Saturday, October 29, 2011


CONTOS DE RATAZANA
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3º Episódio
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Com o veneno da posse entranhado dentro de Catanada, logo o mal
triunfou provisoriamente nele



No dia seguinte, Catanada foi conhecer a amante no apartamento. Esta era precisamente aquilo que Pipocas dissera, mas mais alta. Lá estava a sua palmeira-do-brasil, de perna alçada sobre a colcha, a sua almofada cheia de bolinhas, as suas bugigangas diversas espalhadas na gaveta, os seus chinelos vermelhos e o pijama de calções curtos ao lado da cama.

Pipocas tornou-se uma pessoa importante na terra devida a ter casas para rendar e Catanada subiu um patamar por alugar uma prostituta. Não é possível saber se Pipocas contava receber qualquer aluguer ou tirava contra-partidas ou se Catanada contava pagar algum. Se contavam, ambos ficaram associados. Com tudo isto, Pipocas nunca o chateou e Catanada jamais foi chateado.

Os dois companheiros apareciam muitas vezes juntos. Arranjasse Catanada um pacote de investimentos ou juros promissores, que tinha pela certa a presença de Pipocas. E se Pipocas tivesse outra sorte ou engenho no engate, Catanada passava com ele uma paródia de arromba. O bom Catanada teria pago o que fosse se alguma vez tivesse muito, mas nunca teve… pelo menos durante o tempo que demorou para encontrar Pipocas. Catanada era um homem de princípios. Havia alturas em que o chateava pensar na generosidade de Pipocas e na sua própria falta de nota. Um dia arranjou dez contos de uma maneira tão extraordinária que imediatamente tentou esquecer-se do amigo com medo de que a lembrança o fizesse enlouquecer. Em frente do Banco Português do Atlântico um cliente havia-lhe posto um cheque assinado em branco na mão dizendo:

— Anda lá, joga aí nas acções o que palpitares e dou-te percentagem a dobrar. O meu palpite esgotou-se.

Estas coisas acontecem como um milagre — pensou Catanada. Uma pessoa devia aceitá-las como é e não se importar com o resto nem fazer perguntas. Subiu a rua levando a notícia a Pipocas, mas, mais adiante, encontrou alguém e perdeu-se na ladainha. Catanada era um conversador e adorava o convívio. Ergueu os olhos em direcção às horas e a sua paciência esgotou-se para a visita que ia fazer ao amigo. Nova viragem, e fez o retorno. Depois disto, Catanada sentiu-se bem relativamente ao atraso do pagamento do aluguer. Não tido sido o pagador das suas despesas?

Passaram algumas semanas. Catanada começou a preocupar-se agora com a prostituta. À medida que o tempo corria, a preocupação tornava-se maior. Por fim, movido pelo desespero, primeiro, despachou a prostituta do apartamento para fora e, segundo, trabalhou horas a fio a palpitar acções para o cliente do Banco Português do Atlântico e ganhou cinco contos. À noite, pôs a roupa de trazer por casa, toda desportiva, colocou sobre os ombros o coçado casacão de antílope do pai e pôs o carro a descer a rua a fim de dar a Pipocas a notícia da prostituta. Na viagem, porém, comprou um maço de cigarros, e pôs-se a fumar.

«Foi melhor assim», pensou. «O meu amigo, se quiser, que tome conta dela. Do meu dinheiro que me custou os pingos da cabeça a ganhar, não leva nem um chavo. E digo-lhe que a prostituta custava cinco contos por foda.» Isto era parvoíce e Catanada sabia-o bem; no entanto, ficou satisfeito consigo mesmo. Não havia ninguém em Marco de Canavezes que soubesse melhor o preço das prostitutas do que Pipocas.

Catanada guiava, feliz. Decidira-se enquanto avançava em direcção ao apartamento de Pipocas. Os seus pés nos pedais mal tinham deixado de mover-se. Em cima de uma das pernas um caderno de folhas, em cada folha uma cotação da bolsa. O estômago de Catanada nem sequer estava à prova das alturas, visto que, ao contemplar as gaivotas, lembrou-se de que a Senhora do Porto usava algumas vezes gaivotas nas suas comezainas, e essa lembrança deu-lhe apetite, e o apetite aumentou-lhe a ânsia. Catanada prosseguiu na sua viagem. Acabava de chegar à cabana do campo e já estava a pensar como poderia divertidamente passar-se com os telefonemas para os amigos e no tempo em que seria capaz de manter-se divertido.

