -Mas agora essas regras foram quebradas e chegou o dia em que as raparigas pediram autorização à Dona para deixar entrar os seus amantes, pois sentiam necessidade do seu apoio,
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além de que consumiam despesa para a casa, coisa que, afinal de conta\ era importante para os cofres da Dona. Esta a princípio tentou dissuadi-las, dessa ideia mas, quando viu que elas não desarmavam, não teve outra saída senão ceder nas pretensões delas, embora citando de que a primeira bronca que houvesse, corria à latada, fôsse com quem fôsse pela porta fora.
No fim, pôs-se aos risinhos e às cotoveladas a elas, ordenando com a sua voz autoritária: «Ide a eles, não os poupeis.» -
Os proxenetas das raparigas deixaram bem claro que esperavam cumprir à risca os seus deveres como clientes e criaram entre eles um sistema rotativo no qual, um de cada vez por semana, passava a acumular as funções de porteiro, sendo o dia para o trabalho e negócios e a noite para o divertimento com as suas parceiras.
Assim que eles embarcaram nessa missão, as prostitutas trabalhavam com maior convicção, ou seja, entregavam-se mais afincadamente à função para mostrarem aos seus «homens» que eram umas autênticas máquinas de fazer dinheiro.
«Porque é que não vais fazer aquele tipo?», -perguntou a indignada «Bolacha Maria», mas logo se opôs «Beta» terminantemente .
«Aquele gajo não faço porque o meu homem não gosta dele.», - declarou, - além disso, tenho a minha ética. Não gosto de fazer os amantes das minhas colegas de trabalho. A minha tarefa é fazer uns gajos, não sei se entendes.» -
«Bom, seja corno for», - disse «Maria, a gorda», encolhendo os ombros. - «Eu aqui dentro não conheço ninguém. Por isso, vou aviar o tipo.» -
No fundo da moral, as prostitutas d ' A Banheira eram as mulheres mais convencidas e antiquadas da cidade. O seu metier que tão propício se tornava a deixá-las cínicas e amarguradas (e elas, eram evidentemente capazes dos piores raciocínios) tinha-as, em vez disso, feito numas incorrigíveis sonhadoras.
Presas do mundo exterior, tinham concebido uma fantasia da vida normal em que não queriam outra coisa senão ser pessoas obedientes e submissas dum homem que fosse reguila, amante e cavalão. Quer dizer: todos estes anos a dar o corpo ao manifesto das fantasias dos outros tinham acabado por lhes aniquilar aos poucos os sonhos, ao ponto de, mesmo no fundo do íntimo dos seus corações, não sentirem uma sensibilidade que superasse um novo sonho.

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E o perverso Lato começou a aparecer de novo e a ganhar confiança com as novas atracções da casa. E descobriu que, de seis mulheres, ainda lhe faltava comer três, pelo que se pôs a competir com os seus trapos em câmbio dos seus favores, pela graça de um sorriso seu, e aguardar a melhor altura para atacar. Certa ocasião em que as disputas com elas o irritaram, repudiou-as a todas ao mesmo tempo. «Ainda haveis de vir a cair à minha mão.» - Quando, passados dez minutos foi ter com «Sua Bombom», ela zombou dele e chamou-lhe: «Você é um bobo.» - Mas, naquele dia, «Sua Bombom» apanhou-o no quarto com «Bolacha Maria» e, minutos depois, com «Beta». Ele pediu a «Sua Bombom» para não contar.nada a «-Elizabete», por quem estava redondamente apaixonado; mas ela contou à outra e Lato viu-se obrigado a evitar durante alguns dias a «Rainha dos ovos de ouro» do bordel. A obsessão que assim nascia era a mais atractiva que alguma vez sentira. Às vezes, quando estava com outras na cama, sentia-se tomado como se uma droga tivesse ingerido e ficava lento, as pernas pesavam-lhe o triplo e tinha de acalmar.
« É estranho» ,-dizia ele. - «É como se tivesse comido um boi, ou tivesse pegado em dez sacos de batatas.» - Estas sintonias começaram a baralhar-lhe as ideias. Certa vez, deu-lhe o sono e adormeceu no sofá do quarto ao lado de «Sandra». Quando acordou, horas mais tarde, doía-lhe o corpo, parece que tinha partido o pescoço, que mal conseguia endireitar a cabeça e repreendeu-a: «Porque é que não me acordaste?» - Ela respondeu: «Estavas a ressonar que nem um justo, até tive pena.» - Ele abanou a cabeça. «OK, entendo. O que quiseste foi deitar-me abaixo para dizeres às tuas amigas que foste para a cama com o grande Lato. Mas fica a saber de quem eu gosto, não é de ti.» -

Duas semanas e dois dias depois de Lato fazer uma abstinência aos seus apetites sexuais, Coxo, o carniceiro, viu-o de cor amarelada no rosto e de calças justas à gigolô e os sapatos bicudos de sola. Lato saía do quarto de Sandra quando o carniceiro o topou e apontou para ele, gritando: «Então, acabou o jejum?» - Sandra saiu à porta do quarto, pondo-se a espreitar. Mas Lato disse: «Pira-te para dentro, antes que o Coxo te coma com os olhos.» - Convidou o carniceiro para beber um copo e, instantes depois, abriu no bar uma garrafa de whisky escocês e enfiaram dois dedos de conversa animada e sempre relativa aos barretes. «Ande  lá, beba um copo», - expressou Lato com a garrafa na mão,
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enquanto, o carniceiro insinuou: «Nunca bebas o primeiro copo. Foi um marroquino que me disse isso, derivado à sua religião .» -
Lato olhou surpreendido para ele.
«E você como o faz?» - Perguntou.
«Bebo sempre a partir do segundo .» - Respondeu Coxo, muito risonho.
«Essa tem piada . Estamos sempre a aprender.» - Concordou Lato, bebendo o primeiro copo com sofreguidão.» -
Coxo abriu os braços num gesto de desencanto e disse: «Estou aqui porque marquei um encontro com as brasileiras que me encomendaram miúdos de pato para o jantar», -disse ele, com um brilho no olhar. - «E vou aproveitar a ter uns momentos de prazer, isto é, se elas vierem com disposição para fazermos -o carrossel do amor! -
Depois de Lato ter soltado uma risada pelo dito dele, o Coxo sentou-se de pernas esticadas e cruzadas na cadeira estofada de napa. A sua esperança e a sua ambição tinham sido bem regadas pelo álcool.
