Monday, June 18, 2012



        
CONTOS DE RATAZANA
______________________




16. Episódio



Da tristeza de Pipocas, para a noite na casa do fado-vadio. Como o Faísca foi notícia


Depois do seu delírio, o Pipocas voltou para casa e para os seus amigos. Vinha demasiado cansado. A sua fúria fora tocada pelos dedos ásperos da violenta experiência. Começou a viver de uma maneira sóbria, levantando-se da cama tarde e a más horas, só saindo de casa depois de comer para ir para a loja. As conversas zumbiam à sua volta, ele ouvia-as, mas não se ralava. A Xanana Maluca teve uma rápida e cobiçada rede de amantes e em Pipocas não se produziu a mínima emoção. Quando, uma noite, Artur Bófia se enfrascou e se meteu no apartamento na cama dele, foram Catanada e Pascácio que tiveram de o tirar de lá, tão sóbrio o Pipocas se encontrava. Quando Simão Simãozinho, emborrachado e com uma garrafa de vinho, festejou uma vitória do Benfica, já muito fora de época, partiu um vidro e foi de cana, não conseguiram sequer atrair o Pipocas para a discussão habitual do caso, embora os pormenores fervilhassem ao seu redor e o seu parecer fosse entusiasticamente solicitado. Não tardou muito que os amigos não começassem a ficar preocupados por causa dele.

— Está pesado — disse Catanada. — Está feio.

Very nice sugeriu.  

— Num mês, o Pipocas gozou tudo o que tinha para gozar numa vida toda. Fartou-se de malhar e fartou-se de prazeres.

Em vão os amigos tentaram tirá-lo da gruta da sua sobriedade. Ao fim da tarde, no quintal, contavam as histórias mais bizarras que conheciam. Narravam os pormenores do quotidiano do Marco de Canaveses e Catanava pesquisava todas as freguesias do concelho à procura de notícias e trazia para o quintal tudo quanto tivesse o mínimo interesse para o Pipocas; mas nos seus olhos lia-se a idade e a moleza.

— Tu não andas fixe — insistiu de novo Very nice. — Há qualquer problema dentro de ti.
— Não — replicava o Pipocas.

Repararam que deixava as moscas pendurarem-se nos cabelos durante algum tempo e que, quando as enxotava, o fazia desajeitadamente. A pouco e pouco, a boa harmonia, a risada pronta foram desaparecendo da casa do Pipocas e precipitaram-se na larga fossa da sua falta de ação. Oh, que triste dava ver esse Pipocas que lutara por causas perdidas ou de qualquer outro género; esse Pipocas que era capaz de beber até mais não; esse Pipocas que respondia ao apelo do amor como um leão enfurecido! Agora passava o tempo sentado na loja, de óculos gucci, os joelhos esticados para a frente, os braços caídos, a cabeça erguida para a frente como se nela houvesse um escuro e gordo pensamento. Nos seus olhos não se lia o prazer, nem o desgosto, nem a alegria nem a dor. Triste Pipocas, como a vida te abandonou! Aqui estás sentado como o primeiro homem antes de a balança atingir o seu máximo de cento e trinta quilos; e como o último, depois de a balança se ter avariado. Mas cuidado, Pipocas! Não estás só. Os teus amigos estão atados a esse teu estado! Olham para ti por um olho fechado. Vê como eles sofrem! Acorda para a vida, Pipocas, para que eles vivam de novo! Foi assim, mais ou menos, embora não em palavras tão bonitas, o que Catanada disse. Depois, erguendo um jarro com chã de penas de melro, deu-a ao Pipocas.

— Bebe lá — disse —, limpa-me essas tripas.

Pipocas pegou no jarro e bebeu o chá. Em seguida voltou à sua preocupação e tentou de novo encontrar o seu ritmo emocional.

— O que é que te dói? — perguntou Catanada.
— Não me dói nada — respondeu o Pipocas.
— Estás doente, Pipocas?
— Não.
— Então o que é que te faz tão mole?
— Sei lá — disse o Pipocas. — Sinto-me bem assim. Não quero fazer nada.
— Talvez fosse melhor levarmos-te a um médico. Que dizes?
— Já vos disse que não estou doente.
— Então olha — exclamou Catanada. — Vamos dar uma festa em tua honra lá na adega do Ratazana. Todos os moradores vão estar presentes. Temos guitarristas, fado-vadio, comida e vinho à discrição! Há para ai umas dez ou vinte sardinhas a cada e pimentos. Não queres vir?

Pipocas respirou fundo. Voltou-se por um momento para o limoeiro alto e carregado. Talvez ele murmurasse às folhas do limoeiro uma promessa escondida. Voltou-se rapidamente para os amigos. Havia febre nos seus olhos.

— Claro que quero ir. Despachem-se. Tenho fome. Há lá raparigas?
— Montanhas delas. Todas as raparigas.
— Então contem comigo.

Catanada vazou-lhe outro jarro de chá e observou-lhe o rosto enquanto o líquido desaparecia pela goela abaixo. Os nervos ganharam uma certa energia. Lá do fundo, o velho Pipocas emergiu por um momento para a vida. Matou uma mosca com um sopro digno de um mestre. Lentamente, um sorriso vincou no rosto de Catanada. Mais tarde reuniu os amigos todos, Pascácio, Very nice, Artur Bófia, o Faísca, João-Ninguém e Nino Cardoso. Levou-os para os anexos para o fundo do quintal.

— Dei-lhe dois jarros de chá de penas de melro e fez-lhe bem. Do que ele precisa é de muito chá e talvez de um convívio. Onde é que se pode arranjar convívio?

Procuraram mentalmente todas as hipóteses em Marco de Canaveses, como cães perdigueiros numa corrida, mas não havia caça. Estes amigos eram amigos verdadeiros, capazes de tudo. Tinham amor por Pipocas. Por fim Very nice disse:
 
— No Ratazana canta-se agora o fado-vadio.

A mente dos amigos saltou como uma esfera, à procura de alguma coisa com curiosidade. Passaram-se alguns minutos antes que as suas baralhadas imaginações pudessem concretizar-se à alternativa.

— Mas, é uma ideia — raciocinaram eles em silêncio. — Uma noitada não era assim tão má... mas só uma noitada.

Os rostos revelavam o modo como, no interesse do Pipocas, os medos iam sendo vencidos.

— Vamos a isto — disse Catanada. — Amanhã vimos do trabalho e à noite levamos ao fado-vadio o nosso amigo Pipocas.

Quando, no dia seguinte, o Pipocas se levantou da cama e percorreu a rua em direção à loja, o seu optimismo estava em alta. Entrou na loja e sentiu-se, fino. Será uma mudança, Pipocas? Liberta-te do azar que te persegue? Já sentes os prazeres da vida? Sim. O Pipocas continua a ser o mesmo como o era antes umas semanas. Tal como, Marco de Canaveses, está bem diferente. Logo de manhã bem cedo espalhou-se o boato. «Os amigos do Pipocas vão ouvir o fado-vadio.» Falava-se neles na rua, em todos os lugares, e todos se apressavam a comunica-lo: «Os amigos do Pipocas vão ouvir o fado-vadio.» Fizeram-se alguns comentários de pouca valia. Havia meses que não acontecia nada de tão excitante no Marco de Canaveses. Durante toda a semana nem uma só pessoa se lembrou de falar em Xanana Maluca. Só ao fim da tarde vieram a lume notícias dignas de crédito, mas vieram de uma rajada.

«Vai os amigos do Pipocas ao fado-vadio.»
«Todo o mundo vai.»