A escuridão era agora quase cerrada. Já não se via nem a berma da estrada nem o resto que a ladeava. Mas, naquele momento em que a aceleração oscilava entre o depressa e o devagar, nesse momento preciso, Pascácio surgiu, por acaso, a pé, à beira do entroncamento com a pasta da publicidade e com vontade de beber um copo de uísque e de falar um pouco. Pascácio, primeiro, ouviu o ruído do motor, depois viu uma figura obscura e depois reconheceu Catanada.

— Ei, bancário! — chamou entusiasmado. — Que pressa é essa que tu levas?

Catanada estacou e olhou para a berma.

— Julgava que estavas no bairro — disse de malandro. — Ouvi falar numa história com uma mulher da prostituição.
— Estive — retorquiu Pascácio, sarcástico. — Mas não fui bem aviado. A pequena disse que o broche não me fazia nada bem depois do jantar e eu disse a ela que não queria mais nada do que aquilo que estava interessado. E pronto — acabou ofegante —, cá estou mal aviado.

Catanada estava ouvinte. Na verdade, não falou com Pipocas, mas convidou de imediato Pascácio a compartilhar com ele no apartamento que tinha a chave. Catanada e Pascácio entraram alegremente no apartamento. Catanada acendeu a luz e foi buscar duas tigelas para fazer de copos. Trouxe também a garrafa de uísque.

— À tua, meu! — disse Pascácio.
— Chim-chim! — retorquiu Catanada.

E, passados instantes:

— Ao tesão! — disse Pascácio.
— Que nunca se vá! — retorquiu Catanada.

Depois de saborear os primeiros tragos, botaram abaixo o conteúdo da garrafa de uísque, o que é muito, mesmo para uns aficionados. Logo depois do bota abaixo surgiram as conversas com propósitos e despropósitos, contaram recordações suavemente tristes, evocações de antigos e insatisfeitos amores. Um arroto, e reflexões acerca de antigos e infelizes problemas familiares, tristeza geral e confusa. Outro arroto a seguir, canções à desgraça ou à saudade, e todas aquelas lérias que todo o embriagado sabe. Ficam por aqui os arrotos e seus derivados. A partir daí voltam à conversa normal com propósitos e despropósitos, uma vez que foi aí que ambos deram o início.

— Pascácio —, nunca te cansas de andares a dormir em bairro, com a amante, todo feito galifão, sujeito a levares uma farinhola, sem ajuda de ninguém, sempre sozinho?
— Não — respondeu Pascácio.

Catanada pôs na sua voz o doce da simpatia.

— Era o que eu pensava, meu bom amigo, quando era um insignificante rato de aldeia; também eu andava a lestes, pois desconhecia como é bom a gente ter uma vida dupla, e uma amante e um refúgio. Ó, Pascácio, tu é que sabes viver!
— Realmente é outra vida — concordou Pascácio.

Catanada lançou o canto:

— Ouve lá, Pascácio, não gostavas de me alugar uma parte da tua amante? Diminuía para ti a mesada. No teu dia não ia eu; no meu dia não ias tu. Não gostavas que fosse eu e não outro?

— Lá isso gostava — respondeu Pascácio.
— Então, diz lá — perguntou Catanada.
— Olha, pagas só metade da mesada. São trinta contos por mês. E a amante toda fica à tua disposição. Podes dormir com ela e tudo menos aos fins-de-semana. E se ela te autorizar a ires lá a casa tens que pagar mais qualquer coisa.
— Ai, tenho? — disse Catanada. — Isso vamos conversar!