«As mulheres nos pregam ilusões», -disse ele, bebendo muito rapidamente. -«Mas sem essas ilusões estamos feitos ó bife! Vou esperar mais uns minutos; se elas não aparecerem até o ponteiro estar entre as duas, deixo-as ao seu critério.» - Mas Lato não ficou muito convencido disso. «Deixe lá isso. Você nem a um cão um osso, quanto mais dar duas trutas dessas que fazem o consolo a um moribundo.» - À medida que a garrafa se ia esvaziando, Coxo voltou outra vez a focar o tema, como Lato esperava, das brasileiras terem-lhe enfiado o urso ou o barrete como se costuma dizer. Contou ele a Lato uma história curiosa, entre ele e a rapariga do boate, relatando o barrete como facto humilhante.
«A rapariga do nigth-club chupou-me de bandeja quatro garrafas de champanhe francês, prometendo que depois do fecho da casa ia ter comigo ao quarto do hotel, para me brindar com uma cena das mil e uma noite», -disse Coxo. -Ela falava tão meiguinho e não sei que mais que eu deixei-me escorregar. Como havia eu de saber? Depois, no fim, ela entrou em transe -estava-se mesmo a manjar -e   atirou-se para  alcatifa com um desmaio prolongado e, pouco depois, saiu para um taxi que a levou não sei para onde. E eu caí como um patinho, na mesa de braços cruzados, a olhar para a bola giratória da pista cheia de efeitos especiais. Ora bem; fui ter com o empregado. O que é que ele me ia dizer? Sabes o que é que o estafermo me disse? Ele disse assim: "A menina ficou inchada do estômago e foi ao hospital esvaziar as tripas. Quando recuperar, vai dar-lhe uma explicação." Caraças! Apeteceu-me mandar

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o empregado àquela parte, mas olhei de lado e aguentei os nervos, não fosse ele enervar-se mais do que eu e dar-me uma porrada.» -
Lato deixava Coxo falar sem cortar o diálogo. Os barretes das raparigas da noite chateavam bastante o carniceiro. «Já estou cheio de levar com eles», - exclamou .-Cada vez perco mais a paciência de ser sempre o mesmo Cristo.» -
Ao fim dum bocado de tempo, Lato começou, também, a contar os seus barretes e Coxo ficou pasmado ao ouvir tanta fita à americana. Lato concluiu: «O meu sistema é que faço isso de propósito, deixo-as primeiro enfiarem-me o barrete», -raciocinou Lato. -«Para depois ser eu a seguir; não pago e remeto-lhes uma factura de despesas.»
«E elas não se zangam por isso?», -perguntou calmamente Coxo. E Lato respondeu rapidamente: «E isso faz-me uma diferença do carago! É da maneira que ficamos quites e não nos chateamos mais.» 
Por esta altura Coxo estava bem embriagado e começou a olhar para o relógio aos esses e a praguejar acaloradamente, mas Lato levantou a mão e disse: «Não vale a pena esperar mais. No seu lugar», - disse - «amanhã, punha-lhes junto à borda da cama uma saca de plástico com os miúdos de pato e, a seguir, dava-lhes duas de borla que elas não enfiavam o barrete a mais ninguém.» -
Mas Coxo coçou o pescoço e abanou a cabeça. «Deixe-me antes contar-lhe a última. Uma história do outro mundo. Hummm!  E relaciona-­se com o que estamos a conversar.»
O conto de Coxo: O maior barrete de que eu tomei conhecimento passou-se na minha terra com a filha do carniceiro de lá. No dia da sua boda e depois de toda aquela cerimónia, o noivo preparava-se para comer a febra da noiva quando um caso insólito aconteceu. Ao que consta, a noiva, no acto importante, começou aos berros e, no momento em que o noivo se encontrava como que transportado para um mundo invisível, sentiu-se todo arranhado com as unhas da noiva que não lhe poupou uns valentes rasgões na pele. E, pior que isso, veio a seguir, quando o sangue vindo da noiva, começou a trespassar pelo lençol numa mancha vermelha, aterrorizando o noivo que se passou dos carretos e fugiu da cama, trancando -se nos arrumas do quintal. E, mais tarde, começou a sair o boato para fora que a noiva era uma jovem com uma rodagem bastante alargada nos «nocturnos», e que o noivo era afinal de contas, muito mais velho do que ela e que fora redondamente enganado na história daquela
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virgindade por uma saca forjada de sangue de porco agarrada à cintura dela e pelas unhas aguçadas de javali, escondidas no soutien. Portanto,a noiva armou todo aquele banzé para se sentir atraída por alguém que a desposasse. Um escândalo de ficar solteiro toda a vida.» - Comentou Coxo, bebendo mais um copo.
«E o que é que o noivo agora vai fazer?» -
«Nada, já fez», -respondeu Coxo. -Foi falar com os sogros e depois deu de frosque 1 tendo repudiado a noiva e amaldiçoado o dia em que a conheceu. isso.» - Coxo colocou o copo sobre a mesa. «E desta vez, meu amigo, o barrete cheirou a esturro!» -
Lato, o vendedor de trapos, partiu na manhã seguinte com a carrinha carregada de roupas, para vender pelas aldeias de Trás-os-Montes, seguindo sempre o rumo ao norte. Ao despedir-se de Coxo, estendeu-lhe a mão e disse: «Espero que para a próxima, quando estiver, possamos fazer uma farra e comer um peixinho melhor.» - Coxo respondeu: «Afinal de contas, você tinha razão. As brasileiras deram-me uma seca e não apareceram.» - O rosto de Lato ganhou uma expressão. «Talvez não tivesse perdido muita coisa .»  - E foi-se embora.
