Sunday, August 27, 2017


                                              JACINTO COSTA
                                                          ~~

Quente manhã, meu caro!... Estou aguardando a chegada do caixão do Costa — do Jacinto Costa, dono das casas Paganini, Pérola Negra, Bagdad, entre outras coisas… O amigo claro que o conheceu — um homem risonho, vivo como um rato, com uma conversa cheia de fintas emitida de uma boca faladora, de olhar atento, duma simplicidade provinciana e simples. E muito curioso, muito dado às ideias comuns, tão penetrante que entendeu o meu «Estilo da Ética Boémia!» Esta imagem do Jacinto Costa data de l980: porque da última vez que o vi, numa noite amena de Junho, metido num BMW na Rua da Constituição, transpirava dentro duma camiseta cor de milho, cortada nos cotovelos, e cheirava seguramente a nova. Mas o amigo, numa altura que o Jacinto Costa recolhendo ao Porto, parou no cabaré Tamariz, na Invicta, falou com ele, no reservado dos boss! Até a Rainha do Cartaz, que preparava o número «Salta na Cueca», para animar mais a plateia entre os clientes e os empresários, recitou aquele seu poema, de tão bom idealismo: «Nas garras do meu coração, o desejo…» E ainda recordo o Jacinto Costa, com um refinado blusão de cabedal preto, por cima da camisa de seda branca, sem largar os olhos dos seios das bailarinas, sorrindo, descaradamente àquele desejo que gemia nas suas garras… Era uma noite de Setembro, de lua minguante. Conversámos depois em grupo, com amigos, pelo meio, e pelo escuro. O José Manuel cantou melancolicamente uma cantiga amorosa da nossa época:

                                Ontem de noitinha, à beira da ria,
                                Contemplavas, silenciosa,
                                A corrente fogosa
                               Que as tuas mãos arrefecia…

E o Jacinto Costa, debruçado na cadeira da ponta, com o espírito e os olhos perdidos na luz! — Porque não acompanha o amigo este homem atractivo ao Cemitério do Prado do Repouso. Eu tenho um roadster, de capota e de cor preta, como atrai a um empresário da Noite… Não quer! Por causa do vento! O´amigo! De todas as vantagens na viaje, nenhuma mais atraente do que a cabeça descoberta. E o homem que vai a enterrar era um grande desportista! Vem o caixão a entrar no velório… Trá-lo uma carruagem para o acompanhar. Mas realmente, amigo, está um ambiente fúnebre. O indivíduo de óculos de sol à Abrunhosa, dentro do coupé?... Conheço bem, essa cara. É um concorrente pobre, desses que aparecem nos funerais, com a missão de espalhar boatos, agora que o defunto já não se incomoda, nem se compromete. O homem baixo e gordo de cabelo louro, dentro do velório, é o Mateus «Pipo», que tem um tasco e que se chama o Refresco. Que relação o unia ao Costa?... Não faço ideia. Talvez se conhecessem nas mesmas capelas; talvez o Costa lhe desse ultimamente para frequentar o Refresco. Agora é o nosso roadster… Quer que suba a capota?... Mais devagar?... Eu tenho tino. Pois este Jacinto Costa foi um homem aventureiro que, tal como eu, na vida ama a noite boémia. Na Invicta sempre o consideramos como um sujeito particularmente esperto. Para este raciocínio concorria talvez a sua grande ascensão. Nunca um fracasso brilhante na carreira! Nunca uma mancha estragada nos negócios! Nunca uma acção rebelde do temperamento ou do físico daquele sóbrio feitio que nos intrigava! Além disso, na nossa quente geração, ele foi o primeiro empresário da noite que trouxe as mininas do Brasil; que deu sem tirar ou pôr os Alojamentos; que permaneceu insensível ante a presença da Pê-Jota! E contudo, nesse Jacinto Costa, nenhuma dureza ou inveja ou grosseria. Antes pelo contrário! Um bom parceiro, sempre prestável, e mansamente contente. Toda a sua inabalável pujança parecia provir duma grande força interior. E, nesse tempo, não foi por maldade e ofensa que eu alcunhei aquele moço tão popular, tão risonho e tão mexido, de «Costa Paga Pouco». Quando namorou uma dedicada e bonita rapariga de quem decerto lhe trauteou, como todos nós trauteamos, aqueles versos sabidos, mas sempre bem recebidos:

