Sunday, October 28, 2018



            O SONHO ACABADO
                                                               VIII


Padrinho teve uma noite de visões.
O lençol branco escureceu-se de negro sob o manto fantasioso. Montes de processos e caixotes antigos cheios de avisos de contrafés apodreciam debaixo das escrivaninhas dos tribunais. A chefe das funcionárias viu, ao abrir as portas do gabinete, os primeiros sintomas do caos burocrático que se instalara ali; os funcionários que fodiam os fora de lei e exigiam: ó Abreu passa para o meu, deixando correr o marfim; os escrivães sentados nas velhas cadeiras pregadas ao solo e que faziam contas de tabuada escavando até ao último tostão à procura do milhão; os juízes empobrecidos pela puta da idade avançada e obrigados a servir a Lei como rege o Código Penal, abrindo uma retrete atrás da sala do tribunal, reservatório para as pingas do mijo que às vezes caiam ao chão. Vidas de uma vida tributável. Um homem em cima de uma bicicleta com uma trouxa na mão dirigindo-se para um campo a fim de semear agriões e feijão; um homem condenado a esfregar as mãos calejadas dia após dia na terra, no arado, na colheita, no pedaço de terra poeirenta e suja.
«Será que estas vidas têm realmente o mesmo valor e o mesmo sentido que as nossas?», -perguntava a si próprio Padrinho. - Ou seja, o mesmo que a minha?
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«Que a de São Nicolau? Eles sabem tão pouca coisa, têm tão pouco com que alimentar o espírito.» - Um homem com uma capa preta por cima dos ombros e um martelo na mão estava sentado numa poltrona ao centro de uma sala recheada de quadros nas paredes. Ao lado, um escrivão empoleirado num banco comprido com um dos pés debaixo da outra perna, uma das mãos em cima do teclado de uma máquina de escrever, a fumar uma cigarrilha preta. Quando Padrinho passou por ele, o homem engasgou-se caindo abaixo do banco e fazendo um alarido tremendo.
O processo progredia devagar, três horas de investigação durante a parte da manhã passadas ao calor da conversa, outras três horas da parte de tarde ao calor do ar condicionado, sempre ao ritmo do caracol mais lento e com infinitas demoras de processos e mais processos.

Vinte e dois meses depois da sua primeira fuga para o estrangeiro, mais propriamente para Espanha, São Nicolau tornou a meter-se num comboio quando soube da notícia de que o seu grande amigo Padrinho se encontrava na fase terminal de uma inflamação da vesícula, um diagnóstico reservado que era «cem por cento fatal», como o médico do hospital lhe confidenciou, sem sombra de sentimentalismo, quando ele lhe pedira esclarecimentos. Não houvera mais nenhum contacto desde que São Nicolau se tinha ausentado e, entretanto, passara uma eternidade. São Nicolau enviara um breve bilhete a comunicar que tinha fugido ao Juiz da capa preta, indo para parte incerta do país. Quando o bilhete chegou às mãos de Padrinho, - não trazia remetente, e o tom era bastante simpático: AMIGO, NESTA HORA DO INFORTÚNIO - ESCAPA-TE COMO PUDERES. -   São Nicolau descobriu que, no fim de uma vida inteira de aventuras atribuladas e fugas desnorteadas, se sentia outra vez capaz de fazer uma mudança de noventa graus à sua vida. A ideia de chegar ao Porto o mais urgente possível, antes que Padrinho partisse para sempre, apresentava -se-lhe como uma prioridade acima de todas as coisas.
Passou boa parte do dia a tratar de pôr a sua vida em ordem e ir ao banco e depois tentar convencer o funcionário para lhe cambiar pesetas