Quase uma hora depois, Lato passou pela serra do Marão e não deixou de contemplar a beleza da região transmontana até chegar a uma aldeia chamada Capeludos de Aguiar onde acampou, junto aos moinhos de vento, para visitar os clientes. As vendas duraram a parte de manhã, antes de chegar a hora do almoço. É que o Lato era, afinál de contas, um bom prato e um bom copo e, por conseguinte, mal se sentou à mesa, bateu palmas, chamando a atenção do tasqueiro. «Amigo, estou com uma fome que nem um lobo», -disse ele. - Abra-me o apetite com um prato de presunto de Lamego e depois sirva-me o tradicional: Posta Mirandesa. E, para beber, fico-me numa garrafa de vinho Favaios. Ah! me esquecia; traga-me também um «Folar» da região.» - E logo os olhares presentes se voltaram para ele. Depois de aquecer o estômago com uma copada de vinho, Lato virou-se para os presentes: «Há duas coisas em que um transmontano se orgulha: - O amor duma mulher e um bom copo de vinho.» - E mais não disse, porque o manjar veio logo a seguir e o apetite era imenso.
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lFugiu.

Naquela manhã, uma ordem veio através do comando geral e os guardas foram comunicar à Dona da Banheira que tinham ordens para encerramento do lupanar. Chegava de imoralidade. E bastava os vizinhos que passavam o tempo a queixar-se daquelas poucas vergonhas. por detrás das suas lamúrias, a Dona pediu ao oficial da guarda que lhe desse uma hora e que não fizesse grande alarido de maneira a permitir que os clientes saíssem sem serem incomodados, e o oficial fez-lhe a vontade.
A Dona deu ordem aos amantes das raparigas que avisassem as meninas para conduzirem os clientes sem espalhafato pela porta de emergência. «Façam favor de pedirem desculpa por esta interrupção. Vou cortar a luz de propósito, para fazer de conta que o quadro geral da electricidade teve uma avaria eléctrica.»  - Ordenou aos amantes: «E digam que hoje a corrida é grátis, não pagam nada. É tudo por conta da casa.» - Foram as suas últimas palavras. Quando as assustadas raparigas compareceram diante dela querendo saber se aquilo era mesmo verdade, a Dona não respondeu a nenhuma das perguntas assustadas. Então vamos ficar sem o nosso emprego, sem direito a subsídio de desemprego, logo agora que estava a ganhar alta nota? Ponha umas velas nas banheiras!. ..
Até que a Dona deu um berro: «Calem-se suas histéricas e vão-se mas é
arranjar.» -
Quando ela se afastou, todas viram uma mulher frágil e amargurada, fazendo lembrar uma grande dama que acabara de perder o seu tesouro mais valioso -o sagrado tostão.
O comandante Fiúza não se coibiu de manifestar o seu apoio por acabar com semelhante esterqueira que abalava a estrutura da nova cara que a cidade estava a querer implantar aos seus habitantes. Voltou-se para as meninas: «Bem, arranjem-se e tragam os B.I. na mão, para vos tirar as vossas identificações.» Gritou e ordenou aos seus homens que deitassem os olhos às «galdérias», não fossem elas pirarem-se dali à má fila. As mulheres fizeram um vasqueiro desenfreado e desataram a dar pontapés nas portas e a lançar palavrões, pedindo ajuda aos amantes que ficaram a ver sem poderem fazer nada se não serem espectadores de cena, pois Fiúza tinha-lhes dito: «Elas vão ser identificadas mas: quanto a vocês, não provas nenhumas da vossa actividade. Por isso, pirem-se daqui para fora e não armem sarilho nenhum, se não querem levar umas chicotadas nesse lombo.» -
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Eles mantiveram-se em respeito e quietinhos, observando a cena. Momentos depois, a mais nova das prostitutas voltou-se para o oficial e gritou: «Vou fazer queixa aos índios do meu bairro, tu vais ver, vão-te pôr o canastro a arder!» - O comandante do pelotão achou graça àquilo.
«Qual de vocês é o chulo dela?» - Perguntou, olhando atentamente um a um. «Confessem, ou ponho-vos a toque de cavalo marinho.» - Um deles respondeu: «Ela é virgem; e não quer um chulo.» - O oficial deteve-se diante dele: «Ouvi dizer virgem? Tás a gozar-me ou quê?» - O mesmo indivíduo acrescentou: «Bom, é   uma maneira de dizer. Nem todas
as raparigas querem ter amante; como é este o ca...» - Sem aviso prévio, o oficial puxou o proxeneta pelos cabelos e apertou-lhe o pescoço com as duas mãos.
«Uma prostituta sem amante?», - disse. -  «Essa é boa. Pois fica a saber que nunca ouvi dizer tamanha besteira. por isso, vou-te mandar rapar o cabelo à escovinha para aprenderes a não dizer mais asneiras.» - E voltou-se para os outros amantes. «Desapareçam daqui», -ordenou.- «E que não volte a pôr-vos a vista em cima; senão meto-vos no xelindró uns tempos.» -
Os amantes saíram para fora do lupanar e sentaram-se no passeio, alguns com as mãos na cabeça e outros a chorar aperda das suas mulheres. O Comando Geral mandou identificar as seis prostitutas da Banheira e cada uma delas foi obrigada a pagar uma multa simbólica, como castigo das suas actividades, que reverteu para os cofres da comarca, sendo advertidas para procurarem outro modo de vida. E o oficial, depois dum raspanço, concedeu-lhes uma ultima oportunidade de se regenerarem.
E assim o bordel foi encerrado e, quando os guardas fecharam a porta e puseram um cadeado à volta da fechadura, o senhorio colocou um cartaz na janela: Aluga-se para mudança de actividade.
O oficial entregou a chave ao senhorio, dizendo na sua boa fé. «Espero que tenha mais sorte na próxima vez e não alugue a casa à prostituição ou a gente dessa ralé.» -
O senhorio respondeu: «Prostitutas e ralé, não vejo muita diferença.
O que eu quero é o dia 8 de cada mês para receber o aluguer.
Acabou assim o lupanar.

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Quando o vício da droga seduziu Fífia, numa vitrina de sonhos doirados e substituiu a sua beleza pela anarquia dos seus desejos, os amigos retiraram-se aos poucos e deixaram-na sozinha a seguir aquela estrada da maldição sem saída. Trancou-se no seu quarto do bairro com uma quantidade de bebidas diversas e um saco de farinha Branca de Neve (pó branco) e chutava doses que mais nenhum ser humano no bairro conseguia aguentar.