Pascácio puxou de um cigarro e Catanada imitou-o. A sala parecia uma chaminé de fumo. Catanada respirou profundamente. Não tinha entendido como a dívida para com Pipocas se instalara nos seus pensamentos. O facto de ter quase a certeza de que Pascácio nunca lhe aceitaria dinheiro algum não acalmava a sua audácia. Apresentava a prostituta a Pipocas para se servir dela, uma ou mais vezes, e o assunto ficava aviado. Se algum dia Pipocas lhe pedisse contas, Catanada podia responder: «Paguei-te com os favores da prostituta.»

Acabaram de fumar e atiraram com as baronas para o cinzeiro e Catanada recordou-se como havia sido feliz nos seus tempos de menino.

— Nessa altura não tinha eu consumições, Pascácio. Não sabia o que era o pecado. Era bem mais feliz.

— Desde então nunca mais fomos como éramos — concordou tristemente Pascácio.


Friday, October 14, 2011










CONTOS DE RATAZANA
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2. Episódio

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        Catanada foi atraído pela ambição de alcançar uma
    posição de destaque, 
e renunciou a generosidade de Pipocas


Pipocas meteu Catanada no seu Renault, circulou ao ritmo desenfreado a distância até às Antas, no Porto, e só parou à porta da primeira casa. Ficaram em frente do prédio de tijoleira sem pinturas e olharam com admiração o imóvel, um prédio alto e esguio, com varandas por fora, e janelas com cortinas. No corredor, porém, havia uma grande palmeira enfiada num vaso coberto de areia e os halogéneos sobressaíam por entre as tábuas do tecto envernizadas.

— Esta é a mais pequena das duas — disse Pipocas. — Mas é a minha preferida.

Pipocas tirou o porta-chaves do bolso. Atravessou em passos pesados a gasta mármore e abriu a porta principal. O quarto estava tal qual ele havia deixado quando da última noite lá estivera. As roupas da cama com vestígios de alguém lá ter feito uma boa farra, e almofadas sem fronhas. Na mesa o calendário de Marco de Canavezes para 1980, a bandeira de seda no alto com a equipa do F.C. do Porto a olhar para a taça de campeão do último título ganho, o ramo de flores de papel colorido que figuravam nas jarras vermelhas, os apliques de luz indirecta e cestos cobertos de roupas, a cama, os maples de veludo meio sujos.


Catanada espreitou para dentro.

— Um quarto e peras — disse, ofegante. — E uma cama em redondo. Aqui é que a gente vai bombar, Pipocas.

Pipocas avançou rapidamente. Tinha boas recordações dali. Era o seu refúgio à socapa do patrício. Catanada dirigiu-se antes dele, direito à cozinha.

— Olha, uma cozinha em kitchenette! — exclamou. Fez rodar o fogão. — Não tem gás. Tens de chamar um técnico para pôr isto a funcionar.

Sorriram um para o outro. Catanada reparou que no rosto de Pipocas se instalavam os problemas que a propriedade ocasiona. Aquele rosto nunca mais estaria livre de preocupações. Agora que Pipocas tinha propriedades suas, nunca mais queria saber dos outros. Catanada tivera razão. Pipocas elevara-se num patamar acima dos amigos. O seu corpo tinha-se engrossado para superar à complexidade da vida. Pipocas, porém, deixou escapar um grito de lamentação.

— Catanada — disse amargamente. — Quem me dera que esta casa fosse ao pé da outra para que tu pudesses servir dela.

Enquanto Pipocas foi ao banco para lhe mostrarem o extracto, Catanada percorreu o corredor do apartamento que estava cheio de portas separadas umas das outras. Ali havia também caixas de vinho, maduros e verdes, e enlatados diversos que se encontravam em prateleira na dispensa. Catanada, olhou, por cima da vidraça para a marquise do vizinho e viu duas estudantes em topless a apanhar banhos de sol e, depois dum momento de reflexão, pegou nos binóculos e pôs-se à espreita.

«Elas vão gostar de saber que estão ao lado de dois galifões», pensou maliciosamente.

Pensou igualmente na forma de lhes armar uma ratoeira no caso de elas serem lésbicas e nada quererem com os homens.

«A gente aqui vai ser rei», disse novamente de si para si.

Pipocas voltou do banco inconformado.