                                Era no Verão, quando à luz do arco-íris
                               A imagem tua…

Pois, como nesse verso, o bom Jacinto Costa, ao regressar da terra de Celorico de Bastos em Novembro, no Inverno, avistou Elisa, um dia no campo, à luz do arco-íris! O Costa nunca tinha olhado uma preciosidade daquele tipo, cheia de encanto e beleza. Baixa, graciosa, simpática, digna da comparação monarquia da Princesa do Povo. Cabelos negros, compridos, e ricos em ondulados caracóis. Uma cor de pele muito macia. Olhos negros, penetrantes, alegres, de longas pestanas… Assim que casaram, partiram para o Porto, tentar a sorte dum sonho que os acorrentava. O amigo sem dúvida que a viu, pelo menos uma vez, essa bonita estampa de simpatia que se chama Elisa, a Elisa do Costa… Foi a bela meiguice romântica do Porto, nos começos dos anos oitenta. Mas realmente o Porto apenas a via pelas viagens constantes das suas idas a Espanha, ou nalguma ida aos copos de que o Costa era um frequentador viciado. Com ar caseiro de provinciana, a super Elisa, ainda conservava os velhos hábitos sobejamente apreciados, por aquela burguesia mundana que nesses tempos, no Porto, se mostravam galanteadores. Mas quem os viu, e com facilidade constante, quase empolgante, logo que criaram bases no Porto, foi o Jacinto Costa — porque, tomando conta de uma casa de alugar quartos no centro da zona alta, ao pé do jardim do Marquês do Pombal, não podia a super Elisa desejar melhor sorte nos seus dividendos, do que ver a sua vida crescer, ao tornar-se dona também duma casa de várias assoalhadas, no meio da rua da Constituição e se chamava a Pensão Costa Verde. Ó amigo, quando eu, que já então intensamente trabalhava com camareiras, depois de a conhecer numa tarde chuvosa esperando pela abertura da porta do Lord, a adorei durante treze magníficos meses e lhe rasguei os mais variados elogios! Não sei se o Costa lhe deu alguns sermões por isso. Mas todos nós, seus amigos, reconhecemos logo a forte, profunda, absoluta confiança que concebera, desde o dia de Verão, à luz do arco-íris, aquele coração, que no Porto considerávamos de «Paga Pouco!» Bem compreende que homem tão comedido e sereno não se soltou em desabafos públicos. Já no tempo, porém, de Abraias, se contava que amor e dinheiro não se separam; e do nosso fechado Jacinto Costa o amor começou logo a alargar, como o dinheiro fácil através dos casais do amor rápido duma casa de portas abertas que atrai seguramente.    
Bem me lembro duma tarde que o visitei, na sua nova casa, o Pub Paganini, depois de se ver livre da pensão. Era um domingo à noite. Ele fazia horas para ir jantar com Elisa, que vivia no andar que ambos tinham comprado, na Avenida de França, e onde habitualmente jantavam aos domingos quando estavam juntos. Creio até que só por isso, eu e o Jacinto Costa mantivemos, uma conversa sobre negócios e pouco mais. As portas do pub do Costa abriam e fechavam num invariável vaivém; e quando voltava do quarto de banho ele palrava com uma das suas mininas, altamente. Nunca admirei, amigo, lábia destravada enrolada por palavreado mais bacoco e bizarro! Piscou-me o olho quando me cumprimentou e deu um sorriso, que vinha das profundezas da alma iluminada; sorria ainda maliciosamente enquanto eu lhe contei alguns das minhas desgraças nocturnas; e sorriu depois, distraído, a acender um cigarro, com o filtro às avessas, fazendo um fumeiro do caraças. E a cada instante, infalivelmente, por um hábito já tão frequente como o voltar a cabeça, os seus olhos atentos, fugazmente observadores, se voltavam para o vaivém da porta da sala… De repente que, seguindo aquele lance fortuito, logo descobri, na porta do pub do Costa, a super Elisa, vestida de ganga azul, com uma blusa branca, esperando calmamente, e espreitando também as mesas da frente, que uma fumaraça voadora de fumo ofuscava de manchas de amarelo. O Jacinto Costa no entanto conversava com o empregado, antes ordenava, através do olhar convincente, coisas ligeiras e variadas. Toda a sua atenção se concentrara diante da máquina registadora, nos talões