Sunday, October 28, 2007

CONTOS DE RATAZANA


 2 AMIGOS INCORRIGÍVEIS
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O Inglês: um turbilhão ao Deus-dará, um sujeito disfarçado de playboy, tinha transformado uma banalíssima agência de trapos ─ Mister English ─ numa loja de marmelada. Sobejamente famoso pelas suas aventuras com estrelas de cabaré e algumas rainhas das casas de massagens e, segundo as más mínguas, pela sua apetência às mulheres de mamas grandes e traseiros bem redondinhos, a quem «comia pelos olhos» norma utilizada no seu caso que «recompensava generosamente». Para que é que a Miss Zara se tinha ido meter com aquele aventureiro do Inglês, com os seus truques das argolas no corpo e o seu Rover de eleição? Para homens daquele escalão, as chavalas mesmo mamudas e vem avantajadas de traseiro – eram para dar uma moca e não repetir. – Devemos também dizer que o vício, quando surge, reverso e tentador, é incontrolável do poder indígena. Miss Zara telefonou na noite seguinte, dos arredores da cidade do Porto. A funcionária chamou o Inglês ao telefone mas ele quando atendeu o telefone, ela já tinha desligado, mas voltou a ligar.

«Estou a falar duma cabina e não tenho mais moedas.» «Zara», disse ele, deixando transparecer na voz um fio de desespero. «Tu não me disseste que me ias dar com os pés» «E tu não me disseste que me ias trocar por aquela nojenta da preta», respondeu ela. «Cada um de nós tem as suas razões.» Ele voltou a dizer: «Zara, volta que eu vou-te pôr uns brincos giríssimos no teu pipi para nós brincarmos como dantes.» ─ «Põe antes no cu da preta.», disse ela num tom brincalhão. «Parece que estou a imaginar a cena. A preta a guinchar, quando quiser arriar o calhau e os brincos a tilintar uns aos outros, ah, ah, ah.» ─ Ele deixou-a rir até voltar a dizer: Zara, eu estou só no mundo e só te tenho a ti. Não me faças atirar da ponte D. Luís I ao rio Douro, que agora a água está gelada.» ─

Ela ficou como o gelo. «Inglês, ouve bem o que te vou dizer. Não quero discutir contigo outra vez porque, no fundo de todas as tuas parvoíces, se calhar até me amas. Por isso vê se entendes que eu sou uma miúda inteligente e, porra pá, deixemo-nos de merdas; nenhuma branca gosta de ser trocada por uma preta. Quando dou o meu amor é porque estou consciente que amo essa pessoa, estou a falar de nós evidentemente, por isso é que eu te digo, Inglês, não me queiras explorar mais. Ainda tu andavas nu como o macaco e já os teus descendentes exploravam as parvas como eu. Vai para África ou para a Índia que lá não devem faltar mulheres que gostam de pôr brinquinhos nos sovacos, cotovelos ou quem sabe, até nos próprios calos dos pés; dizem que elas os têm a rodos.» ─ «Neste caso, admites que não me amas e que não me queres mais.», objectou Inglês, mas a voz atraiçoou-o. «Desta vez é de vez.» ─ «No fundo, acho-te divertido, um velhaco, e único no teu género. Mas vou fazer-te uma lista e duas a três coisas que me interessam; nada de brincos, nada de pretas, e um exclusivo só par mim; dia e noite.» ─

«Zara», disse o Inglês. «Mas assim, tenho que ter uma língua de aço…» ─ Mas a chamada foi abaixo e ele já não a ouviu. Poisou o auscultador no descanso. Ela voltou a telefonar, dias depois, e, nessa altura, já a lista das promessas estava consumada; ela não lhe perguntou se ele já tinha dado mais uma queca na preta ou noutra qualquer, nem lhe perguntou onde ele andava, como ele também não lho disse e tornou-se evidente para ambos que se tinham de afastar um do outro, era tempo de dizerem adeus.

