Sunday, May 13, 2012






CONTOS DE RATAZANA
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13. Episódio


Eis como os amigos do Pipocas se prestaram em proporcionar uma ajuda a uma senhora em apuros


A senhora Mariazinha vivia com a sua única filha e o seu velho pai numa pequena casa arrendada situada no cruzamento de duas ruas na parte norte do Marco de Canaveses. Mariazinha, que tinha cerca de trinta e cinco anos, era o que se chama uma mulher de estações, ora muito bem arranjada, ora muito mal desarranjada. O pai, esse velho borrachão e sem dentes, estampa de uma geração passada de outro tempo, tinha quase sessenta. Desde a última vez que alguém se lembrava que o seu apelido era o Enrola, muito tempo já passara. Seis dias por semana o velho ocupava o seu tempo no trabalho, pois tinha por compromisso ganhar para comer, inventar, intrujar, vestir e pôr a neta na escola. Mariazinha ocupava-se das limpezas para as patroas e fazia os preparativos para casa.

Aos domingos, porém, o velho, vestido de calças de fazenda e casaco sport ainda em bom estado e usando um penteado comprido ao meio ao qual mudara a cor do cabelo castanho para cinza-claro, atirava com os deveres ao largo e dirigia-se decidido à adega, onde se encostava ao balcão tão teso a tomar uns copitos como os pássaros nos riachos. Uma vez por semana, de tarde, embebedava-se. Seria interessante saber-se que quantidade de vinho encaixava e onde é que ia arranjar pedalada para os conter, uma vez que em casa de Mariazinha não faltava quem berrasse, andasse a dar ordens, fosse para o que fosse, gritasse, sujasse louça e pusesse a música alta. E, pois, de salientar que a alma deste velho andasse alheada e o seu nervosismo fosse de ferro? Ou outra coisa qualquer ter-lhe-ia saído do corpo aos repuxões como pequenos fogachos. Durante o tempo em que tenho estado a contar isto, o velho perdeu o hábito de fumar e de ficar definitivamente desobrigado a mais uma despesa. Por esta altura, começou a ser moda no concelho as mulheres de prestação de serviços alinharem nuns arranjinhos e assim aumentar a féria mensal. Na primeira altura, Mariazinha foi chamada para ir ao escritório do patrão, pois achavam que ela andava despistada.

O patrão, pessoa experiente em tratamento de pessoal, disse num tom afável:

— Mariazinha, lá em casa tá tudo bem?
— Como — respondeu Mariazinha.
— Bem, e então que é que te preocupa?
— Contas a mais e dinheiro a menos — respondeu Mariazinha.

O patrão dirigiu-lhe um comprido aceno de cabeça.

— E o que é que fazes quando vais para casa?
— Tudo e mais alguma coisa.
— Então não é nada comigo, pois não?
— Pois não. Tenho o patrão em linha de conta.

Desta vez o sorriso chegou a declarar-se nos lábios do patrão, mas este dominou-se.

— Isto cá para nós, que é que tu tens para me dar?
— Tudo e mais alguma coisa.

O patrão acariciou-lhe as mãos.

— Queres tu dizer-me que eu estou à bicha de semear para tudo e mais alguma coisa?

Marazinha ficou atónica.

— Arre, patrão! Que quer que eu lhe diga mais?

Na devida altura, o patrão ouviu a baralhada história dela. Um certo dia, dirigiu-se a casa de Mariazinha para se averiguar da situação. Enquanto chegava ao muro, saía da janela aberta, um terrível som. A porta da entrada estava semiaberta. O patrão espreitou aí e viu com os seus próprios olhos o velho aproximar-se da caneca, emborcar uma grande quantidade de vinho e soltar um feroz berro pela garganta fora. Imediatamente relaxou. O velho voltou a sentar-se a fim de gozar uns momentos de sossego. O patrão aguardou lá fora uma hora, pois o seu interesse observatório fora adiado. Acabou por ir-se embora, com a cabeça a abanar.    

No Inverno, o velho levava a neta Alexandra que já andava no liceu para o salão de festas aprender um curso de canto e dança. Os professores eram particulares, mas ela adorava aquilo. Era grande encargo aquele para a família que tinha de desembolsar cem a cento e vinte escudos por mês. O velho tinha por hábito beber um traçado durante a espera pela neta. No tempo de que falo, os trabalhos estavam escasseados e a despesa fora aumentada. Em casa de Mariazinha as reservas estavam voando. As prateleiras estavam vazias e limpas.Um nevoeiro caiu.

Para as casas houve uma corrida precipitada. Mais pessoas se apressaram a fugir das ruas e regressarem aos seus lares. O velho bebeu outro traçado. Caiu mais nevoeiro. Depois o velho comprou uma cocha de frango com uma moeda das grandes que há muito tempo não tirava dos alforges. De novo, voltou a beber outro traçado e quando olhava para o tonel desenhava-se-lhe nos lábios um sorriso de zombaria. «Ficaste com a minha moeda», dizia de si para si. «Sim, sim, lá guloso por moedas és tu. Sacador.» E, de repente, contou ao parceiro do lado a insatisfação com que tinha ficado. «Pois é, muitas vezes a gente também não é capaz de se opor», disse maldosamente o parceiro do lado.