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por escudos, mas o funcionário estava cansado de lhe dizer que tinha que apresentar argumentos. Nervosamente, disse que tinha o amigo a morrer e responderam-lhe: "Está a ver? Qualquer pessoa pode dizer que tem o pai a morrer, não é? Para levar as pesetas para o mercado negro." São Nicolau tentou acalmar a cólera e acabou por dizer. «Acha-me com cara de traficante ou quê?» - O funcionário encolheu os ombros. «Eu digo-lhe quem sou», -   vociferou São Nicolau, a quem o encolher de ombros do outro o enervara ainda mais, - «eu sou aquele que se perdeu no desmantelamento das carruagens do combóio que saiu dos carris e não estou para ser insultado por um galego como você.» - O seu pedido de cambio acabou-por ser-lhe satisfeito e, no fim, pegou num grande maço de notas que meteu numa bolsa de cabedal. Correu em direcção à estação e foi tirar bilhete. O primeiro comboio partia às sete e trinta e demorava cerca de duas horas e trinta minutos de viagem: um Expresso do Norte de nome Entrecerras. São Nicolau desceu por um dos corredores que liga à gare e ouviu o seu nome ser pronunciado nos alto­ falantes e sorriu com satisfação. Depois entrou na carruagem e ouviu a empregada do bar de mini saia dar-lhe as boas vindas com um sotaque puramente minhoto e sentou-se no seu reservado, virado de costas para o lado sul. Enquanto o comboio ali esteve parado, de frente para as escadas da gare 2, entravam passageiros nas carruagens e ele, de olhos sonolentos, apercebia-se que devia querer descansar. Os passageiros começaram a amontoar-se para embarcar. «Isto nunca mais anda, deu ele por si a pensar, o melhor é eu ir de bicicleta que ainda chego lá mais depressa. Mas o comboio começou finalmente a rolar sobre os carris.

«A deusa número um da vida é indiscutivelmente a riqueza», assegurou São Nicolau para si mesmo, de whisky na mão, quando o comboio começou a circular. Cumprira o prometido, atirando os braços para o ar enquanto o comboio se lançava a todo o vapor e, a seguir, encostara-se no assento, sorrindo modestamente. «Dá sempre certo.» - Viajavam "os dois" no compartimento 13, reservada aos não-fumadores da primeira classe, e a bagagem de São Nicolau ocupara o lugar vazio ao lado dele, como se fosse um ser humano. «Trate-me por Compincha», - insistiu. - O que é que faz na vida? Ganha muito? Vem muitas vezes ao estrangeiro? E mulheres, conhece muitas? São Nicolau fechou os olhos e concentrou os pensamentos no seu amigo doente.

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A coisa mais interessante descobriu então, era não se lembrar de um dia infeliz com Padrinho ao longo dos tempos de adulto, e a coisa que mais o satisfizera era a revelação de que até o crime compensa, se for bem sucedido, afinal de contas; o mundo é para os espertos, argumentou em silêncio. Aguenta-te, suplicava em silêncio. Eu estou a ir para o mais rápido que posso. «Nesta época altamente materialista», - explicava Compincha, -  quem pode chegar ao top sem a riqueza? Na Galiza os jovens empresários dão festas pela noite adiante. A riqueza preside à mesa com as mãos abertas e carteiras bem recheadas ao correr dos dedos, como se o dinheiro escorregasse das mãos.» - No ecrã de vídeo da carruagem a empregada fazia uma demonstração das diversas medidas de segurança para o caso de uma emergência. Ao fundo do ecrã uma fita inserida na imagem traduzia as palavras dela nas versões de espanhol e francês. Um filme de conto de anedotas e palavras cruzadas, um pequeno luxo para os tempos actuais. A alta tecnologia ao serviço da segurança e do relaxe. O problema é que cada vez era mais perigoso andar nos transportes ferroviários, as linhas estavam a apodrecer e os apeadeiros a cair de tédio e formigas e as colisões eram mais assíduas e todos os dias os comboios faziam vítimas, ou pelo menos assim parecia, e a ferrugem aumentava com mais frequência. Por isso, o filme que veio a seguir O Expresso do Norte era uma espécie de anedota, pelo simples facto de ser letra corrida, como se dissesse: Vejam que os comboios do futuro vão andar pelo ar e até vos oferecem uns pára-quedas para, quando caírem com os focinhos no chão ou forem projectados à distância, não se aleijarem. Estilos de marketing e imagens não realistas... «Fez-me recordar o filme do grande Francis Coppola», - disse Compincha. -«Quando põe as estrelas do musical no Vietname, dentro de um helicóptero, para ir dar consolo à dor, aos soldados na frente da batalha . Talvez fosse uma acção psicológica.» -
São Nicolau tinha ouvido dizer que Padrinho não entrara com o pé direito nesta nova fase da sua carreira. A partir daí, as suas idas aos Nocturnos tiveram muitas escapadas e conhecera uma tal fia, a rapariga que representava o papel de camareira, e o desempenho do próprio Padrinho no papel do cliente fora por alguns amigos classificado como malabarista e fantasista. O tempo em que nada lhe saía bem nem dava