— O banco não me quer dar o dinheiro.
— Porquê?
— Só me querer dar quando eu tiver vinte e cinco anos.
— Vinte e cinco anos? — disse Catanada com olhar severo.
— Sim. É o que está escrito no testamento.
— Mas tu podes pedir um adiantamento.
— Eu sei — retorquiu Catanada. — Talvez eu possa pedir um adiantamento ao advogado.

A tarde passou.

— Amanhã — disse Pipocas — voltamos cá e trazemos e fazemos umas prostitutas boas. Agora, tapa aí as vidraças para não se ver lá para fora.
— As vidraças? — exclamou Catanada, assustado. — As vidraças, não.

Catanada contou o seu plano acerca das estudantes do vizinho. Pipocas concordou logo.

— Amigo, estou satisfeito por teres vindo ver o apartamento comigo
. Agora, enquanto vou bater uma soneca, tens tu de ir buscar alguma coisa para se comer.

Catanada, lembrando-se do papel dos moços de recados, achou que isto não era correcto.

«Estou a ficar cheio dele», — disse tristemente de si para si. — «A minha paciência vai acabar. Não tarde muito que eu não passe a ser um ajudante de campo por causa deste semítico.»

No entanto, sempre saiu à procura de comprar qualquer coisa para comerem. Passado um quarteirão, perto da rua principal, deu com uma loja de assar frangos do monte, a girar no ferro. Os frangos tinham aspecto de serem novatos, pois eram pequenos, e as pernas, os pescoços e os peitos ainda estavam descobertos de penas. Talvez fosse por Catanada ter estado a pensar, entretido, nas estudantes do vizinho, que estes franganitos lhes despertaram a fome. Continuou na bicha a olhar para o assador, enquanto os frangos giravam à sua volta.

Catanada disse de si para si: «Coitaditas das franganitas sem penas. Porque não vos deixaram crescer mais quando estáveis no vosso tempo de miudagem. Os donos nem sempre são assim tão generosos para os coitados bichinhos.» E pensou: «Andais a dançar aqui no espeto, minhas pobres avezitas. Mas agora chegou a hora que alguém vos vai comer; e se fordes comigo, ainda é a melhor coisa que vos pode acontecer. Mas podeis ficar descansados que, desde as pernas, pescoço, asas e até os ossos, sereis comidos consoladamente. A vida foi demasiadamente cruel para vós, minhas pequenitas.»

Catanada fungava suavemente. De vez em quando, os frangos paravam no ferro, altura do empregado os pincelar com um molho especial, e voltavam outra vez a girar no ferro para a frente. Por fim, chegou a sua vez e Catanada pediu dois frangos como se quisesse ficar bem aviado. Quinze minutos depois, Catanada emergiu da rua e entrou no apartamento de Pipocas. Os pequenos frangos, assados e em bocados, iam embrulhados numa saca de plástico. Ainda a noite não tinha entrado, puseram a mesa com apetrechos. O arrastar da mesa produziu um ruído rasgado. Pipocas e Catanada, bem comidos e bebidos, sorridentes e felizes, estavam sentados voltados um para o outro, e riram-se constantemente. Tinham fumado um charuto de Havana, mas, agora, o fumo que voava através do espaço da cozinha espalhava-se adiante pelo aposento. Para ficar mais perfeito o convívio, o telefone começou a iluminar no mensageiro. Apenas alguns segundos passaram para cair algumas mensagens. Pipocas ouviu rápido de quem eram os envios.

— Está-se a ver que elas querem — disse Catanada. — Pensa nas rapidinhas que curtimos na Xangô. Isto aqui é que vai ser malhar.
— Pois vai. Durante anos curti nas pensões; agora tenho o apartamento. Não posso dormir aqui todas as noites.

Catanada detestava perder uma.

— É isso mesmo que tenho estado a pensar. Porque não metes aqui uma prostituta? — sugeriu.

Pipocas bateu violentamente com a mão na mesa.

— Ó, pá! — exclamou. — Porque é que eu não pensei nisso à mais tempo?

A ideia tornou-se mais atraente.

