Tuesday, July 29, 2014



CONTOS DE RATAZANA (10)
UMA NOTA DE 2O EUROS
                                                            _______________________                                        


A minha aposentação antecipada aconteceu aos 61 anos com uma média de 300 e picos euros mensais. A minha família era composta de quatro pessoas. Não conseguia arranjar um trabalho. Quem poderia ajudar-me?
_____________________



Pus pés ao caminho e andei porta a porta a deixar cartões a oferecer trabalho, que cobrisse o meu orçamento mensal: vinte euros por dias eram o suficiente. Uma empresa de V.N. de Gaia, convidou-me para prestar provas. Lá fui ter com uma doutora de vestido comprido e um penteado moderno. Ainda não me sentara e já ela abria a boca. «Qual é o ordenado que o senhor pretende ganhar?», disse ela. «Precisamos de alguém que tenha conhecimentos de software e armazém.» Aos 61 anos, eu parecia mais novo e não passava dos 65 quilos de peso. «Trabalhei no ano passado a segurança de um condomínio fechado», exclamei eu. «Doze horas seguidas, controlar relógios e fazer turnos não são coisas que me metam medo.» ─ «Qual é o ordenado que o senhor pretende ganhar?», insistiu ela. ─ «A doutora é que sabe. Se for o ordenado mínimo, tudo bem», respondi. ─ «Fico aqui com o seu contato e dentro de dois dias, dou-lhe uma resposta.» Assim foi. Dois dias depois, a doutora telefonou-me, dizendo que a minha candidatura ficara sem efeito. O que suponho haver candidatos que se ofereceram por menos ordenado. Isto passou-se em Setembro de 2010. A minha família acabara de se mentalizar quanto á minha nova forma de vida. Há algum tempo no desemprego, tive alguma sorte em conseguir uns part-times: administrar condomínios, às vezes motorista particular e também músico de adegas dois a três dias por semana. As minhas magras poupanças, guardadas numa lata, iam-se evaporando com a rapidez de um raio, e sendo o principal esteio da família, com os dois filhos a estudar, eu era o único que podia ajudar. Respondi a anúncios e pedi trabalho em casas comerciais, mas sem uma cunha os comerciantes não queriam apostar num sexagenário. Então, uma terça-feira, o telefone soou. Tinha sido escolhido para concorrer a um anúncio para cobrador de uma associação funerária. Aqui a idade não era impedimento, valha-nos isso! A seguir ao pequeno-almoço, meti-me no autocarro e fui para o centro da cidade. Com um jornal nas mãos, atravessei a rua e passei para o passeio do outro lado. Entrei na porta da associação, apresentei-me e fiquei há espera que mandassem subir para um salão na parte superior do prédio, os seis candidatos a duas vagas para o lugar de cobrador-comissionista. Lá dentro, sentado numa cadeira artesanal, estava um homem alto e com pouco cabelo. Mal a porta se fechou, dizia ele numa voz carregada de suspense: “Sejam bem-vindos à associação funerária.” Os meus companheiros estavam pregados às cadeiras. O rosto do parceiro ao lado parecia uma rocha. O presidente queria a nossa atenção. Garantiu-nos a quem ficasse c´o a vaga dos dois cobradores-comissionistas, que teria um ordenado chorudo: 850 euros por mês ou mais. Mas teríamos que apresentar uma caução no valor de vinte e cinco mil euros. Eu já estava desempregado há bastante tempo para entender como um trabalho era fundamental, ainda para mais, para um chefe de família. Galguei os degraus até à porta, meti a primeira e dei uma volta pelas ruas a puxar pela cabeça. Quem é que me poderia valer com uma caução de vinte cinco mil euros? Quem é que podia confiar em mim como meu avalista? A primeira pessoa que me veio à ideia, era um amigo ligado à imobiliária. Mas a sua resposta foi nula. A mulher teria de assinar e isso era um problema bicudo. Voltei à rua, subi o elevador, e toquei à campainha à espera que me abrissem a porta. «Olá, meu caro! O que o trás por cá?», sorriu o advogado, M´Cardoso, estendendo a mão para me cumprimentar. Engasgando, contei-lhe o problema: a associação, as comissões, a exigência que eles me fizeram sobre a caução. «De maneira que… será que o doutor pode ser o meu avalista dos vinte e cinco mil euros?», finalizei, entendo como aquilo soava despropositado. M´Cardoso olhou para mim como se quisesse ler o meu pensamento. Todavia, foi muito rápido na sua resposta. E sorriu para mim. «Descanse que não é por mim que perde este trabalho», disse, tirando uma folha da escrivaninha. Depois, pediu-me alguns dados pessoais, enquanto ia escrevendo, deixando a parte final para a sua assinatura e releu o documento em voz alta. Dobrou duas vezes o documento, colocou-o num envelope e disse: «Aqui está a caução de vinte e cinco mil euros. Quando sair daqui, vá ao notário reconhecer a assinatura, e está feito.» ─ «Muito agradecido, doutor», disse eu, estendendo-lhe a mão. «Quer que eu assine algum papel?» Ele abanou a cabeça. «Não, meu caro. Confio em si.» Entrei em casa eufórico como se me tivesse saído o euro milhões, e a minha mulher percebeu logo da minha felicidade. «Não demores!», gritou a minha mulher. «Leva a caução e vai já à associação.» Meti-me no autocarro, segui para o centro da cidade até à chegar à associação funerária. Subi os degraus como se fosse o homem-voador, e calmamente, entreguei o envelope à funcionária e disse: «Guarde bem a caução no cofre, dê-me o livro das cotas e as listas das moradas dos sócios.» Tinha preparado bem o discurso no autocarro. Na associação funerária, ao fim-de-semana, entrava-me na pasta uma montanha de notas e moedas, para pagamento de cotas. Eram quase três mil sócios para cobrar. Eu subia e descia quatro andares nos blocos dos bairros, num ritmo infernal… Ao fim do trabalho, mal podia com os calos de andar dez horas a pé sem descanso. No primeiro dia do mês, à medida que se aproximava a hora de entregar as contas, estava cada vez mais ansioso. Não fazia bem ideia de quanto iria receber de comissões. Quase ao abrir a porta da receção, a funcionária levou-me para dentro e perguntou: «Quanto é que trás aí?» ─ «Cinco mil, quinhentos e vinte e cinco euros.» ─ «Você trabalhou bem», disse ela. «Começou com 27,e 62 ao dia.» ─ «Três euros e quarenta e cinco por hora», murmurei. «Quase o dobro do ordenado mínimo.» Estava disposto a trabalhar por menos. Ao longo dos meses que se seguiram, aprendi muito na associação funerária. Quando não havia grande movimento, procurava angariar novos sócios. Nos cemitérios tentei falar com familiares que tinham jazigos e ofereci-me para limpeza e arranjo de flores, o que me valeu uma corridela do cemitério por parte dos coveiros, que vinham em mim, um intruso nos seus negócios. Passava algum tempo a assistir a alguns funerais. Então, um dia, um deles chamou-me a curiosidade. Era um funeral pomposo e cheio de etiqueta. Por si só, fazia um aparato tremendo para as minhas vistas em entusiasmo. Três homens saíram de uma carrinha fúnebre e cobriam o chão com uma passadeira vermelha até à entrada da igreja. Depois, ornamentaram com cordões à volta da passadeira e, por fim, puseram castiçais ao fundo. Ao olhar bem para o serviço, deixei escapar um sorriso sarcástico e perguntei a um deles. «Então, e o morto?» Ele olhou bem para mim como se me quisesse ralhar. «Não se atrapalhe, pois ele não vai faltar!» Voltei costas e segui o meu rumo. Entretanto, ia aumentando todos os meses as minhas comissões, até que no Verão estava a ganhar 30 euros ao dia, o melhor do que quando iniciara. Trabalhei para a associação até acabar o ano, um ano mais tarde, e ir tirar um curso para motorista de táxi. Devolvi a caução ao M´Cardoso, e mantivemo-nos sempre em contato durante décadas, nunca o perdi de vista e sei que lhe devo esta gratidão. Foi ele o verdadeiro salvador, que não só me salvou do infortúnio, como também me ajudou a construir um ambiente familiar melhor. 



