Friday, September 4, 2015




Eis como, nas mais diversas situações, Artur Bófia foi ao encontro do amor
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Para Artur Bófia, o amor era como o atuar. 
Esta é a história de um dos seus casos amorosos. Tinha regressado da esquadra do Porto, depois de mais uns dias de licença. O dia estava chuvoso. Poucas eram as pessoas que andavam a pé pelas ruas, mas de todos os estabelecimentos topava-se pessoas a ver a chuva a cair, e outras enroladas numa conversa. O ar cheirava a lavado e fresco. Quando, às quatro da tarde, a chuva pareceu querer escassear por uns instantes, Artur Bófia que tinha passado um bocado no café, saiu e pôs-se a caminho da casa do Pipocas. Estava com frio e com saudades. Na altura em que chegava precisamente perto da loja de frutas, levou com uma tromba de água em cima. Artur Bófia ficou como um gato-pingado. Correu da chuva, e procurou a casa mais próxima, que era aquela onde habitava a tia Justa, uma viúva de cerca de trinta e oito anos, cuja recente viuvez a deixara razoavelmente calçada. A tia Justa era em geral aberta e descomplexada, o que de certo modo, dispunha-se sempre alegre. Quando Artur Bófia bateu à porta, tinha ela acabado de tomar um banho e estava a secar o cabelo. Quando abriu a porta, Artur Bófia estava á entrada pingando água para cima do soalho.
— Entra e aconchega-te, antes que te constipes — disse a tia Justa.
Artur Bófia, olhando para os seios como um mirolha observa um elefante, tirou o casaco. A chuva batia no telhado. A tia Justa pegou numa garrafa de uísque e colocou-a no centro da mesa.
— Queres tomar um copo de uísque?      
Ainda o primeiro copo de uísque não estava emborcado e já os olhos de Artur Bófia estavam de novo pregados nos seios. Bebeu o copo de uísque antes de proferir palavra. A tia Justa bebeu também, pois só assim conseguiria descontrair e começou a saborear o uísque quando bebeu uma boa dose.
— Este uísque não é do mercado?
— Ah, pois não; uma amiga minha, uma senhora espanhola é que mo orienta.
Embutiu novo copo.
Começara a escurecer. A tia Justa atirou umas achas para o lume. «Já que a chuva tem de cair, que caia», disse de si para si. Fixadores, os seus olhos prenderam-se no enorme físico de Artur. O peito encheu-lhe um pouco.
— Andas a vir muito para estes lados, meu malandro. Chega-te, dá-me a roupa, que é para a pôr a secar, e cobre-te aí com o cobertor.
Artur Bófia não usava muito a mentira. O seu pensamento não atinava lá com esse processo.
— Tive no café a fazer horas com uns amigos.
— Mas estás feito numa rodilha.
Captou-o em busca de alguma reação em relação à sua generosidade, mas o rosto de Artur Bófia não alterou uma unha sequer, a não ser o contentamento que sentia por estar coberto da chuva e a beber uísque. Estendeu o copo para beber de novo. A tia Justa emborcou outro copo para si. O fogo aquecia, deu uma sensação de bem-estar que contrastava com o bater da chuva no telhado. Artur Bófia não fez o mínimo esforço para se mostrar grato para com a anfitriã. Bebeu o uísque em pequenas doses, sorria estupidamente para o fogo e fumava na cadeira. A ira e o desespero crescerem na tia Justa. «Olhem para este animal», disse de si para si. «Olhem que besta esta que me havia de aparecer. Antes tivesse eu abrigado um cão da chuva. Outro homem qualquer teria para mim, pelo mínimo, uma palavra amiga.»
Artur Bófia pediu para encher mais um copo. Foi a vez de tia Justa dizer o que ia dentro da sua alma.
— Quando a chuva cai e o fogão arde, não há como um grupo de amigos aconchegados no calor, não achas? 
— Acho.
— Talvez as persianas te incomodem — arriscou ela. — Queres que as feche?
— Não me incomoda — respondeu Artur Bófia —, mas se vê inconveniente, não faça cerimónia.  