Na sala da adega começaram a surgir modificações. O dono da adega limpou o pó do microfone e escolheu o guitarrista Pedro Simões e o viola Nel Garcia, os mais badalados que haviam. Saltara um raio e o Marco de Canaveses era um riacho. É que era uma mesa para sete amigos que iam dar uma festa em honra do Pipocas! Dito isto, até parece que o Pipocas só tinha sete amigos! A cozinheira desceu ao pátio e assou um cabaz de sardinhas e pimentos com tomates. Na ementa incluía também uma grande tarte de cereja. Por todo o Marco de Canaveses a guitarra e a viola fizeram ouvir os seus sons, ao serem experimentados.

«Rádio Marquinho e as notícias! Mais notícias da adega do Ratazana. Vão dar fado-vadio. Estão prontos. Serão pelo menos quinze escudos por pessoa. Vejam só se não vale a pena quinze escudos com vinho à disposição.»
     
O Papagaio não tinha garrafas para tanta gente. Toda a gente pelo mínimo bebia uma garrafa de vinho. O próprio Papagaio, apanhado na corrente da situação, disse à mulher:

— Talvez a gente lá vá fazer companhia a ele. Levo algumas garrafas para os meus amigos.

À medida que o dia escurecia, nuvens de entusiasmo caíram sobre o Marco de Canaveses. Fatos e vestidos guardados durante algumas épocas foram tirados dos cabides e pendurados ao ar fresco. Estavam cobiçados pelo caruncho, cheiravam um cheiro a naftalina. E o Pipocas? O Pipocas estava sentado como um homem meio cheio de gás, remexendo-se por tudo e por nada. Bem ele deu conta de que nessa noite a adega do Ratazana estava repleta de moradores do Marco de Canaveses. Bom do Pipocas! Pelo catorze pares de olhos observavam a porta da entrada. Antes de aparecer a comida levantou-se, ajeitou-se e saiu da sala em direção do quarto de banho. Mal voltou à mesa, apareceu a comida. Pratos de batatas, travessas com sardinhas a fumegarem, saladas de tomate e alface, tartes de cerejas que eram uma delícia! E veio a pinga, garrafas e garrafas dele. Martins desenterrou um pipo de cachaça do seu terreno de batata podre e levou-o para o oferecer a Pipocas. Por volta das oito os amigos começaram a puxar pelo ambiente, alegrando-o e incentivando-o, nas larachas. Riram e o cansaço largou-os. Estavam tão felizes que as lágrimas lhes chegaram aos olhos. As luzes apagaram-se e toda a gente se acomodou nas cadeiras. Depois, toca de acender velas e erguer os olhos para a cantadeira. E era ver os homens e as mulheres a fixar sem intermitentes os olhos no palco.

Mamã Rio, uma voz operária, avançou para o meio da sala e colocou-se ao meio da guitarra e da viola, cantando uma letra cheia de fado-vadio-puro. Tonito, esse reles indecente, espevitou a garganta soltando um grande berro e o dito: «Ah, leoa!» Berros, boas cantigas, vozes desgovernadas de homens e mulheres, a algazarra que todos em alvoroço faziam por toda a sala. Um carro da polícia apreensivo subiu a colina vindo do Marco de Canaveses, e abeirou-se da adega.

«Oh, é só um convívio! Claro que bebemos uma pinga de boa vontade. Não partem a cabeça a ninguém.»

A noite passou tensa de novidades. Devia haver algum motivo, alguma confusão. Homens puseram-se à pancada, lutando uns contra os outros. Mães deram instruções aos filhos e incentivaram-nos a ir à luta. Nunca houve tanta pancadaria. Atrás das mesas havia recém-fadistas, esperando ansiosamente as últimas pancadas. E as pancadas chegaram.

«Pascácio deu uma cabeçada no cliente por este fazer barulho.»
«Ratazana deu um pontapé no cão do Faísca.»

 Pancadaria.

«O cão voltou a atacar.»
«Catanada anda de mau humor.»

Fizeram-se algumas queixas de pouco relevo. Havia muito tempo que não acontecia nada de tão excitante no Marco de Canaveses. Quando os ânimos acalmaram, na adega do fado-vadio, ficaram só lá os da casa. O Pipocas e os seus amigos abandonaram o convívio e dirigiram-se rapidamente para casa. Perguntaram:

— Viram o Faísca?
— Vimos, passou por aqui há um bocado, ia a mancar.

Pipocas e Catanada procuraram juntos. Seguiram o rasto do amigo pelo carreiro escuro. De resto, Catanada não se lembrava do Faísca se ter pirado e dito onde ia. Até que o toparam no fim do carreiro. Estava iluminado pela fraca luz do local. Precipitaram-se para ele. Quando chegaram perto, o Faísca não se voltou. Eles pegaram-lhe pelos braços e levantaram-no.

— Faísca! Tás borracho?
— Um pouco tonto.
— Tonto como, Faísca?
— Tonto.
— Então, vens connosco?
— Se é pra ir, vamos lá.

Com o Faísca pelo meio, desceram o carreiro a correr. Muito antes de lá chegarem, já ouviam o endiabrado carro da polícia a passar por eles em speed. Os três chegaram todos cansados de correr. O Faísca levantou a cabeça e uivou como um lobo. Os amigos estenderam uma garrafa de vinho às suas mãos, e o Faísca bebeu tudo de uma golada só. Aquilo é que foi o convívio! Mais tarde sempre que alguém falava de um convívio falava de um convívio com entusiasmo, era tão certo como o Sol iluminar que havia alguém que dizia com veneração: «Foste àquele convívio lá na adega do fado-vadio?» Aquilo é que foi um convívio! Nunca mais alguém tentou fazer um melhor. De resto, tal coisa era impensável; foi de facto, um dia depois, o convívio do Pipocas era posto a umas alturas que o punham acima de todos os outros convívios jamais realizados. Qual foi o homem que saiu de lá nessa noite sem sequer levar um soco? Nunca houvera tanto soco; não foram dois a bater, mas montes deles em que participarem na pancadaria, lutando uns contra os outros. Oh, os femininos gritinhos de revolta e incentivo que se soltavam das gargantas das mulheres! E os amigos do Pipocas..., cantaram tanto que a voz baixou nas últimas cantigas. Os instrumentos tocaram tão alto que quase ficaram com problemas pulmonares como pilecas arruinadas dos pulmões. Também o Faísca tornou-se o bombo da festa. Diga no futuro um idiota pretensioso cheio de inquietação: «Viste o Faísca pedir àquela estrangeira para cantar? Viste ele andar à roda das mesas, como duas pombas? Viste como ele se comportou na noite do convívio?»

Algum dia um escritor porá num escrito, talvez, uma história fria e doentia do convívio. Possivelmente referir-se-á ao momento em que o Pipocas e os amigos, virando as mesas de pernas no ar, desafiaram tudo e todos para uma batalha campal. E poderá rematar: «Veja-se com frequência que uns matulões descontrolados são capazes de uma resistência e de uma brutalidade animal. Onde quer que o Pipocas e os seus amigos fossem, surgia uma grande loucura. Afirmou-se apaixonadamente no Marco de Canaveses, que o Pipocas e os seus amigos, só eles à sua conta, beberam seis garrafas de vinho cada. É preciso ter um bom arcaboiço. Dentro de alguns anos são capazes de dizer sessenta garrafas. Daqui a dez anos é possível aumentar o número e por aí adiante. A noite passou rapidamente. O Faísca não abrandou na sua violenta agitação. O Faísca, diz toda a gente do Marco de Canaveses, mudara totalmente de aspeto, desde que se infiltrara no grupo do Pipocas. Os seus olhos diminuíam tanto como mirones de um grilo. Lá estava ele, de pé, na sala da sua própria casa. Numa das mãos segurava a lata das moedas, e até essa tinha já aumentado.