CONTOS DE RATAZANA




O motorista de táxi de Massarelos, Francisco, era então, em toda a zona de Miragaia, o condutor mais mulherengo e o mais avarento. Na praça do Infante, passava ele as manhãs desse Outono, enfiado no seu blusão de couro, lendo o jornal sobre o volante, atrás de uma fila de carros, onde desde muito não saía uma carro da periferia, nem se via movimento na rua. Ao escurecer devorava uma sopa e umas sandes, acompanhadas com vinho. Depois, olhando o céu, ia dormir a casa da amante, para aproveitar o calor dela que, atirada como ele, rangiam as tábuas da cama. E o sexo tornara estes dois amantes mais bravios que lobos. Ora, no Inverno, por um calmo aproximar do escurecer de sábado, andando ele na Foz à cata de apanhar um turista de praia, o taxista Dias deparou por trás de um supermercado, uma velhota a olhar para o táxi. Francisco, olhou e viu que a velhota lhe acenava, voltou o táxi na sua direção. «Senhor motorista! Leve-me ao bairro do Aleixo, por favor!» Ao ouvir a palavra «Aleixo», o taxista ficou mais branco que a cera. Depois, gesticulando nervosamente, murmurou: «Não, minha senhora, para esse bairro não! Eu ainda de lá vim a semana passada, e só por recusar trazer três rapazotes, partiram-me o farol e fui corrido à pedrada! E perdi também a bandeirada, com uma vagabunda, que me pôs a secar no carro, pedindo para eu esperar, e até hoje, ainda não apareceu! Oh, minha senhora, para o Aleixo, não! Se aceitar que eu a deixa à entrada do bairro, que não me aventuro a entrar, já que o meu carro está marcado, eu levo-a, e levo-a já!» ─ «Estou tramada!» gritou a velhota, velha mais alta que um pinheiro, de curto penteado, e com uma cara tão risonha como a cor do tomate. Então Francisco, que era alto e moreno, e o mais indiscreto motorista de táxi, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por esperar o que a velhota decide. Por fim, brutalmente: «Minha senhora! O tempo tem horas… Eu quero trabalhar e levar a minha vida!» ─ «Também eu quero levar a minha, que raios!» gritou a velhota. O taxista sorriu, decerto, decerto, quem não quer! E logo ela, agarrada à carteira, murmura: «Senhor motorista, não sei como dizê-lo, mas tenho de estar esta noite no bairro. Vamos fazer um acordo! Eu lhe pagarei o dobro da viagem, se você me levar, ao meio do bairro!» Vivamente, Francisco agarrara o braço da velhota e abrira a porta traseira, para a deixar entrar. E partira satisfeito. «Ali à frente, ao meio da estrada da Circunvalação, há um sítio mais curto, e vamos pelas traseiras.» ─  «Qualquer sítio me serve, desde que me deixe lá.» Foram. O carro se enroscou por trás de um sítio que dominava o atalho, estreito e esburacado como um terreno de batatas. Francisco, saltitando no terreno, já tinha dado uns quantos solavancos. Enquanto coçava o bigode, calculava o tempo pelos pulos. Um grupo de ciganos passou por eles, resmungando. E Francisco, que lhes apanhara o rasto, recomeçou a pensar, com números, pensando nas voltas e reviravoltas que tivera no percurso. Enfim! Bairro do Aleixo! Entrara por um antigo caminho, e parou o carro na berma, murmurando em voz rouca: No meio do bairro! Daqui não passo!» A velhota puxou vagarosamente a carteira, mas oscilou, largando o dinheiro e papéis que caíram ao chão, e ambos se curvaram para os recuperar. Depois de pagar, ainda lhe deu dez escudos de gorjeta: e depois, ao sair, desejou-lhe boa viagem. Francisco voltou para casa. No regresso meditava na sua corrida vantajosa, enquanto a noite ia escurecendo, abriu um pouco mais o vidro, apanhando a brisa do ar que o fez tilintar os dentes. Depois de passar em torno do jardim, e encontrando dois pares de aos abraços e beijos, sentiu uma imensa fome de sexo. Desde uns dias só fizera uma à lá-minuta. E há quanto tempo não dava uma grande! De repente, tomado de uma ansiedade, teve pressa de carregar no acelerador, entre os tapetes, um pequeno pape sobressaía. Puxou-o por uma das pontas dos dedos, para junto dos olhos, e verificou a data. Como raio, aquilo viera parar ali? Era uma cautela da lotaria, andava à roda no dia seguinte. Guardou-a no bolso e entrou em casa. Com que apetite se deitou na cama, com as pernas abertas, e entre elas a amante loura, que acordara, e o desejo os unira. Rapidamente, essa necessidade a imaginação de trocadilhos de amor, de amantes acalorados, apoderou-se dele. Levantou uma perna da amante: beijava a deliciosos beijos. A noite escurecia, pensativa e doce, com sonhozinhos cor-de-rosa. Francisco ergueu à luz o corpo da amante. Com aquela cor nova e quente, não demoraria muito a aquecer. Pondo os mamilos à boca, sorveu com carícias lentas, que lhe faziam levantar os pêlos do peito peludo. Oh, carícias benditas, que tão prontamente aquecia o desejo! Depois, estendeu-se sobre o cotovelo, descansando, pensava em Massarelos coberta de casinhas pequenas em cima umas das outras, nas altas temperaturas do ambiente, por noite de frio, e a sua casa com aquecedor, onde teria sempre a amante. De repente, voltado para o ar, virou-se para o lado e adormeceu. Na manhã seguinte, ao levantar-se da cama, pela hora do silêncio, a amante loura entrou na cozinha para preparar o pequeno almoço, quando ergueu o olhar para o amante e foi como se uma mola a tivesse empurrado para pôr ordem nas roupas dele em total desordem pelo chão.  De repente, teve desejo de lhe ir aos bolsos. E fixou os olhos na pequena cautela… Depois de examinar a validade, pegou no pequeno papel, com vagarosa cautela, na ponta dos pés, voltou para a cozinha e ligou o rádio, porque estava na hora da extração. E, sorrateiramente, afinou os ouvidos, a ponto de ouvir, a cantada vibrante e prolongada, atirada aos microfones:

2! 4! 7! 3! 9!
3º Prémio,
      Quinhentos mil contos…

E imediatamente, com os olhos a reluzir de excitação e ansiedade, agarrou na cautela e saiu, correndo pela rua, até uma casa de lotarias. E aí, entregando a cautela, e o bilhete de identidade, esperou pacientemente, até receber o cheque endereçado, com as mãos a tremer de frenesim. A amante, correu pela rua ao banco, gritou para diante de si alegremente: «O! Sorte, nunca me vou esquecer do dia de hoje! E eu, que tantas vezes te implorei!»