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mostras de melhorar. O seu segundo encaixe Vendedor de amostras, não resultou e rapidamente se afundou sem deixar rasto. «Sabe, talvez ele preferisse juntar-se a pessoas de outra envergadura social, pessoas de outra cultura e nível cívico», -lamentou Compincha. - «Ser alguém e subir a escada da fama. Comigo os sonhos resultam sempre.» -
São Nicolau fechou os olhos e recostou-se no assento. Bebera o whisky demasiado depressa por causa do medo de viajar de comboio e agora tinha a cabeça a girar à roda. Compincha se tinha esquecido demasiado dos laços que no passado o ligavam a Padrinho e ainda bem. Esses laços eram realmente pertença do passado. «Se você não agarrar agora esta oportunidade», - bradou Compincha num tom algo confidencial. - «Vai ter que ir trabalhar na sua terra. Este contacto, acredite, é puro ouro a valer.» - A cabeça de São Nicolau rodopiava em estranhos sentidos. Que tremeliques sentiu, quando soou através das palavras aquele na sua terra. Alguns tempos antes, ter-lhe-ia dado náuseas. Não se atreveu a abrir a boca. Mas agora o amigo estava a morrer e as velhas emoções alertavam os seus sentidos para o agarrar.
Quase vinte anos antes, quando jovem se esforçava para ganhar a vida nas margens da zona industrial, de modo a poder usufruir uma qualidade de vida superior aos demais, e quando o seu pai se retraía em tais luxos, adaptando por sua vez a religião e o desporto, nessa época, uma ocasião, o pai pegara nele e metera-o dentro do carro e foram dar uma volta pelas redondezas. Mostrou-lhe uma enorme propriedade e vários terrenos e disse-lhe que um dia tudo aquilo seria sua pertença. As propriedades eram enormes e os terrenos nem se fala. «Foi a minha primeira herança desde que me conheço», -   escrevia São Nicolau no seu diário, - «por isso, sinto-me contente e feliz.»
E, tempos mais tarde, quando veio a descobrir que as casas e as quintas tinham sido na sua maioria hipotecadas e outras expropriadas e que havia muitos credores à espera da venda dos bens falidos, compreendeu, então, que a herança se revelou uma pura ilusão.
A reacção imediata de São Nicolau foi nunca acreditar sem, primeiro, ver para crer, como São Tomé. O importante era que a vida continuava, e até era bem provável que a herança fosse também uma autêntica dor administrativa. De todas as formas, escreveu ao pai a agradecer a generosidade das palavras. A partir desse momento, a sua terra afastou-se cada vez mais do filho pródigo.
«Eu nunca esqueço um amigo», -dizia Compincha. - «Você é amigo