— Quem quer dinheiro? — berrou. — Há alguém nesta terra que não tenha dinheiro?

As pessoas não tiveram vontade. Aquela pesada lata de moedas, tão cheia, deixara de se tornar a cobiça deles. O Faísca balanceou-a em volta dele. O som dos pássaros deixou de se ouvir e cessou. O cão que ladrava abrandou. A sala esfriou e o silêncio pareceu rugir no ar como um leão.

— Não há ninguém? — berrou o Faísca de novo. — Então, ninguém quer o meu dinheiro?

Os homens compadeceram perante os seus tristes olhos e olharam atraídos a trajetória que a garrafa descrevia no ar. E ninguém aceitou a oferta. O Faísca esticou-se. Dizem que por pouco o seu corpo quase ia parar no chão com a lata.

— Então irei dar aqueles que são amigos dignos do Faísca!

Encaminhou-se para a saída a passos largos, mas um tanto cambaleantes. O vinho fervia-lhe nos miolos. As pessoas, assustadas, abriram alas para o deixar passar. Saudou-os ao sair de casa. As pessoas ficaram paradas e escutaram. Ouviram-no adiante bradar o seu grito de dor. Ouviram a lata de moedas voar como um foguete pelo ar fora. Ouviram o barulho dos seus passos a descer o carreiro. E, depois, por detrás do muro, na ravina, ouviram o Faísca precipitar-se para a descida. Ouviram lançar o seu último grito e depois uma queda. E logo o silêncio. Durante um largo período de tempo as pessoas esperaram, sustendo a respiração para que o ar fluido do ar vindo dos seus pulmões não abafasse som algum. Mas em vão escutaram. A paz descera sobre a noite e o cinzento despontar do dia aproximava-se. Catanada foi o primeiro a quebrar o silêncio.

— Que teria sucedido? — exclamou.

E Catanada precipitou-se pelo carreiro fora. Homem arrojado, não havia medo que o detivesse. Os outros seguiram-no. Foram atrás do muro, onde se tinha ouvido os últimos passos do Faísca, e chegaram à beira da ravina, onde um difícil carreiro em esse descia até ao fundo daquele antigo curso de água seco. As pessoas que seguiam o Pipocas e Catanada viram-nos descer velozmente o carreiro. Lentamente, foram no encalço deles. Encontraram-nos debruçados sobre o Faísca que estava feito num molho. Tinha caído de sete metros de altura. O Pipocas acendeu um isqueiro.

— Parece-me que ainda mexe — berrou. — Vão chamar um médico. Tragam também o curandeiro Valério.

O povo dispersou-se. Dez minutos depois, um médico era acordado e tirado da cama por fanáticos amigos. Não lhe deram tempo sequer para respirar. Não! Foi empurrado para a saída com a sua maleta dos instrumentos. O curandeiro Valério, arrancado da cama, subiu ofegante a colina, sem saber ao certo quem ia atender. Entretanto, o Pipocas, Catanada, Pascácio e Very nice subiram o carreiro levando o Faísca e deitaram-no na cama. À volta dele acenderam velas. O Faísca respirava arduamente. O médico foi o primeiro a chegar. Deitou um rápido e suspeito olhar sobre eles e não levou muito tempo a examinar o Faísca. Já tinha terminado quando o curandeiro Valério entrou. No quarto de dormir para além do curandeiro Valério, o Pipocas, Catanada, Pascácio, Very nice, Artur Bófia, João-Ninguém e Nino Cardoso encontravam-se lá; e eles eram a família do Faísca. A porta do quarto estava, e está, fechada. Mas cá fora, onde os moradores do Marco de Canaveses se aglomeravam a ponto de se acotovelarem, havia rigidez e um silêncio infernal. O médico e o curandeiro trocaram um subtil olhar entre si. Quando o curandeiro Valério saiu do quarto, o seu rosto não alterava; mas, ao vê-lo, as mulheres desataram num ruidoso e tremendo pranto. Os homens bateram os pés no chão como cavalos de corrida e depois saíram. O dia despontava. O quarto do Faísca permaneceu de porta fechada.

Wednesday, June 6, 2012




CONTOS DE RATAZANA
______________________



15. Episódio



 Eis como o Pipocas se pôs a cismar e ficou amalucado. Como enganou o Papagaio, na venda da cabana



Quase todos os dias, de manhã cedo, o sol bate nas janelas do lado poente das ruas; e, de tarde, brilha no sentido oposto. Diariamente, o autocarro creme passa, barulhento, no seu percurso entre Marco de Canaveses e as localidades vizinhas. Todos os dias as casas comerciais abrem as suas portas para o público ávido de intenções o que aumentam o negócio. Todas as tardes, o vento sopra do monte e agita os pinheiros nas colinas. Os reformados à bica sentam-se nas pedras de cigarro na mão e no rosto vinca-se-lhes a paciência e o descaramento. Por cima do Marco de Canaveses, a rotina ainda se mantém inalterável, pois a Xanana não deixa de ter um indeterminado tipo de aventuras com o seu repertório de amantes de rápida substituição. É bem conhecido o facto de ela aceitar outra vez um homem há muito deixado de lado.

Na casa do Pipocas, as mudanças eram mais significativas. Os amigos tinham subido na vida que podia ter sido benéfica para toda a gente, principalmente para eles: levantar cedo de manhã, ficar agarrado ao trabalho e regressar com novidades para contar. O Faísca continuava a levar as latas do lixo e vender bugigangas no jardim do Marco de Canaveses, mas agora gastava com despesas os 10 escudos que ganhava todos os dias. De vez em quando os amigos lá arranjavam uma farra e lá vinha o vinho, as cantigas e as zaragatas para a acompanhar. O tempo ainda é mais complexo junto ao comércio do que em qualquer outro lugar, pois, além do girar do dinheiro e do movimento das vendas, há o bater do crédito mal parado, sobrepondo as margens dos lucros, e o subir e descer do negócio como os de uma grande tômbola.

Pipocas começou a sentir o andar do tempo. Olhava para os amigos e via que todos os dias as coisas se passavam da mesma forma. Quando de noite acordava na cama e concentrava os olhos no escuro, ficava assustado consigo próprio por ter acordado com o escuro. Na loja, olhando a rua, o Pipocas começou aos poucos a sonhar com os dias em que fora viajante; Durante o Verão dormira nas pensões; no Inverno, quando a chuva se fazia sentir, passara as tardes nos frescos bares de entretenimento. Sobre os seus ombros havia o peso da propriedade. Lembrava-se de como o nome de Pipocas era um nome de boa pronúncia.


Oh, as farras de sexo! As idas pela estrada fora para o apartamento no Porto com uma mal-arranjada rapariga de ocasião! O esconderijo da cabana quando um desgraçado perdido pedia ajudas. Bebedeira e borga, doce borga! Quando o Pipocas se lembrava desses velhos tempos idos, era capaz de sentir novamente na cabeça o bom gosto da fajardice atribulada e enchia-se de saudades. Desde que a herança o elevara na escala social, só raramente se metia em barafundas. Esborrachava-se, é verdade, mas não da mesma maneira vagabunda. Sobre os seus ombros havia sempre o peso das casas; sempre a diferença em relação aos seus amigos. Como começasse a ter uma expressão sombria, quando se sentava no quintal, os amigos pensaram que estivesse infeliz.