                                                                 II

Mal a tarde chegou, Francisco, dentro do quarto apagado, ergueu-se da cama, sonolento e nu, correu para o chuveiro. E, animado com o banho, sem necessidade de mudar de toilette, vestiu-se. De repente, lembrou-se da cautela e foi ao bolso, e contemplou-a. Já entre as quatro da tarde o sol se refugiava. Puxou de uma caneca e bebeu um trago de café. Depois, ligou o rádio, ouvindo a repetição dos números sorteados:

2!4!7!3!9!
3º Prémio,
   Quinhentos mil contos…

Agora estava rico, só ele, e os quinhentos mil contos!... E Francisco abrindo os braços respirou deliciosamente. Mal se aprontou, com a cautela enfiada no bolso, apressou o passo pelas ruas que conduzem à casa da Sorte Grande, para receber o seu prémio! E quando ali se apresentou, para além dele e de um funcionário acompanhado de um agente policial, recebeu de imediato voz de prisão por frande… Fraude como? Recuou, caiu na cadeira, e levou as duas mãos aflitas à cabeça. Ainda se ergueu; com uma baba espessa a escorrer-lhe nos bigodes; e de repente, esbugalhando copiosamente os olhos, berrou, como se compreendesse enfim toda a traição da amante, todo o pesadelo! «Maldita!» Oh! Francisco, o dinheiro era tentação! Porque a amante loura, apenas fora a uma papelaria tirar um fotocópia da cautela, mesmo antes de levantar o prémio, correra feita uma andorinha do mato a casa para deixar a cópia, e voltar a um banco, por detrás da igreja, a depositar o prémio e receber um cartão multibanco que, a tornaria a ela, a ela somente, dona de todo o dinheiro.

                                                                  III


Dois meses se tinham passado, sobre o roubo da cautela. A amante, cantando e rindo, levava uma vida de sonho no outro lado do Atlântico. Meia solteira, no seu chalé, toda ela se tornara morena a apanhar banhos de sol. Uma estrelinha do céu amparou-a. O dinheiro da cautela está lá, no chalé da baía.


Wednesday, July 9, 2014





CONTOS DE RATAZANA
______________________
     

                            O LUPANAR

A Banheira era o lupanar mais famoso da cidade, um rés-do-chão comprido em forma de labirinto, cercado de quartos com banheiras de imersão, decorados todos do mesmo estilo, sempre com as mesmas tendências da caligrafia do Amor, uns tapetes com figuras de burros e jericos no chão, um grande chafariz de pedra encostado à parede e uma estátua do Senhor do Chicote, de pila na mão, simbolizando o amor afrodisíaco. Poucos dos clientes d´ A Banheira conseguiam sozinhos descobrir o caminho para o quarto. Era necessário ser acompanhado pela cortesã escolhida ao local especificado. Deste modo, as meninas estavam protegidas das visitas dos indesejáveis clientes que não tinham a menor hipótese de fugir sem pagar. Era um mundo sem janelas nem varandas, dirigido pela quarentona e sabida Dona da Banheira, cujas afinidades com os clientes eram um dado adquirido, ao longo dos anos, para o bom funcionamento da casa. Nem o pessoal nem os clientes conseguiam desobedecer às suas ordens, que eram logo posto fora à vassourada, enxovalhados e atirados para o meio da rua, se isso fosse necessário, para manter a ordem e o devido respeito da casa. Por isso, quando o emproado Lano, vendedor de trapos e ganga barata, se apresentou diante dela a troco de pôr as suas meninas a vestir-se em roupas vistosas de várias cores, convenceu a Dona da Banheira e foi imediatamente aceite sem vacilações. O negócio para Lano resumia-se na venda de roupa às raparigas e receber em troca «uns favores» de prazer e gozo com as modelos que ele escolhia. E, quando a força policial fora fazer uma rusga ao local, a Dona guiara-a numa viagem curta e mal cheirosa pelos labirintos peçonhentos. Até os guardas ficaram com a cabeça a andar à roda pelo que, após terem espreitado para dentro daqueles quartos de massagens e cheiros exóticos e deparados apenas com latas de conserva, restos de pão, cascas de maças e garrafas de cerveja, se foram embora resmungando energicamente, não suspeitando sequer que uma hora antes a Dona recebera um telefonema a avisá-la daquela rusga, o que lhe dera tempo de pôr os clientes na rua. Depois disso, a Dona mandou fazer um fumeiro de eucalipto e, a seguir, desinfectou com Tide toda a casa, deixando um aroma suave e atractivo, de forma a não levantar suspeitas da tramóia que ela pregou aos polícias.

As visitas de Lano à Dona da Banheira tornaram-se permanentes e nem por sombras o privou de rapidamente ganhar a sua confiança, tornando-se um recoveiro, levando e trazendo confidências. Cada vez se tornava mais importante a sua presença, e a Dona ordenou às prostitutas que o tratassem bem do pêlo, autorizando-lhe a utilizar a sua banheira especial hidromania, pois a sua falta de dentes  e cabelo não deixaria de fortalecer e recuperar o mais rápido possível. Uma vez que os seus favores iam aumentando conforme as suas vendas, obrigou-se a depender mais horas de exercícios, recebendo com agrado as carícias das prostitutas e dando ao vendedor de trapos um alcance de visão superior do que poderia obter, se acaso andasse pelas ruas à procura das chamadas «mulheres do povo»… A ganância era às vezes um obstáculo: criava vícios no seu modo de habituação e Lano, que era obeso, tinha mais olhos que barriga. Depois do terceiro favor directo que recebera num dia, ao ouvir os murmúrios das prostitutas que acompanharam com ele o acto da fornicação, teve um chilique e caiu na banheira, sendo socorrido por uma delas que o tirou pelo cachaço e pôs no chão esticado num lençol. A seguir, deram-lhe um chã de tília para ele recuperar. Pela boca da rabugenta Dona da Banheira chegou a notícia que, a partir de agora, era obrigatório o uso do preservativo e o preço para uma espetadela passava de quatro para oito contos, com direito a vinte minutos de massagem autêntica ou sintética. As orgias animalescas em que interferiam quatro ou mais parceiros, só eram permitidas em dias feriados.

«Mas que diabo, estas novas tabelas são altas e só vieram dificultar o cliente habitual. Quero o livro de reclamações para apresentar o meu protesto.» - Murmurava um deles ao montar a menina da sua escolha, mas teve que encaixar das boas.
«Os preços são altos porque as mulas são melhores», ─ respondera a Dona para o cliente que atrevidamente retorquiu:
«Por este preço tenho direito a dois pratos.» - E, ao dizer aquilo, começou ele a guinchar, presumivelmente por motivos de gozo. E o carniceiro da carne, Coxo, confessou ao ajudante do talho que os hábitos são difíceis de quebrar e que, quando lá ia levar a carne, nunca vinha de lá sem espetar na sua favorita «duas nas nádegas e às vezes também na serviçal do pó; passava o espanador, o que é que um homem há fazer ao vê-las assim: como vieram ao mundo?» - E foi assim que o carniceiro aprendeu a lição de que ─ mais vale roer do que sofrer. ─