— Mas depois quem é que toma conta dela?
— Tomo eu. Dou-te dez contos para as despesas do mês.
— Vinte — insistiu Pipocas. — A prostituta consome mais. A despesa dobra.

Catanada aceitou, refilando. Mas teria aceitado de qualquer forma, só para não se separar do homem que tinha propriedades, e ele aspirava chegar a essa ascensão.

— Ficamos então acordados — finalizou Pipocas. — Alugas tu a prostituta. Eu hei-de ser um bom compincha, Catanada. Não te deixarei ficar mal. Vou mandar fazer uma chave dupla.

Nunca Catanada, exceptuando o ano que viera da tropa, tivera vinte contos. Porém, pensou, que antes de ter de pagar as despesas ainda se passava trinta dias, e quem sabe o que pode acontecer nesse prazo. Gingavam nas cadeiras, sorridentes, junto da mesa. Uns momentos depois, Pipocas saiu por um bocado, mas, no caminho, comprou uma garrafa de uísque e, utilizando a cabine telefónica, atraiu duas matronas prostitutas para seu apartamento. Catanada, que ia a sair da casa de banho, ouviu a algazarra e sorriu todo contente.

Pipocas caiu-lhe nos braços e pôs-lhe tudo à sua disposição. Mais adiante, depois de Catanada ter colaborado, dispondo de uma das prostitutas e de metade do uísque, houve uma bela cena de abandalho. Pipocas deu um peido e Catanada ficou com a camisa cheia de leite. As prostitutas assistiam à cena lançando risos histéricos e dando pontapés naquilo que estava mais a jeito. Por fim, Pipocas levantou-se do chão e deu uma patada no cu de uma das prostitutas, que saiu do apartamento a coxear como uma rã. A outra roubou dois copos de cristal e seguiu atrás da primeira. Durante alguns minutos, Pipocas e Catanada carpiram a traição das mulheres.

— Tu não conheces o calibre destas cabras do ataque — disse Pipocas prudentemente.
— Sei, mais ou menos — confirmou Catanada.
— Não sabes nada
— Sei, sei.
Aldra.

Uma paragem, embora não muito longa. Depois disto, Pipocas e Catanada sentiram-se mais relaxantes, mas nenhum se importou quem dera mais coça nelas, visto as excitações os terem estoirados. O silêncio sossegou-os, a respiração foi abrandando, à medida que os corpos arrefeceram. O sinal de televisão extinguiu-se na sua emissão. O apartamento ficou silencioso, envolta em paz.

Saturday, October 1, 2011





Prefácio
    …



Esta é a história de Pipocas, dos seus amigos e da sua herança. Esta história conta como os três se tornaram inseparáveis, de tal modo que, na terra de Marco de Canaveses, quando se comenta da herança de Pipocas, não se tem em ideia uma avaliação tão aproximada do valor real que ela engrossa. Esta é a história de como esse grupo de rapazes se constituiu, de como cresceu e se transformou numa sábia e inteligente organização.

Esta história trata das façanhas dos amigos de Pipocas, do bem que praticaram, das suas borgas e dos seus sacrifícios.

Em Marco de Canaveses, essa pequena povoação do distrito do Porto, sabem bem estas coisas, passam-nas de umas para as outras e, normalmente, acrescentam-lhe uns pós. É bom que este ciclo seja anotado no papel para que, um dia mais tarde, os estudiosos, ao ouvir contar as lendas, não possam dizer, tal como fazem do poeta Bocage, do Gungunhana, e de Zé do Telhado: «Não houve nenhum Pipocas, nem nenhum grupo de amigos de Pipocas, nem nenhuma herança, nem nenhumas casas.

Pipocas é um ídolo da População e os seus amigos são símbolos primitivos da fortuna, do azar e da sorte. Esta história destina-se a evitar agora e sempre, os sorrisos trocistas das bocas de amargos eruditos.



