CONTOS DE
RATAZANA
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O LUPANAR
A Banheira
era o lupanar mais famoso da cidade, um rés-do-chão comprido em forma de
labirinto, cercado de quartos com banheiras de imersão, decorados todos do
mesmo estilo, sempre com as mesmas tendências da caligrafia do Amor, uns
tapetes com figuras de burros e jericos no chão, um grande chafariz de pedra
encostado à parede e uma estátua do Senhor
do Chicote, de pila na mão, simbolizando o amor afrodisíaco. Poucos dos
clientes d´ A Banheira conseguiam sozinhos descobrir o caminho para o quarto.
Era necessário ser acompanhado pela cortesã escolhida ao local especificado.
Deste modo, as meninas estavam protegidas das visitas dos indesejáveis clientes
que não tinham a menor hipótese de fugir sem pagar. Era um mundo sem janelas
nem varandas, dirigido pela quarentona e sabida Dona da Banheira, cujas
afinidades com os clientes eram um dado adquirido, ao longo dos anos, para o
bom funcionamento da casa. Nem o pessoal nem os clientes conseguiam desobedecer
às suas ordens, que eram logo posto fora à vassourada, enxovalhados e atirados
para o meio da rua, se isso fosse necessário, para manter a ordem e o devido
respeito da casa. Por isso, quando o emproado Lano, vendedor de trapos e ganga
barata, se apresentou diante dela a troco de pôr as suas meninas a vestir-se em
roupas vistosas de várias cores, convenceu a Dona da Banheira e foi
imediatamente aceite sem vacilações. O negócio para Lano resumia-se na venda de
roupa às raparigas e receber em troca «uns favores» de prazer e gozo com as
modelos que ele escolhia. E, quando a força policial fora fazer uma rusga ao
local, a Dona guiara-a numa viagem curta e mal cheirosa pelos labirintos
peçonhentos. Até os guardas ficaram com a cabeça a andar à roda pelo que, após
terem espreitado para dentro daqueles quartos de massagens e cheiros exóticos e
deparados apenas com latas de conserva, restos de pão, cascas de maças e
garrafas de cerveja, se foram embora resmungando energicamente, não suspeitando
sequer que uma hora antes a Dona recebera um telefonema a avisá-la daquela
rusga, o que lhe dera tempo de pôr os clientes na rua. Depois disso, a Dona
mandou fazer um fumeiro de eucalipto e, a seguir, desinfectou com Tide toda a casa, deixando um aroma suave
e atractivo, de forma a não levantar suspeitas da tramóia que ela pregou aos
polícias.
As visitas de
Lano à Dona da Banheira tornaram-se permanentes e nem por sombras o privou de
rapidamente ganhar a sua confiança, tornando-se um recoveiro, levando e
trazendo confidências. Cada vez se tornava mais importante a sua presença, e a
Dona ordenou às prostitutas que o tratassem bem do pêlo, autorizando-lhe a
utilizar a sua banheira especial hidromania,
pois a sua falta de dentes e cabelo
não deixaria de fortalecer e recuperar o mais rápido possível. Uma vez que os
seus favores iam aumentando conforme as suas vendas, obrigou-se a depender mais
horas de exercícios, recebendo com agrado as carícias das prostitutas e dando
ao vendedor de trapos um alcance de visão superior do que poderia obter, se
acaso andasse pelas ruas à procura das chamadas «mulheres do povo»… A ganância
era às vezes um obstáculo: criava vícios no seu modo de habituação e Lano, que
era obeso, tinha mais olhos que barriga. Depois do terceiro favor directo que
recebera num dia, ao ouvir os murmúrios das prostitutas que acompanharam com
ele o acto da fornicação, teve um chilique e caiu na banheira, sendo socorrido
por uma delas que o tirou pelo cachaço e pôs no chão esticado num lençol. A
seguir, deram-lhe um chã de tília para ele recuperar. Pela boca da rabugenta
Dona da Banheira chegou a notícia que, a partir de agora, era obrigatório o uso
do preservativo e o preço para uma espetadela
passava de quatro para oito contos, com direito a vinte minutos de massagem
autêntica ou sintética. As orgias animalescas em que interferiam quatro ou mais
parceiros, só eram permitidas em dias feriados.
«Mas que
diabo, estas novas tabelas são altas e só vieram dificultar o cliente habitual.