Lano começara a mudar e a tomar consciência de que, a partir da meia idade ─ nunca é demais ─ enjeitar os desejos quando em demasia. A notícia que o médico lhe dera que o enfarte estivera próximo e que poderia ter sido fatal, fê-lo mergulhar numa profunda calmaria pois, mesmo quando o cio do desejo lhe chegava aos testículos através das novidades que iam chegando à Banheira, ele revelava-se mais cauteloso e consciente de que era preferível comer pela qualidade do que pela quantidade. Mas, quando o primeiro fôlego se espraiou dentro do seu espírito voraz, Lano aproveitou ─ a ocasião para esganar a ilusão ─ e atirou-se com todas as forças à última novidade que chegara, a troco de um conjunto de roupa variada que se vendia na feira pelo valor de mil escudos. Perdeu o medo e ganhou de novo a segurança que o amor na Banheira lhe inspirara e, a partir daí, nada o assustava.
«Tens um corpo jeitoso. Com aquele decote da Princesa do Cai-Cai e as calças de caqui do Hommer Simpson», ─ disse ele com o rosto sério. ─ «Ficavas cá um pito que nem  a Shifar te passava a perna.» - E ela muito lampeira respondeu:
«Não é assim que se diz, mas sim, Claudia Schiffer.» -
No fim de uma visita devotadamente aventureira, Lano descobriu, para sua grande surpresa, que cada vez ganhara mais erecção e desejo sexual o que lhe dava motivo de querer estar sempre a molhar o pincel em cima das telas que paravam no lupanar. E que capacidade era essa? ─ Nunca tinha entendido muito bem ─ sem que isso fizesse dele um Gungunhana. Em suma, Lano chegara ao máximo. Começou, sem hesitar, a deixar para trás a conquista de raparigas sem técnica nem estofo de cabriteiras e estabeleceu uma regra que determinava a si mesmo; comer pouco e melhor, era indispensável. O facto dessa regra implicar um aumento na tarifa que cobrava uma rapariga com estofo de primeira qualidade, nada o impedia de abrir os cordões à bolsa ou, em segundo via, cambiar a relação por um conjunto de vestes de melhor qualidade. E, quando o carniceiro um dia resmungou com ele a propósito das raparigas de estofo, no final vai tudo dar ao mesmo, um homem vem-se e pronto, já está. Lano abanou a cabeça como a dizer: isso è o que tu pensas, meu artola, mas não será bem assim.

As meninas da Banheira eram afamadas de possuírem toda a técnica de combate de que uma boa funcionária da Dona pode prezar. Feita uma apreciação global à equipa de trabalho às suas ordens, a mais velha era uma mulher de quarenta e picos anos, enquanto a mais nova, com dezoito, tinha mais traquejo que muitas das outras colegas de profissão. E elas tinham-se afeiçoado ao ardido e rufião Lano, e a verdade era que lhe agradava a sua companhia, pelo que, fora das horas do expediente, se punham a rebolar a bilha numa casa de dança sem muitos requisitos que por aí abundam pela cidade, deixando-o exibir a sua mestria de razoável dançarino de rumba. E, depois da dança dos pés, aparecia a dança do corpo, num quarto qualquer, onde as duas mulheres se punham a provocá-lo maliciosamente, exibindo o corpo e fazendo topless, mostrando-lhe os seios e, depois enlaçando-lhe a cintura com as pernas, beijando-se ardentemente uma à outra a um passo dele, até que o vendedor de trapos ficava loucamente excitado; e então elas riam ─ como malucas de vê-lo de pau feito e tanto riam que o faziam voltar à estaca zero. Ou seja, de vela em baixo. A partir daí, Lano já perdera a ideia de passar um bom bocado e já trocava os favores pela roupa que voltou a parar nas suas mãos. E assim, qual pau qual caraças, deitou mãos às roupas e deu o piro dali, deixando-as a chupar uma à outra, pensando na forma de se vingar, mas ainda foi capaz de mandar o seu palavrão da ordem: «Ordinárias, sois mas é cá um putedo!» -

Foi numa dessas pausas do trabalho em que a casa não tinha um cliente sequer, quando as mulheres estavam a sós na galhofa umas com as outras, que se puseram a cochichar. Falara a mais nova delas acerca do seu cliente Coxo, o carniceiro.
«Que tolo de homem!», ─ disse ela. ─ A grande mania dele são os pêlos. Cisma que eu tenho pêlos nos seios e obriga-me a tapá-los com uma toalha e depois só se excita quando lhe ponho a fazer cócegas no ânus. E depois diz-me tantas asneiras que até me venho a rir. Que eu sou parecida com a vaca da mulher dele, que tenho as mesmas curvas físicas que ela, só que, para me realizar, rio-me, enquanto a mulher dele chora…» - A quarentona interveio também na conversa.
«Escutem só, os homens não falam de outra coisa a não ser do preservativo, que não se excitam com aquela camisa transparente plastificada, que têm nojo de pôr aquilo nas mãos, e as mulheres de cá têm de fazer como eu faço. Meto antes a camisinha debaixo da língua e depois, sem o pascácio dar por ela, já está: trigo limpo e farinha amparo.» - Concordou uma delas:
«É o que se deve fazer. Tens de nos ensinar.»   
«Especialmente para certos clientes», ─ acrescentou a mais nova ─ «Para aqueles de quem nós não temos a mínima confiança. Sobretudo os que não se lavam, ou aqueles que querem fazer fantasias com o pau a nu a boiar em cima da água na banheira.» - Depois, comentou outra prostituta que estivera calada até então.
«As pessoas também fazem mais fantasias daquilo do que parece. Eu pergunto sempre ao cliente: com ou sem? Se ele diz com, eu vou por baixo, se ele diz sim, eu vou por cima.» -
«E como é que fazes?» -
«Como disse a nossa veterana colega. Enfio antes o artigo na vagina enrolado numa esponja e ninguém dá por ela.» -
«Meu Deus», ─ disse a rapariga. ─ Se eles topam, ainda te fritam os mamilos com molho de tomate.» - A de dezoito anos tornou a confidenciar às outras que a escutavam com curiosidade. Acto contínuo acendeu uma luz nos olhos dela.
«Eu conto-lhes tudo», ─ disse. ─ Como nasci, quando comecei a ler, o primeiro beijo que dei foi quando fui desflorada numa cavalariça, aos treze anos, pelo ferreiro do meu pai. No fim, ele deixou-me dar uma volta em cima da égua mas, no fundo, não gozei nada e ainda estou à espera de passar os melhores anos da minha vida.» - As seis prostitutas do lupanar desde há muito tempo que davam conta do recado, aumentando os lucros à gananciosa Dona e prometendo ainda aumentar mais. Onde há vício e beleza não falta chouriço nem mesa. Lano revelou à Dona a sua ideia de lhe arranjar umas estrangeiras para A Banheira; esta ajuizou do problema com a polícia. «Isso é muito perigoso», ─ exclamou. ─ «Mas é capaz de ser aliciante para o negócio. Eu vou nessa. Podes avançar, meu sacana.» -

Quando se espalhou pelas casas de passe a notícia de que tinham chegado umas caras novas e brasileiras na casa da Banheira, a excitação dos clientes da cidade foi notória; porém tinham medo que a casa fosse vistoriada ─ quer por saberem que numa rusga ao local poderiam ter chatice com a polícia, quer pela nova tabela do lupanar de que o novo serviço cobrado ia quase ao dobro… mas a notícia não chegou aos ouvidos das autoridades. Por essa altura, Lano tinha falado a toda a gente o que conhecia do ambiente e levou-os lá a troco de tomarem uma bebida e prevenira-os que iam conhecer a fina flor do nordeste brasileiro. «As brasileiras são tão doces como o mel», ─ fez referência perante eles. ─ «É melhor conhecê-las com calma.» - Assim, os novos clientes atracaram-se às beldades brasileiras e logo o negócio registou um aumento de quinhentos por cento no total do apuro. Por motivos óbvios, era aconselhável marcar hora para não haver bicha na entrada da porta e, para muitos, o tempo da massagem encurtava cinco minutos por sessão. Cada cliente recebia como bónus um preservativo e a Dona, ao observar através do vidro camuflado no escritório as figuras dos clientes com os preservativos na mão, punha-se às gargalhadas que até assustava o papagaio em cima duma gaiola a palrar; Enfia a camisinha, sim… Nos termos a seguir, o pessoal da Banheira afeiçoou-se à nova realidade. A prostituta de dezoito anos, «Elizabete», era a mais solicitada da clientela pagante, tal como a sua partenaire, «Beta», o era em segundo plano e, depois, vinha a «Seu Bombom» que vivia com o seu prostituto nos aposentos da Dona. Esta Beta mamona começou a mostrar-se ciumenta do lugar que ocupava de mais amada. Ficava contrariada quando via as outras a registar um maior número de saídas e receber gorjetas mais generosas. A prostituta mais velha e mais redonda, que adoptara o nome de «Bolacha Maria», dizia à sua clientela ─ de resto, farta dela, pois muitos eram aqueles que a procuravam para lhe oferecer o lanche da tarde (chã e bolachas) e outros para um corridinho à moda do Minho ─ a história de como o Barão da Piroca praticara com ela a primeira vez o coito, numa tarde à chuva, quando ela era principiante no ofício.