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de toda a gente. Reconheci logo isso no instante em que me foi sugerido. Espero bem que nunca nos dêmos mal.» - São Nicolau, com o no coração, abanou a cabeça. Não, eu também faço votos que assim seja. São Nicolau, com os olhos piscos, deu sinal a uma funcionária que ia a passar e pediu-lhe mais um whisky, desta vez com sumo de laranja. «Que pena aquele flirt do Padrinho e da amiga dele», -prosseguiu Compincha.
«E que lindo par eles faziam. Pena ele ser um pouco ciumento e ela uma rapariga de  duas alas. Acabou por não dar resultado .» - São Nicolau virou-se para o outro lado. Que praga! Eu estou a tentar esquecer o passado. Vai-te embora daqui.
O tempo passa mais depressa do que aquilo que nós supomos, pensou ele atrás das pálpebras cerradas, enquanto o comboio passava a zona minhota. Talvez o infortúnio seja o parente da sorte, no qual se move o destino de uma pessoa e a satisfação apenas uma série contagiante de pequenos clarões no meio do percurso humano. Ou, então, a desgraça seja pelo menos o terror do fracasso... Esta meditação foi interrompida por um sonoro remexer vindo do assento vizinho. O Sr. Compincha levantara-se, de copo vazio na mão, e preparava-se para ir meter mais uma dose no papo.
O fanfarrão tinha caído no goto das funcionárias do bar. Elas rodeavam-no de todas as atenções, servindo-lhe a dose mais acrescentada de malte puro, cobrindo-o de simpatias até dizer chega. São Nicolau lembrou-se, de repente, das tias da boa sociedade da sua terra quando levavam as sobrinhas adolescentes ao baile e lhes diziam em relação aos rapazes: «Que giro aquele é? Parece que tem mesmo cara de boneco. Olha para o ouro dos dedos da mão esquerda. Que rico ele deye ser!» -
Na realidade, Compincha tinha um aspecto de moinante disfarçado de intelectual. Tirara os óculos antes de beber, e a pêra no queixo dava-lhe uma aparência de abade da freguesia. Aos olhos de São Nicolau, assemelhava-se acima de tudo à interpretação de Plácido Domingo no papel de O Barbeiro de Sevilha. Por se explique a popularidade de que ele gozava entre o sexo fraço.
Ao pegar nas revistas e jornais que se encontravam ao serviço dos passageiros, São Nicolau deu de caras com um velho amigo em apuros. O comentário de Os Sapatos prós Calos, de Mister Louis, fora um tremendo fracasso no Médio Oriente e África e as encomendas deram barraca e foram automaticamente interrompidas. Pior ainda, a sua secretária Susy Três vendera para a comunicação social um artigo em

