Tuesday, February 9, 2021

 

                                       Um conto ao estilo de F. Abraão

4

                                                                                                               

PARTE 1

                                    OS INCOMPATÍVEIS

 

   No primeiro dia, Óscar aguardou com impaciência a hora do recreio. Assim que a campainha tocou, dirigiu-se para o pátio das raparigas para falar a Bianca. Um bando de raparigas aos berros não foi suficiente para o afugentar e tornou-se necessária a intervenção de uma professora para que se fosse juntar aos rapazes.

   À hora do almoço, não conseguindo contatar com ela, porque o pai a foi buscar no cabriolé de teto de abrir para a levar para casa. Óscar resolveu esperá-la à porta, quando acabaram as aulas. Bianca saiu, rodeada pelas colegas. Resolvera compor uma atitude e fingiu que não via Óscar. Ela era a aluna mais bonita, mas é pouco provável que Óscar o tivesse notado.

   O pequeno bando pôs-se em marcha. Óscar seguia atrás, a quatro passos de distância e nada embaraçado com as piadas que as miúdas lhe atiravam de vez em quando. O grupo acabou por desfazer-se e Bianca entrou em casa.

   Óscar sentou-se à beira do passeio. Passado alguns minutos, a porta abriu-se e Bianca surgiu. Atravessou o passeio e contemplou Óscar.

   - Que é que queres?

   Óscar ergueu para ela os seus tristes olhos.

   - Tu não estás noiva?

   - Palerma – disse ela.

   Ele fez um esforço para se levantar.

   - Ainda teremos de esperar muito tempo para nos podermos casar – observou ele.

   - Quem falou em casamento?

   Óscar não respondeu. Talvez não tivesse ouvido. Puseram-se a andar lado a lado. No outro extremo do terreno, reinava uma penumbra acolhedora e segura. Bianca sentou-se no chão, com a saia longa com botões. Depois, cruzou as mãos em cima dos joelhos, como se fosse rezar.

   Óscar sentou-se ao lado dela.

   - Ainda teremos de esperar muito para nos podermos casar – repetiu ele.

   - Nem tanto como isso – disse Bianca.

   - Quem me dera que pudesse ser já.

   - Pouco falta. – disse Bianca.

   Óscar perguntou:

   - Achas que o teu pai dará o consentimento?

   Ela nunca tinha pensado nisso. Voltou-se e olhou para Óscar.

   - Talvez não precise de lhe pedir.

   - E a tua mãe?

   - Deixa lá os pais em sossego – disse ela. – Achavam logo que não estava bem ou que era esquisito. Tu não és capaz de guardar um segredo?

   - Está visto que sou. Não há como eu para guardar segredos. Já tenho alguns.

   - Então põe este ao pé dos outros.

   Óscar quebrou um pauzito e traçou um risco na terra negra.

   - Bianca, sabes como é que nascem os bebés?

   - Sei – disse ela. - Quem foi que te explicou?

   - Foi um amigo de meu pai. Ele contou-me tudo. Acho que teremos de esperar muito para poder ter bebés.

   - Não tanto como pensas.

   - Um dia, havemos de ter a nossa casa – disse Óscar. – Entrámos, fechamos a porta e ficamos à nossa vontade. Mas ainda falta muito tempo.

   Bianca estendeu a mão e tocou-lhe no braço.

   - Não te preocupes com o tempo. Isto aqui é como se fosse uma casa. Podemos fazer de conta que vivemos aqui, enquanto tivermos de esperar. Tu serás o meu marido e poderás tratar-me por «minha mulher».

   Óscar remexeu os lábios e pronunciou em voz alta:

   - Minha mulher?

   - Assim sempre nos vamos treinando – disse Bianca.

   O braço de Óscar estremeceu sob a mão dela. Bianca retirou a mão e colocou-a em cima do joelho com a palma virada para cima.

   - Enquanto nos vamos treinando, talvez pudéssemos fazer outra coisa – lembrou Óscar, de repente.

   - O quê?

   - Talvez tu não gostes disso.

   - Mas o que é?

   - Podemos fazer de conta que tu és a minha mãe.

   - Isso não custa nada – disse ela. – Queres começar já?

   - Está bem – aprovou Óscar. – Como é que fazemos?

   - Vou mostrar-te.

   Bianca começou a falar com voz mimalha:

   - Vem, meu amorzinho. Deita a tua cabecinha nos joelhos da mamã. Anda, meu filhinho, para a mamã te embalar.

   Enquanto dizia isto, segurava-lhe na cabeça e Óscar encostou-lhe a cabeça e Bianca ia-lhe fazendo festinhas na cara e penteava-lhe os cabelos soltos.

   - Meu bebezinho adorado – disse Bianca, - fala-me da tua namorada?

   - Que queres saber dela?

   - O que tu pensas. Ela é demasiada fraca para suportar o que tu possas suportar?

   Óscar disse:

   - Não é isso, mamã. Ela é boa, de verdade. Nunca faz mal a ninguém. Nunca diz

mal seja de quem for. Nunca se queixa e é forte. Ela não é má por natureza. Não gosta de jogar às casinhas, mas fá-lo sempre que é necessário.  

   - Tu gostas da tua namorada, não é verdade?

   - Gosto sim. E ás vezes faço-lhe mal. Engano-a, induzo-a em erro. Às vezes até a pico sem motivo.

   - E depois sentes-te infeliz?

   - Pois é.

   - A Bianca nunca se sente infeliz?

   - Não sei. Quando pisco os olhos às colegas no recreio, parece ficar enciumada. E uma vez quando lhe quis pôr uma mão no peito, ela chegou a dar-me uma bofetada.

   Bianca comentou com espanto:

   - Porque te bateu a Bianca?                   