E, durante dois anos, viveu como uma vivalma do mundo obscuro. Depois, certo dia de madrugada, entrou no seu quarto, meio despida, roupas transando a merda, pondo-se aos berros: «Vou deitar fogo a isto tudo», - e regou com gasolina o chão. - «Hoje vou experimentar ser a Joana d' Arc.» - Com a transe que estava pareceu-lhe ouvir ecos de uma voz a perguntar-lhe: « Experimentar o quê?» - Fífia respondeu: «Posso não ser capaz de voltar ao passado, mas a sede, tal como o vício, pelo menos é uma coisa bem mais doce.» -
Não era passada meia hora quando chegou a notícia que a Fífia pusera fogo ao pequeno quarto onde morava e escapara por pouco ao incêndio, encontrando-se no leito do hospital com a cabeça a arder como se dela saíssem fogos.
Mas era evidente que ninguém viria vê-la naquele dia no hospital, pois ninguém sabia do sinistro. Caiu a noite e veio o dia e Fífia recolheu a casa de uma amiga que a recebeu, envolta em ligaduras, com algumas escoriações pelo corpo. A amiga serviu-lhe uma refeição simples epôs-lhe um jarro de água em cima da mesa. Fífia não se lembrava do sucedido e nem queria ouvir falar de semelhante coisa, enquanto ia mastigando pão com manteiga. «Ó mulher, tu nem sabes do que escapaste», -berrou a amiga. - «Se não fossem os bombeiros, a esta hora eras uma mulher morta.» -
Ela riu-se e, instantes depois, ficou séria, com as mágoas a projectarem estranhas sombras nos seus olhos. Deixou-se ficar inerte, alheia a tudo e a todo o seu pensamento.
E quando a cabeça dela começou a esquentar-se como nunca antes lhe esquentara, ela soube que era chegado o momento de escolher entre a vida e o vício.
Pois um drogado não pode viciar-se antes de ter provado o VÍCIO e sem depois se lhe pedir que escolha entre a saúde e a doença!
Com a cabeça deitada sobre a mesa, fechou e abriu os olhos interruptamente uma dúzia de vezes , olhando a vida que pareceu querer abandoná-la: logo após, voltou a si;
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E disse para a amiga: «Já tracei o meu destino e fiz a minha escolha e escolhi o vício da droga -
A seguir ela chorou como nunca tinha chorado, sabendo que o vício era mais forte do que ela alguma vez imaginara. Os olhos da amiga desviaram-­se dos dela, dir-se-ia que não lhe interessava fitá-la e abandonou o quarto, deixando-a a sós com o peso da sua cruz.
Fífia, de repente, voltou-se e pareceu-lhe ouvir vozes a cantar:
«Quem anda aí?», -perguntou. - «És tu, minha amiga?» -
Mas Fífia ouvia uma voz sobrenatural, meiga e sensual, uma voz de anjo a retorquir:
«Não, alma perdida. Sou o teu anjo da guarda.» -
E a voz calou-se; e no escuro Fífia voltou a falar: «E então és tu que iluminas omeu caminho?» -
E ele disse: «Sou, mas tens o demónio dentro de ti; e te largarei quando deres uma cabeçada numa parede e atirares com o vício aos lagartos do deserto.» -
E, com estas palavras, a voz do anjo mais não disse. Ainda assim, Fífia murmurou:
«Eu te agradeço. Vai à tua vida que eu vou à minha. Adeus.» -
Não tardou muito a adormecer. A amiga veio vê-la a ressonar e pôs-lhe uma manta sobre as costas, afim de a agasalhar melhor. E a amiga deixou verter duas lágrimas de tristeza e disse para consigo: «Se alguém te quer bem, que se compadeça da tua alma ou, então, que reze por ti uma Ave­ Maria, pois é certo que agora bem precisas de todos nós.» -

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No seu quarto tão solitário onde não restava mais viva alma, Padrinho meditava sobre o equilíbrio, o poder mágico que une as coisas numa só forma e o tónico essencial para a sobrevivência do ser humano. Um dos mais valiosos poderes que ele considerava em dias sombrios (infelizmente, teve muitos), e que incluía, entre as suas imagens do passado, o suave Equilíbrio da Mocidade e Juventude, até ao Desequilíbrio Final, conforme este ultimo constava de uma cena a que assistiu no Central Parque de Tony Arroyales e seus artistas ... «Quando um homem não sabe para que lado deve cair, o melhor a fazer é não cair porque, senão, vai-se aleijar mesmo e, a partir da queda, nunca se sabe o que pode advir daí. Toda a herança natural de um indivíduo sujeita-se às mais duras tragédias que a vida proporciona quando começa a pressentir que a vida não é uma farsa de abismos profundos onde mergulham as raízes do sujeito.» Eo que é que tu sabes do teu?...
E, num outro ângulo, mais forte que o que Padrinho fantasiava, quando novo e mais feliz, criava uma cena publicada num livro do Papa-Léguas a Voar Sobre Cabeças, que partilhava o equilíbrio com a inteligência.
O equilíbrio, uma noção onde cada um que desejasse chegar ao top e ter uma experiência humana capaz de sobrepor-se a todas as coisas, não podia dar-se ao luxo de não tentar semelhante varinha mágica, se não queria mesmo correr o risco de cair ao fundo do vale dos fracassados.
«O equilíbrio é irmão do poder», recita Tony Arroyales, que é a própria ideia do sujeito no seu modelo perfeito, entre o sucesso e o insucesso,
«Para te manteres firme, não vaciles um milímetro sequer.» -
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Pela parte que lhe tocava, Padrinho tinha feito durante os tempos muito mal o seu equilíbrio (ou pelo menos disso se apercebeu) a querer viver uma vida fantasiosa de empresário moderno. Das coisas boas da vida que mais amara fora a sua grandeza superficial. Dissera uma ocasião, enquanto cortejava a sua futura mulher, que um dia, havia de ser grande como Gulliver, embora tivesse no fundo de si mesmo a consciência de que se tratava de uma aberração. (A mulher, é claro, fazia assíduos esforços para não ligar ao que ele dizia e declarou-se felicíssima por aquilo que ela própria alcançara na vida, dando graças a Deus por ambos terem saúde.) Padrinho empenhara-se ao máximo, como antes dele fizera o  compincha São Nicolau, embora sem tirar o mérito à Sombra Política, própria da inteligência capitalista, de passar por Papa Notas -em estar à altura dos seus argumentos, representado pelas linhas de orientação acerca dos fundos perdidos.