«Inglês», ─ disse Zara. ─ «Aconteceu-me uma coisa estranha. Apaixonei-me por um amigo teu…» ─ E ela ainda estava a relatar-lhe o novo filme da sua vida quando ele atirou com o telefone contra a parede. Uns segundos depois, o telefone tornou a tocar. Ele foi atender. Era a voz dela. Zara continuava entusiasmada a não falar de outra coisa que não fosse do amigo dele: os nossos planos são fazermos filmes sobre os piratas em Portugal e na Espanha, buscando as grandes vedetas, Hermanias, Miro Azevedo, Filipo Gonzalez, para desfilarem diante da Igreja dos Congregados ou do Mosteiro do Pilar ─ «já imaginaste reunirmos estas personagens sem cachet», ─ acrescentou ela alegremente. A verdade é que as coisas estavam a aquecer para o lado dela. Inglês nem quis acreditar quando ela disse que o amigo se chamava Champalimão.

Inglês lera, no pasquim do GAS (Grupo de Atiradores de Sexo), o nome dele associado às fajardices com mulheres de pior espécie e manobras fraudulentas, mas era assim mesmo, vigarista um dia, pirata toda a vida.

Disse Zara: «Então ele perguntou: queres um casco de visão? Eu disse, Champalimão, não precisas de me comprar coisas tão caras, mas ele insistiu: minha querida, nada tema comigo. Vamos às compras e está tudo dito.» ─

Tinha voltado a dar uma visita pelas ruas Sá da Bandeira e Santa Catarina e Champalimão trouxe a sua bomba. Ao chegarem ao centro ele encostou a bomba na baixa e pediu-lhe para aguardar um instante; parecia um xeque do petróleo. Ao fim de alguns minutos ele regressou com um embrulho debaixo do braço e disse: «Aqui está minha querida, o casaco; vista-o que é seu.» ─ Ela deitou a mão ao casaco. «Que bonito» Ele segredou ao ouvido dela. «Foram só quatrocentas donas marias, mas você merece tudo de bom que há no mundo.» ─ Era uma tarde sexta-feira, as lojas estavam superlotadas de gente a fazer compras para o fim-de-semana. Champalimão entrara na segunda loja e comprara um anel de brilhantes, enquanto Zara ficara à espera dento da bomba. Cinco minutos depois, ele chega e coloca-lhe o anel no dedo, perante o espanto dela que não queria crer em tanta coisa bela. «Meu Deus, isto deve ter custado uma fortuna.» ─ Ele segredou-lhe: «São duzentos mil, mas já está pago.» ─

No dia seguinte, de manhã, abriram as lojas comerciais e Zara deu um passeio pela baixa e foi ver as montras, vindo a descobrir que o casaco de visão não era verdadeiro; afinal, aquela pele não passava sequer duma pele ─ de coelho bravo. ─ Ela nem quis acreditar e pôs-se a protestar com o lojista que tencionava processá-la por difamação e pedir-lhe uma indemnização. E, dai a uma hora, chateada com aquele mau dia, resolveu entrar numa casa de penhores e foi avaliar o anel de brilhantes. Ali lhe disseram que em vez de brilhantes, tratava-se de «esmeraldas» e valia uns cinquenta e picos contos, mediante pagamento adiantado. «Não é má ideia. Digo que o perdi e meto o dinheiro ao bolso.» ─ Pensou Zara e assim o fez, vindo recheada de notas na carteira.

À beira dessas fajardices todas, eu sou um autêntico homem, percebeu Inglês, que não sabia bem como as coisas se tinham passado e vivia um mundo de salve-se-quem-puder. Na sua agência de trapos, continuava inexplicadamente a tratar as funcionárias como suas almas gémeas, apesar de todos os seus esforços para as não roer, principalmente, às flausinas que lhe batiam com «ele» nos olhos… Lá dentro do escritório era um ser admirado, como a figura dum arrombador de gavetas, o gentleman do mico, o explorador de ingénuas; de um modo geral, um artista da arte e de as comer bem. Nesse período corrigiu-se a si próprio. Mais nenhuma Miss Zara seria capaz de lhe roubar o coração. A título de experiência, contou-lhes a história de Champalimão e do casaco com pele de coelho bravo e do anel que foi para o chaço. Os olhos delas brilhavam e, no fim da história, riram deliciadas; a vigarice paga pela mesma vigarice, dava-lhes vontade de rir. Assim compreendeu Inglês, tinha as funcionárias de outros tempos aplaudidas e soltado gargalhadas ante as proezas de pessoas sem classe e, neste caso, Champalimão, outrora amigo e presentemente inimigo…