— Gemas batidas de ovos de faisão, fazia-te bem — sugeriu Catanada. — Mete-te no choco, Pipocas, que a gente acende umas velinhas ao Santo Protetor!

Mas não eram atenções que o Pipocas queria, era pândega. Durante uma temporada andou cismado, olhando fixamente para a frente, encarando com uma expressão brusca os seus queridos amigos e batendo as mãos enxotando as incómodas moscas que se lhe deparavam na frente. Por fim pôs termo às saudades. Uma manhã desapareceu. Meteu-se na carrinha em direção do monte e fugiu da circulação. Quando, ao fim da tarde, os amigos bateram à sua porta e deram pela sua ausência Catanada disse:

— Aqui anda saias. Está apaixonado.

Não pensaram mais nisso, pois toda a gente tem direito ao amor. Continuaram a viver como dantes. Mas, como passasse uma quinzena e o Pipocas não desse conta de si, começaram a ficar preocupados. Uniram-se em grupo, e foram ao monte procurá-lo.

— O amor é magnífico — disse Catanada. — Não se pode criticar um homem por ir atrás duma rapariga, mas uma quinzena é demais. Deve tratar-se duma rapariga com muito esplendor, para conseguir manter o Pipocas há uma quinzena fora de portas.

Pascácio comentou:

— O amor numa pequena quantidade é como um gole de uísque. Ambos em excesso faz um homem descontrolado. Quem sabe se o Pipocas não está descontrolado. Talvez essa rapariga seja temperamental de mais.

Very nice estava em desacordo total.

— Não é costume o Pipocas ausentar-se tanto tempo. É capaz de lhe ter dado alguma coisa de mal.

O Faísca levou o cão para o monte. Os amigos disseram ao jeco:

— Procura o Pipocas. Se calhar está a dar alguma troçada. O bom homem que às vezes te acolhe e abriga em sua casa é capaz de lhe ter dado alguma macacoa.

O Faísca acariciou-lhe as orelhas:

— Cão fiel e amigo, procura o nosso amigo.

O cão, porém, abanou o rabo alegremente, seguiu a pista de uma galinha-do-mato e foi atrás dela. O grupo andou até ao escurecer pelo monte fora, chamando o nome do Pipocas, procurando em sítios que eles poderiam ter escolhido para uma aventura. Conheciam os lugares onde um homem podia aventurar-se, mas não viram nem sombra do Pipocas.

— Talvez tenha ficado amalucado — prognosticou Catanada. — Se calhar foi alguma chatice que lhe deu volta ao miolo.   

No calor da noite fizeram uma viagem ao apartamento do Pipocas no Porto; tocaram à porta e esperaram. Ficaram um bocado em expetativa. Mas de lá de dentro não ouviram ruido nenhum. Catanada olhou rapidamente para Artur Bófia e depois teve uma ideia.

— Tu conheces os bares todos. Leva-nos até eles. Fazemos de conta que somos uma rusga policial.
— Temos de dar com ele — afirmaram os amigos uns aos outros, — não vá acontecer-lhe alguma ruindade. Temos de procura-lo por todas as casas até o encontrarmos.

Sacudiram a preguiça dos ombros. Todos os bares foram revistos e, então, começaram a ouvir boatos curiosos:

«Sim, o Pipocas esteve aqui ontem à noite. Oh, aquele bêbado! Oh, que fajardo! Vejam bem, o Pipocas atirou a camareira ao chão com um encontrão que lhe deu e sacou-lhe a garrafa de champanhe. Que pifo ele enfardou!»
«Sim, vimos o Pipocas. Tinha um buraco na camisa e estava a cantar: “Venham cá minhas pegas, vamos para o sofá coçar”, e a gente foi. Não tivemos medo. Ele parecia não estar lá a regular muito fixe.»     
    
Na Ribeira do Porto encontraram mais notícias do amigo.

«Ele passou por cá», disseram os empregados. «Queria embebedar toda a gente. O Bruno Chouriço mamou-lhe uma garrafa de uísque de 15 anos. Depois o Pipocas partiu os vidros da cabina da música e um segurança pô-la na rua.»

Continuaram calorosamente a seguir o rasto do seu endiabrado amigo.

— Martelão deixou-o na rua a noite passada — informou o gerente —, mas ele arranjou maneira de se pôr a lestes antes que chegasse a polícia. Quando o apanharmos damos-lhe uma coça.

Os amigos deram por terminada as buscas. Foram até à cabana e, com grande espanto seu, viram que o novo saco-cama do Pipocas, arrumado por Catanada nessa manhã, tinha sido usado.

— Agora é de rir! — exclamou Catanada. — O Pipocas está chalupa e em fúria. Se não o agarramos, ainda lhe acontece ir parar ao manicómio.
— Iremos à procura onde ele se terá metido — disse Very nice.

Catanada pôs a cabeça a refletir.

— A coisa não bate certa. Sempre que procuramos o Pipocas, ele já de lá saiu. Temos de proceder com inteligência e não como burros.
— Mas onde pensas que ele irá?

Imediatamente se abriu uma luz ao fundo do túnel no espírito deles.

— À adega do Papagaio! Mais cedo ou mais tarde, o Pipocas acabará por lá ir. E aí temos de o apanhar, para travarmos com esta loucura toda.
— Claro, claro — concordaram todos —, temos de ajudá-lo.

Dirigiram-se à adega do Papagaio. Este, contudo, já tinha a porta fechada.

— Estão a querer saber — gritou através do postigo — se vi o Pipocas? Ele veio-me cá com duas pulseiras e um relógio e eu dei-lhe meia caixa de uísque. Querem saber o que esse gordo fez depois? Injuriou a minha patroa, e a mim insultou-me do piorio, escorraçou os gatos aos pontapés e roubou-me a cana de pesca que eu tinha na arrecadação. — O tasqueiro fumegava de comoção. — Fui no seu encalço para ir buscar a cana de pesca e, quando voltei, estava ele na marmelada com a minha patroa! Pérfido, larápio, borrachão, é o que o vosso amigo é. Hei-de metê-lo nas grades.         

Os olhos dos amigos fizeram faíscas.

— Ó meu boi da Índia — disse Catanada serenamente —, olha como falas do nosso amigo que ele não anda bem.

O Papagaio fechou o postigo. Ouviram-no correr o ferrolho, mas Catanada prosseguiu, mesmo com o postigo fechado.

— Javardo! Se não fizesses falcatruas com o teu vinho martelado, estes casos não aconteceriam. Vê lá mas é se deixas de nos enlamear com essa língua de jacaré. Se não fores bom para ele e para nós, a gente abre-te essa barriga como um porco.

Dentro do postigo, o Papagaio nem tossia nem rugia, mas a ferocidade das palavras de Catanada fazia-o tremer de raiva e medo. Só ficou aliviado depois de ouvir os passos deles que se afastavam indo pelo carreiro. Nessa noite, depois de os amigos terem ido para a cama, tristes com a fraqueza nas pernas em baixo, os amigos sentiam a maior necessidade de se esticarem ao comprido para recuperarem forças para a etapa seguinte. Pela calada da noite, o Pipocas, a quem as sombras da noite ajudava a encobrir a sua passagem, introduziu-se em casa, silencioso como a sua própria sombra e, pesadamente, atirou-se para cima da roupa e assim ficou. De manhã, dirigiu-se resolutamente ao monte, e cavou outra vez. A casa ficou em estado de deserta. Por todo o lado, em redor, o silêncio tomara conta daquela área.