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que dizia que a pele dos sapatos não passava de solas convertidas em línguas de carneiro escaldadas. Pobre Mister Louis, derrotado pelo amor perverso que se propusera dominar. Era difícil não ter pena de Louis, sem empresa e reduzido aos seus últimos tostões, abandonado pela sua querida secretária, que fazia as delícias aos mais famosos chulos e comerciantes falidos frequentadores da taberna do Rato.
Mas São Nicolau, voando para ver o amigo internado no hospital, encontrava-se num estado de tensão emocional que até os dedos dos pés lhe davam comichões. O que é isto? perguntou lentamente a si próprio, não me digas que os calos agora vieram pa- rar para aqui.
No norte de Portugal, a luta entre um conhecido empresário das slot­
-machines e um juiz local deu bronca nas barras dos tribunais. O Bocas do dia noticiava e São Nicolau leu a notícia do mais escandaloso caso; «juiz abafa uma milêna de contos». Na ultima página, nas notícias mais sensacionalistas, os empresários do jogo ainda exigiam mais liberdade para a expansão das máquinas pelas províncias e em locais ao ar livre.
São Nicolau lembrou-se do amigo de Padrinho, o industrial de calçado Zé, o intocável, que falava destas coisas com uma emoção claramente insuspeita.
«Como podemos saber se o lema do jogo fortuna e azar funciona mesmo para nos cravar?», - raciocinava ele.  «Muitos dos que eu conheço, no Porto, fazem a féria à semana no jogo, nos casinos, nas casas clandestinas, na batota, mas outros dizem-se vítimas da extorsão à carteira, do jogo viciado, do parceiro comprometido. Muito bem. Eu não tenho nem nunca tive experiência do jogo, por isso não estou muito à vontade para definir esse maldito prazer. Em termos de vício, é evidente que não sou viciado. Portanto, embora muitos jogadores se queixem que são explorados, o certo é que também eles procuram ser os exploradores dos outros.» -
«O problema das máquinas das cartas nos salões para jovens, a partir da menor idade», -comentara Zé, - «é que faz grande concorrência às verdadeiras casas de jogo - os casinos -  e aí, é que a porca torce o rabo.» -
Rebentava assim um escândalo em tomo de uma questão de jogo. Era ou não verdade que os empresários ofereciam por debaixo da mesa quantias indeterminadas, esforçando-se para que o negócio fosse de vento em popa? O caso envolvia grandes somas de dinheiro e a credibilidade do juiz, que procedeu ao inquérito do jogo clandestino, ficara chamuscada,
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mas isso passava ao lado do interesse de São Nicolau. Olhava fixamente para uma fotografia desfocada numa das páginas interiores, onde se via um grupo de indivíduos flutuando em cima dum barco parado no rio. Numa pequena província a norte do Porto, houvera uma rusga a um desses barcos clandestinos na prática da prostituição e os fomentadores e proxenetas foram conduzidos na carrinha policial, ficando a aguardar a intervenção do juiz. Havia centenas de bocados de rolos de papel higiénico cheios de ranheta e mal cheirosos; o fedor parecia emanar da folha do jornal.
E, em Vila de Gaia o presidente de um grupo muito popular, que «fez um acordo» com os moradores das ilhas baratas para oferecer volumes de cigarros da marca Três Vinte, na angariação de sócios, foi alvejado por uma chuva de varonas 1 de um grupo de pés descalços, enfurecidos com a marca reles do tabaco. A insatisfação entre as comunidades pobres, as tensões altíssimas das suas artérias, eram coisas intoleráveis como se estivessem a toda a hora sempre em guerra entre uns e outros. Na luta eterna entre o pobre e o rico e as suas crueldades, a crueldade ganhava terreno substancialmente.
A voz de Compincha intrometeu-se nestes pensamentos longínquos. A primeira coisa que ele vira ao voltar para o assento fora a fotografia de uma camareira de copo na mão a olhar para ele na mesa de abrir de São Nicolau. «A verdade», -disse na sua habitual fanfarronice –é que estas mulheres bebem mais que um homem. Parecem autênticas esponjas. Eu, se bebesse meia dúzia de taças de champanhe, ficava logo grogue, mas elas não. Bebem às dezenas de garrafas e estão sempre com a cabeça a funcionar nos cifrões, como um táximetro. Parece incrível, mas é verdade, sim senhor.» -
CONHECIDOS PROXENETAS FORAM PRESOS POR FALTA DE PROSTITUTAS, alegava um porta-voz da polícia, mas os «promotores das casas de passe» rejeitavam essa análise. BÓFIAS DA CIDADE, argumentava um representante da chulice. PRESSUPOSTOS AMANTES CLANDESTINOS DAS CAMAREIRAS.
Um jornal citadino publicava um fotografia com cartazes afixados à porta das casas de tia, nas velhas ruas do engate. O bófia, um rapaz com pinta de irmão-freire, de olhos azuis, calça justa na perna e sapato bicudo á italiana, todas as noites podia ser encontrado no seu carro «Cortina GL» -estacionado em frente ao largo da estação à sombra dos candeeiros de luz frouxa -a contar notas de Santo António (vinte escudos) entregues

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1Pontas de tabaco.