CONTOS DE RATAZANA
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1.Episódio
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                                           A TRUPE DE PIPOCAS

                          Ao chegar a casa vindo das vendas, Pipocas viu-se
                               a braços com a morte do pai que lhe deixou
                           uma herança; e logo pensou proteger os amigos


Quando o Pipocas, depois de se tornar adulto, regressou à terra, soube que tinha herdado uma fortuna. O patrício, isto é, o seu pai, tinha falecido e deixara-lhe uma grossa maquia e propriedades, em Marco de Canaveses e no Porto. Ao ter conhecimento disso, Pipocas sentiu-se um tanto vergado sob o peso da sua responsabilidade de proprietário. Antes mesmo de ir ver a sua conta bancária levou uma prostituta para o apartamento e deu-lhe três fornicadas de seguida sem tirar fora… O peso da responsabilidade deixou-o e o pior de si próprio veio à tona. Berrou, deu alguns apalpões num bar de alternos da Rua Freire de Andrade e teve duas faíscas nas vitoriosas conquistas. Ninguém se preocupou muito com isso. O seu gordo corpo e pesado dentro do seu potente carro acabaram por levá-lo ao porto do rio, onde, àquela hora nocturna, os seguranças da noite, de fatos pretos, estacionavam à porta duma casa de diversão a fim de manterem a ordem. Uma antipatia de momento, dominou o bom senso de Pipocas. Fez-se aos seguranças: insultou-os:

— Corja de rufiões; escória do cais da ribeira, azeiteiros, filhos de azeiteiros, — E gritou: — Fuck you, os dois!

Pôs a mão de fora e fez um gesto obsceno de dedo levantado. Os seguranças limitaram-se a arregaçar os punhos num sorriso, trocaram o passeio e disseram:

— Olá, Pipocas! Quando é que nos pagas um copo? Vem ter connosco agora. Temos sardas novas.

Pipocas sentiu-se na merda. Berrou:

— Ponde as línguas numa amêijoa! Os seguranças retorquiram:
— Adeus, Pipocas. Vai nanar.

Pipocas ficou na lua. Voltou à rua Freire de Andrade, e, à medida que a subia, ia lançando blasfémias aos transeuntes. Na segunda rotunda, um porteiro chamou-o. A grande simpatia que Pipocas sentia pelos homens das portas fê-lo parar de repente. Se não tivesse parado depois de o porteiro o chamar, não teria perdido umas seis horas. Mas, assim, passou, um tempo sentado na mesa dum cabaré do Porto, ora a fazer chupões marcantes nas camareiras ora a pensar na vida que levava nas vendas. Muito gozo lhe dava o tempo que passava naquelas casas do prazer. De vez em quando, lá punham uma striper a entreter a noite, mas a maioria das vezes o barulho mantinha-se estagnado e Pipocas ficava sisudo. A princípio, as camareiras ainda o chateavam um pouco, mas como se foram habituando ao gosto da sua língua, e ele se foi acostumando às suas carícias, passaram a viver em comunhão. Pipocas arranjou então um joguinho sarcástico. Dava um chupão numa camareira, pagava-lhe uma bebida, fazia-a desandar e chamava a «next». Em pouco tempo tinha a mesa decorada com copos escarrapachados. Depois, pegava neles e punha-os debaixo do sofá. O empregado ficou escandalizado, mas não se queixou, visto Pipocas ter a despesa já incluída na sua conta. Uma hora em que havia muito público na sala, a striper entrou na mesa de Pipocas e bebeu duas garrafas de Moêt et Chandon. Minutos depois saiu para ir dançar para a pista e Pipocas foi com ela. Era alegre a dança. Deixaram-se ficar aos pulos na pista do cabaré, onde dançaram “Ó Malhão, Malhão”, até o disco-jockey trocar de música e os por dali a andar. Quando, cerca das seis horas da manhã, o sono intermitente do cansaço o abanou, Pipocas decidiu pagar a despesa e enfiar-se no apartamento durante o dia para escapar ao calor. Deitou-se ao comprido e espreitando por dentro dos lençóis como uma raposa ciente de estar no melhor sítio. Ao meio da tarde, recuperadas as forças que de si despendera, saiu do apartamento e foi tratar da vida. E fê-lo sem problemas. Foi sentar-se num banco de um snack-bar.

— Tem aí carne de vazio para fazer um prego no pão para um gordo? — perguntou ao cozinheiro.