Quero o livro de reclamações para apresentar o meu protesto.» - Murmurava um
deles ao montar a menina da sua escolha, mas teve que encaixar das boas.
«Os preços
são altos porque as mulas são melhores», ─ respondera a Dona para o cliente que
atrevidamente retorquiu:
«Por este
preço tenho direito a dois pratos.» - E, ao dizer aquilo, começou ele a
guinchar, presumivelmente por motivos de gozo. E o carniceiro da carne, Coxo,
confessou ao ajudante do talho que os hábitos são difíceis de quebrar e que,
quando lá ia levar a carne, nunca vinha de lá sem espetar na sua favorita «duas
nas nádegas e às vezes também na serviçal do pó; passava o espanador, o que é
que um homem há fazer ao vê-las assim: como vieram ao mundo?» - E foi assim que
o carniceiro aprendeu a lição de que ─ mais vale roer do que sofrer. ─
Lano começara
a mudar e a tomar consciência de que, a partir da meia idade ─ nunca é demais ─
enjeitar os desejos quando em demasia. A notícia que o médico lhe dera que o
enfarte estivera próximo e que poderia ter sido fatal, fê-lo mergulhar numa
profunda calmaria pois, mesmo quando o cio do desejo lhe chegava aos testículos
através das novidades que iam chegando à Banheira, ele revelava-se mais
cauteloso e consciente de que era preferível comer pela qualidade do que pela
quantidade. Mas, quando o primeiro fôlego se espraiou dentro do seu espírito
voraz, Lano aproveitou ─ a ocasião para esganar a ilusão ─ e atirou-se com
todas as forças à última novidade que chegara, a troco de um conjunto de roupa
variada que se vendia na feira pelo valor de mil escudos. Perdeu o medo e
ganhou de novo a segurança que o amor na Banheira lhe inspirara e, a partir
daí, nada o assustava.
«Tens um
corpo jeitoso. Com aquele decote da Princesa do Cai-Cai e as calças de caqui do
Hommer Simpson», ─ disse ele com o rosto sério. ─ «Ficavas cá um pito que
nem a Shifar te passava a perna.» - E
ela muito lampeira respondeu:
«Não é assim
que se diz, mas sim, Claudia Schiffer.» -
No fim de uma
visita devotadamente aventureira, Lano descobriu, para sua grande surpresa, que
cada vez ganhara mais erecção e desejo sexual o que lhe dava motivo de querer
estar sempre a molhar o pincel em cima das telas que paravam no lupanar. E que
capacidade era essa? ─ Nunca tinha entendido muito bem ─ sem que isso fizesse
dele um Gungunhana. Em suma, Lano
chegara ao máximo. Começou, sem hesitar, a deixar para trás a conquista de raparigas
sem técnica nem estofo de cabriteiras e
estabeleceu uma regra que determinava a si mesmo; comer pouco e melhor, era
indispensável. O facto dessa regra implicar um aumento na tarifa que cobrava
uma rapariga com estofo de primeira qualidade, nada o impedia de abrir os
cordões à bolsa ou, em segundo via, cambiar a relação por um conjunto de vestes
de melhor qualidade. E, quando o carniceiro um dia resmungou com ele a
propósito das raparigas de estofo, no
final vai tudo dar ao mesmo, um homem vem-se e pronto, já está. Lano abanou
a cabeça como a dizer: isso è o que tu pensas, meu artola, mas não será bem
assim.
As meninas da
Banheira eram afamadas de possuírem toda a técnica de combate de que uma boa
funcionária da Dona pode prezar. Feita uma apreciação global à equipa de
trabalho às suas ordens, a mais velha era uma mulher de quarenta e picos anos,
enquanto a mais nova, com dezoito, tinha mais traquejo que muitas das outras
colegas de profissão. E elas tinham-se afeiçoado ao ardido e rufião Lano, e a verdade
era que lhe agradava a sua companhia, pelo que, fora das horas do expediente,
se punham a rebolar a bilha numa casa de dança sem muitos requisitos que por aí
abundam pela cidade, deixando-o exibir a sua mestria de razoável dançarino de
rumba. E, depois da dança dos pés, aparecia a dança do corpo, num quarto
qualquer, onde as duas mulheres se punham a provocá-lo maliciosamente, exibindo
o corpo e fazendo topless,
mostrando-lhe os seios e, depois enlaçando-lhe a cintura com as pernas,
beijando-se ardentemente uma à outra a um passo dele, até que o vendedor de
trapos ficava loucamente excitado; e então elas riam ─ como malucas de vê-lo de
pau feito e tanto riam que o faziam voltar à estaca zero. Ou seja, de vela em
baixo. A partir daí, Lano já perdera a ideia de passar um bom bocado e já
trocava os favores pela roupa que voltou a parar nas suas mãos. E assim, qual
pau qual caraças, deitou mãos às roupas e deu o piro dali, deixando-as a chupar
uma à outra, pensando na forma de se vingar, mas ainda foi capaz de mandar o
seu palavrão da ordem: «Ordinárias, sois mas é cá um putedo!» -
Foi numa
dessas pausas do trabalho em que a casa não tinha um cliente sequer, quando as
mulheres estavam a sós na galhofa umas com as outras, que se puseram a
cochichar. Falara a mais nova delas acerca do seu cliente Coxo, o carniceiro.