pelas camareiras e a enrolar uma a uma no porta notas, de forma a que ficassem esticadas como peles de bacalhau esturricado.
«Mas que tempos tão difíceis esses», -continuou Compincha. -Para os desgraçados e também para os donos das casas do sexo por aluguer que viam a sua economia a fraquejar.» - Depois animou-se a ver a empregada do bar que se aproximava. «Sempre adorei o grupo das mulheres bem altas», -disse sorridente de forma a que ela ouvisse» , - deve ser um prazer um homem trepar por aquela escada acima. E você? Que é que diz a isto?» -
Oh! que maluqueira de ideias é capaz o espírito chanfrado, sussurrou tristemente São Nicolau. Não admira que não sejamos capazes de nos concentrar por muito tempo noutras coisas. Não admira, pois, que invente programadores de controle à distância para mudar de canal. Assim não precisamos de ouvir quem quer que seja. Se apontássemos para nós próprios esses instrumentos, havíamos de fugir para os confins do mundo, só para nos evitar de nos ouvirmos. São Nicolau sentia que os pensamentos se extraviavam, por muito que se concentrassem no amigo, desviando-se para o caso das camareiras. São Nicolau mandara-lhe um bilhete; será que ele o recebeu? Teria ele melhorado no seu diagnóstico? Seria possível que ele ainda estivesse vivo? -   então pensou nisso e perturbou-o .a ideia de não chegar a tempo, que coisa imperdoável! - Hei-de saber, quando o vir à minha frente, pensou. Olhou para o relógio, o tempo passava e viu o clarão de fumo que saia do comboio que continuava a rolar sobre os carris.
O fim da viagem aproximou-se sem acidentes. Ninguém estava ali à sua espera na estação.
«Venha daí», - chamou Compincha com um aceno de mão. «Chama-se um taxi e vamos directos ao hospital.» -