E, enquanto o refinado cozinheiro cortava o bife, Pipocas comeu dois ovos cozidos, dois bolinhos de bacalhau, uma vasilha de batatas fritas e embutiu dois príncipes.

— Um é pouco. Faça já outro — disse.
— Não perde tempo. Eu faço-os quantos você quiser.

Pipocas sentiu-se mais tranquilo em relação ao apetite que trouxera. Se o apetite o devorava daquele modo, nesse caso estava no local certo. Pegou no carro, deu voltas à cidade e ultrapassou uma mão de sinais vermelhos e entrou numa loja de conveniências para comprar uma garrafa de uísque e salgadinhos, e retirou-se para a terra a fim de tratar de negócios. O fim da tarde estava azul vivo e quente. O sol, qual brando, estava fixo dos espaços celestes que, marcava os limites de Marco de Canaveses. Pipocas levantou os olhos e dirigiu o carro para o refúgio da cabana do campo. Adiante topou um indivíduo de andar apressado e logo reconheceu o passo apressado do seu amigo Catanada. Pipocas era um amigo do seu amigo, mas lembrou-se de que comprara uma garrafa de uísque e umas sacas de salgados e ficara sem dinheiro, menos os dois cheques dos clientes.

«Vou fingir que o vou atropelar», pensou e decidiu. «Vai ficar como se estivesse a afogar cheio de ganas e de outras coisas mais.»

Então, de repente, Pipocas reparou que Catanada apertava maciamente a mão contra o pescoço.

— Olá, Catanada, Catanadazinha! — gritou.

Catanada atrasou mais o passo. Pipocas parou numa bolina desenfreada.

— Catanada, ó Catanada, amigo! Nunca mais perdes o vício de andar apressado?

Catanada olhou com admiração a surpresa e aguardou. Pipocas aproximou-se nas calmas, embora se notasse na sua voz uma entoação entusiasmada.

— Andei a pensar em ti, Catanada, ó Catanadazinho, amigo mais querido entre todos os amigos bons que eu tenho. Eu procurei-te porque tenho aqui dois pequenos cheques que os clientes me pagaram, e um saco de aperitivos e uma garrafa de uísque do outro mundo. Serve-te aqui, do meu lanche, ó Catanada querido.

Catanada encolheu os ombros.

— Sem problemas — murmurou, seco.

Entraram juntos na cabana. Catanada estava surpreendido. Por fim, parou e voltou-se para o amigo.

— Pipocas — perguntou numa voz quente —, como é que adivinhaste que eu tinha um apetite devorador debaixo da garganta?
— Apetite? — exclamou Pipocas. — Tu tens apetite? É capaz de ser bom para alguma velha histérica — prosseguiu timidamente. — Talvez estejas à espera que caia alguma do ar. Queres lanchar ou não? Eu sei sempre ao certo o que os amigos consomem. Eu não estou com muita sede. Fico muito feliz em te dar do meu uísque que aqui trago, dos salgadinhos, mas, com respeito aos meus cheques, conto contigo mesmo.

Catanada respondeu-lhe com firmeza:

— Pipocas, não me importa de cambiar os cheques, se não tiver para os dois, tenho para um. Põe aqui o uísque, Pipocas. Põe de maneira que eu o veja antes que tu o bebas todo.

Pipocas, então, trocou de conversa:

— Vou primeiro passar os salgadinhos para as tigelas e tu trazes os copos daquele móvel. Puxa para aqui as cadeiras. Vamos ficar onde a gente veja bem a porta.

Armaram uma mesa e comeram os salgados. O uísque descia rapidamente na garrafa. Depois de terem comido, sentaram-se frente um ao outro, bebendo pequenos goles, suavemente, como moscas moribundas, o líquido da garrafa. O calor desceu sobre eles e pôs-lhes as t-shirts escuras de suor. À sua volta a ventoinha refrescava levemente entre os móveis. Instantes depois a solidão baixou sobre Pipocas e Catanada. Pipocas pensou nos amigos que amava.