«Que tolo de
homem!», ─ disse ela. ─ A grande mania dele são os pêlos. Cisma que eu tenho
pêlos nos seios e obriga-me a tapá-los com uma toalha e depois só se excita
quando lhe ponho a fazer cócegas no ânus. E depois diz-me tantas asneiras que
até me venho a rir. Que eu sou parecida com a vaca da mulher dele, que tenho as
mesmas curvas físicas que ela, só que, para me realizar, rio-me, enquanto a
mulher dele chora…» - A quarentona interveio também na conversa.
«Escutem só,
os homens não falam de outra coisa a não ser do preservativo, que não se
excitam com aquela camisa transparente plastificada, que têm nojo de pôr aquilo
nas mãos, e as mulheres de cá têm de fazer como eu faço. Meto antes a camisinha
debaixo da língua e depois, sem o pascácio dar por ela, já está: trigo limpo e farinha amparo.» -
Concordou uma delas:
«É o que se
deve fazer. Tens de nos ensinar.»
«Especialmente
para certos clientes», ─ acrescentou a mais nova ─ «Para aqueles de quem nós
não temos a mínima confiança. Sobretudo os que não se lavam, ou aqueles que
querem fazer fantasias com o pau a nu a boiar em cima da água na banheira.» -
Depois, comentou outra prostituta que estivera calada até então.
«As pessoas
também fazem mais fantasias daquilo do que parece. Eu pergunto sempre ao
cliente: com ou sem? Se ele diz com, eu vou por baixo, se ele diz sim, eu vou
por cima.» -
«E como é que
fazes?» -
«Como disse a
nossa veterana colega. Enfio antes o artigo na vagina enrolado numa esponja e
ninguém dá por ela.» -
«Meu Deus», ─
disse a rapariga. ─ Se eles topam, ainda te fritam os mamilos com molho de
tomate.» - A de dezoito anos tornou a confidenciar às outras que a escutavam
com curiosidade. Acto contínuo acendeu uma luz nos olhos dela.
«Eu
conto-lhes tudo», ─ disse. ─ Como nasci, quando comecei a ler, o primeiro beijo
que dei foi quando fui desflorada numa cavalariça, aos treze anos, pelo
ferreiro do meu pai. No fim, ele deixou-me dar uma volta em cima da égua mas,
no fundo, não gozei nada e ainda estou à espera de passar os melhores anos da
minha vida.» - As seis prostitutas do lupanar desde há muito tempo que davam
conta do recado, aumentando os lucros à gananciosa Dona e prometendo ainda
aumentar mais. Onde há vício e beleza não falta chouriço nem mesa. Lano revelou
à Dona a sua ideia de lhe arranjar umas estrangeiras para A Banheira; esta
ajuizou do problema com a polícia. «Isso é muito perigoso», ─ exclamou. ─ «Mas
é capaz de ser aliciante para o negócio. Eu vou nessa. Podes avançar, meu
sacana.» -
Quando se
espalhou pelas casas de passe a notícia de que tinham chegado umas caras novas
e brasileiras na casa da Banheira, a excitação dos clientes da cidade foi
notória; porém tinham medo que a casa fosse vistoriada ─ quer por saberem que
numa rusga ao local poderiam ter chatice com a polícia, quer pela nova tabela
do lupanar de que o novo serviço cobrado ia quase ao dobro… mas a notícia não
chegou aos ouvidos das autoridades. Por essa altura, Lano tinha falado a toda a
gente o que conhecia do ambiente e levou-os lá a troco de tomarem uma bebida e
prevenira-os que iam conhecer a fina flor do nordeste brasileiro. «As
brasileiras são tão doces como o mel», ─ fez referência perante eles. ─ «É
melhor conhecê-las com calma.» - Assim, os novos clientes atracaram-se às
beldades brasileiras e logo o negócio registou um aumento de quinhentos por
cento no total do apuro. Por motivos óbvios, era aconselhável marcar hora para