Dificilmente o rosto do Papagaio apresentava outras feições que não fossem a desconfiança e a cólera. No seu negócio de fabricante clandestino de bebidas a martelo, e no seu relacionamento com as pessoas da terra, o seu rosto socorria-se muitas vezes dessas duas feições. Além disso, nunca o Papagaio fora a casa de alguém. Todos o visitavam na sua casa. Por esse motivo, quando, de tarde, o Papagaio se dirigiu à cabana do Pipocas com um sorriso de feroz animal estampado no rosto, as crianças desataram a fugir para os pátios e puseram-se a espreitá-lo por detrás dos muros, os cães meteram o rabo entre as pernas e fugiram lançando grossos latidos e os homens, ao passar por ele, afastaram-se para o lado e fecharam os punhos para se defenderem de um doido. Nessa tarde o céu estava de cor cinzenta. O Sol, já há muito se tinha refugiado por detrás das nuvens escuras. O velho Rola, vendo o Papagaio sorrir, foi para casa e disse à mulher:

— Aquela besta acabou de tramar alguém e de o lixar. Tu vais ver!
   
O Papagaio estava feliz, pois levava dentro do porta-moedas um papel importante. Os seus dedos não largavam o porta-moedas vezes sem conta para lhe garantir que o documento ainda lá, se encontrava. Nessa tarde cinzenta, à medida que ia avançando, o Papagaio ia murmurando para si próprio:

— Ninho de corujas. Hei-de pôr cobro a essa peste dos amigos do Pipocas. Jamais lhes hei-de dar vinho fiado ou vender vinho em troca das coisas e ficar depois sem elas. Quando estão sós, não arrebitam cabelo, mas quando se juntam, parecem um bando de fariseus! Quando voltarem outra vez a fazer fajardices no monte, vão ver o que os espera. Hão-de saber que o Papagaio venceu. Pensam que me derrotavam, que me tiravam os tarecos de casa e a virtude da patroa! Hão-de ver que o Papagaio, o grande lutador, lhes vai dar água pela barba. Ah, sim, eles vão ver!

Assim murmurava o Papagaio enquanto ia andando apertando a mão no porta-moedas. Semelhante ao cinzento do tempo, o Papagaio aproximava-se da cabana do Pipocas. Lá dentro imperava a desolação. Os amigos não podiam alegrar-se nas cadeiras escaqueiradas, porque não havia de beber. Tinham trazido do vizinho o jornal sacado e estavam agora a ler apinhados em volta, e João-Ninguém, que viera visitá-los, contava as últimas da semana.

— Nino Cardoso — disse — já não é chefe na brigada da noite. Esta manhã, o comando distrital mandou-o para as multas.
— Eu até curtia ele — disse Catanada. — Quando um homem estava em apuros, o tipo trazia-lhe um baralho de cartas. E sabia mais truques do que cem jogadores juntos. Porque é que ele foi recambiado?
— É isso que vim cá dizer-vos. Como sabem, Nino Cardoso esteve muitas vezes na patrulha e era um guarda às direitas. Sabia como poucos como se deve controlar um quarteirão. Punha tudo a andar como devia ser. Só tinha um pequeno defeito. Quando bebia uísque, esquecia-se de que era chefe e embebedava-se, e depois tinham de levar com ele.

Os amigos concordaram com um aceno de cabeça.

— Eu sei — disse Pascácio. — Já ouvi constar que é difícil falar-lhe na ocasião. Esquece-se.
— Pois é — continuou João-Ninguém — Mas tirando esse aparte, é o melhor chefe que eles já lá tiveram. Bem, foi isto que vim cá dizer. A noite passada, no Porto, o Pipocas tinha uísque que chegava para uma dúzia de homens e bebeu-o todo. Depois pôs-se a escrever versos na parede. Estava carregado de dinheiro e comprou flores para oferecer a uma bailarina. Mas a bailarina não era uma mulher; era um travesti. De modo que teve de fugir.
— Mas o Pipocas — exclamou Catanada —, que anda por lá a fazer?
— O Pipocas — retorquiu João-Ninguém —, o Pipocas curte também, mas não para quieto em lado algum.

Os amigos suspiraram, aliviados.

— O Pipocas está a portar-se mal — disse Catanada com olhar grave. — A ser assim não vai dar bom resultado. Sempre gostava de saber onde é que ele foi arranjar o dinheiro?

Foi nesse preciso momento que o vitorioso Papagaio arrastou a porta e avançou a passos de general pela entrada da cabana. Irrequieto, o cão de Faísca, levantou-se do canto e aproximou-se, rosnando. Os amigos ergueram a cabeça e interrogaram-se uns aos outros. Artur Bófia agarrou no cabo da vassoura que ultimamente tinha sido utilizada contra ele. O andar pesado e confiante do Papagaio ressoou no chão da cabana. E, ele surgiu, sorridente. Não se mostrou fanfarrão, bem pelo contrário, mostrou-se tão amável como um gato e deu-lhes umas leves festinhas, como faria um bichano a brincar com uma mosca.

— Ah, meus queridos amigos — disse com suavidade, ao ver o receio instalar-se-lhes no rosto —,meus queridos amigos e fregueses! O coração parte-se-me ao meio por ter de dar tão amargas notícias àqueles a quem eu adoro.

Catanada ergueu-se de um salto.

— É sobre o Pipocas, está ferido? Diz-nos.

O Papagaio abanou suavemente a cabeça.

— Não, meus queridos meninos, não é sobre o Pipocas. O meu coração sofre, mas sou obrigado a dizer-vos que a partir de hoje sou o novo proprietário da cabana.     

Os olhos abriram-se-lhe de tamanha satisfação ao ver o espanto que as palavras tinham causado. Os amigos ficaram de boca aberta até trás e arregalaram os olhos de estupefação.

— Compraste a cabana do campo? — perguntou com delicadeza Catanada. — Como é que fizeste para comprar a cabana?

O Papagaio meteu demoradamente a mão no bolso e retirou do porta-moedas, o precioso documento, dançando com ele à frente dos olhos.

— Está aqui o documento da venda. O Pipocas veio ter comigo a noite passada e vendeu-ma por cinquenta contos. É o que se chama um contrato de venda.

Pascácio aproximou-se dele, calmamente.

— Embebedaste-o, com o dinheiro. E ele não soube dizer que não. Fala, boi da Índia?

O Papagaio riu com cinismo. (Põe-te à légua, Papagaio. Não vês que essas mulas te olham de esguelha? Lá estão eles em frente à porta, prontos para o que vier. Repara como os dedos do Artur Bófia perdem a cor ao agarrar qualquer coisa dura por dentro do casaco.) O Papagaio prosseguiu:

— Vocês percebem pouco de negócios, seus insurretos de uma figa. — O sorriso transformou-se-lhe e toda a crueldade iluminou-lhe o rosto. — Quando sair daqui, vou à polícia apresentar...

Quando as últimas palavras lhe saíram da garganta, as gargalhadas dos amigos fizeram semelhante estrondo, com a agravante do bater dos pés no chão. Depois, o Papagaio, ouviu abrir a porta da cabana.  

— Riem-se! — berrou. — O sangue congestionou-se no pescoço e no rosto. — Riem-se, um raio vos leve! Vazem daqui.

Catanada, que estava defronte dele, tinha um ar espantado.

— Vazem daqui! — perguntou com suavidade. — Que vazar é esse de que falas com tanta agressividade?
— Isto é o meu futuro lugar de repouso. Tenho planos para a cabana. Só preciso comunicar à polícia.
— Que eu saiba isto é pertença da comarca — replicou Catanada. — Pascácio, sabes se a comarca pôs a cabana à venda?
— À venda? — perguntou Pascácio. — Será a cabana do amor ou a cabana do desamor?