«Ele deu-me três tão mal dadas», ─ dizia ela, excitando imensamente os clientes. ─ Que eu chorei todo o dia. Deu-me a primeira molhada, a segunda recriada e a terceira bombeada, que só me lembro de ficar toda ensopada.» - Ouviram-se risos. A prostituta «Bibi» fez-se por seu turno, tão melodramática como a sua colega e exclamou:
«Ó filha, tiveste mais sorte do que eu, que perdi os três a cagar; ouvi falar da bomba atómica e olá; não aguentei a pressão…» - As gargalhadas subiram ao rubro.

Todas as prostitutas têm os seus quês. Quer pelos seus encantos maternais, quer por outras agradáveis surpresas. Mas tinham um lado negativo. Por exemplo, entravam constantemente em guerrinhas por tudo e por nada, em conflitos com as duas prostitutas brasileiras mais formosas. As outras sempre as tinham achado um bocado peneirentas e que tinham o vício de lhe sacarem os clientes mais requintados do bordel. No fundo da questão, o trivial é sempre o mesmo. As prostitutas só falavam em dar mocadas para fazer dinheiro e mais dinheiro, de dinheiro e de sexo a conversa era sempre a mesma, mas não julguem que era só falar, por falar. Ao fim de alguns meses, as seis beldades, conforme o tempo avançava, as suas performances começavam a apagar-se e a deixar de dar o rendimento desejado. Lano, mais desdentado e com menos cabelo de mês para mês, viu também as suas vendas fraquejarem e os favores a diminuírem, acabando por cavar e deixar ali apenas o seu rasto. As raparigas também começaram a demandar-se para as casas da concorrência e a Dona não teve outro remédio senão alterar as regras. Nesse tempo era usual as prostitutas, ao entrarem para o trabalho, deixarem os seus amantes à porta, ou então, nos cafés mais próximos do local a fazer horas ─ enquanto elas esgravatavam o graveto para à noite darem um de pé de dança, beber uns copos, e ficar com algum pataco para o almoço do dia seguinte. ─ Mas agora essas regras foram quebradas e chegou o dia em que as raparigas pediram autorização à Dona para deixar entrar os seus amantes, pois sentiam necessidade do seu apoio, além de que consumiam despesas para a casa, coisa que, afinal de contas era importante para os cofres da Dona. Esta a princípio tentou dissuadi-las dessa ideia, mas, quando viu que elas não desarmavam, não teve outra saída senão ceder nas pretensões delas, embora citando de que na primeira bronca que houvesse, corria à latada, fosse com quem fosse pela porta fora. No fim, pôs-se aos risinhos e às cotoveladas a elas, ordenando com a sua voz autoritária: «Ide a eles, não os poupeis.» -

Os proxenetas das raparigas deixaram bem claro que esperavam cumprir à risca os seus deveres como clientes e criaram entre eles um sistema rotativo no qual, um de cava vez por semana, passava a acumular as funções de porteiro, sendo o dia para o trabalho e negócios e a noite para o divertimento com as suas parceiras. Assim que eles embarcaram nessa missão, as prostitutas trabalhavam com maior convicção, ou seja, entregavam-se mais afincadamente à função para mostrarem aos seus «homens» que eram umas autênticas máquinas de fazer dinheiro.
«Porque é que não vais fazer aquele tipo?», ─ perguntou a indignada «Bolacha Maria», mas logo se opôs «Beta» terminantemente.
«Aquele gajo não faço, porque o meu homem não gosta dele», ─ declarou, ─ «além disso, tenho a mínima ética. Não gosto de fazer os amantes das minhas colegas de trabalho. A minha tarefa é fazer uns gajos, não sei se entendes.» -
«Bom, seja lá como for», ─ disse «Maria, a gorda», encolhendo os ombros. ─ «Eu aqui dentro não conheço ninguém. Por isso, vou lá aviar o tipo.» -

No fundo da moral, as prostitutas d´ A Banheira eram as mulheres mais convencidas e antiquadas da cidade. O seu metier que tão propício se tornava a deixá-las cínicas e amarguradas (e elas, eram evidentemente capazes dos piores raciocínios) tinha-as, em vez disso, feito numas incorrigíveis sonhadoras. Presas do mundo exterior, tinham concebido uma fantasia da vida normal em que não queriam outra coisa senão ser pessoas obedientes e submissas dum homem que fosse reguila, amante e cavalão. Quer dizer: todos estes anos a dar o corpo ao manifesto das fantasias dos outros tinham acabado por lhes aniquilar aos poucos os sonhos, ao ponto de, mesmo no fundo do íntimo dos seus corações, já não se sentirem uma sensibilidade que superasse um novo sonho. E o perverso Lano começou a aparecer de novo e a ganhar confiança com as novas atracções da casa. E descobriu que, de seis mulheres, ainda lhe faltava comer três, pelo que se pôs a competir com os seus trapos em câmbio dos seus favores, pela graça de um sorriso seu, e aguardar a melhor altura para atacar. Certa ocasião em que as disputas com elas o irritaram, repudiou-as a todas ao mesmo tempo. «Ainda haveis de vir a cair à minha mão.» - Quando, passados dez minutos foi ter com «Sua Bombom», ela zombou dele e chamou-lhe: «Você é um bobo.» - Mas, naquele dia, «Sua Bombom», apanhou-o no quarto com «Bolacha Maria» e, minutos depois, com «Beta.» - Ele pediu a «Sua Bombom» para não contar nada a «Elizabete», por quem estava redondamente apaixonado; mas ela contou à outra e Lano viu-se obrigado a evitar durante alguns dias a «Rainha dos ovos de ouro» do bordel. A obsessão que assim nascia era a mais atractiva que algumas vezes sentira. Às vezes, quando estava com outras na cama, sentia-se tomado como se uma droga tivesse ingerido e ficava lento, as pernas pesavam-lhe o triplo e tinha de acalmar. «É estranho», ─ dizia ele. ─ «É como se tivesse comido um boi, ou tivesse pegado em dez sacos de batatas.» - Estas sintonias começaram a baralhar-lhe as ideias. Certa vez, deu-lhe o sono e adormecer no sofá do quarto ao lado de «Sandra.» Quando acordou, horas mais tarde, doía-lhe o corpo, parece que tinha partido o pescoço, que mal conseguia endireitar a cabeça e repreendeu-a:
«Porque é que não me acordaste?» - Ela respondeu:
«Estavas a ressonar que nem um justo, até tive pena.» - Ele abanou a cabeça.
«OK, já entendo. O que quiseste foi deitar-me abaixo para dizeres às tuas amigas que já foste para a cama com o grande Lano. Mas fica a saber de quem eu gosto, não é de ti.» -