não haver bicha na entrada da porta e, para muitos, o tempo da massagem
encurtava cinco minutos por sessão. Cada cliente recebia como bónus um
preservativo e a Dona, ao observar através do vidro camuflado no escritório as
figuras dos clientes com os preservativos na mão, punha-se às gargalhadas que
até assustava o papagaio em cima duma gaiola a palrar; Enfia a camisinha, sim… Nos termos a seguir, o pessoal da Banheira
afeiçoou-se à nova realidade. A prostituta de dezoito anos, «Elizabete», era a
mais solicitada da clientela pagante, tal como a sua partenaire, «Beta», o era em segundo plano e, depois, vinha a «Seu
Bombom» que vivia com o seu prostituto nos aposentos da Dona. Esta Beta
mamona começou a mostrar-se ciumenta do lugar que ocupava de mais amada. Ficava
contrariada quando via as outras a registar um maior número de saídas e receber
gorjetas mais generosas. A prostituta mais velha e mais redonda, que adoptara o
nome de «Bolacha Maria», dizia à sua clientela ─ de resto, farta dela, pois
muitos eram aqueles que a procuravam para lhe oferecer o lanche da tarde (chã e
bolachas) e outros para um corridinho à moda do Minho ─ a história de como o
Barão da Piroca praticara com ela a primeira vez o coito, numa tarde à chuva,
quando ela era principiante no ofício.
«Ele deu-me
três tão mal dadas», ─ dizia ela, excitando imensamente os clientes. ─ Que eu
chorei todo o dia. Deu-me a primeira molhada, a segunda recriada e a terceira
bombeada, que só me lembro de ficar toda ensopada.» - Ouviram-se risos. A
prostituta «Bibi» fez-se por seu turno, tão melodramática como a sua colega e
exclamou:
«Ó filha,
tiveste mais sorte do que eu, que perdi os três a cagar; ouvi falar da bomba
atómica e olá; não aguentei a pressão…» - As gargalhadas subiram ao rubro.
Todas as
prostitutas têm os seus quês. Quer pelos seus encantos maternais, quer por
outras agradáveis surpresas. Mas tinham um lado negativo. Por exemplo, entravam
constantemente em guerrinhas por tudo e por nada, em conflitos com as duas
prostitutas brasileiras mais formosas. As outras sempre as tinham achado um
bocado peneirentas e que tinham o vício de lhe sacarem os clientes mais
requintados do bordel. No fundo da questão, o trivial é sempre o mesmo. As
prostitutas só falavam em dar mocadas para fazer dinheiro e mais dinheiro, de
dinheiro e de sexo a conversa era sempre a mesma, mas não julguem que era só
falar, por falar. Ao fim de alguns meses, as seis beldades, conforme o tempo
avançava, as suas performances começavam a apagar-se e a deixar de dar o
rendimento desejado. Lano, mais desdentado e com menos cabelo de mês para mês,
viu também as suas vendas fraquejarem e os favores a diminuírem, acabando por
cavar e deixar ali apenas o seu rasto. As raparigas também começaram a
demandar-se para as casas da concorrência e a Dona não teve outro remédio senão
alterar as regras. Nesse tempo era usual as prostitutas, ao entrarem para o
trabalho, deixarem os seus amantes à porta, ou então, nos cafés mais próximos
do local a fazer horas ─ enquanto elas esgravatavam o graveto para à noite
darem um de pé de dança, beber uns copos, e ficar com algum pataco para o
almoço do dia seguinte. ─ Mas agora essas regras foram quebradas e chegou o dia
em que as raparigas pediram autorização à Dona para deixar entrar os seus
amantes, pois sentiam necessidade do seu apoio, além de que consumiam despesas
para a casa, coisa que, afinal de contas era importante para os cofres da Dona.