«Há pessoas reles e sem categoria.» ─ Exclamou a nova empregada de escritório, rindo com o seu ar provocador, traduzindo uma série de nomes sensacionalistas, enquanto exibia o seu corpo delgado e, como Inglês agora reparava, loucamente apetecível, em várias formas eróticas não muito exageradas. Fazendo beicinho com a maior desfaçatez, sabendo bem que o tinha excitado, acrescentou afectuosamente: «Um beijinho? ─ A colega mais nova não quis ficar atrás e tentou copiar a pose da outra, mas com bastante menos êxito. Desistiu da tentativa, não sem alguma irritação.


Abandonado por aquela que ele considerava ser a sua amiga dos tempos modernos, Champalimão teve, para seu desencanto, notícias desagradáveis que lhe foram bater à porta do pequeno apartamento onde habitava – o berro do recibo da luz – «Trriimm» – a campainha da porta preveniu-o a tempo; mas, antes disso, teve que desligar o rádio e deixar-se estar sereno durante uns bons minutos, até o funcionário dos serviços da luz se retirar. Depois de se certificar que o homem já se tinha ido embora, abriu as portas do quarto e ouviu uma voz que partia de dentro: –


«Quem era?» – Perguntou a sua nova amiga. «Era o vendedor da casa da sorte a ver se eu queria comprar uma lotaria.» – Mentiu ele. A moça saiu do quarto com quase tudo à mostra e tapou meia cara. «Podias ter comprado o 69, é o meu número preferido.» – Champalimão deu-lhe vontade de rir e berrou-lhe: — «És uma desavergonhada, já viste como estás? Vê se te vestes.» – «Oh! Não me fazes a vontade, também não te faço a tua.» ─ Resmungou ela entre dentes, cravando um par de olhos rebeldes nele. Lá no fundo do corredor via-se a moça mostrando tudo de bom aos inquilinos do prédio de frente. – «Quereis, mas não vos dou…» – «O que estás para aí a dizer?» – Perguntou de novo Champalimão. Mas a moça desaparecera para o quarto de banho, – deixando a janela entreaberta; – e pôs-se descontraída a tomar um duche frio.

Champalimão pegou no fato completo e nos sapatos e arranjou-se, desde há muito que mantinha aquele apartamento na zona chique do centro da cidade, para não perder o contacto de gente de bem, queque como se diz na linguagem fina, e tinha boas relações com gentes de todos os níveis, embora fosse acusado por alguns amigos de ser um grande pantomineiro. E escapuliu-se no elevador, deixando a moça a tomar banho, saindo cá para fora afim de resfriar os ânimos. O que seria feito da sua indústria de filmes? Dizem que todo não passou de uma grande manobra e tinha agora um negócio m mão, que os amigos lhe asseguravam óptimos rendimentos: telemóveis e rádios para carros.

Mas continuando:

A notícia no Jornal Dos Traidores do bar do Ratazana dizia que a empresa do Inglês tinha sido estruturada na sua totalidade e virara-se para a exportação, produzindo calças e camisas de caqui, marca: Quemerda, e assinalando o regresso da marca – Mister English. – Agora revelava-se um autêntico self-made-man. É a hora da verdade, escrevia o pasquim: ou ele se atira de cabeça, ou então vai p´ró maneta e aí nunca se sabe o que pode vir a acontecer! A notícia causou grande impacto entre os leitores, mas outras pessoas não fizeram caso, pensando tratar-se duma brincadeira.

«Sabem que eu não sou homem para brincadeiras», ─ disse ele, depois de ler as notícias. – Sempre que me atiro tenho êxito e, se assim não fosse, estava quieto na praia a apanhar sol nas ventas.» ─

A sorte, porém, voltou ao fim de algumas semanas e ele sentiu que a exportação para a Colômbia e Brasil subira o volume das encomendas.