de entrada e saída para fixar os valores, numa vista rápida ao movimento do balcão, e mandou cumprimentos a alguns deles antes de abalar. E depois de enfiar o blusão de couro, de lhe agasalhar uma boa maquia, foi com passada larga, sem olhar uma vez para trás, que abriu curtamente, fortemente, a porta! Eu dei discretamente o pira dali também. E, amigo, acredite em mim!, admirei aquele homem a ir para o carro, veloz, firme na sua caminhada sublime, com os olhos, e a alma, e todo o ser cravados no carro, na branca mulher vestindo a ganga azul, e tão alheio ao mundo como se o mundo fosse apenas o assento que ela se assentava e firmava com os pés! E este encanto, amigo, durou uma década, assim brilhante, genuíno, distante e imaturo. Não se ria…
Certamente se encontravam no andar da Avenida de França: Certamente que telefonavam, e isoladamente, contando as notas em cima dos lençóis que uniam os dois amorosos: mas nunca, em cima desses lençóis, procuraram o pequeno caso duma escaramuça passada ou o caso ainda mais recente duma cena escondida na sombra. E nunca trocaram um ciúme… Não duvide, amigo! Algum apertão de ossos a raspar e tímido, sob os tectos do andar da Avenida de França, foi o máximo da exaltação que a gana lhes marcou ao desejo. O amigo não entende como é possível se manter assim duas fortes criaturas, durante uma década, em tão incrível e tédio relacionamento… Sim, certamente não lhes faltou, tempo para se coçarem, uma hora de absoluta liberdade ou uma escapadela à fronteira. Depois a super Elisa trabalhava realmente num sítio dos confins do mundo, em que noitadas e cabritadas eram o pão-nosso de cada dia, desgastante mas gratificante. Mas, na fragilidade deste amor, entrou muita baixeza moral e fraqueza sentimental. Era fácil ao Costa, que (sem nós sabermos) nascera desnorteadamente individualista; mas a boa Elisa encontrou também um gozo propositado nessa ideal vocação de vida má, que até ousa chegar, com as notas engelhadas e embrulhadas na bolsa de mão, a rica e estimada. E durante uma década, como o Zé Manel do Bar Boteco, conquistou, firme e deslumbrado, dentro do seu sonho feliz, sonho em que Elisa morou realmente dentro do seu coração, numa junção tão absoluta que se tornou substancial numa só pessoa! Mas um dia, o chão, para o Jacinto Costa, tremeu todo num terramoto de rode tamanho. Em Março ou Abril de 1989, a Elisa já repleta pelas suas aventuras e frustrações, desapareceu sem um aviso. Acreditará o amigo que ele abanou por todo, mesmo passeando sozinho a pé pelos quarteirões do Porto, logo que descobrira no andar da Avenida de França, nessa noite, que o guarda-roupa estava vazio de Elisa!... E este abandono real da sua mais-que-tudo na sua mente criou atitudes novas, no Jacinto Costa estranhas, derivando da perturbação. Como o Paganini abria cedo, à hora do primeiro café da tarde, Costa depois de chegar, mandou comprar palmas sem dedicatórias, velas e ramos de flores dum gosto sóbrio e variado, e encheu um quarto de banho, onde as depositou, para os amigos e clientes do Paganini tomar conhecimento do luto que o abatera… E ninguém deixou então no Porto de espalhar tão dolorosa notícia, mais triste, o falecimento da mulher do Costa!
Assim, logo se tornou romaria, depois da notícia, naquele delicioso e atractivo Pub Paganini, onde o prazer parecia vindo do Céu, e nunca ninguém bebia com velas acesas e o chão espalhado de flores. Porquê? Porque Elisa também ali morrera, para ele. Daí esses murmúrios banhados num sorriso religiosamente atento… Porquê? Porque a estava sempre sentindo! Ainda me lembro de ouvir contar o meu cliente amigo e comparsa nas paródias, aquele brilhante José Novais, acompanhado doutro amigo, o Arnaldo Cruz, irem visitar o Costa, ao fim da tarde, e de ele carregado de inquietação, como revoltado, arrancar do chão uma mesa e gritar com uma cara que não era satisfação, perante a plateia que o rodeava: — O que eu faço? O que eu faço? Parto o pescoço ao primeiro que dizer mal de Elisa!... — E depois, exclamou ao olhar o relógio, com um assomo vermelho na face:
— O quê? Já são 9 horas? Lá se vai o jantar!...