Catanada prosseguiu:       

— João-Ninguém?
— Esse tipo é capaz de estar doente da moelinha — respondeu João-Ninguém.
Very nice? Sabes alguma coisa acerca da venda da cabana?
— Acho que ele está mas é a sonhar — retorquiu Very nice numa voz galvanizada — e é demasiado cedo para se estar a sonhar.   
— Artur Bófia?
— Eu cheguei agora mesmo.
— Faísca?
— Ele não sabe o que diz. — Dirigiu-se ao cão: Sabe?

Catanada voltou-se para o erubescido Papagaio.

— Foste enganado, meu amigo? É possível que tu não soubesses que isto aqui é propriedade rural do concelho, mas, quando fores à polícia queixares-te, ninguém, a não ser tu, vais ser motivo de chacota. A gente faz poiso aqui; mas não somos donos nenhuns. Talvez fosse melhor ires para a adega e pores a cabeça a descansar.

O Papagaio estava demasiado baralhado para continuar a discutir. Os amigos rodearam-no, acompanharam-no até à porta e fizeram-no sair rapidamente, envolto na sua derrota. Depois, olharam uns para os outros e puseram-se a rir às bandeiradas; o humor voltara de novo e, desta vez, abrira uma brecha através da aldrabice. Os amigos voltaram para casa do Pipocas. Sentaram-se, contentes, no quintal.

— Cinquenta contos — disse Catanada. — Bem gostava eu de saber o que é que o Pipocas fez com tanto dinheiro.

O humor, uma vez aparecido na sua primeira edição, varreu de dentro o pessimismo. As conversas da ordem aqueceram o ambiente e os ânimos vieram ao de cima. A frescura instalara-se nos amigos.

— Fê-la bem — disse Pascácio, sorrindo. — O Pipocas devia receber uma medalha por fazer vendas destas.
— Para contrabalançar o Papagaio passamos a comprar sempre lá as nossas bebidas — propôs Very Nice.

Um periquito veio pousar na terra e maneou as penas, fugindo a seguir. Os cães, no pátio ao lado, cheiravam o chão, pensativamente, aqui e ali, e abanaram o rabo. Ao ouvirem o ruído de passos vindos da rua, os amigos ergueram as pestanas e depois puseram-se de pé exibindo sorrisos de boas vindas. Pipocas e Nino Cardoso, cada um deles com dois bons sacos, abriram o portão. Very nice correu para ambos e trouxe o saco do Pipocas. Os amigos repararam que o Pipocas apresentava um aspeto fatigado quando pôs as garrafas na mesa.

— Chegar até aqui faz suar — disse.
— Nino Cardoso — gritou João-Ninguém —, ouvi dizer que tinhas sido transferido para as multas.
— Fui — respondeu Nino Cardoso, exausto —, e ainda lá estou.

As tijelas encheram-se de uísque velho. Uma grande satisfação saiu do peito dos amigos, por tudo ter terminado. Catanada, bebeu um bom duplo.

— Pipocas — disse —, aquele boi do Papagaio veio ao bocado à cabana com aldrabices. Trazia um documento assinado e disse que tu a tinhas vendido.

O Pipocas ficou engasgado.

— Onde é que se viu fazer uma venda num papel tipo merceeiro rubricado com uma rúbrica? — indagou.
— Bem — continuou Catanada, — nós sabíamos que era grupo, de maneira que o informámos. Tu não te vais zangar com ele, pois não?
— Não — respondeu o Pipocas, metendo o copo à boca e acabando com aquela garrafa.
— Era bom termos qualquer coisa para empurrar a bebida — observou Very nice.

Pipocas sorriu com doçura.

— Já não me lembrava. No fundo desse saco há várias caixas de aperitivos e um salpicão e pão.

Tão grandes foram o apetite e o prazer de Catanada que se levantou para fazer um breve discurso.

— Onde é que há uma alma tão boa com o nosso amigo? — declamou. — Enche-nos de gozo no seu apartamento, partilha connosco a boa mesa e o seu bom uísque. Oh, que homem dum caraças, que amigo tão querido!

Pipocas ficou embaraçado e, pondo os olhos no chão, exclamou:

— Não tem importância. Os amigos são assim.

A alegria de Catanada, porém, era tão grande que abarcava o paraíso e até mesmo o inferno.

— Um dia destes temos de prazentear com uma boa despesa o Papagaio.     

Saturday, June 2, 2012


CONTOS DE RATAZANA
______________________


14. Episódio


Eis como, da boa vida em casa do Pipocas, de uma caixa de pó-de-arroz dado como presente, das histórias dos irmãos Trindade e do amor frustrado do jovem Ricardo


 
Poucos eram os habitantes do Marco de Canaveses que usavam relógios de boa marca de parede ou de bolso. De vez em quando, um dos amigos arranjava um relógio de alguma maneira muito afamado, mas só o tinha durante o tempo suficiente para o trocar por qualquer outro que realmente se sentisse agradado. Na loja do Pipocas, os relógios tinham boa procura e havia dois escalões, mas apenas como objetos de venda. Para uso normal havia o relógio vulgar. Era mais barato e de funcionamento prático, do que um relógio de marca afamada. No Verão, aos domingos de manhã, quando as pessoas iam à feira dos selos, nas imediações da Caixa do Povo, é certo e sabido, que era uma bela altura para uma pessoa trocar ou comprar um relógio de outra marca, mais em voga, nos vendedores ambulantes que por lá se cruzavam. Quão melhor não é uma marca mundial? É uma bela ocasião em que nem as posses de uma pessoa derretem nos bolsos nem a bondade tem interrogações por não levar nada.

O Faísca e o cão seguiam, firmes e seguros, no seu trajeto habitual para o trabalho. A loja do Pipocas só abria passado três horas depois de o Faísca passar por lá. Quando o Pipocas fechou a loja, o dia ainda estava claro. O Sol já se tinha refugiado para lá do monte. O tempo tinha um cheiro seco e agradável, como o perfume das flores. E quando chegava o momento do grupo se juntar, havia sempre qualquer coisa para se contar, e as boas notícias guardavam-nas para essa ocasião.

— Vi o Arnaldo Curto — disse o Pipocas, — saia da casa da Xanana Maluca. Não há um dia que aquela mulher não se meta em barafundas.
— Só sabe viver assim — comentou Pascácio. — Quem sou eu para atirar a primeira pedra, mas em dado momento penso que a Xanana é um bocado atiradiça de mais. Só lhe acontecem duas coisas na vida: amor e sarilhos.
— Mas que é que vocês esperam? — disse Catanada.
— Nunca tem paz nenhuma — lamentou Very nice.
— Também a escorraça pela porta fora — retorquiu Catanada. — Dar-lhe a paz é acabar com ela. Amor e sarilhos... Está visto. Ah, mas não esqueçamos a pinga, porque aí está uma mulher sempre fresca, sempre feliz. Mas que é que aconteceu à Xanana?
— Vocês conhecem bem a Xanana — começou. — Há homens que algumas vezes lhe levam presentes, um frasco de água-de-colónia, um par de cuequinhas de fio dental ou um sutiã. Não passam de pequeninas coisas, mas Xanana aprecia-as. Ora bem, ontem, salvo erro, Manuel Chapadas levou-lhe um pó-de-arroz, uma caixita assim brilhante e bonita, que ele comprara num salão de beleza. A Xanana ainda deitou um pouco de pó-de-arroz na cara quando ele se envolveu com ela, mas ele foi-se abaixo antes da Xanana ter despertado.

