Monday, June 25, 2018

                                   
                                           O HOMEM E O ROTTWEILER
                                                                   ~~~
                                                  FERNANDO ABRAÃO

   O HOMEM sentiu os olhos do rottweiler fixados nele enquanto procurava aconchegar-se o melhor possível, mas a sua cabeça foi invadida pelo meio da manhã. Ficou completamente imóvel, tentando conter as ondas de fadiga que lhe percorriam o corpo. Uma sensação de dor na perna alertou-o de que havia desmaiado durante alguns momentos. 
   «Mas logo hoje?» perguntou inquieto a si mesmo. mirando aquele vulto que parecia estar se aproximando cada vez mais.
   «Não te aproximes, feioso! Eu ainda estou aqui, maldito!», murmurou ele num tom baixo e moderado.
   O rottweiler olhava insensível. 
   O homem estudou o animal. Ele certamente apanhara-o ali, olhando-o, durante parte da manhã, mas ele não conseguia se lembrar quando o vira pela última vez. Aquele feioso era quase tão novo como ele mesmo, a julgar pelo aspeto do seu nariz húmido. Quando o rottweiler bocejava o homem podia ver os seus dentes brancos e aguçados, que um dia seriam terríveis caso mordesse alguém.
   «Queres lerpar-me, não é?» berrou de repente. «Vou-te fazer esperar!»
   O homem estava com a perna partida. Depois do embate havia caminhado 3 km com a ajuda de um pau a servir de muleta, até que a dor e o cansaço o dominaram. Jazia agora ali deitado à sombra de uma árvore, com o corpo magro e frágil acomodado num tapete de ervas do mato que haviam crescendo ao longo do tempo. A brisa leve drenava as forças que ainda lhe restavam e, sem nada mais poder fazer, ele se pusera a percorrer as suas lembranças, numa tentativa de escapar à ratoeira que lhe haviam armado os seus 43 anos - um tropeção de bicicleta num calhau e um arremesso que acontecera de imprevisto.
   Viu-se relembrando na casa de sua família e no modo como ele e o seu gato Relâmpago, haviam corrido através dos corrimões, pisgando-se com as meias em corridas rápidas. Tem graça, pensou, há tempos que eu não me lembrava do Relâmpago.
   «Bom traço», dissera o irmão ao trazer o felino para o lar. «Siamês com mistura de gato vulgar.» Relâmpago saiu um bom companheiro para casa. Era brincalhão, inteligente, e sabiam que o gato não era capaz de dormir sem que as luzes todas se apagassem.
   «Aquilo é que é um felino», disse o homem em tom baixo. «Relâmpago, põe as meias aqui! Já! Já aqui!»
   Abanou a cabeça como se tentasse recuperar de um choque e viu o rottweiller avançar para ele num passo irregular e coxo.
   «Para aí, feioso!», gritou amedrontrado. «Ainda cá estou, ainda cá estou!» Uma ou duas horas mais, pensou aflito, e minha mulher notará que não apareci para o almoço. Tenho de aguentar.
   O cão interrompeu e sentou-se de novo, um pouco mais para perto. Estava aquecendo quando o homem sentiu os primeiros fios de suor caindo levemente em sua testa. «A mulher e a família vão ficar fulos comigo», murmurou. «Primeiro, eu me estampei com  a bicicleta; depois eu fraturei a minha perna e de certeza que vou levar duas palmadas das boas.» Respirou. «Está a ficar quente!»   
   O sol que se abria há pouco refletia o azul céu nas duas figuras separavas por cinco metros, se tanto.

   «OLHAI EM BAIXO!» gritou Baltazar, que liderava um grupo de amigos. «Ali!» Enquanto o grupo corria para ele, Baltazar voltou a gritar: «Um rottweiller o apanhou, mas parece que ele ainda tem força para o matar.»
   Os homens se aproximaram dos dois vultos deitados no chão. Baltazar se ajoelhou e observou a maneira como o braço do homem rodeava o pescoço do animal, com sua outra mão repousava com frieza o pau estendidos no focinho húmido do animal que estava parado sobre o seu peito  e, finalmente, o sorriso tranquilo no rosto franzido do homem.
   «Não», ponderou ele. «Não foi nada disso que aconteceu.» Tocou a face do homem e depois o pelo ensanguentado do pescoço rottweiller. Piscou para acabar com a ardência nos olhos e olhou para cima, para os rostos de seus amigos.
   «Não foi mesmo nada disso», murmurou. E se cavou dali.
 
            Dedicado ao Rufino Saraiva por amizade de Fernando Abraão, no dia do Animal, Porto.