A tia Justa fechou as persianas e a sala mergulhou no semiescuro. Depois, voltou a sentar-se esperou que Artur despertasse a sedução. Aos seus ouvidos chegou o ruído do brusco atirar do fumo do cigarro de Artur.
— Pensar — disse ela —, que ainda há minutos estavas lá fora, a correr da chuva, e agora, estás aqui, sentado na cadeira, a beber bom uísque, a fumar a teu bel-prazer e na companhia de uma viúva que te estima que quer o teu bem.
De Artur Bófia nem uma palavra se ouviu. A tia Justa não o via nem ouvia. Bebeu o último trago do uísque e atirou às malvas a vergonha por ares e ventos.
— A minha amiga Xanana Maluca contou-me que alguns dos teus amigos a visitaram numa ocasião em que chovia a rodos e ela tratou-os tão bem que eles foram muito gentis com ela.
Da direção de Artur veio o som de um pequeno ronco. A tia Justa quando se aproximou, nem queria acreditar no que os seus olhos estavam a ver. Artur Bófia estava mergulhado num profundo sono. A cabeça voltada para trás, os pés atirados para a frente, a boca toda escancarada. Enquanto a tia Justa, atordoada e chocada, comtemplava a cena, um tremendo ronco saiu da boca de Artur Bófia. Passou-se dos carretos. Nas suas veias correu uma boa dose de revolta e frustração. Não gritou. Não, embora a sua vontade fosse tanta, dirigiu-se à banca da cozinha, encheu um balde de água, deixou-o atestado, e pegou nele. Depois, voltou-se lentamente para Artur. O primeiro lanço apanhou-o na metade da cabeça e atirou-o da cadeira ao chão.   
— Reles! — gritou a tia Justa —, reles imundo! Vai roncar para a tua rua!
Artur rolou pelo soalho. O lanço seguinte fez-lhe um penteado novo no cabelo todo puxado para trás. Artur Bófia despertava agora rapidamente.
— Ei! — disse. — Que mal eu te fiz?
— Já te digo! — gritou ela.
Abriu a porta para trás e com o dedo esticado fez sinal de marcha. Artur Bófia levantou-se meio cambaleante sob as enxurradas de água. Saiu pela porta fora, enxugando o cabelo com as mãos.
— Não atires mais água — implorou. — Mas que mal eu te fiz?
Com uma fúria animal, agarrou-se a ela e caíram no carreiro do jardim. A fúria dele era terrível. Sem deixar de a largar, segurou-a forte contra si, enquanto ela agitava violentamente os braços, para se libertar dele. Continuando a agarrá-la e estado abraçado a ela, o amor surgiu nele. Acariciou-lhe o cabelo, percorreu-lhe o corpo com as mãos grossas, sacudiu-a como se sacode uma trouxa. Apertou-a por uns momentos até a calma dela abrandar. 
— Reles imundo — gritou —, cão!
À noite, no Marco de Canaveses, um guarda-noturno patrulha as ruas a pé para impedir que as coisas boas se transformem em más. Desta vez José Gabardines equipava uma gabardina impermeável com um brilho semelhante ao alcatrão. José estava triste e chateado. Não era nada difícil fazer patrulhamento nas ruas pavimentadas; mas parte do seu itinerário estava localizado nas ruas de paralelepípedos e nos caminhos lamacentos do Marco de Canavezes e aí, os seus calos sofriam mais. A pequena lanterna iluminava aqui e ali. A noite resplandecia com intensidade.
De repente, José Gabardinas gritou, espantado, e olhou para o chão.
— Ei, lá! Isto já vai aí?
Artur Bófia voltou a cabeça.
— Oh, és tu, José? Ouve, já que de qualquer modo viste o que não devias ver, não podes mudar de rua uns minutos?
O guarda-noturno fez as pernas mudar de rota.
— Acabem mas é lá com isso. Ainda alguém vos topa e vocês ficam nas bocas.
O guarda-noturno desapareceu por detrás do edifício dos correios. A chuva batia de mansinho por entre as árvores do Marco de Canaveses.