«Como sabem, dinheiro é coisa que não falta ao Chapadas. Disse ele à Xanana: Não há nada melhor do que uma mulher ter um cheiro agradável. Sabe bem. Este pó aqui é muito bem-cheiroso. Vais gostar muito dele.»

Os amigos sorriram francamente e Catanada disse:

— Chapadas tem artes de Don Juan. Vejam lá o que ele não fez com o pó-de-arroz... gozo e amor. Um dia destes tenho de ir ter com ele.

Mas os amigos viam bem que Catanada estava era com inveja dele.

— Anda lá com essa história do pó-de-arroz — disse Pascácio.
— Bom — disse Catanada, — a Xanana ficou com o pó-de-arroz e mostrou-se amável para com o Chapadas. Disse-lhe que quando ficasse cheia do pó-de-arroz, ele podia dar outro presente qualquer. Depois, o Chapadas foi-se embora e a Xanana guardou o pó-de-arroz na cómoda para quando fosse visitada pelos amigos especiais.
  
«Depois, veio um amigo daqueles especiais visitá-la e a Xanana deixou que ele abrisse a caixa do pó-de- arroz e a borrifasse toda com ele. A certa altura o Barbas, como era apelidado, beijou a rata de Xanana. Nem imaginam. A língua entrou por ali dentro à procura do prazer. Os lençóis e os cobertores voaram e as almofadas abafaram os gritos. E, depois, quando o gozo se foi embora, o Barbas ficou com a cara como um palhaço. Agora a Xanana anda endiabrada e diz que há-de comprar mais caixas de pó-de-arroz iguais à do Chapadas.»    

— Ai a viciada! — disse Pascácio — O prazer é mesmo assim, quando corre conforme os nossos desejos. Já quando o  jovem André se estreou, foi do mesmo jeito.

O rosto dos amigos do Pipocas alterou, interessadamente, na direção de Pascácio.

— Vocês devem saber aquém eu me refiro, ao jovem André — começou Pascácio. — Parece mesmo um cobói, tronco largo e pernas compridas; mas não é lá grande coisa a pinar. Nas rapidinhas é muitas vezes atirado ao tapete. Pois bem, o homem não quer outra coisa senão que o convidem. Quando há noitadas, gosta de levar a pequena; nos quartos é sempre o primeiro a dizer: «Vamos a ver se aguentas com esta!» Não há duvida, está ali um homem que quer ser um grande cobridor, que as mulheres olhem para ele, que o desejem e, até que gostem de fazer amor com ele.

«Porventura vocês se lembram daquela vez na receção da residencial em que ele armou uma cena monumental. Ia acompanhado, muito sério, com uma grande cavalona loira. Mesmo em frente do balcão da receção, a doida da cavalona puxou a saia para cima e o André topou-a sem cuequinhas e deu-lhe uma chupadela no grelo, que ela deu um grito e foi deitar-se no sofá, aos tremeliques.     

Catanada riu-se, apanhou um pauzito e atirou-o contra a perna da cadeira.

— Lembro-me das cenas dele — disse o Pipocas. — Esse André não tem os parafusos todos. O Ratazana é que o conhece bem, quando vocês falarem com ele. Às vezes põe as gajas na mesa do André e os clientes pensam que foi ele que as chamou e dizem: «Ora aí está um sujeito que sabe do seu ofício.» Não é assim tão fácil apanhar gajas quando se faz por obrigação.


Very nice, que tinha estado a pensar de cabeça encostado ao braço, comentou: 

— É pior falarem mal de uma pessoa do que lhe darem com uma paulada. Toda a gente gozou daquele estouvado amalucado do jovem André até ele se mostrar. Mas depois ficaram com inveja de se terem divertido dele. Essa história do André é reinante. É também uma história que dá vontade de rir.

— Ouvi contar coisas a respeito dele — disse Catanada —, mas são tantas que nem sei por onde começar.

— Bem — disse Very  nice, — eu vou conta-la e vocês logo veem se são engraçadas ou não. Quando eu era puto, costumava brincar com o Trindade. Era um bom miúdo e esperto, mas andava sempre à procura de se meter em sarilhos. O clã era composto por cinco pessoas. O pai, a mãe, e três irmãos. A maioria dessa gente já cavou daqui. Um dos irmãos perdi-lhe o rasto, o outro está na Madalena e o outro foi apanhado por uma peixeira da Afurada por lhe andar sempre a comprar amêijoas.

«De modo que me dei sempre bem com o Trindade e o irmão mais novo Ricardo. Trindade cresceu comigo e os sarilhos nunca o abandonaram. Passou uma temporada no serviço noturno e depois voltou para casa. Aos sábados apanhava uma liberdade e ia dormir para a praia até segunda-feira. O irmão mais novo era um daqueles rapazes de boas intenções e todas as semanas se enrolava com uma cachopa. De modo que estavam quase sempre os dois à distância. O mais novo Ricardo sentia-se só quando não tinha o Trindade ao pé de si. Adorava o irmão. Tudo o que o irmão mais velho fazia, o mais novo fazia também, mesmo quando já tinha passado dos limites.
«Talvez vocês se lembrem da Graça Gracinha — continuou Very nice. — Não era uma rapariga lá muito séria. Não tinha mais de dezassete anos quando uma rusga policial veio ao Porto e ela ficou logo retida por não ter documentação. Era gaiata e esperta e não deixava ninguém ficar sem levar resposta. Parecia andar constantemente a fugir dos polícias e os polícias bem seguiam no encalço dela. E algumas vezes levavam-na. Mas uma pessoa não lhe podia dirigir palavra quando ela estava com os azeites. A moça parecia ter o demónio dentro dela.       

— Eu sei disto — prosseguiu Very nice — porque também me atirei a ela; eu e o Trindade. Só que o Trindade tinha outro feitio. — Very nice olhou os amigos bem nos olhos fincando esta tese. 

«Trindade desejava tanto o que Gracinha tinha que uma noite saiu em sua defesa e deu um pontapé nos tomates dum polícia e fugiu pela rua abaixo como os corredores de cem metros livres. Não conseguia deixá-la ser injuriada e agiu. O irmão foi falar com a Gracinha e disse-lhe: “Se não fores simpática para com o Trindade ele desaparece.” Ela, porém, limitou-se a sorrir. Não era lá muita coisa.
«Que é que vocês pensam que eles depois fizeram? — continuou Very nice. — Trindade foi apanhar sol para a praia e deu apalpões a Gracinha, chochos grandes de artista, carícias, festas. Depois, pegou-lhe pelas ancas e sentou-a no colo e em seguida, deu-lhe uma varada ao som das ondas.
«Gracinha passava-se com tanta marmelada, mas vinha-se e chorava como uma criança. Vocês deviam ter ouvido como ela gemia. Uma pessoa ficava com ganas de lhe dar outra varada e, ao mesmo tempo, de a calar. Eu imagino como era. Andei na cuca dela e o Trindade disse-me, também. Só que, ao Trindade dava-lhe cabo dos nervos. Já só conseguia dormir com comprimidos. Um dia confessou-me: “Se a Gracinha quiser ser minha amante, deixará de ter coragem de se meter nos copos, pois nessa altura é comprometida e é um crime desrespeitar o amante.” De maneira que pediu-a para ser sua amante. Ela desatou a beber daquela maneira maluca que dava vontade de a mandar àquela parte.
«Oh! O Trindade ficou desnorteado. Foi para o quarto, prendeu uma corda a uma perna da cama e pôs-se à espera dela. Quando a Gracinha entrou, deixou-a despir-se; em seguida colocou a corda à volta dela e atou-a à cama. Depois fechou a porta e foi-se embora. Mas ainda se passaram duas horas antes de Gracinha conseguir se libertar das cordas e três dias antes de poder insultá-lo.»