Duas semanas e dois dias depois de Lano fazer uma abstinência aos seus apetites sexuais, Coxo, o carniceiro, viu-se de cor amarelada no rosto e de calças justas à gigolô e os sapatos bicudos de sola. Lano saía do quarto de «Sandra» quando o carniceiro o topou e apontou para ele, gritando:
«Então, já acabou o jejum?» - Sandra saiu à porta do quarto, pondo-se a espreitar. Mas Nano disse: «Pira-te já para dentro, antes que o Coxo te coma com os olhos.» - Convidou o carniceiro para beber uma bebida e, instantes depois, abriu no bar uma garrafa de whisky escocês e enfiaram dois dedos de conversa animada e sempre relativa a barretes.
«Ande lá, beba um copo», ─ expressou Lano com a garrafa na mão, enquanto, o carniceiro insinuou:
Nunca bebes o primeiro copo. Foi um marroquino que me disse isso, derivado à sua religião.» -
Lano olhou surpreendido para ele:
«E você como o faz?» - Perguntou.
«Bebo sempre a partir do segundo.» - Respondeu Coxo, muito risonho.
«Essa tem piada. Estamos sempre a aprender.» - Concordou Lano, bebendo o primeiro copo com sofreguidão.
Coxo abriu os braços num gesto de desencanto e disse:
«Estou aqui porque marquei um encontro com as brasileiras que me encomendaram miúdos de pato para o jantar», ─ disse ele, com um brilho no olhar. ─ «E vou aproveitar a ter uns momentos de prazer, isto é, se elas vierem com disposição para fazermos ─ o carroucel do amor!» ─ Depois de Lano ter soltado um risada pelo dito dele, o Coxo sentou-se de pernas esticadas e cruzadas na cadeira estofada de napa. A sua esperança e a sua ambição tinham sido bem regadas pelo álcool.
«As mulheres só nos pregam ilusões», ─ disse ele, bebendo muito rapidamente. ─ «Mas sem essas ilusões estamos feitos ó bife! Vou esperar mais uns minutos; se elas não aparecerem até o ponteiro estar entre as duas, deixo-as ao seu critério.» -
Mas Lano não ficou muito convencido disso. 
«Deixe lá isso. Você nem a um cão dá um osso, quanto mais dar duas trutas dessas que fazem o consolo a um moribundo.»
À medida que a garrafa se ia esvaziando, Coxo voltou outra vez a focar o tema, com o Lano já esperava, das brasileiras terem-lhe enfiado o urso ou o barrete como se costuma dizer. Contou ele a Lano uma história curiosa, entre ele e a rapariga da boite, relatando o barrete como facto humilhante.
«A rapariga do night-club chupou-me de bandeja quatro garrafas de champanhe francês, prometendo que depois do fecho da casa ia ter comigo ao quarto do hotel, para me brindar com uma cena das mil e uma noites», ─ disse Coxo. ─ Ela falava tão meiguinho e não sei que mais que eu deixei-me escorregar. Como havia eu de saber? Depois, no fim, ela entrou em transe ─ estava-se mesmo a manjar ─ e atirou-se para a alcatifa com um desmaio prolongado e, pouco depois, saiu para um táxi que a levou não sei para onde. E eu caí como um patinho, na mesa de braços cruzados, a olhar para a bola giratória da pista cheia de efeitos especiais. Ora bem; fui ter com o empregado. O que é que ele me ia dizer? Sabes o que é que o estafermo me disse? Ele disse assim: “a menina ficou inchada do estômago e foi ao hospital esvaziar as tripas. Quando recuperar, vai dar-lhe uma explicação.” Caraças! Apeteceu-me mandar o empregado àquela parte, mas olhei de lado e aguentei os nervos, não fosse ele enervar-se mais do que eu e dar-me uma porrada.» -
Lano deixava Coxo falar sem cortar o diálogo. Os barretes das raparigas da noite chateavam bastante o carniceiro.
«Já estou cheio de levar com eles», ─ exclamou. ─ Cada vez perco mais a paciência de ser sempre o mesmo Cristo.» -
Ao fim dum bocado de tempo, Lano começou, também, a contar os seus barretes e Coxo ficou pasmado a ouvir tanta fita à americana. Lano concluiu:
«O meu sistema é que faço isso de propósito, deixo-as primeiro enfiarem-me o barrete», ─ raciocinou Lano. ─ Para depois ser eu a seguir; não pago e remeto-lhes uma factura de despesas.» -
«E elas não se zangam por isso?», ─ perguntou calmamente Coxo. E Lano respondeu rapidamente: «E isso faz-me cá uma diferença do carago! É da maneira quer ficamos quites e não nos chateamos mais.» -
Por esta altura já Coxo estava bem embriagado e começou a olhar para o relógio aos esses e a praguejar acaloradamente, mas Lano levantou a mão e disse:
«Não vale a pena esperar mais. No seu lugar», ─ disse ─ amanhã, punha-lhes junto à borda da cama uma saca de plástico com os miúdos de pato e, a seguir, dava-lhes duas de borla para elas não enfiarem o barrete a mais ninguém.» - Mas Coxo coçou o pescoço e abanou a cabeça:
«Deixe-me antes contar-lhe a última. Uma história do outro mundo. Hummm! E relaciona-se com o que estamos a contar.» -
O conto de Coxo: O maior barrete de que eu tomei conhecimento passou-se na minha terra com a filha do carniceiro de lá. No dia da sua boda e depois de toda aquela cerimónia, o noivo preparava-se para comer a febra da noiva quando um caso insólito aconteceu. Ao que consta, a noiva, no acto importante, começou aos berros e, no momento em que o noivo se encontrava como que transportado para um mundo invisível, sentiu-se todo arranhado com as unhas da noiva que não lhe poupou uns valentes rasgões na pele. E, pior que isso, veio a seguir, quando o sangue vindo da noiva começou a trespassar pelo lençol numa mancha vermelha, aterrorizando o noivo que se passou dos carretos e fugiu da cama, trancando-se nos arrumos do quintal. E, mais tarde, começou a sair o boato cá para fora que a noiva era uma jovem com uma rodagem bastante alargada nos «nocturnos», e que o noivo era afinal de contas, muito mais velho do que ela e que fora redondamente enganado na história daquela virgindade por uma saca forjada de sangue de porco agarrada à cintura dela e pelas unhas aguçadas de javali, escondidas no soutien. Portanto, a noiva armou todo aquele banzé para se sentir atraída por alguém que a desposasse. Um escândalo de ficar solteiro toda a vida.» - Comentou Coxo, bebendo mais um copo.
«E o que é que o noivo agora vai fazer?» - 
«Nada, já fez», ─ respondeu Coxo. ─ Foi falar com os sogros e depois deu de frosque, tendo repudiado a noiva e amaldiçoado o dia em que a conheceu. Só isso.» - Coxo colocou o copo sobre a mesa. «E desta vez, meu amigo, o barrete cheirou a esturro!» -

Lano, o vendedor de trapos, partiu na manhã seguinte com a carrinha carregada de roupas, para vender pelas aldeias de Trás-os-Montes, seguindo sempre o rumo ao norte. Ao despedir-se de Coxo, estendeu-lhe a mão e disse:
«Espero que para a próxima vez, quando cá estiver, possamos fazer uma farra e comer um peixinho melhor.» - Coxo respondeu:
«Afinal de contas, você tinha razão. As brasileiras deram-me seca e não apareceram.» -
O rosto de Lano uma expressão. «Talvez não tivesse perdido muita coisa.» -E foi-se embora.