O dinheiro arrasta ao poder, sobretudo dinheiro de tão fácil trabalhismo: e o Jacinto Costa rentabilizou com sagacidade o dinheiro que ela também partilhava. Claro que não podia levar a lembrança de Elisa para onde quer que fosse, nem consentir que a vaga lembrança roçasse pelos sofás de veludo da sala do pub. Mandou, portanto, uma carruagem para os fins, e onde encarregou o serviço a um tal Juca (como era tratado), um amigo mais antigo e confidencial, que fez chegar o remesso das flores, ao cuidado de uma irmã que morava nos arredores de Sintra. Veja o amigo, como esse endiabrado gozava com esta ideia macabra? Com este acto, assim desfez, logo ali, a amizade com o amor daquela mulher a quem nunca dera um filho! Por estas mesmas alturas, numa pachorrenta conversa de bar, aproveitei a companhia dum cliente, e visitei o Costa, no Paganini, não por curiosidade perversa, nem para lhe levar condolências antecipadas, mas para que, naquele acto aterrador, ele sentisse ao lado a força mobilizadora da boémia… Encontrei também com ele, o Juca, que já me serviu neste pub, onde agora vêem cá, de vez em quando, todos aqueles clientes a quem chamei traidores de sexo… O Juca chegara de Braga, da sua rotina normal, de madrugada, reclamado por um telefonema do Costa. Quando entrei, um empregado atrapalhado limpava duas mesas em simultâneo.
O Jacinto Costa abalava nessa noite para Lisboa. Já vestira outro blusão de couro, com botas de meio cano pretas: e depois de me estender a mão, enquanto o Juca remexia um gelo, continuou andando pela sala, pensativo, como alarmado, como surpreso da sua sorte bruscamente abalada. Num momento em que ele batera com a porta, murmurei ao cliente, por cima do ombro: — O Costa faz bem em se pirar daqui… — O cliente abanou a cabeça: — Sim, pensou que era mais oportuno… Eu concordei. Mas só durante o tempo do luto falso… — E zarpámos dali. E, depois desse tempo, o Costa? Ó amigo, o sagaz Costa que não parava nem quieto, aventurou-se a comprar uma fracção ao lado do Paganini, e fez dela uma pensãozita. Tão arrojado estava com a sua veia, que apenas umas semanas, tomou posse na Rua João das Regras do Pub Chaminé. Os meses de falso luto passaram, depois vieram outros, e Costa não arredou pé do Porto. Na altura viria a entusiasmar-se por uma jovem de calça justa, blusa às bolinhas, que ocupava a missão de empregada de balcão. Nesse Junho o encontrei eu sentado comodamente nas frentes do Café O Geladinho, onde entretinha a vista do dia solarengo, lendo o jornal (porque voltara ao desporto), e bebendo água gelada até que a tarde caminhava e ele se preparava, se erguia, se ia para dentro do pub. Quer que lhe diga mais? Nesse Verão, no Café O Geladinho, sempre achei que o Costa, a cada momento da nossa conversa, mesmo embutindo gelada água, mesmo falando dos negócios que o levara à noite, amiúdes vezes gracejara com os seus ditos. Não notei no Costa, nenhum nervoso particularmente miudinho, nem uma revolta com a vida… Pelo contrário! Ao sorriso de radiante firmeza, que nesses anos o iluminara com um caminho de sucesso, por que se debatera numa encruzilhada sempre presente, fatigante e perigosa. Voltei aos eventos, amigo. O Outono passou, muito frio e muito pardacento. Eu trabalhei nos meus Concursos das Sextas-Feiras. Um domingo, dia de folga, no jardim do Marquês do Pombal, quando já se viam mesas improvisadas de reformados a jogar a sueca, avistei a sair dum BMW vermelho a especial jovem, com calça larga e botas de vaqueira. E nessa semana editei no meu pasquim Jornal Dos Traidores a notícia pequena, quase acanhada, da gravidez da especial jovem… De quem, meu amigo? — Do conhecido empresário da noite, o ilustre Jacinto Costa!...
