− RATAZANA, PSEUDÓNIMO DA NOITE, transformou um
dos seus sonhos de adolescente em toda aquela obra fantástica – disse Lucinda
Encarnação, conhecida na noite por Nani, colega e amiga de Ratazana.
Esse adolescente,
Ratazana, nasceu uns anos após a II Guerra Mundial e cresceu no período da
ditadura. Traria para o palco da noite a sua criatividade e a sua inteligência
pessoais, modeladas por uma época que apenas podemos visualizar em fotos
destorcidas e semi-apagadas de imagens.
Ratazana contou-me que
veio ao mundo num mês primaveril a um dia de segunda-feira, por volta das sete
da tarde, «porque esse tinha sido um dos poucos meses em que a sua mãe não
ouvia novelas radiofónicas. A taberna da família ainda existe, em Vila Nova de
Gaia, no centro das Devesas, próximo da estação ferroviária local.
− Contaram-me que, em
pequeno, e enquanto miúdo da escola, muito corri – disse Ratazana. – Mesmo
nesse tempo, era a favor de consumo de energias. Sempre corri para me livrar
das chibatadas de meu pai em público, por causa das patifarias que eu lhe
pregara.
«Como era muito mais
rebelde do que os outros meus três irmãos, não se interessaram muito para o que
eu fizesse enquanto eu crescia. Por isso, tinha-me a mim próprio quase
inteiramente para mim. E usei a minha liberdade para fazer macacadas e ver o
tempo a correr, em frente à taberna do meu pai.»
Muito cedo, o rapaz
Ratazana sentiu-se fascinado pela banda desenhada, então constituída sobretudo
por livros usados para revenda. – Havia um forte cheiro à imaginação. Na
verdade, pode dizer-se que havia um fascínio intenso. Também havia muita
emoção, do aventureiríssimo dos protagonistas e das histórias contadas. Penso
que foi assim que começou o seu interesse de toda a vida pelas aventuras.
«Em rapaz, sabia que
queria aventurar-me, logo que chegasse a hora. Quando se tem a sorte de poder
aventurar quando se é jovem, tudo quanto lemos torna-se uma parte de nós, que
podemos recordar durante toda a vida.»
No princípio dos anos
sessenta, os livros usados para revenda foram substituídos por lições de viola.
– Lembro-me dos seus acordes e dos trinados das cordas de nylon, antes de serem
transformados em solos, de passarem de um tom para outro, levando rapidamente
os tocadores para músicas que só podia imaginar. E a taberna cheirava a música.
«Quanto tinha para aí
treze anos, fiz a minha primeira aparição numa rádio local a cantar Ai Jalispo, uma coisa que o meu pai
considerou merecedora de uma prenda. Ainda me lembro qual foi o mês, Setembro,
mas, o dia escapou da minha memória.
«O meu pai mandou-me ir
ao quarto, sem correrias. Avancei pelos degraus das escadas com serenidade, até
abrir a porta do quarto, onde estava por cima das roupas, uma viola braguesa em
segunda mão mas que provavelmente me pareceu nova. ´É isto que me fazia falta`,
disse para mim.
«Nunca me separei
daquele instrumento. Desde então, tive todo o empenho para aprender a ler a
escala. Nunca faltei aos ensaios, nem sequer nos dias de jogar à bola com os
outros rapazes da rua, porque queria evoluir bastante.
«Ainda me parece ouvir o
lamiré do professor-guitarrista, depois de eu ter tirado o instrumento da saca.
«Sempre disse à minha
mãe que queria ser um rapaz artista quando fosse grande. Na verdade, os
artistas sempre me atraíram, e o artista cantor era o mais atraente de todos.
Talvez isso se deva ao meu cinema de infância ou talvez seja porque os artistas
cantores foram os primeiros que vi, quando era miúdo e, por isso, me pareciam
mais artistas do que os outros. Acho
que parecem mais coquetes por serem tão bem-comportados, com todas aquelas boas
performances!»
A família Abraão era
trabalhadora, um dado adquirido desde muito pequenos. – O facto de sermos
trabalhadores significava que éramos cumpridores – disse Ratazana. A colocação
dos porcos abertos ao meio da semana e pendurados ao comprido nos ganchos em
cima do tecto da loja impressionava o pequeno Ratazana que, mais tarde, viria a
confessar-se de ter dó do bicho. A sua mãe era natural de Miragaia, no Porto. O
seu pai descendia de uma família de agricultores em Vale de Cambra.