Esta a princípio tentou dissuadi-las dessa ideia, mas, quando viu que elas não
desarmavam, não teve outra saída senão ceder nas pretensões delas, embora
citando de que na primeira bronca que houvesse, corria à latada, fosse com quem
fosse pela porta fora. No fim, pôs-se aos risinhos e às cotoveladas a elas,
ordenando com a sua voz autoritária: «Ide a eles, não os poupeis.» -
Os proxenetas
das raparigas deixaram bem claro que esperavam cumprir à risca os seus deveres
como clientes e criaram entre eles um sistema rotativo no qual, um de cava vez
por semana, passava a acumular as funções de porteiro, sendo o dia para o
trabalho e negócios e a noite para o divertimento com as suas parceiras. Assim
que eles embarcaram nessa missão, as prostitutas trabalhavam com maior
convicção, ou seja, entregavam-se mais afincadamente à função para mostrarem
aos seus «homens» que eram umas autênticas máquinas de fazer dinheiro.
«Porque é que
não vais fazer aquele tipo?», ─ perguntou a indignada «Bolacha Maria», mas logo
se opôs «Beta» terminantemente.
«Aquele gajo
não faço, porque o meu homem não gosta dele», ─ declarou, ─ «além disso, tenho
a mínima ética. Não gosto de fazer os amantes das minhas colegas de trabalho. A
minha tarefa é fazer uns gajos, não sei se entendes.» -
«Bom, seja lá
como for», ─ disse «Maria, a gorda», encolhendo os ombros. ─ «Eu aqui dentro
não conheço ninguém. Por isso, vou lá aviar o tipo.» -
No fundo da
moral, as prostitutas d´ A Banheira eram as mulheres mais convencidas e
antiquadas da cidade. O seu metier
que tão propício se tornava a deixá-las cínicas e amarguradas (e elas, eram
evidentemente capazes dos piores raciocínios) tinha-as, em vez disso, feito
numas incorrigíveis sonhadoras. Presas do mundo exterior, tinham concebido uma
fantasia da vida normal em que não queriam outra coisa senão ser pessoas
obedientes e submissas dum homem que fosse reguila, amante e cavalão. Quer
dizer: todos estes anos a dar o corpo ao manifesto das fantasias dos outros
tinham acabado por lhes aniquilar aos poucos os sonhos, ao ponto de, mesmo no
fundo do íntimo dos seus corações, já não se sentirem uma sensibilidade que
superasse um novo sonho. E o perverso
Lano começou a aparecer de novo e a ganhar confiança com as novas atracções da
casa. E descobriu que, de seis mulheres, ainda lhe faltava comer três, pelo que
se pôs a competir com os seus trapos em câmbio dos seus favores, pela graça de
um sorriso seu, e aguardar a melhor altura para atacar. Certa ocasião em que as
disputas com elas o irritaram, repudiou-as a todas ao mesmo tempo. «Ainda
haveis de vir a cair à minha mão.» - Quando, passados dez minutos foi ter com
«Sua Bombom», ela zombou dele e chamou-lhe: «Você é um bobo.» - Mas, naquele
dia, «Sua Bombom», apanhou-o no quarto com «Bolacha Maria» e, minutos depois,
com «Beta.» - Ele pediu a «Sua Bombom» para não contar nada a «Elizabete», por
quem estava redondamente apaixonado; mas ela contou à outra e Lano viu-se
obrigado a evitar durante alguns dias a «Rainha dos ovos de ouro» do bordel. A
obsessão que assim nascia era a mais atractiva que algumas vezes sentira. Às
vezes, quando estava com outras na cama, sentia-se tomado como se uma droga
tivesse ingerido e ficava lento, as pernas pesavam-lhe o triplo e tinha de
acalmar. «É estranho», ─ dizia ele. ─ «É como se tivesse comido um boi, ou
tivesse pegado em dez sacos de batatas.» - Estas sintonias começaram a
baralhar-lhe as ideias. Certa vez, deu-lhe o sono e adormecer no sofá do quarto
ao lado de «Sandra.» Quando acordou, horas mais tarde, doía-lhe o corpo, parece
que tinha partido o pescoço, que mal conseguia endireitar a cabeça e
repreendeu-a:
«Porque é que
não me acordaste?» - Ela respondeu:
«Estavas a
ressonar que nem um justo, até tive pena.» - Ele abanou a cabeça.