A escola de formação não existia mas, apesar disso, Padrinho tomara plena consciência de que «tudo que ele fez» foi de «boa vontade» e, com «a melhor das intenções», nada foi feito ao acaso, embora também se diga que a sorte não o ajudou nos momentos mais cruciais em que precisara dela. - Das coisas materiais, dera o seu amor a uma cidade, Monte Corgo, preferindo-a à cidade da diversão ou a qualquer outra. Nela crescera a ideia, com excitação impressionante, ficando sereno corno uma estátua quando ela olhava na sua direcção, sonhando vir a ser o homem que havia de a moldar ao seu gosto. De outra maneira, transformá-la em pioneira, entre outras coisas, em inventos de ideias, como aquela, no jogo da ignorância, uma criança diz ao pai que a professora lhe ralhou por não saber a tabuada e o pai diz-lhe para não responder na aula e dizer à professora que não está para aprender - mas sim para ensinar. - Como diriam os jovens corguenses, saloio­ esperto. Como, ainda, no mito da natureza, Monte Cargo era dominado por uma lenda do tempo dos romanos, o seu monte era o espelho da própria natureza, de uma reserva que se alongava por toda a vasta zona onde escorre a água de uma fonte, os rugidos dos animais no momento da correria.
E a sua hospitalidade - sim! -  apesar da pouca cultura e da falta de experiência do seu povo, Padrinho continuava a ter, na veracidade dessa ideia, um acolhimento saloio mas simpático. Às vezes, até roçava um acolhimento hospitaleiro demais, como o comprovava a existência num lugar, a norte de Monte Cargo, de uma tasca onde se falava em calão

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da terra, ou seja; não se dizia uma palavra que não fosse o corguense. Como o comprovava também a reunião mensal em São João, centralizada à volta da tasca do tio-Manel com um concurso de copo à mesa, rodeado de copos e garrafas - e de mais de vinte bebedores, habitantes de uma aldeia chamada Baralhas. - «Nós os montecorguenses orgulhámo-nos da nossa capacidade de beber.» - Dissera ele uma vez a um amigo de outra povoação mais próxima, e ele, morto de riso, levara-o a ver uma cena na tasca da sua freguesia, em que, um bebedor de refrescos bebera mais de cinquenta e três copos de pirolito de água, limão e açúcar não lhe fizera mal nenhum; simplesmente enchera um garrafão de cinco litros de  mijo..
Nesse tempo, esses concursos divertiam-nos e, no fim de cada bebedeira, eles quase sempre acabavam no chão e outros na cama dum hospital...
Padrinho tomou a encaminhar os seus pensamentos errantes para o tema citadino -disse teimosamente para consigo -e a sua longa história, conservada em manuscritos no seu solitário quarto, apesar da ingratidão de uns tantos amigos, que nem achava valer a pena sujar o tinteiro com os seus nomes e os apelidou de molestas. Teriam eles hoje ou amanhã com os seus ditos, diz-me-se-alguma-vez-me-ajudaste-ou-eu-te-ajudei­ em-quê?, permitido que ele desse com a boca na botija. E o que diria à sua cidade se alguma vez denunciasse a sua própria fraude e mais alguns deles a um juiz feroz e cruel dos nossos tempos?
Ó digna Lei! Dura de expressão em forma sentida que perdura pelos processos adormecidos, prolongando as suas novas datas às ardentes certezas dessa nova Lei Dura, opaca, com a sua justiça de retardança que usa na aplicação do julgamento a sentença final, através do homem vestido de negro e martelo na mão, a silenciar os seus ocupantes humanos no seu veredicto: - culpado ou inocente? -
O primo de Padrinho sempre tinha evitado comentar as rapsódias desta espécie de maneira menos dramática. «Isso são problemas teus», - costumava Mequinho dizer-lhe. -«Quem as ate que as desate. Ó moço, meteste-te numa que, francamente, não sei como te vais sair dessa embrulhada.» - Mequinho nunca tivera paciência para as coisas obscuras. Transparência! Como a água límpida e pura. Ele dizia: «Se conseguires pôr o cu em cima daquela pedra e não te molhares, é sinal que estás limpo, senão, estás porco.» - Ele regozijava-se com esta filosofia da sua própria invenção.
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Padrinho pedira licença para contestar, mas nessa altura tinham começado a andar pelo passeio da rua em direcção ao café, o que 0 levou a dar-se por vencido quanto a tudo o resto.
Tinha havido um ano em que o Governo decidira mandar averiguar todos os pedidos de fundos perdidos a firmas e grupos empresariais de forma a penalizar os faltosos no cumprimento das suas obrigações para com o Estado e saíra, num dos jornais da capital, uma grande reportagem, o que levou a criar uma bronca à volta do caso. Ao ver isto, Padrinho quisera fazer um cartaz-de-protesto solitário. Saberia aquela gente que o valor dos FPB que recebera era vultoso? Ali estavam eles todos na rua e nos passeios a cochichar, enchendo os pulmões com cigarros enquanto outros saiam dos tascos, com o estômago cheio de vinho, contra os quais alguns habitantes se manifestaram ... Mequinho bateu o pé. «Não te atrevas a discutir com esta gente», - disse. Ele defendia o seu ponto de vista que o calado é sempre o mais atinado. Daí ter acrescentado o «não te atrevas» e, para sua própria surpresa, Padrinho compreendeu que realmente era melhor estar calado. O que ele queria dizer não era certamente o que as pessoas queriam ouvir se o vissem falar. Queria dizer tanta coisa, mas aquelas circunstâncias não o ajudariam. Por isso não podia levar a sério os ditos daquela gente. Via bem, no entanto, que a sua posição era pouco clara e muito difícil de perceber.