O meu amigo abriu aí os olhos, e ficou um pouco, espantado. Eu também fiz o mesmo, mas para os fechar, com a admiração daquela especial jovem, cheia de vigor ao amor! Conquistar sem pressa, serenamente, apenas entrara para o balcão, aquele astuto, rato, empresário Costa! Ah, bem ensinara o Conde do Pincel que a mulher é um monstro de vício, deitada ao centro da cama! Pois, amigo, quando eu assim dava uso à voz, encontro uma tarde na Rua de S. Brás o amigo Zé Manel, que sai do seu Boteco, me encosta para uma mesa, agarra excitadamente na minha pequena mão, e exclama alvoraçado: — Já sabes? Foi o Costa que comprou a Candeia. Ele esteve no bar, desabafou! Ele nem conseguiu dizer quantas casas tem! Não conseguiu, não senhor! — Fiquei passado. — E então agora… — Encorajado, fortemente apoiado pelas suas mininas, ávido de poder, com aqueles bons trinta e sete anos em fúria, que raio!, investiu, comprou! — Eu ergui as pernas até à sombra da mesa: — Mas então essa ascensão do Costa? — O Zé Manel, seu concorrente e conhecedor, falou com absoluta certeza: — É o mesmo de sempre! Grandioso, único… Mas não fica por aqui! Ambos nos despedimos, e depois ambos nos separamos, trocando uma palmada, com aquele ritual habitual que fica bem aos boss da noite. Depois a especial jovem teve um bebé e continuou habitando o andar com o seu Jacinto Costa no conforto e aconchego que já gozara antes, e exercendo a sua missão laboral. Nos meados da Primavera, Costa recolheu do Porto ao Brasil, ao encontro dos seus contactos, onde tinha negócios preparados. De regresso ao Porto, Costa tomou conta da Boite Pérola Negra, onde modernizou todo o seu interior, com um design para o showbusiness, já de agenda carregada que ninguém queria faltar. Veio o Maio, como sempre no Porto ruidoso e quente. Aos domingos, Costa jantava com a jovem e o bebe, na sua nova casa, em família. Havia, porém, uma grande e surpreendente mudança — a do Jacinto Costa! Imagine o amigo, como esse homem vivia os seus loucos dias? Com os olhos, e os números, e o instinto, e todo o sentido cravados nos negócios, nas passagens, nas explorações a outrem! Mas agora, não era de passagens bem mais acessíveis e facilitadas… Não, amigo! O que o preocupava agora, o que lhe cavara longas mossas em curtos meses, era que não tinha um homem, um maestro, um finório, que pudesse gerir os negócios que eram seus, e que de um modo geral, ele pudesse rolar à doucemet, na super-vida inconstante e quase no limite do seu quotidiano!
O amigo sorri… E então o Juca? Ó amigo! Esse era estático, e sério, e brando, e já tinha funcionado no Paganini, com a sua brandura e o seu estaticismo, quando ele conhecera o Costa e lhe dera para sempre lealdade e amizade. E os outros que lhe vieram a seguir, esses, cavaram velozmente pela porta fora, logo que Costa desatou aos raspanetes, com os grandes olhos em chispa, e os carnudos braços de manga arregaçada, e o estilo indomável dum domador de gado, e escorraçara aqueles marretas — a quem revelara talvez o que é um rato da noite! Mas, c´os diabos! Esse Juca, ele o reservara para outros afins, quando viu que ele não lhe oferecia, na arte e na manobra dum saca-o-copo ou ainda na manobra do já foste nenhuma táctica ainda avançada que o iluminasse! E agora, aqui no doce lar, ao cabo duns longos meses, com as traquinices do bebé diante dos seus olhos e as diabruras dos dois corpos unidos brincando na carpete, o amor presente, era que ele amara sublimemente uma família, e que a colocara entre os píncaros da lua para mais bela adoração, e que um puro romantismo, de ares mais frescos, arrancara dentro de si uma realidade forte da vida, que nunca suspeitou que chinelos e fraldas malcheirosas de menino são coisas de rara beleza em casa em que entre o sol e haja amor. E sabe o amigo, o que aumentou, mais excitadamente, esta força? Talvez fosse apenas o acontecimento da vinda do menino! Não sei. Mas logo desde Setembro, quando o Costa partiu para as suas visitas de expiação na província, a assistir aos espectáculos nas casas de diversões, ele da ponta de uma terra a outra, por caminhos e travessas, falando com artistas e os agentes, sobre eventuais contratos. E quem sabe?... Talvez aqueles dois adorados artistas que viu actuar nos seus números, uma poeta para os delinquentes sedutores e um macho capão para as necessidades dos toscos. Não creio que se comprometessem por cima dos copos e garrafas, como era a pretensão dos agentes… De resto, Costa era essencialmente oposto em consentir espectáculos de obscenidades, como fito de aumentar as receitas. Enfim, amigo, não falemos mais sobre a noite, atrás do morto que morreu por ela! E foi então que, nesse Verão, comecei a convidar e a organizar o I Convívio de Patrões e Empregados da Noite, um evento festejado no restaurante O Braseiro em Francelos. Parece que de todos os convites por mim endereçados, poucos foram rejeitados. O Costa também compareceu. Reinava no convívio o espírito de solidariedade.