«OK, já
entendo. O que quiseste foi deitar-me abaixo para dizeres às tuas amigas que já
foste para a cama com o grande Lano. Mas fica a saber de quem eu gosto, não é
de ti.» -
Duas semanas
e dois dias depois de Lano fazer uma abstinência aos seus apetites sexuais,
Coxo, o carniceiro, viu-se de cor amarelada no rosto e de calças justas à
gigolô e os sapatos bicudos de sola. Lano saía do quarto de «Sandra» quando o
carniceiro o topou e apontou para ele, gritando:
«Então, já
acabou o jejum?» - Sandra saiu à porta do quarto, pondo-se a espreitar. Mas
Nano disse: «Pira-te já para dentro, antes que o Coxo te coma com os olhos.» - Convidou
o carniceiro para beber uma bebida e, instantes depois, abriu no bar uma
garrafa de whisky escocês e enfiaram dois dedos de conversa animada e sempre
relativa a barretes.
«Ande lá,
beba um copo», ─ expressou Lano com a garrafa na mão, enquanto, o carniceiro
insinuou:
Nunca bebes o
primeiro copo. Foi um marroquino que me disse isso, derivado à sua religião.» -
Lano olhou
surpreendido para ele:
«E você como
o faz?» - Perguntou.
«Bebo sempre
a partir do segundo.» - Respondeu Coxo, muito risonho.
«Essa tem
piada. Estamos sempre a aprender.» - Concordou Lano, bebendo o primeiro copo
com sofreguidão.
Coxo abriu os
braços num gesto de desencanto e disse:
«Estou aqui
porque marquei um encontro com as brasileiras que me encomendaram miúdos de
pato para o jantar», ─ disse ele, com um brilho no olhar. ─ «E vou aproveitar a
ter uns momentos de prazer, isto é, se elas vierem com disposição para fazermos
─ o carroucel do amor!» ─ Depois de Lano ter soltado um risada pelo dito dele,
o Coxo sentou-se de pernas esticadas e cruzadas na cadeira estofada de napa. A
sua esperança e a sua ambição tinham sido bem regadas pelo álcool.
«As mulheres
só nos pregam ilusões», ─ disse ele, bebendo muito rapidamente. ─ «Mas sem
essas ilusões estamos feitos ó bife! Vou
esperar mais uns minutos; se elas não aparecerem até o ponteiro estar entre as
duas, deixo-as ao seu critério.» -
Mas Lano não
ficou muito convencido disso.
«Deixe lá
isso. Você nem a um cão dá um osso, quanto mais dar duas trutas dessas que
fazem o consolo a um moribundo.»
À medida que
a garrafa se ia esvaziando, Coxo voltou outra vez a focar o tema, com o Lano já
esperava, das brasileiras terem-lhe enfiado o urso ou o barrete como se costuma
dizer. Contou ele a Lano uma história curiosa, entre ele e a rapariga da boite,
relatando o barrete como facto humilhante.
«A rapariga
do night-club chupou-me de bandeja
quatro garrafas de champanhe francês, prometendo que depois do fecho da casa ia
ter comigo ao quarto do hotel, para me brindar com uma cena das mil e uma
noites», ─ disse Coxo. ─ Ela falava tão meiguinho e não sei que mais que eu
deixei-me escorregar. Como havia eu de saber? Depois, no fim, ela entrou em
transe ─ estava-se mesmo a manjar ─ e atirou-se para a alcatifa com um desmaio
prolongado e, pouco depois, saiu para um táxi que a levou não sei para onde. E
eu caí como um patinho, na mesa de braços cruzados, a olhar para a bola
giratória da pista cheia de efeitos especiais. Ora bem; fui ter com o
empregado. O que é que ele me ia dizer? Sabes o que é que o estafermo me disse?
Ele disse assim: “a menina ficou inchada do estômago e foi ao hospital esvaziar
as tripas. Quando recuperar, vai dar-lhe uma explicação.” Caraças! Apeteceu-me mandar
o empregado àquela parte, mas olhei de lado e aguentei os nervos, não fosse ele
enervar-se mais do que eu e dar-me uma porrada.» -
Lano deixava Coxo
falar sem cortar o diálogo. Os barretes das raparigas da noite chateavam
bastante o carniceiro.