- E dos primos, Mequinho, tfoste o único de que mais gostei. - Grandeza, mulher, cidade, e um ultimo desejo de que nunca falara a ninguém: a obsessão de um sonho. Nos bons tempos, o s.onho repetia-se mais ou menos uma vez de longe  a  longe. Um sonho simples, passado no pais irmão, o Brasil, numa altura em que resolvera emigrar com a ambição de se tornar rico depressa. Nessa terra longínqua, Padrinho via-se a si próprio, acompanhado de uma dúzia de pretos, seus funcionários, e resolvera montar uma fábrica para fazer fósforos de duas cabeças e tivera um sucesso estrondoso. O Padrinho do sonho correu para com o barco carregado de dinheiro e logo voltou para lá. Depois teve a ideia infeliz de fazer pregos de duas cabeças (mas não teve o mesmo êxito) e o equilíbrio caiu-lhe como o dom de baixar e, agora, deslizava pela alameda abaixo, quando lhe surgiu uma nova ideia de relançar o negócio. Padrinho foi a correr e mandou chamar o encarregado a quem sugeriu que fizesse um cenário com a fotografia de Cristo pregado na cruz apenas
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com um prego numa mão e outro num pé, em posição vertical e com os dizeres em letra maiúscula: «Se fosse hoje, com os pregos do Padrinho isto não acontecia.» - O encarregado felicitou-o pela ideia. «Conseguiu. Bravo!», e Padrinho não teve tempo de saborear o triunfo pois, logo a seguir, o pároco da igreja, não menos eufórico, contestava: «Olhai senhores! Olhai para aquela imagem!» - E Padrinho mandou tirar Cristo e deixou apenas a cruz mas mudou o texto: «Se fosse hoje, com os pregos do Padrinho, Ele não fugia.» - Era um sonho que dava vontade de rir -e, quando Padrinho acordava, não havia dinheiro nem ideias à volta. 
«0 que é que vai fazer agora?», -perguntara-lhe o antigo funcionário entre os despojos da escola de formação, e ele respondera, com excessiva clareza: «Eu? Sei bem. Acho  que preciso de resolver o meu problema.» - Era bem mais fácil de dizer do que fazer; fora o destino que afinal premiara o seu amor por uma mulher, que agora sabia mais do que nunca que sempre o amou, acompanhando-o nos bons e maus momentos da vida; o seu amor por uma obsessão, com uma ideia luminosa, a grandiosidade, a ilusão do poder. Ilusão que, apesar de todas as coisas, sobrevivera; adquirira a sua identidade e não esquecia o exemplo de Dom Pablo da Madeira, um homem injustiçado que se transformara em sinónimo de desgraça, quando na verdade o seu firme propósito era apenas o de querer o seu próprio bem. E levara-o à sala da justiça, onde apanhou duas dezenas de processos de cinco, ou seriam oito anos, a ficar a ver o sol aos quadradinhos. - O suficiente, em todo o caso, para pôr qualquer homem de bons sentimentos a ficar meio grogue, porque apenas se intitulou mais um entre mil! - E, no entanto, ele aguentara firme a barra, uma vez que não achara qualquer crime ao serviço do Ministério Governamental; se Dom Pablo da Madeira pudera sobreviver às suas penas e escrever uma rábula, talvez um pouco triste, da literatura do «Monte dos Vendavais», então em cena, assim, também ele, Padrinho, não precisava com certeza de recear a derrota. Era como um doente tomar uma injecção de penicilina; toca a enfiar e já está; curado e o resto que para o diabo que os carregue a todos.
Os Quatro levaram Padrinho ao bar de Pina-Colada e seguiram na carrinha do Compridão, que era larga e espaçosa e toda a gente cabia bem.
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Era ao meio da tarde. Baixote ainda devia estar no clube desportivo
«Boa sorte», -         disse-lhe Compridão dando-lhe um aperto de mão Escovado perguntou se queria que esperassem por ele. «Não, obrigado Eu depois arranjo uma boleia», - respondeu Padrinho. -«Quando um homem sabe para o que vai, dificilmente se perde ou raramente cai numa contradição de não saber o que deve fazer. Não é este o caso, por isso meus senhores, nada mais me resta senão agradecer-vos a boleia.» _ Disse adeus com a mão. «Acho muito bem dito.» - Respondeu Magricelas abrindo o vidro do lado dele e foram-se embora.
À esquina da rua estavam, como sempre, os carros da vizinhança e alguns clientes à porta a observar. Ele avançou para o lado do passeio, a ritmo acelerado, cheio de acção para o que  viesse a seguir. Seja benvindo, pensou Padrinho, e transpôs a porta. Pina-Colada, quando 0 viu, cruzou os braços sobre o peito. «Julguei que nunca mais vinhas ver-me», - disse ela. - «Pelo menos, desde que houve aquele caso à porta com o teu segurança, nunca mais ninguém te pôs a vista em cima.» - O sorriso dela era visível; ele aproximou-se da sua beira e cumprimentou-a de mão. Ela corou e rapidamente se sentaram. Um café e um copo de água do bar veio com vários compassos de espera (ela «ficava-se» pelo seu bourbon, bebendo aos poucos); mas a verdade é que Padrinho sentia-se um furo abaixo dela do principio ao fim da sua passagem. Pina­ Colada achara naquele encontro que ele devia estar numa posição difícil. Foram dela as primeiras palavras confortantes para o tentar aliviar da dor, pelo menos três vezes; mas ele estava tão nervoso e tão cheio de vergonha como ela. O motivo do desconcerto de Padrinho -e recorde-se que ele não chegara ali com aquela atitude, mas sim numa posição enérgica e combativa - foi ter compreendido, ao ver Pina-Colada, com o seu sorriso de rapazinho e o seu ar jovial, ter percebido que ela sabia de tudo e não valia a pena estar a contar mais histórias. No instante em que se apercebeu desse facto, começou, saber-se porquê, a sentir-se a mais no meio daquela sala e, por conseguinte, em desvantagem na conversa com ela. A partenaire também o olhava de canto. Padrinho lembrou-se que nunca gostara muito dela. «Imagino», -disse Pina-Colada, dirigindo-se ao seu copo, sentada à velha mesa de pinho. - «a tristeza que sentes deve ser dolorosa, é?» - Aquele pequeno é abrasileirado era chique: mais um toque em voga muito usual no bar. Padrinho achou ter chegado ao momento para sair dali. O calor sufocava-lhe a garganta seca e ele não pretendia tomar mais nenhuma bebida. Agora que não queria

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nada dela, usou um vocabulário impróprio para a altura. «Acho que já não faço falta nenhuma aqui», - respondeu ele, - «Ó que tu tens mais são amigos. Aconteça o que acontecer, nunca te irei esquecer.» - Ela não gostou do que ele disse e foi ao bar tirar dois cafés para ambos. Pina-Colada sempre tirara mal o café da máquina cimbalino. Mas agora isso também não tinha grande importância. «Vou voltar para casa», - disse ele. - «Instalo-me na minha cama e repouso um pouco; quem sabe, e as ideias não melhorarão o meu estado psíquico.» -
Pina-Colada ouviu calada, sabendo, de antemão, que ele preferia vê-la silenciosa, oferecendo-lhe um sorriso todo gaiato e virado prá frentex, como quem adormece passarinhos ...