«Aceitei este repto com todo o empenho e com a mais sincera das virtudes», ─ procurar o êxito. ─ «E parece que o estou a conseguir: ─ o lançamento das calças Quemerda. ─

Que calças eram essas? Um tipo de calças destinadas a combater o sol, com refrigeração no seu interior, era uma das novidades do mercado internacional.

«O problema das calças», ─ explicava ele aos amigos. ─ «É se um indivíduo vai para uma pista de baile dançar com uma miúda e põe-se no roço, o calor transforma as calças em água.» ─ Não faltarem risadas aos comentários dele.

«Desculpem a confidência, mas as calças, para quem sofrer de falta de calorias na gaita, é uma maravilha, está sempre no braseiro.» ─
«Uma espécie de calor artificial» ─ Disse um deles.

Quando a notícia se espalhou pelo bar do Ratazana e Champalimão tomou conhecimento, horas mais tarde, ele teve o mais famoso dos risos de troça que alguma vez já teve; um riso que quase o obrigava a mijar pelas calças abaixo. Calças com refrigeração para combater o calor?» ─ riu-se perdidamente. ─ «Aquele homem perdeu o juízo. E então, para as mulheres, que tipo de cuequinha vai arranjar? Para elas têm que ser ao inverso; um ventilador para as pôr em banho-maria!...» «Aquelas idas a Londres puseram-lhe o miolo danificado, de certeza.» ─ Champalimão acalmou-se e passou o lenço pela boca.

«Hoje em dia, ouve-se cada uma, vá lá o diabo lembrar-se destas coisas.» ─
«Também ninguém acredita em bruxas», ─ encorajou-o um amigo, ─ «mas, que as há, isso é uma certeza.»-

O amigo saiu, deixando Champalimão a sós com a ironia daqueles momentos, sem se aperceberem que aquilo lhe dava um prazer fantástico. Mas não há que o censurar por isso, as zangas entre Champalimão e Inglês, é um facto que remontam desde há uns tempos atrás. Manda a verdade que se diga que nenhum dos dois sabe quem começou primeiro e que tem motivos para apontar o dedo ao culpado. Mas o que foi que aconteceu? O seguinte: durante algum tempo foram amicíssimos mas, numa breve discussão por causa de saias e de copos entre eles, pegaram-se e diminuíram a amizade. Inequivocamente, alguns furos abaixo da tabela de 0 a 10, ficaria aí uns três… Seja como for; o oportunismo da reportagem no pasquim veio a revelar-se infundado de algum realismo; pois, alguns dias depois, a imprensa comunicara que a empresa do Inglês tinha sido abordada para apresentar a sua obra-prima: ─ as calças Quemerda ─ e fora alvo duma chacota juntamente com a sua nova secretária no concurso de danças de salão em Genebra. Para que não nos acusem de falta de informação, devemos acrescentar que os bailarinos ─ dentro de umas calças com ventiladores (a delicadeza não nos autoriza que divulguemos pormenores mais concretos), expuseram-se demasiado ao calor, e mais não diremos. O Inglês teria sem dúvida classificado a ideia como «uma grande golpada», não fosse o imprevisto da dança em que se deixou adormecer, ao compasso dos francos suíços.


«Quando um homem vende uma ideia não pode comprá-la de novo. ─ O Inglês não chegara a embolsar francos nenhuns, muito pelo contrário, tivera que se fisgar muito rapidamente pois a comunidade mundial dos bailarinos ansiou por lhe deitar a luva.
«Estava tudo tão real como Lúcifer ser generoso para com Deus. ─ Invocou ele para o seu espírito interior.»

O dois piraram-se de lá muito mansinhos sem grande algazarra e contando algumas aventuras por cá passadas à Menina Jalouneix, que no dia anterior entregara ao casal um pedido de indemnização destinado aos bailarinos, na ordem de um milhar de contos. A menina Jalouneix tinha alguma influência no Departamento do Turismo e os inspectores chegaram tardiamente ao hotel, enquanto o Inglês e a sua secretária já galgavam a fronteira para Portugal. Quero que vocês se lixem. Durante uma temporada nunca mais se falou nas calças de caqui com ventiladores para o sol.