Very nice intervalou-se. Via, com alegria, que os seus amigos acompanhavam a história com interesse.

— A coisa era deste estilo.
— Mas a Graça Gracinha foi amante do Trindade! — exclamou Catanada, excitado. — Eu conheço-a. É uma boa dona de casa; nunca nos deixa sair sem nos oferecer de beber e vai à missa todos os domingos.         

«As coisas também se compuseram da maneira que o Trindade tinha desejado. O confessor disse a Gracinha que fosse uma boa mulher e ela foi uma boa mulher. Deixou de andar nos copos e de insultar os homens. Como não bebia, deixaram de se intrometer com ela. Trindade continuou a ir dormir para a praia e, passado algum tempo, arranjou lá um emprego para segurança de condóminos. Não tardou muito a entrar nos eixos. Como veem, esta história é magnífica. Era digna de ser apresentada nos palcos do cinema por um realizador se terminasse aqui.»

— Pois era — disse Catanada com olhar sério. — Esta história também nos ensina algumas coisas.

Os amigos acenaram com a cabeça em sinal confirmativo, pois adoravam de uma história emotiva.

— No Douro conheci uma rapariga como essa — disse o Pipocas. — A única diferença é que não se modificou. Chamavam-lhe a rapariga da segunda escolha. «A Senhorita Segunda Escolha», era o nome que eles lhe davam.

Pascácio fez um gesto com a mão:

— A história ainda não terminou — disse. — Deixa lá o Very nice contar o resto.
— Sim, ainda não terminou. E, no fim, a história não é lá boa como vocês imaginam. Ricardo passava já dos vinte e cinco anos. Trindade e Gracinha foram morar para uma casa isolada. Ricardo ficou sozinho, pois acabara com a peixeira. Não tinha sossego nenhum. Passava a vida na estroina, embriagado; até que um dia conheceu uma chavalita chamada Celina. Tinha dezasseis anos e era mais bonita do que a Gracinha. Todos os clientes da cervejaria andavam atrás dela como se fossem lobos. Então, o que se tinha passado com o Trindade, deu-se com o Ricardo. O desejo corrompia-lhe o corpo todo. Bebia mais do que comia. O olhar ficou estrábico e ganhou aquele aspeto alarmado que os fumadores de droga têm. Enviara-lhe chochos atirados de mão, mas ela ria-se dele. “Vem cá, meu passarinho, vem cá ao teu príncipe.” Ela não parava de fazer chacota.

«Como vendia livros sempre que arranjava uma promoção guardava-a em presentes para a Celina, magazines e agendas. Pagou-lhe um concerto de música ao ar livre. 
«Então o Ricardo contou ao Trindade o que se passava. Trindade riu-se também. “Meu tolo”, disse, já tiveste na tua frente tanta rapariga. Não andes atrás de miuditas que sabem mais do que tu.” Mas aquilo de pouco lhe serviu. Ricardo ficou louco de desejo. Esses Trindades é gente de sangue na guelra. Escondia-se nas esquinas para a ver passar. O coração saltava-lhe do peito.
«Ela não fazia outra coisa senão esquivar-se, e Ricardo estava quase paranoico. De maneira que agiu em conformidade. E, assim, pediu-a para sair com ele. Ela riu-se como nunca e, sacudindo as saias, fez-lhe sinal de never para o afinar. Era um diabinho, aquela miúda.»

— E ele um idiota — disse Catanada com descaramento. — O dever dele é meter-se com raparigas da sua idade, e não chavalitas.

Very nice, arreliado, prosseguiu:

— Os Trindades são irresistíveis; aquece-lhes a veia.
— De qualquer das formas, foi incorreto. Foi uma vergonha para o Trindade — disse Catanada.

Pascácio voltou-se para ele.

— Deixa lá o Very nice contar. É a história dele e não a tua. Um dia destes contas a tua.

Very nice mostrou-se grato pela intervenção de Pascácio.
       
— Como ia dizendo, Ricardo não podia com aquilo mais, mas não era capaz de mudar fosse o que fosse. Não era como o Catanada. Como não tinha jeito para inventar nada de novo, deixou aguardar uma oportunidade.
  
«Vocês devem saber — prosseguiu Very nice — que lá no quarteirão há uma hospedaria. Uma tarde, Ricardo convidou Celina a dar uma volta no carro com ele e levou-a até lá. Depois, esperou até a convencer a uma rapidinha numa desportiva. Viu o tempo passar. Passou o braço à volta da cintura dela e puxou-a bruscamente para si. Ele a fazer isto e ela a retribuir-lhe com uma sonora galheta.»

Largos sorrisos surgiram no rosto dos amigos. Algumas vezes, pensaram, a vida tinha coisas do arco-da-velha.

— Ricardo mal se conteve — continuou Very nice. — Disse de si para si: «A miúda é capaz de andar por aí atrás de algum, mas isso não dou.» Só passado um minuto é que abriu a porta da hospedaria.

 Very nice olhou à volta. Os largos sorrisos mantinham-se em foco.

— Vocês estão a topar — disse Very nice — a coisa é engraçada, mas também tem o seu quê.
— O que é que a Celina disse? — perguntou Catanada. — Acedeu ao impulso e mudou de procedimento?
— Não. Não mudou nada. Ricardo aguentou-se e ela mandou-se. Mandou-se também, mas ficou fulo. E disse para si mesmo: «Que miúda parva ela me saiu. Uma noite destas vai ser ela a puxar-me para a levar para o pinhal.» Depois Ricardo entrou no carro sem ela.

Catanada queixou-se:

— Essa história não vale. Tem rodriguinhos a mais e podem tirar-se dela demasiadas lições, e alguns delas são contraditórias. É uma história que não vale a pena guardar na memória. Não se chega a conclusão nenhuma.
— Eu atino com ela — disse Pascácio. — Atino com ela porque não tem nenhum sentido à-priori; contudo, parece que realmente quer dizer alguma coisa, embora eu não saiba bem o quê.

A manhã já ia a meio e o ar estava quente.

— Que é que vamos comer? — disse Pascácio.

— Na adega há lá um sável de escabeche — observou  o Pipocas.

Os olhos de Catanada reluziram.

— Estive a pensar numa coisa — disse. — Quando eu era pequeno vivia nas férias com o meu tio ao pé do elétrico. Todos os dias, quando o elétrico passava, os meus amigos e eu pulávamos por trás e íamos à boleia e o guarda-freio enxotava-nos com correia. Havia alturas em que o elétrico enchia de passageiros que aí ninguém nos enxotava. Pensei agora que talvez a gente pudesse comer à borla na adega. Quando o empregado se aproximar, chamamos nomes uns aos outros e distribuímos galhetas por todos. Como é que o empregado pode responder-nos? Atirando-nos com os pratos ou com as cadeiras? Não. Só pode é deixar-nos sair em grande.   

Pascácio levantou-se cheio de contentamento.

— Ora aqui está uma bela ideia! — exclamou. — Isto é que o Catanada é um génio! O que é que a gente fazia sem ele? Vamos lá; eu sei onde há um grande empregado medroso.
— E o sável é o meu peixe predileto — disse o Pipocas.