Abraão de Almeida vendia
carnes de porco a retalho, mercearias e vinho de pipa ao copo na taberna das
Devesas, em Vila Nova de Gaia. – Quando estava a organizar o Concurso de Sextas-Feiras, no bar − recorda Ratazana – veio ter
comigo um homem maduro que disse que conhecia o meu pai, do tempo em que ele
negociava porcos para a matança no Matadouro Municipal de Vila Nova de
Gaia.
«Os meus pais achavam
que eu tinha mais queda para trabalhar no balcão, do que os outros meus irmãos.
Talvez tenha revelado ao meu pai uma certa inclinação pelo seu negócio e
interesse em seguir as suas pisadas. Conseguia muito bem entender por que
motivo um osso de porco rapado fazia jeito ao meu pai.
«Apesar de meu pai
conseguir ganhar a vida razoavel-mente como negociante de carnes, mercearias e
vinhos, lidar com presumíveis bebedores contribuía para um certo receio de
insegurança na nossa família. O meu pai era activista por natureza mas o seu
trabalho colocava-o na posição de pacifista.
De todo o modo, não é muito diferente da minha própria actividade.
Embora por natureza, não seja um ordenador, a aventura que escolhi como o
trabalho da minha vida colocou-me numa posição não muito diferente da do meu
pai… um pacifista com bebedores. Mas, na nossa família, nunca ninguém passou
traça. É a vantagem de ser-se filho de um negociante de carnes de porco e
mercearias.
«A minha mãe era boa
cozinheira e chegava a fazer mais de cinquenta refeições diárias. Era o seu
trabalho a todo o tempo, e ainda sobrava tempo para deitar uma olhadela à loja,
quando o meu pai ia às compras. Não me lembro de alguma vez chegar a casa e não
a encontrar lá.
«O nosso prédio onde
vivíamos tinha mais de noventa anos e pertencia a uma família abastada de
republicanos. Embora não fosse uma casa nova, a minha mãe era escrupulosa na
limpeza e higiene. Usava um médio avental às cores que cobria o vestido menos
as pernas. Nunca saía de casa sem se apresentar o melhor possível: asseada,
vistosa, o vestido de bolas, os sapatos engraxados, uma mala pequena, os
cordões de ouro a enfeitar o peito e uns trocos no porta-moedas, sempre para um
remedei-o. Sempre admirei as pessoas que trazem trocos.
«Não era mulher de
queixumes. Nunca a ouvi queixar-se. Também não era dada a meter-se na vida
alheia. Nunca a ouvi dizer mal de ninguém. Só se preocupava com a família. As
amigas que lhe apareciam lá na loja, não eram muitas, mas eram boas companhias
«O meu pai gostava de
desmanchar o porco e trazer a carne que a minha mãe lhe pedia para a cozinha.
Por isso, a nossa cozinha tinha sempre as mais variadas miudezas do animal.
Lembro-me de meu pai ir trabalhar de grande bata bege que cobria tudo menos os
socos de madeira calçados nos pés. Nunca o vi com a barba por fazer ou cabelo
despenteado. Não era por causa do porco. Era por causa do respeito por si
mesmo.
«Muito cedo, alguns
clientes gostavam de gozar do aspecto do porco pendurado no gancho e um deles
chamou o meu pai a atenção. Eu ouvi o que ele disse.
− Ó, Abraão! Tens cabeça
de porco? – Perguntou-lhe, mas o meu pai não lhe respondeu. Respondeu-lhe o
outro.
− Então, ronca! – E
cavou depressa, levando com um osso atrás das costas, com o pequeno.
«Os meus pais gostavam
muito dos passeios domingueiros e levavam-nos com eles, sempre que era possível
desfazer-se dos seus afazeres secundários. Nunca me esqueci das visitas ao
Palácio de Cristal, dos pássaros nas gaiolas, do leão dentro da sua jaula, de
vez em quando, dando o seu grito tenebroso. O passeio era sempre acompanhado
por um farnel que a minha mãe trazia numa saca, com bolinhos de bacalhau, pão e
sumo, para aquecer os nossos estômagos.»
«Quando eu era
adolescente «levei uma vida exterior muito viva. Os outros rapazes julgavam os
outros pela sua vida interior. Posso não ter sido disciplinado mas era bem
atinado.» Ratazana acrescentou que não participara em jogos e passatempos que
considerava uma perda de tempo. Nesses primeiros tempos, a viola foi a sua
melhor prenda e melhor companhia.
− A minha viola estava
sempre ao meu alcance e eu andava com ela por todo o lado, como um bem
adquirido, o que é uma coisa boa para um adolescente. Sentia que era a minha
aliança.