«Já estou
cheio de levar com eles», ─ exclamou. ─ Cada vez perco mais a paciência de ser
sempre o mesmo Cristo.» -
Ao fim dum
bocado de tempo, Lano começou, também, a contar os seus barretes e Coxo ficou
pasmado a ouvir tanta fita à americana. Lano concluiu:
«O meu
sistema é que faço isso de propósito, deixo-as primeiro enfiarem-me o barrete»,
─ raciocinou Lano. ─ Para depois ser eu a seguir; não pago e remeto-lhes uma
factura de despesas.» -
«E elas não
se zangam por isso?», ─ perguntou calmamente Coxo. E Lano respondeu
rapidamente: «E isso faz-me cá uma diferença do carago! É da maneira quer
ficamos quites e não nos chateamos mais.» -
Por esta
altura já Coxo estava bem embriagado e começou a olhar para o relógio aos esses e a praguejar acaloradamente,
mas Lano levantou a mão e disse:
«Não vale a
pena esperar mais. No seu lugar», ─ disse ─ amanhã, punha-lhes junto à borda da
cama uma saca de plástico com os miúdos de pato e, a seguir, dava-lhes duas de
borla para elas não enfiarem o barrete a mais ninguém.» - Mas Coxo coçou o
pescoço e abanou a cabeça:
«Deixe-me
antes contar-lhe a última. Uma história do outro mundo. Hummm! E relaciona-se
com o que estamos a contar.» -
O conto de
Coxo: O maior barrete de que eu tomei conhecimento passou-se na minha terra com
a filha do carniceiro de lá. No dia da sua boda e depois de toda aquela
cerimónia, o noivo preparava-se para comer a febra da noiva quando um caso
insólito aconteceu. Ao que consta, a noiva, no acto importante, começou aos
berros e, no momento em que o noivo se encontrava como que transportado para um
mundo invisível, sentiu-se todo arranhado com as unhas da noiva que não lhe
poupou uns valentes rasgões na pele. E, pior que isso, veio a seguir, quando o
sangue vindo da noiva começou a trespassar pelo lençol numa mancha vermelha,
aterrorizando o noivo que se passou dos carretos e fugiu da cama, trancando-se
nos arrumos do quintal. E, mais tarde, começou a sair o boato cá para fora que
a noiva era uma jovem com uma rodagem bastante alargada nos «nocturnos», e que
o noivo era afinal de contas, muito mais velho do que ela e que fora
redondamente enganado na história daquela virgindade por uma saca forjada de
sangue de porco agarrada à cintura dela e pelas unhas aguçadas de javali,
escondidas no soutien. Portanto, a noiva armou todo aquele banzé para se sentir
atraída por alguém que a desposasse. Um escândalo de ficar solteiro toda a
vida.» - Comentou Coxo, bebendo mais um copo.
«E o que é
que o noivo agora vai fazer?» -
«Nada, já
fez», ─ respondeu Coxo. ─ Foi falar com os sogros e depois deu de frosque,
tendo repudiado a noiva e amaldiçoado o dia em que a conheceu. Só isso.» - Coxo
colocou o copo sobre a mesa. «E desta vez, meu amigo, o barrete cheirou a
esturro!» -
Lano, o
vendedor de trapos, partiu na manhã seguinte com a carrinha carregada de
roupas, para vender pelas aldeias de Trás-os-Montes, seguindo sempre o rumo ao
norte. Ao despedir-se de Coxo, estendeu-lhe a mão e disse:
«Espero que
para a próxima vez, quando cá estiver, possamos fazer uma farra e comer um
peixinho melhor.» - Coxo respondeu:
«Afinal de
contas, você tinha razão. As brasileiras deram-me seca e não apareceram.» -
O rosto de
Lano uma expressão. «Talvez não tivesse perdido muita coisa.» -E foi-se embora.
Naquela
manhã, uma ordem veio através do comando geral e os guardas foram comunicar à
Dona da Banheira que tinham ordens para encerramento do lupanar. Chegava de
imoralidade. E já bastava os vizinhos que passavam o tempo a queixar-se
daquelas poucas vergonhas. Por dentro das suas lamúrias, a Dona pediu ao
oficial da guarda que lhe desse uma hora e que não fizesse grande alarido de
maneira a permitir que os clientes saíssem sem serem incomodados, e o oficial
fez-lhe a vontade. A Dona deu ordem aos amantes das raparigas que avisassem as
meninas para conduzirem os clientes sem espalhafatos pela porta de emergência.
«Façam favor
de pedirem desculpa por esta interrupção. Vão cortar a luz de propósito, para
fazer de conta que o quadro geral da electricidade teve uma avaria eléctrica.»