Naquela manhã, uma ordem veio através do comando geral e os guardas foram comunicar à Dona da Banheira que tinham ordens para encerramento do lupanar. Chegava de imoralidade. E já bastava os vizinhos que passavam o tempo a queixar-se daquelas poucas vergonhas. Por dentro das suas lamúrias, a Dona pediu ao oficial da guarda que lhe desse uma hora e que não fizesse grande alarido de maneira a permitir que os clientes saíssem sem serem incomodados, e o oficial fez-lhe a vontade. A Dona deu ordem aos amantes das raparigas que avisassem as meninas para conduzirem os clientes sem espalhafatos pela porta de emergência.
«Façam favor de pedirem desculpa por esta interrupção. Vão cortar a luz de propósito, para fazer de conta que o quadro geral da electricidade teve uma avaria eléctrica.» -
Ordenou aos amantes:
«E digam que hoje a corrida é grátis, não pagam nada. É tudo por conta da casa.» -
Foram as suas últimas palavras. Quando as assustadas raparigas compareceram diante dela querendo saber se aquilo era mesmo verdade, a Dona não respondeu a nenhuma das perguntas assustadas.
«Então vamos ficar sem o nosso emprego, sem direito a subsídio de desemprego, logo agora que estava a ganhar alta nota? Ponha umas velas na banheira!...» - Até que a Dona deu um berro:
«Calem-se suas histéricas e vão-se mas é arranjar.» -
Quando ela se afastou, todas viram uma mulher frágil e amargurada, fazendo lembrar uma grande dama que acabara de perder o seu tesouro mais valioso ─ o sagrado tostão.
O comandante Fiúza não se coibiu de manifestar o seu apoio por acabar com semelhante esterqueira que abalava a estrutura da nova cara que a cidade estava a querer implantar aos seus habitantes. Voltou-se para as meninas:
«Bem, arranjem-se lá e tragam os B.I. na mão, para vos tirar as vossas identificações.» -
Gritou e ordenou aos seus homens que deitassem os olhos às «galdérias», não fossem elas pirarem-se dali à má fila. As mulheres fizeram um vasqueiro desenfreado e desataram a dar pontapés nas portas e a lançar palavrões, pedindo ajuda aos amantes que ficaram a ver sem poderem fazer nada se não serem espectadores de cena, pois Fiúza tinha-lhes dito:
«Elas vão ser identificadas mas: quanto a vocês, não há provas nenhumas da vossa actividade. Por isso, pirem-se daqui para fora e não armem sarilho nenhum, se não querem levar umas chicotadas nesse lombo.» 
Eles mantiveram-se em respeito e quietinhos, observando a cena. Momentos depois, a mais nova das prostitutas voltou-se para o oficial e gritou:
«Vou fazer queixa aos índios do meu bairro, tu vais ver, vão-te pôs o canastro a arder!» - O comandante do pelotão achou graça àquilo.
«Qual de vocês é o chulo dela?» Perguntou, olhando atentamente um a um.
«Confessem, ou ponho-vos já a toque de cavalo marinho.» - Um deles respondeu:
«Ela é virgem; e não quer chulo.» - O oficial deteve-se diante dele:
«Ouvi dizer virgem? Tás-me a gozar ou quê?» - O mesmo indivíduo acrescentou:
«Bom, é uma maneira de dizer. Nem todas as raparigas querem ter amante; como é este o ca…»
Sem aviso prévio, o oficial puxou o proxeneta pelos cabelos e apertou-lhe o pescoço com as duas mãos.
«Uma prostituta sem amante?», ─ disse. ─ «Essa é boa. Pois fica a saber que nunca ouvi tamanha besteira. Só por isso, vou-te mandar rapar o cabelo à escovinha para aprenderes a não dizer mais asneiras.» - E voltou-se para os outros amantes.
«Desapareçam já daqui», ─ ordenou. ─ «E que não volte a pôr-vos a vista em cima; senão meto-vos no xelindró uns tempos. –

Os amantes saíram para fora do lupanar e sentaram-se no passeio, alguns com as mão na cabeça e outros a chorar a perda das suas mulheres. O Comando Geral mandou identificar as seis prostitutas da Banheira e cada uma delas foi obrigada a pagar uma multa simbólica, como castigo das suas actividades, que reverteu para os cofres da comarca, sendo advertidas para procurarem outro modo de vida. E o oficial, depois dum raspanço, concedeu-lhes uma última oportunidade de se regenerarem. E assim o bordel foi encerrado e, quando os guardas fecharam a porta e puseram um cadeado à volta da fechadura, o senhorio colocou um cartaz na janela: Aluga-se para mudança de actividade. O oficial entregou a chave ao senhorio, dizendo na sua boa fé.
«Espero que tenha mais sorte na próxima vez e não alugue a sua casa à prostituição ou a gente dessa ralé.» - O senhorio respondeu:
«Prostitutas e ralé, não vejo muita diferença. O que eu quero é o dia 8 de cada mês para receber o aluguer:» 


Acabou assim o lupanar.      


   

