Saturday, September 17, 2011







CONTOS DE RATAZANA

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Nuno – Vendedor Ambulante


Nessa época já vivia, na sua agonia do mal que o apoquentara, o vendedor ambulante Nuno — e já por toda a rua se louvava o espírito de sacrifício com que enfrentava o seu mal. Nuno, na verdade, completara nos hospitais uma série de exames ao corpo. Pela incerteza e complexidade da doença que ainda não fora descoberta pelos médicos, ele arrancava dentro de si as pragas mais profundas que lhe ia na alma, e tornava-se um triste e sisudo como um desses velhos resmungões em que o chão anda a querer fugir-lhe dos pés. O seu tormento, durante dez anos de angústia, fora tão duro e tão forte que já não temia o Diabo; e agora, só com o diagnóstico positivo do médico, dominava as suspeições, por mais pavorosas ou por mais satisfatórias, como se fossem apenas sonhos inacabados. Atravessava ele uma rua, quando um rapaz de rosto traquina, lhe sorria e murmurava:

— Bom dia, senhor Nuno!

Ora, um bom dia, é sempre um bom dia, desde que estejamos vivos e sãos. Nesse dia, seguia Nuno para uma consulta no centro de saúde, e olhando o azul e o sol da manhã, passou por algumas casas de hotelaria em baixa, e pensou no seu amigo Fernando, antigo colega como ele no negócio de vendas, em Vale Formoso, que se retirara daquele negócio para se dedicar à terceira idade, e habitava num andar de tijoleira creme e castanho, em frente do jardim de Arca d´Água, passeando e orientando uns part-times, porque a sua vontade era não ficar parado. E como mais de três semanas tinham passado desde que encontrara o colega Fernando, largou a rua, passou o portão de ferro que estava escaqueirado, entrou no posto de saúde de Arca d´Água, e começou a subir, lentamente, as escadas em ziguezague. Depois dos primeiros passos, era amarga a ponta de dor que lhe massacrava os pés doridos. Àquela hora, numa altura onde se esperavam os utentes, ouvia-se o chiar e o bater de portas. Sentada em frente da secretária, rodeada de papelada, atendia o telefone, falando constantemente, uma funcionária gorda, que de caneta na mão, ia marcando as consultas, e devorando uma maçã. O posto de saúde, recentemente restaurado de paredes pintadas em azul do céu e branco, conservava ainda algumas lacunas no funcionamento. A sala de espera, limpa e fresca, não caberiam mais de vinte pessoas que permanentes lá iam às suas consultas. Nuno tirou uma senha, verificou os exames que trouxera dentro dum envelope grande e sentou-se à espera. Em breve pensou na doença, e lamentou a sua sorte desdita. Por fim perdeu-se na contagem das chamadas que a funcionária ia atendendo, e acabou por deitar as costas para trás da cadeira e através daquela paz, daquela frescura, embalou… E asperamente, para não o deixar alongar àquela hora de sesta, a enfermeira abriu a porta de contraplacado branco, que não tinha entrada à passagem de utentes.

— Senhor Nuno!

Do fundo da sala branda, repleta de utentes, que mais parecia grupo de coro, veio um ronco murmúrio:

— Alguém me chama? Aqui neste fundo, neste fundo não ouço nada, menina!

Nuno surgiu em grande estilo; buscou o envelope preso entre as pernas, e com algum cuidado avançou em frente.

— Há quanto tempo estou neste sonambulismo, menina?

Bem-haja, desde á três horas! Só três horas atrás, depois de chegar ali em primeiro e não viu ninguém, se viera esticar naquele canto para meditar… Mas havia semanas que nele se instalara um cansaço, que nem podia dar uma volta ao quarteirão quando voltava do médico.

— E o senhor Nuno trouxe todos os exames que eu possa ver?

O médico de bata branca pegou nos exames e nas radiografias dentro do envelope; olhou para o paciente esticado na cadeira, absorvido em pensamentos, e tão abstracto que o seu rosto, outrora cheio e moreno, era como um velho peregrino muito destroçado, perdido entre as encruzilhadas do caminho. Com elevada estima e amizade o pôs à vontade:

— Ora, vamos lá ver o que você tem feito pela sua saúde!

Compenetrado, amarrotando no peito a gravata lilás em que nas mãos prendia, como se fosse ponta dum lençol, o triste Nuno exclamou:

— Senhor doutor, não sei se é maluqueira, mas durante esta noite, em boa verdade lhe digo, me apeteceu apanhar uma boa borracheira, uma borracheira de cair para o lado!... Mas será maluqueira?

O médico, com a sua imensa paciência, logo o informou. Maluqueira? Sim, claro! Aquele que, por doença, oferece ao seu corpo uma felicidade desequilibrada, desacredita o doutor. Não aconselhava ele aos seus pacientes que bebessem as boas pingas que há no mundo? O corpo nem sempre é servo!

— É uma boa borracheira que lhe apetece? — exclamou sorridente o médico, colocando o aparelho de medição de tensões, no braço transparente do paciente. — Pois acalme-se, senhor Nuno, que bem há-de chegar o dia em que pode fazê-lo!