Ó amigo, que bonito e espectáculo foi aquilo! Electrizante, durante três horas, mexido, contagiante, reanimou o Porto! São dessa noite algumas daquelas conversas ligeiras… Conhece a da piela do vinho do Porto? Uma piela do vinho do Porto oferecida por um estrangeiro a uma camareira das mais rascas e das mais ordinárias, apanhada na escura sala da Boite Marta, no Largo da Maternidade de Júlio Dinis, que depois mandou montar no chulo, e pesadamente, alegremente, em cima dele, com um chicote, conduziu ao pé da Torre dos Clérigos, para esperar pelo bater do Sino! Por esse tempo, e por causa dum desenrascanço no serviço, contactei o carpinteiro Gomes, que me telefonara rapidamente do seu local de trabalho, na Baixa do Porto, às oito horas, numa noite seca de Outubro. O carpinteiro, enquanto me conduzia para dentro da casa, bem adornada pelas ricas mobílias e carpetes do Paquistão, confessou que aquele negócio era do Costa que ainda não acabara o serviço (negócio emperrado, duma ilegalidade)… E ainda me lembro, com uma surpresa, da impressão causada que me deu o homem do martelo! Estávamos na sala que abria sobre os dois halls. Quando lhe toquei no meu serviço, ergueu num sobressalto o olhar, todo tremido: — Ainda não jantei? — Apenas lhe sorri, num gesto amigo, para o não contrariar, que tinha tempo, que não era de necessidade maior, encheu o peito de ar, e respirou lentamente, passando a mão sobre a careca húmida: — Então, o que há de novo? — Relaxado, sem pressas, escutou o trabalho que eu pretendia dele. Por fim, com um bufo, remexeu uma garrafa de cerveja dentro do balde, encheu um copo, murmurando: — Amanhã… A esta hora!… — Bebeu um gole e caminhou uns passos bem firmes para a janela, a que abriu vagarosamente a vidraça… E ficou quieto, como tolhido pelo escuro, sossego da noite enublada. Eu deitei os olhos, amigo! Na casa do Costa, futura Residencial Pantanal, uma porta batia, suavemente sem ruído, fechada ao suave aroma. E esse perfume vivo envolvia uma figura robusta, no vistoso conjunto de um traje colorido, chegada ao pé do logradouro, como borboleta numa constelação. Era a minina, amigo! O Costa tinha agora uma amante brasileira… Por trás, no fundo do logradouro, os materiais das obras estavam atolados, nos cantos. Ela, imóvel, olhava, pensava talvez numa expressão usada pelo seu querido amigo que, a vida é como a roleta — tem é de se apostar certo. E entre eles rescendia, na preguiça da noite, todos as ilusões dos dois amantes… Subitamente a minina recolheu, à pressa, chamada por um simples tlintlim do telefone. E a porta logo se abriu, toda a claridade e vida, se alojaram na Residencial Pantanal.