   - Não sei se devo dizer.

   - Então, não digas.

   - Não foi nada de importante. Sabes, mamã, eu não quero ir à igreja. Mas a Bianca quer. Eu disse-lhe que nunca me casaria e que talvez me retirasse do mundo.

   - Como um buda? E tu não queres casar na igreja?

   - Não, mamã. Não, mamã. Prometi ao Santo Inocente!

   - E a Bianca não gostou que tu lhe pusesses a mão no peito dela?

   - Pois não. Ficou doida varrida. Às vezes põe-se assim. Pegou nos meus óculos de sol, atirou-os para o chão e desfez-lhos a pontapés. E depois disse que tinha desperdiçado metade da sua vida por minha culpa.

   Bianca riu-se. 

   - Podias ter aproveitado a oportunidade para lhe roubares a virgindade.

   Óscar manteve-se calado e Bianca ficou inquieta.

   - O que foi? Perdeste a língua?

  Óscar contemplava o pôr do sol. Bianca perguntou, extremamente embaraçada. 

   - Ficaste zangada comigo? – (E acrescentou, para ver a reação): - Meu marido.

   - Não, não estou zangado contigo. Estava só a magicar numa coisa.

   - O que é?

   - Uma coisa.

   Bianca continuou, imperturbável:

   - Gostavas de casar?

   - Mas que parvoíce – disse Óscar. – Claro que gostava. Toda a gente gostava. Estarás tu a ver se me magoas? O meu pai já o tem tentado e, depois, pôs-se a rir.

   Bianca desviou o olhar para o sol poente.

   - Tu disseste-me que era capaz de guardar um segredo.

   - Pois claro que sou.

   - E não terás nenhum no género: «se eu disser o meu segredo, ao inferno irei ter?»

   - Tenho, tenho um.             

   - Então diz-me o que é, Óscar.

   E a palavra de «Óscar» parecia uma carícia.

   - Digo-te o quê?

   - O maior segredo que tu tiveres.

   Óscar recuou, inquieto.

   - Não posso – disse ele. – Com que direito mo pedes? Nunca o direi a ninguém.

   - Vamos, meu filhinho, conta tudo á mamazinha – sussurrou ela.

   Os olhos de Óscar mostravam grande exaltação de fúria.

   - Já não tenho a certeza de querer casar contigo. – disse ele. – Acho que vou

para casa.

   Bianca pôs-lhe a mão no pulso e ali a deixou ficar. Quando falou, a voz readquirira o tom natural.

   - Era para te experimentar. Já vi que sabes guardar um segredo.

   - Porque fizeste isso? Agora fiquei furioso. Até me dói o coração.

   - Tenho a impressão de que te vou confiar um segredo – disse ela.

   - Ora vejam! – escarneceu ele. – Então eu é que não sabia guardar segredos? 

   - Eu estava a ver se me resolvia – disse ela. – Mas acho que te vou dizer porque te faz bem. Há-des ficar contente.

   - E quem foi que te pediu para não contares?

   - Ninguém. Eu é que tinha resolvido.

   - Isso já é outra coisa. Então o que é?

   Bianca disse docemente:

   - Lembras-te daquele dia em que fomos a tua casa?

   - Aí não, que não me lembro!

   - Pois fica sabendo que adormeci no cabriolé e, depois tornei a acordar, mas os meus pais não deram por nada. Os meus pais iam a conversar e não viram a tua mão descair pela minha saia e apalpar a minha perna.

   Óscar disse em voz rouca:

   - As minhas mãos estavam nos bolsos.

   - Isso dizes tu. Pensavas que eu ia a dormir, mas não…

   Bianca continuou:

   - Não seria estupendo se pudéssemos reviver a cena? Supõe que a tua mão ganhou

o sentido ou qualquer coisa assim. Já li uma história no género. Podia tornar a acordá-la e fazê-la recuperar o sentido.

   Bianca deixara-se empolgar pela maravilhosa história. Óscar disse, com ironia:

   - Hei-de perguntar à mão.

   - Óscar – observou ela em tom severo, - o que eu te contei é segredo.

   - Quem disse que era?

   - Fui eu. E agora repete comigo: «Se eu disser o meu segredo, ao inferno irei ter.»

   Ele hesitou uns instantes e, depois repetiu:

   - Se eu disser o meu segredo, ao inferno irei ter.

   - Agora, cospe na mão… Assim…. Está bom. Agora, dá-me a tua mão…. Estás a ver? Agora misturamos o nosso cuspo e limpamos a mão ao cabelo.

   Executando o ritual, Bianca disse com a maior serenidade.

   - Conheço uma rapariga que contou um segredo depois duma jura igual a esta e morreu afogada num poço.

   O sol desaparecera, levando a sua luz brilhante. Bianca disse:

   - Eles vão me esfolar viva. Anda, despacha-te. O meu pai deve estar à minha espera com a trela do cão para me bater.

   Óscar olhou-a, incrédulo.

   - Para te bater? Costumam te bater?

   - O que é que julgas?

   Óscar exclamou apaixonadamente:

   - Eu que os apanhe! Se eles te quiserem bater, diz-lhes que os hei-de matar.

   Os arregalados olhos castanhos lançavam chispas.

   - Ninguém tem o direito de bater na minha mulher.

   No meio do escuro que reinava debaixo das ramagens das árvores, Bianca passou os braços pelo pescoço de Óscar e beijou-lhe a boca aberta.  

   - Querido, gosto muito de ti, meu marido – disse ela.

   Depois voltou-se e saltou, levantando as saias acima do joelho e mostrando a renda da combinação que esvoaçou quando largou a correr para casa.


(Fim do 1º ato.)