«Adeus», -concluiu ele. - «Porta-te bem. Quando eu voltar, quero ver esse teu sorriso sempre a bailar nos teus lábios.» -
Saiu à pressa e afastando-se dali, antes que lhe dessem as tremuras nas ganchêtas 1 e conseguiu chegar à rua, onde apanhou um carro de aluguer que o levou para casa. Pina-Colada veio à porta vê-lo partir e acenou com a mão um gesto de despedida.

Sozinho em casa, Padrinho sentou-se no sofá defronte do aparelho de televisão e entreteve-se a ver um conto e cujo tema lhe fez recordar uma história de vinte e cinco anos. Nem o nome do título nem o autor lhe ocorriam, mas a história veio-lhe espevitar o espírito, com toda a certeza.
O patrão e a empregada eram amigos íntimos (sem nunca terem sido amantes), desde que ambos começaram a trabalhar debaixo do mesmo tecto. Quando ele fez trinta e três anos (ela apenas tinha dezassete), ele convidou-a por brincadeira, depois do serão de trabalho, a jantarem no casino. Ela aceitou e foram. Na altura em que estavam a jantar, ele chamou o empregado e pediu-lhe para falar ao maestro que tocasse uma certa música. Passado um bocado, a música soou pela sala. Ele levantou-se da mesa e pediu-lhe respeitosamente se ela aceitava dançar com ele aquela música, cujo nome se chamava Love Story. A moça ficou meio encavacada e acedeu ao pedido. Debaixo daquelas lâmpadas coloridas a mil cores, tudo se tornou em paródia e em alegria demasiado alegre.

1Pernas.
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Deus soube quantos sonhos se empanturraram nas suas sensações. Vinte e cinco anos depois, sendo ele já de cabelo grisalho e ambos bem sucedidos na vida, ela encontrou-o por acaso e convidou-o a tomar um café numa esplanada, revivendo aquele tempo antigo. A meio da conversa, a mulher reparou na velha gravata de azul, que ele conservava ainda em homenagem à sua lembrança e, sem interrompê-lo, deu-lhe um beijo nos lábios e afastou-se a correr pela rua até se perder na primeira esquina. Ela nunca mais o viu na sua vida. Meia dúzia de anos mais tarde, ela foi visitá-lo no leito de morte e foi ao funeral, muito embora distante da comitiva familiar que o acompanhou à ultima morada. O ultimo adeus, na velha capela de duas encostas. Aí, ela derramou a lágrima difícil e tremeu  por  todo  o corpo. Aproximou-se  de alguém  da comitiva e disse-lhe: «Diga-lhe», - disse ela. -«Que eu nunca soube o valor que ele dava às minhas prendas.»  - O homem olhou estupefacto. Se ela ignorava a enorme afeição que ele dera ás suas lembranças, como podia ele em boa hora censurá-la? E não fizera ele algumas tentati vas, ao longo dos anos, para lhe mostrar a sua devoção? E morreu , que diabo; sem poder dizer-lhe o que tinha vontade de dizer-lhe! Tinham perdido os dois uma vida de amizade; nem ao menos podiam agora despedir-se?
«Não», -disse o homem incapaz de conter-se. - «E  é  mesmo por causa disso? Ou  está a esconder-me algo  mais?»
Ela não respondeu. Achara o homem mesquinho e cínico e deu meia volta, afastando-se dali. nessa altura se dera conta da inexplicável interrogação da questão. «Ninguém sabe avaliar a dor de um coração»,- dissera então. - «Se não souber extrair dele a sua verdadeira comoção.» -
Padrinho, durante alguns momentos, ficou tenso com as lágrimas nos olhos. Deixou-se estar, a princípio, praticamente imóvel no seu canto do sofá, deixando que as imagens da televisão o tornassem a envolver pouco a pouco. Via tanta televisão enquanto não pensava em coisa nenhuma, mudando de canal constantemente, utilizando o controlo à distância. Tal como o puto dos olhos de morcego que costumava estar na esquina a vender gelados. Também ele utilizava o controlo dos vários botões à sua frente que tiravam gelados...Que bom nivelador aquele mecanismo dos botões, um autêntico suga-suga deste tempo; carregava nos chocolates brancos e reforçava os pretos até todos os outros programas, o controlo à distância não tinha mãos a medir.

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Padrinho podia ficar esticado no seu cantinho e confiar os seus dedos à tarefa da uniformização. No programa seguinte, O Mundo do Xico-Fíninho, ele viu como se
fazia uma cena chamada Anedótica (por mera casualidade ou sorte); e, embora a sua concentração fosse total, a imagem do indivíduo reguila propriamente dito fê-lo endireitar-se no sofá e tomar toda a atenção. Ali estava, bem visível à sua frente, uma pessoa com raízes na esperteza, firmemente calma e mostrando todo o seu vigor ao plantar no quintal melancias que rejuvenesciam vinte anos no corpo humano; essa é boa, pensou para si, digna de ocupar um lugar de destaque no museu dos fenómenos do Entroncamento. Se tal coisa fosse possível, também ele a queria; vinte anos mais novo? Que maravilha, pá! Até nem se importava de ir a Fátima num ano, vinte vezes a ... Padrinho achou que a televisão, desta vez, dera-lhe uma boa prenda para dormir. E dormiu mesmo, depois de desligar a televisão.