— Onde anda o Pascácio? — perguntou, acendendo um cigarro e deitando fumo para o ar. — No bairro, com a prostituta — respondeu a si próprio, ao mesmo tempo que mandava uma bola de fumo contra a parede e deixava estender as pernas, desalentado. — Com a prostituta do vício. Com a prostituta num bairro municipal. Dentro duma casa passam pessoas que não o vêem e não sabem que ele está ali.

Voltou de novo as pernas para cima.

— Onde anda o esponja do Very nice?— Na pub — respondeu Catanada. — O Very nice palmou uns patacos e foi embebedar-se no meio dos amigos; os patacos aqueceram-lhe, Very nice esticou e, tac!, está de cama. Agora está no piano a curá-la por duas semanas.

Pipocas esmagou a ponta do cigarro no cinzeiro e mudou de conversa, pois entendeu que havia assunto a mais. A solidão, todavia, ainda pesava sobre ele e exigia uma saída.

— Aqui estamos nós… — começou por dizer.
— … os nossos corações solitários — acrescentou Catanada, com prosa.
— Não, isto não é nenhum recital poético — disse Pipocas. — Aqui estamos nós, sem um mimo. Damos o cabedal ao manifesto e agora nem uma carícia para nos consolar.
— Nunca falaste tão acertado — acrescentou Catanada, solidário.

Sonhador, Pipocas encheu o copo até Catanada lhe tocar no cotovelo e lhe apontar a medida.

— Isto faz-me recordar — disse Pipocas — o caso de um azeiteiro que era dono de duas prostitutas de rua… — Ficou a olhar. — Catanada! — exclamou. — Ó Catanadazinho amigo! Já me esquecia. Recebi uma herança em dinheiro. E umas casas.
— De azeiteiros? — perguntou Catanada, esfrangalhado. — És um mentiroso e um regador — acrescentou.
— Não, estou a falar verdade. O meu patrício morreu. Agora, sou o herdeiro. O único.
— O único — retomou Catanada, realista. — Onde estão as casas?
— Aqui em Marco de Canavezes e no Porto.
— E essa herança em dinheiro chega para alguma coisa?

Pipocas levantou-se rapidamente, saturado pela comoção.

— Eh, pá! Tinha-me esquecido que tenho que ir ao banco.

Catanada continuou sentado em pause e imerso. O seu rosto tornou-se abatido. Atirou a ponta dum amendoim para o chão e observou as formigas aproximarem-se freneticamente por entre elas e morder. Durante uns minutos olhou minuciosamente para o rosto de Pipocas; depois, suspirou ruidosamente e tornou a suspirar.

— Agora acabou — disse melancolicamente. — Os belos tempos já lá vão. Os teus amigos vão ter pena, mas as penas não servirão de nada.

Pipocas pôs a garrafa no chão; Catanada agarrou nela e pô-la entre mãos.

— Mas agora acabou o quê? Que pretendes tu dizer com isso?
— Não é a primeira vez — continuou Catanada. — Quando uma pessoa é remediada, logo pensa: «Se eu fosse rico ajudava os meus amigos.» Mas venha lá a riqueza que lá se vai a vontade. É o que se passa contigo, meu amigo dos outros tempos. Agora estás em alta. Vais esquecer-te dos amigos que contigo partilharam o bom e o mau, até a solidão.

As palavras de Catanada tornaram-se tristes para Pipocas.

— Eu não sou dessa raça! — exclamou. — Eu nunca te esquecerei, ó meu bom amigo.
— Isso dizes tu agora — disse Catanada com indiferença. — Mas, quando tiveres o dinheiro à mão de semear, vais ver no foguete em que te tornas. Catanada continuará a ser um simples empregado do banco, ao passo que tu comerás com carrinhos de chá.

Pipocas ergue-se, trémulo, e encostou-se direito a uma cadeira.

— Catanada, juro-te por quanto é mais sagrado; o que tenho é para repartir. Enquanto tiver um tecto e nota no bolso para se gastar, o que é meu é teu. Dá um gole.

— Tenho de ver para crer — volveu Catanada, numa voz sem ânimo. — Se isso se passasse como dizes, o mundo ficava surpreendido. Havia de aparecer por aí milhares de escritores a escrever esta história. E, além disso, o uísque foi-se.