-
Ordenou aos
amantes:
«E digam que
hoje a corrida é grátis, não pagam nada. É tudo por conta da casa.» -
Foram as suas
últimas palavras. Quando as assustadas raparigas compareceram diante dela
querendo saber se aquilo era mesmo verdade, a Dona não respondeu a nenhuma das
perguntas assustadas.
«Então vamos
ficar sem o nosso emprego, sem direito a subsídio de desemprego, logo agora que
estava a ganhar alta nota? Ponha umas velas na banheira!...» - Até que a Dona
deu um berro:
«Calem-se
suas histéricas e vão-se mas é arranjar.» -
Quando ela se
afastou, todas viram uma mulher frágil e amargurada, fazendo lembrar uma grande
dama que acabara de perder o seu tesouro mais valioso ─ o sagrado tostão.
O comandante
Fiúza não se coibiu de manifestar o seu apoio por acabar com semelhante
esterqueira que abalava a estrutura da nova cara que a cidade estava a querer
implantar aos seus habitantes. Voltou-se para as meninas:
«Bem,
arranjem-se lá e tragam os B.I. na mão, para vos tirar as vossas
identificações.» -
Gritou e
ordenou aos seus homens que deitassem os olhos às «galdérias», não fossem elas
pirarem-se dali à má fila. As mulheres fizeram um vasqueiro desenfreado e
desataram a dar pontapés nas portas e a lançar palavrões, pedindo ajuda aos
amantes que ficaram a ver sem poderem fazer nada se não serem espectadores de
cena, pois Fiúza tinha-lhes dito:
«Elas vão ser
identificadas mas: quanto a vocês, não há provas nenhumas da vossa actividade.
Por isso, pirem-se daqui para fora e não armem sarilho nenhum, se não querem
levar umas chicotadas nesse lombo.»
Eles
mantiveram-se em respeito e quietinhos, observando a cena. Momentos depois, a
mais nova das prostitutas voltou-se para o oficial e gritou:
«Vou fazer
queixa aos índios do meu bairro, tu vais ver, vão-te pôs o canastro a arder!» -
O comandante do pelotão achou graça àquilo.
«Qual de
vocês é o chulo dela?» Perguntou, olhando atentamente um a um.
«Confessem,
ou ponho-vos já a toque de cavalo marinho.» - Um deles respondeu:
«Ela é
virgem; e não quer chulo.» - O oficial deteve-se diante dele:
«Ouvi dizer
virgem? Tás-me a gozar ou quê?» - O mesmo indivíduo acrescentou:
«Bom, é uma
maneira de dizer. Nem todas as raparigas querem ter amante; como é este o ca…»
Sem aviso
prévio, o oficial puxou o proxeneta pelos cabelos e apertou-lhe o pescoço com as
duas mãos.
«Uma
prostituta sem amante?», ─ disse. ─ «Essa é boa. Pois fica a saber que nunca
ouvi tamanha besteira. Só por isso, vou-te mandar rapar o cabelo à escovinha
para aprenderes a não dizer mais asneiras.» - E voltou-se para os outros
amantes.
«Desapareçam
já daqui», ─ ordenou. ─ «E que não volte a pôr-vos a vista em cima; senão
meto-vos no xelindró uns tempos. –
Os amantes
saíram para fora do lupanar e sentaram-se no passeio, alguns com as mão na
cabeça e outros a chorar a perda das suas mulheres. O Comando Geral mandou
identificar as seis prostitutas da Banheira e cada uma delas foi obrigada a
pagar uma multa simbólica, como castigo das suas actividades, que reverteu para
os cofres da comarca, sendo advertidas para procurarem outro modo de vida. E o
oficial, depois dum raspanço, concedeu-lhes uma última oportunidade de se
regenerarem. E assim o bordel foi encerrado e, quando os guardas fecharam a
porta e puseram um cadeado à volta da fechadura, o senhorio colocou um cartaz
na janela: Aluga-se para mudança de
actividade. O oficial entregou a chave ao senhorio, dizendo na sua boa fé.
«Espero que
tenha mais sorte na próxima vez e não alugue a sua casa à prostituição ou a
gente dessa ralé.» - O senhorio respondeu:
«Prostitutas
e ralé, não vejo muita diferença. O que eu quero é o dia 8 de cada mês para
receber o aluguer:»
Acabou assim
o lupanar.