Lentamente, a sua fogosidade foi diminuindo. E o mal da doença que o apoquentara recentemente dava sinais de querer aparecer de novo. Com efeito, com o passar do tempo, tudo o que sucedera com ele acabou por tornar-se de certo modo irrelevante, como até o mais inofensivo dos programas televisivos o aborrecia e obrigava a desligar o aparelho.
Começou por falar com os amigos profissionais, advogado, conselheiros e a comandita do costume, a que a mulher costumava chamar «A Quadrilha dos Comilões» e, ao ver-se na solidão aterradora, atravancado de documentos e pastas de dossiers, daqueles escritórios onde esperava impacientemente que pudesse acontecer um milagre, foi-se habituando a falar no seu «esgotamento psicológico», -«a mudança da panela política», -e assim por diante, explicando a tudo e a todos a teia em que estava envolvido. Como se nunca tivesse sonhado com aquela fraude nem suspirasse por experimentar aquela  dolce-vitta, cantando «Eu vi a vida por em tanta dimensão» enquanto São Nicolau uivava «E vou transformar os calos em calotes». Notava-se nele que fazia um esforço para retomar a sua antiga vida nocturna, cheia de requintadas borgas, comezainas, concertos, peças de teatro e arte mas, se as suas hipóteses cada vez eram mais frouxas, -se estas tentações estavam muito longe de regressar ao passado -então murmurava para consigo que a
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sensação estava finita. Na sala, sentado ao canto do sofá, rodeado pelos seus objectos pessoais, bibelôs de marfim e jarras de porcelana, as pinturas a óleo de Vieira da Silva, o espelho de cristal em forma de losango, o Gulliver segurando os duendes na mão, congratulava-se por ser o género de indivíduo que não conseguia ganhar ódio a ninguém por muito tempo. Talvez o amor fosse mais profundo que o ódio; ainda que o amor mudasse, ele tinha a certeza que em relação à esposa, por exemplo, o sentimento que os unia era um forte elo de ligação, puramente duradoiro.
Padrinho tornou-se bastante pessimista, e as relações com os seus amigos estavam a revelar-se menos interessantes do que ele pensara. O crédito estava a esfumar-se aos poucos e, por conseguinte, viu-se obrigado a desfazer-se de alguns valores por «dá aquela palha». A sua advogada, Elisa Alves, dizia-lhe ao telefone: «Está à espera de quê? - disse-lhe.- Eles, se puderem, comem-no todo e, no fim, você é que passa por ser «O mau da fita»» - Elisa, que aos trinta e picos anos de idade ainda parecia uma rapariguinha sonhadora e cheia de fibra, dava a impressão de estar na onda dele com o seu ponto de vista dos amigos.
«O melhor que tem a fazer é conservar tudo», -aconselhou. -«Isto vai passar, vai ver. Afinal de contas - o ir e voltar -e você ainda está na fase do ir!» - És uma bacana, Elisa.

O sonho ofuscado de Padrinho em conseguir uma imagem poderosa e excêntrica -tudo isso eram águas passadas, aspectos de uma realidade incompatível com o pensamento ardente que ele tinha idealizado. Nem mesmo o lendário Gulliver, herói da banda desenhada, o desviava do seu caminho. O que ele lamentava acima de todas as outras coisas era ver o retrato de si próprio ao espelho e de descobrir essa maldita doença que o apoquentava constantemente. Que coisa mais repugnante! Havia no mundo tanta coisa bela - concursos de beleza, romances de amor. O Adão e Eva. - Bastava um indivíduo ligar a televisão na altura dos anúncios publicitários, em qualquer hora da semana, para ver homens apaixonados a trocar beijos com os lábios amorosos das suas parceiras. A mulher, naturalmente, defendia que «O amor» era sempre eterno. A paixão, explicava ela, controla a nossa mentalidade, como que um fruto proibido do nosso tempo. A paixão, retorquia ele, descontrola o nosso corpo e faz-nos ter desejos dele. «És sempre o mesmo», - respondera ela, então, no seu tom de voz crítico. - «Vais buscar argumentos em toda a parte da conversa.» -

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E outros romances de amor, ainda, não menos verdadeiros do que os amorosos da televisão: o ciúme, a inveja, o egoísmo, o ódio, a separação. Amores e desamores que falta faziam? «Amores para quê, se o próprio homem é um animal e um amor basta para o tomar feroz?», perguntava ele próprio para consigo, no seu reflexo de não ignorar nem os prós nem os contras. E logo acrescentava: «E os desamores também para que servem se um homem, quando se zanga, o que quer é estar com os amigos e embebedar-se nas tascas do vício?» - Se isto não fosse verdade, que dizer, por exemplo, do Amor de Perdição? Estaria realmente bom da cuca Romeu para cravar um punhal no peito? Mas, na verdade, um indivíduo tinha de reconhecer -era esse o raciocínio de Padrinho - que as circunstâncias do nosso tempo não exigiam explicações tão satisfatórias.
Era à noite que mais lhe custava a passar o tempo. Aborrecido, frágil, indeciso e frio e tudo o resto mais. À noite não era tão fácil negar esse problema que roía na consciência. E havia também o controlo do fisco que tinha começado a assombrar-lhe os pensamentos.
O nervosismo de Baixote ao ver Padrinho com um aspecto desleixado, ocupando a mesa junto à parede, era uma coisa aflitiva à primeira vista e enfurecera o próprio Padrinho que nem soube o que dizer. «Ó, pá, mas o que é que tu tens hoje?» - Perguntou Baixote e Padrinho resolveu contar-lhe que tinha passado mal a noite com dores na vesícula. Ainda por cima, recebera uma intimação fiscal para se apresentar com os livros na secção de Finanças. Tudo isso junto criara nele um stress diabólico.
«Vai ao hospital, não sejas tolo», -ordenou Baixote, mas ele abanou energicamente a cabeça e arregalou os olhos, balbuciando:«Mas como é que eu posso ...
E, ao dizer aquilo, deitou a mão à cabeça e vomitou para o chão, gemendo de dor. Baixote deu um pulo a tempo para não se sujar e pôs a mão sobre o ombro dele. «Pronto! Agora tens um motivo para ires ao hospital», - disse ele. - «Limpa-te a esse guardanapo e anda para fora  que  eu  vou  levar-te  ao  hospital.» -
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