Wednesday, July 2, 2014

CONTOS DE RATAZANA
______________________

 ROSA MARIA E O MORTO

Numa espelunca de copos, a uns quinze quilómetros da cidade, no Club do Azeite, ex-Leitaria da Corneta! Numa noite dos anos 80, em que o rectângulo da sala estava bem frequentado por uma clientela rasca,
sente-se o barulho da música a envolver as pessoas como um trovão. O ritmo invade-os completamente mas, lentamente, essa sensação passa. «O Azeite movimenta o leite.» - Disse Rosa Maria ao cliente, numa mesa cheia de copos e garrafas de champanhe. «Quando uma pessoa bebe sem conta e medida, fica cá com um gás que só apetece fazer amor. E o que é que cá faz nós bebermos? É o calor da garganta, penso eu, é uma coisa que nos invade cá dentro, que uma pessoa não aguenta muito tempo sem beber.» - Ficaram algum tempo a conversar e a beber e a contar confidência um ao outro. Dizia ela que fazia amor três a seis vezes por dia. «Porra! Eu dou uma e fico logo como o coelho a espernear-me todo.» - Disse-lhe ele com a boca cheia de cerveja. «Comigo isso não sucederia.» - Corrigiu ela e ele acenou com a cabeça. «Calculo, és uma rapariga maravilhosa, eu sei, mas vou dizer-te honestamente, contigo acho que serei diferente.» - A estratégia dele estava lançada. Agora, a coitada da Rosa Maria iria ter de passar, se calhar, um mau bocado. Porém tranquilizou-a bastante saber que as mulheres com quem ele, o cliente, esguio e esquelético com cara de fuinha, se relacionara, não eram do seu tipo mas sim «cavalas e façanhudas», só que, para além disso, também eram descaradas e algo desmioladas; faziam tudo na corda bamba e gritavam que nem umas cabras só para o excitar; faziam as maiores fitas que se possa imaginar, para ele aumentar o seu entusiasmo e tudo isso, essencialmente, por causa do livro de cheques. Ele era um cliente da velha guarda, gostava de pagar generosamente. A partir daí, o cliente chamara-a a sua «coelha sem preço» e sonhava com ela todos os dias e a todas as horas, além de prever para ela um grande futuro, quem sabe como dona duma casa de Tia, ou uma leitaria de leite à mão. «A tua amiga é uma burra», - disse o cliente uma semana antes de bater a bota para o outro mundo, a uma colega dela na mesa recheada de copos. ─ «Tinha um palacete forrado a vidro e espelhos de latão, que ele dizia ser uma dádiva de amor da sua parte, numerosas folhetas, incluindo estimulantes sexuais que davam ligeiras cócegas, e uma edição do Tarados e Chanfrados do autor.» ─ «Rosa Maria tem mais desejos do que ideias.» - Ele pronunciou o nome com tal força que cuspiu para cima do copo. Apesar de todas essas contrariedades, ele parecia ainda amá-la. «Ele era um bem amado.» - Disse a amiga, enquanto aspirava da boca uma fumaça do cigarro. O cliente de Rosa Maria tinha mais de sessenta anos, nunca lhe quis dizer o seu nome e morreu na noite em que fez amor com ela na cama. Era um assunto de que ela evitava falar, embora sempre palradora para discutir qualquer assunto que fosse tabu. Porque é que logo aquele velho havia de morrer em cima de mim? Agora que tinha tanta coisa para me oferecer, um palacete e um casaco de visão e um cadillacc pintado a carvão. Rosa Maria, cuja primeira reacção pela morta do cliente fora uma sensação de angústia e medo, desculpava-se diante das amigas que não tivera qualquer culpabilidade no cartório. Depois da morte do cliente que, veio a saber-se, se chamava João Mávida, Rosa Maria a vida boémia e moinante de camareira e dedicou-se à venda de flores numa loja que alugara na ocasião. «Uf!», - confessou ela a uma amiga. - «Já tinha saudades de voltar a ser uma senhora.» - Trazia cabelo russo com madeixas azuis num penteado de banana mal feito, usava um vestido ao xadrez por baixo de um avental de flores estampadas, abandonara as pinturas mas não deixara de fumar, e vendia flores e plantas de todos os géneros ─ naturais e artificiais ─ Rosa Maria acabou por se alhear dos copos à noite e principiou a beber água, ficando por vezes amuada no seu quarto sem saber com quem falar. Por isso, comprou um periquito e mantinha acesa a lâmpada do passado. «Já te disse que hoje não me apetece beber», ─ ou então, «Não me assobies alto que eu não sou nenhuma cadela!» - As amigas dela acharam estranho a mudança de Rosa Maria (conforme disseram no trabalho à noite) e a atitude dela no tocante à sua vida. «Quem a ouve falar até fica pasmada com ela, nem parece a mesma», - disse uma delas. - «Ainda bem», - respondeu outra das amigas, pondo-se de pé – É sinal que uma pessoa viciada em copos, se deixar de beber deixa de ser viciada!...» - Instantes depois, voltaram as costas umas às outras e dirigiram-se para o trabalho. Um dos aspectos da sua educação tinha sido bem descuidado. Um domingo, pouco tempo depois da morte do seu cliente, ela foi comprar cigarros ao quiosque da esquina, quando o ardina dos jornais lhe anunciou: «É o meu último dia. Há tantos anos a vender jornais e só agora é que os Picas haviam de me querer arruinar o negócio.» - Ela escutou com atenção a palavra p-i-c-a-s e teve a ilusão de ver uma junta de médicos com seringas nas mãos a darem várias injecções no ardina dos jornais do domingo. «O que é isso de picas?» - Perguntou totalmente e a resposta saiu com rapidez: «São drogados», - acrescentou ele. – Como não dormem de noite, aproveitam para me gamarem os jornais, fazem fogo para aquecer os pés, mortalhas para fumar, estrumeira de merda e outras e tantas variadas coisas, tudo por causa do vício.» - Rosa Maria afastou-se e voltou para o quarto. Depois de fumar uns três cigarros e beber outros tantos copos de vinho (tinha começado a beber recentemente), deitou-se em cima da cama e, instantes depois, adormeceu. Durante o sono, reparou que tinha ali, na sua cama, aquele indivíduo já idoso meio labrego com quem ela mantivera uma relação marcante. Havia já algumas semanas que não entrava na arena sexual com tamanho apetite, e nunca antes desejou ter uma aventura tão veloz que a deixasse de rastos. O prolongado silêncio dele (que silêncio! até que soube que o seu nome constara da lista de defuntos do caso do cliente que morrera na sua cama) fora doloroso. A notícia da morte dele suscitara-lhe uma data de problemas, principalmente com a vizinhança, que teve que dar a volta ao quarteirão para se refugiar. Estava pasmada a olhar quem é que ele julgava ser, para entrar assim sem bater, sem um aviso, à porta dela, pensando encontrá-la de braços abertos, como retribuição dos copos que lhe pagara diariamente no trabalho… em suma, sentira-se invadida. Mas depois pensava para si, repetindo tais ideias para as profundezas, afinal de contas, João Mávida tinha pago bem cara a sua presunção, se realmente disso se tratava. ─ Um morto na cama, merece o benefício da dúvida. ─ E depois viu-o caído a seus pés, sem sentidos, no chão da cama, sem respirar, levando-a por segundos a perguntar como é que havia de fazer para se ver livre daquele embrulho? ─ preferia esta expressão à palavra morto. O esforço de o levantar do chão, de atirar o braço dele por cima dos seus ombros e de o semi-carregar até à sala, custou-lhe porque ele era bem pesado. Doeram-lhe horrivelmente os pés para o erguer e ela sufocara até o deixar cair. O que ia fazer ela daquele trambolho escarrapachado em cima de sua cama? Meus Deus, e a vizinhança quando soubesse? Mas outros sentimentos vieram ao de cima a dominar. Tinha que fazer qualquer coisa; avisar a polícia por exemplo e fugir dali rapidamente; ao fim de algum tempo, resolveu meter pés ao caminho e desandou dali. O morto dormiu vinte e quatro horas, repartidas ali na cama para satisfazer as exigências policiais e outras tantas na morgue. O seu sono era irrequieto; mexia-se muito na cama e escapara-lhe dos lábios uma ou mais palavras: Rosa Maria, o palacete é teu. Nos momentos de vigília parecia querer ressuscitar mas o sono era demasiado grande. Ele não conseguia imaginar sequer o que lhe tinha acontecido naquela fatídica noite do amor. Rosa Maria veio deitar a última mirada para o corpo, franziu os lábios e murmurou: «Coitado dele, parece que ainda está c´os copos.» - Olhou uma vez mais cheia de superstição. «Envia-lhe uma mensagem ao ouvido dele.» - Recomendou a amiga, acompanhando-a
até à porta. Entretanto, Rosa Maria voltou-se para trás e disse: «Eu depois mando-te notícias.» - No sétimo dia ele acordou de repente, dobrando as pernas com um passarinho e arregalando os olhos até trás como o mocho e só depois estendeu a mão para ela, murmurando em baixo tom: «Minha rosinha, vamos terminar o nosso trabalho que não foi acabado.» - A subtileza do pedido deu tanta vontade de rir a Rosa Maria como o seu descaramento inesperado e, de novo, a invadiu uma sensação de acerto; disse sorrindo: «Está bem, já que assim queres, que seja feita a tua vontade.» - Tirou o vestido largo, de pregas, e o casaco folgado ─ não gostava que as roupas revelassem a moldura do seu corpo ─ e começou assim a maratona sexual que deixou ambos felizes, exaustos, quando chegou ao fim. Ele contou-lhe que lhe dera um enfarte em que o mandou desta prós anjinhos. Mas voltara a viver. E ficara sempre com aquele espinha entalada na sua alma por não ter conseguido o que demais sagrado deixara à superfície da terra: o seu amor. «Está bem, eu acredito», - disse ela. - «Mas não te canses tanto, antes que vás outra vez.» - Ainda dias antes ela vira um filme na televisão em que os mortos voltaram a nascer. A ideia disso acontecer parecia um milagre. Tinha ouvido tantas histórias de bebés que caíam de arranha céus e ficavam na mesma. Há quem diga; ao menino e ao borracho Deus põe a mão por baixo. Não será bem este o caso, mas havia uma cena no filme que deu na televisão em que o artista morre mil vezes e está sempre a nascer… Retomou o fio à sua meada. «Às vezes.» ─ Resolveu dizer ─ acontecem coisas milagrosas.» - A névoa tornou-se mais espessa à volta dela. Por isso, quando deu conta, tinha conseguido passar por debaixo do céu. Atravessou o rio quando a neblina se adensou para, instantes depois, se dissolver por completo, levando consigo o sonho. «Mas ele estava lá.» Repetiu ela.