O tempo corre! Já estamos no S. João das Fontainhas! Como estes manjericos vão arrastando depressa o grupo dos foliões para o bater do martelinho e para a noitada única! Pois, amigo, depois dessa ardente noite, o Costa inteiramente se mandou, se evaporou, sem que me chegassem novas dele, mesmo duvidosas — tanto mais que o confidente por quem as saberia, o seu brilhante Juca, partira para algures, com o seu variado itinerário de percurso, sem horas, para pesquisar a concorrência, das novidades. Todo esse ano, também, andei embrulhado na minha Festa dos Barmans. Depois, uma ocasião, no meio do Verão, descendo pela Avenida da Boavista, com as persianas (olhos) levantadas, à procura do nº 1357, onde se situava a casa nova do Jacinto Costa, quando desço eu às escadas de baixo, e lá avisto a portada do Top Bar Bagdad e dentro dum centro comercial. É belo, amigo, mais aconchegado e mais harmonioso, todo fresco e muito desejável, ainda para mais ter um horário que vai às seis horas da manhã! Mas aquele homem era da grande envergadura de Amorim que, uma mão cheia de anos depois do crescer de Cortiça, ainda deslumbrava os empresários de sucesso e os patrões sem sucesso. E, curiosa coincidência, logo nessa noite, dessa mesma portada do nº 1357 o vi eu também, o vendedor imobiliário, Cebolinha! Mau feitio, problemático, branco, de cabelo comprido, em excelentes condições para encher o bucho de uísque (e portanto ficar grosso), como diz o mandarim. Eu frequentava esse nº 1357, interessado no catálogo do bar, porque o rato do Costa possuía, pelo conhecimento largo dos seus informadores, uma colecção invejável de borrachos dos vários continentes. E passadas semanas, saindo desses borrachos uma noite (o Vigilante andava de noite) e parando à frente, para encostar o carro, enxergo à meia-luz, metido na marmelada com uma prostituta, o habitué, Cebolinha! Mas que Cebolinha, amigo! Coitado do Cebolinha! Apanhara uma ramada, uma ramada de partir a loiça toda, impertinente, chata, rabugenta como velha esquizofrénica: apanhara uma touca, que lhe saía de dentro em foguetes iluminados de sob uma velha cana; mas todo ele, no resto, parecia irreconhecível, minguado dentro dum fato escuro de muitos vincos, e duma gravata esverdeada, de grandes riscas, onde se viam os enrugados, tão à vista, da maliciosa marmelada. Cada dois minutos, instintivamente, enfiava um uísque para a garganta — e, de olhar à Nero, recolhia na espantada miséria que me tomou, apenas balbuciei: — Você! Então que é isto?
— E ele, com o seu sarcasmo indelicado, mas embriagadamente para se desimpedir, e numa voz que o uísque rompera: — Por aqui ao engate duma puta. — Não respondi, andei. Depois, ao fundo, tomei um trago que a empregada me pusera em frente, e dali olhei, o negócio! Pois, amigo, bom negócio fez o Jacinto Costa investindo naquela portada! Era um desses parques automóveis do Porto melhorado, sem horário, sempre de portas abertas, sempre arrumado, lugares de estacionamento acessíveis aos carros dos clientes do bar de dia ou de noite. Ao lado havia o Paganini. Infalivelmente, ao anoitecer, o Jacinto Costa descia a Rua da Constituição, colado às paredes, e como uma sombra, desaparecia na penumbra da porta. A essa hora já as mesas do Paganini enchiam, de turistas e intrusos mergulhados no calor de Verão, e mulheres de amor-rápido a bater as solas duras no chão, ou fazendo olhinhos aos frequentadores. E parando ao meio, na lateral da sala, o Costa se quedava, — concentrando os olhos vivos na movimentação besta daquela casa, onde a sabia dominada pela sua mão! Sabe, amigo, Costa já descobrira que, dentro daquelas casas, a atender humildemente os seus clientes, com a alma de outrora, já não lá estava o antigo Jacinto Costa!… E acreditará o amigo que então, todas as noites, para fugir do stress do trabalho, guiava pela estrada deserta, a libertar a ideia, que o ajudaria no seu trabalho. O Costa percebera bem isso. No Outono passado, encontrei o Costa, numa meia manhã de frio, tomando café numa confeitaria da Rua de Costa Cabral, e a uma ponta, o Juca, arrepiado, desolado, coçava o cabelo e batia as mãos enluvadas, com os olhos comovidos nas embaciadas vidraças, quando o Costa, para o aquecer, dera-lhe uma palmada nos ombros, acrescentando: «Tás com frio, pá! Manda vir uma cachaça!»
Passou quase dois anos.