E logo a seguir, com os olhos a controlar a alta e a baixa, agarrou o aparelho das pulsações, que pousava sobre o carrinho de assistência. Arregaçando as mangas da bata, e pondo um lençol fresco sobre a marquesa, mandou deitar o paciente em tronco nu e, enquanto lhe fazia um exame cardiovascular, correu para uma secção onde se encontrava o telescópio, a fim de visionar as radiografias. E aí, anotando concentradamente os dados na ficha clínica do paciente, desandou até à sala, a ver se estava tudo a ir em ordem. Depois, com os dados todos inseridos na ficha, o doutor passou a sala, entrou no gabinete, gritou para fora contente:

— Senhor Nuno, a tensão alta já não a tem! O colesterol já vai abaixo um pouquinho! O ritmo cardíaco já subiu, meu caro!

Pesado, amuado, Nuno deu um suspiro, recaiu na cadeira de forma brusca. Que mal apanhara, que mal apanhara! O doutor, no seu saber, descobrisse aquele problema que tinha na sua saúde! Só de pensar nisso, até sentia a alma de almeidinha mais forte para a caminhada!.. E o doutor com as mãos cruzadas, mandou-o apertar os punhos da camisa, vestir o casaco, e voltado para ele, murmurou:

— Meu caro, você não pode nunca desanimar… Eu vou estudar estes exames mais profundamente. Mas passarei por cá na semana que vem, e ficarei à espera que você faça esses exames que eu marquei, aí nessas receitas. Deus vos acompanhe entretanto, e vos ampare com a sua fé divina!

Mas Nuno fechara os olhos, nem se pronunciou, tendo guardado as receitas no bolso do casaco. Cumprimentou o médico, tomou o seu rumo, desceu as escadas vagarosamente, de sobrolho cabisbaixo e um pouco abatido… Alargando o passo, pensava quanto era triste a sua situação que não permitia que usufruísse duma vida estável e coesa. Retomou a rua, andou para a rua Vale Formoso. E extraordinário foi, desde esse dia, o dinamismo do seu bem. Através da cidade do Porto, sem parar, andou por muito lado, falando com amigos e não amigos que encontrava na rua. A sua grande força ia para além dos que padecem, até aqueles que vendem saúde de ferro. Durante as mudanças das estações, vezes sem conta dava aos pedintes a sua moeda, as suas palavras amigas; os donos dos restaurantes ricos, as empregadas novas induziam, para aumentar o espírito do seu querer através das pessoas; e sem pejo, na próxima esquina, perante qualquer desgraçado, ele se alargava em falas sorrindo. Quando um dia, em Águas Santas, a cigana saiu ao seu encontro, com sinas prometedoras, às melhoras de saúde, ele correu para uma tabacaria, onde jogou numa rifa e comprou uma cautela, para que se a sorte sorrisse, oferecesse àqueles que o vinham a apoiar uma festa de arromba! Enfim, uma tarde, em véspera de S. João, estando a circular na rua das Fontainhas, avistou de repente, no fundo da rua, uma mulher que assava sardinhas sobre um grelhador que ardia e faiscava. Pensativo, murmurou:

— Eis o que me faz falta; uma sardinhada e um bom verdinho, que se não me fizer mal, bem em mim me cairá!

Deu logo ordem a uma outra mulher que ali servia, que pusesse numa mesa o pedido, que era um desejo muito antigo e muito desejado. Comer, sentir o verdinho, eram, para ele, os dois prazeres completos; nada o satisfazia mais do que chegar jantado a casa, regado, consolado, já era um bom pretexto para se afundar em sonhos… No dia seguinte, sábado, no café, ao levantar a chávena, orou. Sentindo então que ia desmaiar ali, pediu que o ajudassem até à porta de casa, o deixassem lá que ele se desenrascava. E, respirando fraco, só se queixava do seu sofrer.

— O doutor, que tanto estudou, porque não me põe a mim no patamar da saúde?

Não há nada como realmente. De madrugada fugiu da cama, por causa do pesadelo, ao ver o coveiro à entrada, da porta da rua. Veio para a janela, e olhou o céu que clareava, ouviu os pássaros que, na frescura e no silêncio, começavam a cantar sobre o beiral da clarabóia e, sorrindo, lembrou uma aurora assim de frescura e silêncio, em que, passeando com um amigo perto da Residencial Vale Formoso, ambos se detiveram ante uma antiga camareira cheia de caruncho, que, amavelmente, lhe recomendara que olhasse sempre pela saúde! «Meu irmão, porta-te bem, senão queres ir para os anjinhos!» Depois, beijando amigavelmente a face de Nuno que a fitava, a antiga camareira foi-se. Logo que ele fechou os olhos no seu leito, um grande sonho penetrou limpidamente no quarto e levou a alma de Nuno. Durante um instante, na fina flor da madrugada, deslizou por sobre a planície fronteira tão suavemente que nem tocava as pontas húmidas das nuvens altas. Depois, abrindo as alas, radiantes e brandas, transpôs, num voo directo, o espaço, as estrelas, todo o céu que os homens conhecem.