«Eu era um rapaz popular
e, por isso, era obrigado a estender a minha imaginação e penso que isso me
ajudou a de-senvolver os recursos criativos. Não preciso de muita ajuda do lado
interior. Além disso, o meu trabalho trouxe-me uma espécie de apreciação, pode
mesmo dizer-se de amor, que nunca esperei. Talvez isso tenha tornado tudo mais
belo, a branco em cima do escuro.
«O meu verdadeiro eu, é
uma pessoa muito simples, tal como tem a ver com o aspecto publico. O homem não
é muito diferente do rapaz. Quem queira entender-me tem de aceitar que sou
deveras simples, como toda a vida fui. Quando se é assim em novo, é raro
mudarmos. E eu continuo a ser o mesmo. Quando era adolescente, soltava-me na
companhia da minha viola e da minha.»
Uma paixão de rapaz a
que pôde dedicar-se nas horas vagas foi armazenar tudo quanto tinha a ver com
programas, especialmente programas de espectáculos e fotografias. – A minha
colecção de panfletos, medalhas, cassetes e discos estavam rigorosamente
guardadas. Gostava de ver cada coisa em seus devidos lugares e em perfeitas
condições.
Ratazana sonhava a tocar
por todos aqueles palcos e, mais tarde, foi mesmo o que fez. O seu percurso
estendeu-se a outros locais. – Nunca tinha actuado no Casino de Espinho −
contou-me. – Mas, a primeira vez que pisei o palco do casino, senti que podia
ir tocar a qualquer palco do mundo, porque tinha dominado a pressão.
De pequeno Ratazana era
tratado por Zé, na tropa por Almeida e Mambo e na vida civil por Fernando e,
bem mais tarde, começou a ser conhecido por «Ratazana» pelos colegas do ofício,
embora às mulheres a quem era apresentado, gostasse de dizer: − Pode chamar-me
Rato, sem Ratazana!
− A minha infância não
foi uma infância fácil, mas também não foi difícil. Nessa época não tinha uma
noção muito diferente do que era harmonia. Tinha mais consciência do que estava
certo ou errado.
Ver filmes e ler eram
umas das actividades preferidas de Ratazana durante a infância e os filmes e os
livros continuaram a influenciá-lo durante toda a vida. – Fui influenciado por
Charlie Chaplin, Westerns e pelos argumentistas que criaram as personagens da
BD. Travei conhecimento com vários artistas e músicos já qualificados quando
era muito novo. O meu filme preferido de Chaplin foi Tempos Modernos. No mundo de Charlot dar oportunidade a alguém era
um milagre, um caso que também vivi. Mesma nas histórias fictícias é importante
não subestimar os outros. Os talentosos não podem ser deitados ao caixote dos
papéis.
Iniciando-se a trabalhar
aos onze anos, altura em que completou a quarta classe, o jovem Ratazana foi o
último dos irmãos a trabalhar por fora. A família Abraão vivia o suficiente mas
havia sempre uma preocupação manifesta de amealhar o dinheiro que sobrava ao
fundo da gaveta do apuro em latas, que a
a minha mãe me tentava fazer entender – guarda do riso p´rá chora. – Só
mais tarde me apercebi da grande lição que a minha mãe me estava a querer
ensinar a poupar.
«Sempre gostei de cantar
e tocar viola e alinhei num conjunto de música popular de Vila Nova de Gaia.
Lá, surgiu a oportunidade de actuar em clubes e arraiais e achei os arraiais
maravilhosos.»
Ratazana foi tocar para
o Conjunto Regional Realidade, convidado para tocar viola de acompanhamento.
Conseguiu mostrar-se porque sabia alguma coisa de composição e, porque durante
o tempo da aprendizagem, praticara a arte de solar. Não tardou a cansar-se das
marchas e das valsas e começou a reunir outros elementos, onde viria a formar o
conjunto, Os Mambos, de ritmos
sul-americanos. O seu trabalho foi apreciado e inscreveu o conjunto no I
Festival de Música Portuguesa, no Coliseu do Porto. A indumentária original do
agrupamento apropriado às suas raízes musicais, ajudou a receber do júri do
festival, o prémio para o melhor conjunto original apresentado.
Ratazana queria elevar o
grupo a voo mais altos, embora os outros elementos não partilhassem as suas
ideias. – Tinham demasiados problemas com os empregos. Pior ainda: as mulheres
andavam sempre atrás deles, quando souberam que eu queria levá-los para fora.
Decidiu incorporar-se no
serviço militar para combater na Guerra do Ultramar e aderiu ao corpo de
voluntários da 11.ª Companhia de Comandos, mal fez as provas, foi imediatamente
incorporado. Foi para Angola, o que representou para si uma grande aventura.