Vinte minutos depois, São Nicolau estava diante do portão do hospital de São João com a mala de viagem e a gabardina debaixo do braço, a olhar para uma vitrina de vidro onde estava instalado o sistema de controlo por vídeo das entradas de visitas. Ao lado, num grande reclame, tinham escrito um slogan de ordem contra a sida: TODOS OS DESEJOS ACABAM NUMA CAMISINHA I QUANDO O PRAZER É CONSCIENTE I  É LEVE E TRANSPARENTE / NÃO ESQUEÇA: USE PRESERVATIVO NA HORINHA.
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Uma vez mais, Padrinho viu o sonho desfazer-se em poeira; homens sem eira nem beira e saqueadores de faca na mão tinham tentado apossar-se da cadeira do poder abandonada, mas o tempo acabara por os vencer. Nunca mais ninguém o incomodaria ali. Padrinho deitou-se sobre a cama e fechou os olhos com um crucifixo a mão. Não lhe interessava a sorte dos outros; tentou dormir mas em vão.
Ao fim de um tempo incontável de horas e minutos, ocorreu-lhe que estava a morrer de um mal incurável. Sentia que os sonhos lhe fugiam da mente e não conseguia pensar, pensar, pensar.
Na ultima noite da sua vida ouviu um barulho, como que um torpedo, a estoirar contra uma plataforma de ferro de aço inoxidável e sentiu um cheiro a cera queimada e percebeu que o coração estava a dar as últimas. Levantou-se da cama e quase cambaleava com a fraqueza, mas acabou por aguentar-se nas chuteiras e foi até à janela para apanhar ar e, ao mesmo tempo, ver se fora chovia. Realmente as chuvas varrem pegadas, apagam memórias, purificam a terra e aproximam-se dele para o levar; -e  o vento soprava a chuva na direcção do hospital, de maneira que, em breve, brevemente, seria a sua vez de partir. Viu a chuva cair em mil gotas de água e escorrer pelos cantos, como uma serpente; depois parou e encaminhou-se muito de mansinho para próximo da janela onde pela primeira vez meditara no sonho.-E agora sentia-se invadido por uma lassidão, por um enorme peso e voltou de novo para a cama. Antes de fechar os olhos, sentiu que alguma coisa lhe tocara nos lábios e viu o rosto da mulher, debatendo-se para lhe dar um beijo. Então o suspiro derramou-se por cima dele e ele viu-se ao lado da mulher que olhava carinhosamente. «Beija-me» - dizia ela. -«Beija-me com fervor.» - Como é que conseguia ouvir a voz dela? -Estava debaixo da água, nas ondas do oceano, mas ele ouvi-a claramente bem. «Beija-me», -disse ela. Ele fechou os olhos.
Estava a desaparecer.
Então alguma coisa dentro de si baqueou, fez um último esforço, no instante em que o coração parou de bater. O seu corpo ficou inerte.
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No jardim abandalhado e cheio de ramos abatidos, o mau trato atraiu o seu olhar desvanecido. O pai sempre tivera o bom hábito de cuidar do jardim a rigor. Provavelmente usavam-no agora como mesa de pingue-pongue, pensou amargamente. A madrasta saiu da vivenda para vir receber São Nicolau, com grande consternação. «Meu Nicolauzinho. tinha tantas saudades tuas. A tua vinda é uma surpresa para mim.» -
Ela era talvez uns dez anos mais nova que o pai de São Nicolau que morrera havia quase três anos, de velhice, em pleno sono. «Quanto tempo vais ficar por cá?», -perguntou ela, mas São Nicolau estava tão abatido que nem lhe prestou atenção. «Vou hoje embora.» - E São Nicolau começou a aperceber-se da ansiedade da velha senhora em querer conversar. «Nunca mais tive noticias tuas. Sabes como é. Ainda nos ligam alguns laços sentimentais...» -Calou-se, pois não conseguia dominar a voz e a lembrança do marido continuava a ser uma grande perda para a sua vida. Também ele a compreendeu. Ela disse calorosamente. «Eu por mim», -soluçava ela,"- «não paro de rezar todos os dias uma oração para que nada de ruim te aconteça.» -
São Nicolau abraçou a madrasta e deu-lhe um beijo na face. Era bem possível que ficasse por ali umas horas antes de poder seguir viagem. Mas não. Olhou para a mala de viagem junto ao alpendre de casa e sentiu que não tinha condições de ficar ali por muito mais tempo e fez questão de pedir à madrasta que mandasse chamar u m taxi para se ir embora. Agora que São Nicolau estava silenciosamente no quarto a meditar, por uns momentos, não descurou a ideia de que chegara demasiado tarde; que Padrinho tinha morrido enquanto ele tagarelava no
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comboio. Então sentiu-se triste e oprimido, com acessos de tosse, virou a cabeça e pensou num provérbio que alguém escrevera um dia. O mundo é o lugar que, morrendo nele, provamos ser pertença dele. A seguir, saiu para o taxi que esperava por ele fora. São Nicolau aproximou-se da madrasta e disse-lhe adeus.
Na manhã do regresso de São Nicolau, a madrasta pediu-lhe para ele cortar a pêra que lhe dava um aspecto mais velhote e ele prometeu-lhe que, na próxima vez que fosse ao barbeiro, far-lhe-ia a vontade. Uma hora depois, o comboio começou a sua caminhada. Desta vez, São Nicolau não bebeu sequer um whisky. E não comeu nada. Estava demasiado desiludido consigo próprio enão lhe apetecia sentar-se no assento. Preferiu ir de à janela, olhando a paisagem. Oprincipio da tarde estava solarenga; o brilho azul do céu estendia-se desde as águas do rio Douro até ao horizonte longínquo. Nos seus pensamentos vagueava a ilusão de ver uma estrada prateada sobre uma risca no cabelo brilhando nas águas. Abanou a cabeça; não conseguia acreditar em sonhos de adultos. O tempo do sonho terminara e o panorama que avistava da janela não passava de uma paisagem com antigo valor sentimental. Arre, diabos os levem! Volta para
os galegos!
«Anda daí», - disse a voz de Compincha atrás de si. - «Se tu te recusasses a ver o teu amigo morrer, não terias viajado de novo.» -
Estava mais que provado que a boa sorte de um indivíduo' não tem explicação.
«Já vou», -respondeu ele e virou as costas à paisagem indo deitar-se no assento.

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Fernando Abraão passou parte da sua vida nos meandros da vida noctuma. Primeiro como músico e depois corno empregado de mesa até chegar a boss da noite. É compositor e editou vários CD e autor de vários livros para teatro e revista A História do Morto-Vivo (Ano de 1999) e Tripeiro de Gema (2000). É ainda autor dos romances O Bando das Periquitas (1999). E do romance editado recentemente Escritos Traidores (2002). Toda a sua obra disponível se encontra às vendas nas tabacarias da zona de Antero Quental e Costa Cabral, que lançarão em breve a sua última obra: A Música Que Eu Dou.