Enfim, amigo, ontem, o Vigilante apareceu no meu bar, depois do fecho, esbaforido: — Lá foi o Jacinto Costa, numa ambulância, para o hospital, completamente inanimado! Parece que o encontraram, acompanhado de uma minina, de madrugada, esticado no banco, todo encolhido no blusão negro, inerte, com a cara coberta da morte, voltada para as estrelas da Mealhada. Fiquei silenciado. Fui às capelas. Morrera… Perguntei ao chefe do cabaré, que o conhecia e o considerava, se sabia se ele sofrera. — Não! Teve um choque violento, depois do embate, e ficou.
Era o fim da alma.
O chefe não sabia mais; nem sabiam os outros; nem o saberia talvez a acompanhante, que no momento do embate, perdera os sentidos! Chegámos à igreja. Ainda bem cedo. Mas, meu Deus, olhe! Ao fundo, à espera, à porta do velório, aqueles indivíduos concentrados na conversa, de voz baixa, com olhares furtivos… São os empregados da velha guarda! E trazem uma grande coroa de flores… De todas as casas da noite, chegam amigos e companheiros para o acompanhar à última morada e cobrirem de flores o seu amigo e companheiro. Mas, ó amigo, soubemos que, certamente, poucos o sabiam, que a minina que acompanhava o Jacinto Costa nessa noite, estaria grávida dele! Grande confusão, amigo! No meio de tudo isto, comentou-se muita coisa, mas o que valeu a pena trazer à sua última morada este brilhante Jacinto Costa, que era talvez muito mais que um boss da noite…
Com efeito, está fresco… Mas que quente manhã!

Sunday, August 13, 2017




                                             METADE NÃO CHEGA
                                                         _______

   No diário com o meu subconsciente, tenho verificado que, quanto mais eu cresço, tanto mais recorro eu às minhas lembranças de infância de menino feliz em família de quatro. Estou convicto de que a primeira lei na família deve ser a da amizade, baseada na sinceridade. Muito antes de eu saber ler já era capaz de comer sózinho. Entretanto, fazia alguma sujeira. Desde do dia em que comecei a comer à mesa, o meu irmãozinho de nome Samuel, mais velho cinco anos que eu, era quem tinha a gentileza e a alegria de mimar-me à mesa. «Deixa eu dar de comer a ti.» Era precisamente essa parte «dar a ti» que concedia tanta graça à amizade entre os dois. As crianças reconhecem como são muito poucas as oportunidades que têm de ajudar os outros, e naturalmente, aproveitam-nas sempre que surgem. É a gentileza na sua forma mais pura.
   Hoje, rapaz adulto, pedi ao meu subconsciente que não separe a relação do irmãozinho, não porque seja um ato de renunciação, censurável como tal; mas sim, porque a relação pertence-nos, e é um dos nossos mais ricos tesouros... E se pedi ao meu subconsciente que vá auxiliar o meu irmão em qualquer obstáculo, é apenas porque o outro precisa de ajuda. E não é por qualquer razão natural que insistimos em que haja arrumo na casa; é por atitude: a casa é um bem essencial, e de todos nós dependerá mantê-la fresca e cheia de encanto.
   Qando preparo o meu menú para o jantar em hora de relaxe, e sirvo arroz de coentros, porque sou vegetariano, faço questão de o comer, mesmo que não sinta grande apetite, para ser gentil comigo mesmo; poderá talvez quem diga que isso é nocivo ao espírito de iniciativa dos adultos. Mas num rapaz adulto que preze a gentileza, esta nunca é unilaterial. O rapaz adulto que come arroz de coentros hoje para agradar a si mesmo, terá um dia o prazer de ver os amigos sentados no sofá, ouvindo-o tocar viola e cantar, aclamando, encorajando-o; e se for um serau, lá estarão também, na plateia, o pai, a mãe e o irmão...  
Lembro-me de que o meu irmão, quando a música pimba ainda não era focada, dançou na sala durante algum tempo, ao som da música A Minha Casinha, para mostrar as suas habilidades no jogo de ancas e pernas.  
No dia em que abalei para Londres, estando já a viver maritalmente, meu pai ofereceu-me este conselho, vivido da experiência: «Na relação conjugal, a ajuda deve ser total e ampla; metade não chega.» Isto é totalmente correto, e se aplica não só à união estável, como também à vida familiar. Metade não chega. Até a metade, é a razão que nos comanda, daí para a frente, é o coração. E os psicólogos não estudam o coração...