− Foi realmente uma
aventura longa. A minha curiosidade foi saciada e acho que razoavelmente
gostaram do meu con-tributo. Sou um pau para toda a obra. Sempre fui prestável mas
julgo que pensaram que servi com brio e zelo o meu posto.»
Aderiu ao grupo de
guitarristas, violistas e fadistas que frequentavam o Tropical no Porto, que
tinham trabalho e que procuravam iniciadores para programas extras.
− Desde a infância que
me sentia profundamente agarrado pelo cinema e pela música. Profundamente
agarrado. Os filmes e
a música eram a minha paixão. Tal como a canção que tornou famoso Marco
Polo Eu Tenho Dois Amores, eu também
tinha dois amores. Lia e via tudo que era magazine do ramo.
Em 1971, Ratazana
relacionou-se nas mesas do café com várias pessoas enquanto parava no Tropical.
− Alguém, que me conhecia, que sabia que eu andava à procura de um parceiro
para tocarmos juntos. Na verdade, na altura, a ideia era começar um projecto
novo, e felizmente tive essa oportunidade para me aventurar. Foi numa altura em
que aquilo que não sabia era tão ou
mais importante do que aquilo que sabia.
Fomos a correr buscar os instrumentos, uma consagrada figura fadista
ensaiou-nos e, ficamos a tocar numa confeitaria de Cimo de Vila até muito tarde
durante várias semanas, coisa que sempre gramei fazer – disse Ratazana. Eu
tinha vinte e três anos.
«Foi bastante bom
conhecer Rufino Borges, porque me ajudou a construir o duo musical Os 2 do Norte. Era muitíssimo bom na
primeira voz. Quando concluímos o nosso repertório, contactámos um primo do
Rufino, dono de um night-club, a
pedir uma actuação, eu até lhe disse: ´Nós até tocamos de graça.` O meu
entusiasmo foi notório. O nosso repertório, que sabia ser razoável, foi
elogiado e, por aquilo que disseram de nós, o dono ofereceu-nos três meses de
espectáculos. Assim, a nossa primeira actuação no mundo nocturno foi na Boite
Roma, um night-club em ascensão na
cidade do Porto.»
Entre 1972 e 1973, o duo
actuou em festas e clubes, até desligar-me do Rufino por motivos pessoais e
enveredei por uma carreira a solo, ao mesmo tempo que desempenhava outras
tarefas. – Era o novo empregado de sala a tocar viola e cantar e fazer
acompanhamento à artista de striptease que acabava o programa. Fazia qualquer
tarefa que fosse preciso fazer na sala, fazendo por vezes o trabalho do balcão,
na copa a lavar copos e o serviço do porteiro, na folga do titular. Sentia-me
muito feliz no meu trabalho.
«Naquela época, as camareiras da noite
eram todas mulheres maduras e foi com elas que aprendi o vocabulário próprio.
Nessa época, as mulheres maduras tinham muitas hipóteses de trabalhar na
boémia. Esse tipo de trabalho andar ao
copo era considerado apropriado para as mulheres maduras, tal como a
limpeza. Quando as novas casas começaram a aparecer, essas camareiras passaram
as ser menos procuradas, essas funções passaram a ser facilmente acessíveis às
raparigas novas.»
EM 1973, encorajado com o ambiente nocturno, Ratazana optou pela
sua adaptação no ofício, seguindo as pisadas dos colegas, e candidatou-se a
trabalhar na nova casa a estrear e, foi
contratado. Durante este período, Ratazana acumulou a funções de chefe de mesa,
e o facto de ter trabalhado com bons profissionais, toda a gente o levava muito
a sério. A eles se juntou e, aos poucos, Ratazana exibia o sorriso, que queria
ser boss.
− Nos meus primeiros
meses, pratiquei a técnica nas mesas, baseadas nos contos das camareiras até
passar por outras casas evoluindo como barman
– contou Ratazana. – Quando apareceu o negócio de António Cândido,
convidaram-me a tomar conta do estabelecimento. Depois, do negócio realizado,
em reflexão com as paredes, perguntei a mim próprio: ´E quem vai emprestar o
dinheiro para as obras?´ Respondi-me que podia fazê-lo.
«Tinha um amigo na
noite, que era como se fosse meu pai, que ia ser o financiador da obra para eu
prosseguir com o meu projecto. Só me pediu uma estimativa. Eu disse que me
en-carregava do projecto de obras, que comprava os materiais, etc. Confiou em
mim e fiz alguns esboços para lhe mostrar. E assim passei a ser também um boss da noite.»
Ratazana designou para o
seu bar um nome moderno e atractivo com toque inglês que começara a funcionar
no dia 3 de Outubro de 1980. Chamava-se Club Lord.