Tem-se contado que Very nice era um homem de grandes ideias. Tinha também aqueles princípios, que alguns filósofos possuem, de ser inevitavelmente arrastados pelos seus instintos quando necessário. Quantas vezes não tinha ele encontrado jovens raparigas que necessitavam de comodidade? Era irresistivelmente atraído por qualquer chamamento ou aflição. Há muitas semanas que não ia a casa de Mariazinha. Sentado na cozinha, descontraidamente sacudindo a cinza do cigarro para o cinzeiro, olhava para Mariazinha com uma expressão simpática e atrativa, enquanto ela lhe comentava a conflituosa situação. Fascinado, viu-a abrir o armário para lhe mostrar que lá dentro não morava nem uma lata de conserva. Maneou a cabeça, entendido, quando Mariazinha apontando para as couves do quintal, tão depressa lhe fazia ver que não passariam fome como as mostrava já apetecíveis.  Depois, o velho contou, angustiado, como fora corrido do último trabalho. A esse respeito, Very nice não se mostrou agradado.

— Que é que tu fizeste de mal, ó velho? — disse com autoridade. — Talvez o patrão tivesse visto qualquer coisa de errado.
— Mas eu portei-me tão bem — retorquiu o velho, esticando-se.

Very nice fitou-o com um olhar duro.

— Qualquer coisa mal tu fizeste a ele? Vi uma vez tu dirigires-te a ele insolentemente? Velhos não lhe faltam.

A amargura de Mariazinha, porém, pôs-lhe o espírito em alerta. Nessa noite, em casa do Pipocas, dirigiu-se aos amigos de uma maneira convincente e comovida. Extraiu dentro de si uma narrativa apaixonada em favor dela que vivia em curva descendente. E tão eficiente foi a sua resenha que o fogo do seu coração se alastrou ao dos amigos. Estes, de olhos cintilantes, exclamaram:

— A Mariazinha não terá problemas! Nós olharemos por ela!
— Vivemos na riqueza — disse Catanada. — Dar-lhe-emos do que pudermos — concordou o Pipocas. — E se precisasse de um empréstimo podia vir aqui.
— Amanhã mesmo lançamos mãos ao trabalho — exclamou Pascácio. — Acabe-se com a malandrice! Vamos a isso, que há coisas à nossa espera!

 Very nice sentiu a alegria de ser um leader com acompanhantes. Os amigos não ficaram parados. Trouxeram comida. Fizeram uma rápida limpeza aos armários de casa. Era um ato cheio de vontade. Que pode haver de mais abonatório? O Faísca aumentou o preço dos santinhos para vinte por cento e passou a limpar dois novos restaurantes todas as noites. Artur Bófia multou o tasco do senhor Murteira vezes sem conta, mas sempre que tal acontecia a multa variava de infração. Na casa do Pipocas a receção começava a ganhar forma. No quintal havia alguidares de frutas, o cheiro ativo de laranjas podres enchia o ar da zona. A chama da vontade mantinha-se iluminada nos amigos. O portão da rua abria de um lado para o outro. Aqui, chegavam uns com galinhas e salpicões; outros com cestos de abóboras e outros ainda com quatro caixas contendo cada uma vinte e cinco quilos de amêijoas em cru. Os amigos andavam sem descanso nas entregas e falavam com Mariazinha os desejos deles.

De início, Mariazinha ficou louca de alegria ao ver tanta ajuda e profundamente sensibilidade com a atitude deles. Uns dias depois, já tinha certas reservas. O Artur Bófia andava com piropos. Catanada tinha umas gozações demais e o olhar do Pascácio denunciava uma intenção provocatória. Os outros que ainda não se declaravam passavam por ela a olhar para trás. Mariazinha tinha receio de se meter com eles e atrapalhar tudo. Andou vários dias a pensar neles; durante esse tempo chegaram aos seus ouvidos umas promessas de gozo e um pão-de-ló especial. Por fim teve de se decidir. Os vizinhos estavam a começar a falar para ela de modo desajeitado. Esperou pelo jantar na casa do Pipocas. E, depois, simpática e acolhedora entregou-se aos pratos de comida com apetite e sem cerimónias. Os vizinhos estavam todos satisfeitos pela sua companhia. Olhavam de sobrolho arregalado. 

Pipocas, pôs uma questão.

— A abóbora e a laranja não fazem bem à noite — explicou. — A banana faz prisão de ventre a alguns adultos depois de comê-la.
— O que vens a resolver com isso? — perguntou Catanada    
— Feijão — respondeu o Pipocas. — Feijão é qualquer coisa que mexe com uma pessoa.

Os amigos riam-se às bandeiradas. Alegres com eles próprios que tinham ficado animados, mas sabiam que há vários dias lhes vinha crescendo o fulgor inicial do seu entusiasmo. Na cozinha do Pipocas havia uma elevada pilha de talheres e pratos sujos. Muito próximo das onze da noite, a casa ficou à escura, a luz fora abaixo, e os amigos deslocavam-se como sombras pela casa. Duas confusas silhuetas andaram rastejando, sem dar nas vistas, para o sótão da casa. Mais tarde, o vizinho disse que tinha ouvido barulhos; investigara, mas nada detetara. Não podia acrescentar mais nada. Só quatro homens sabem que o vizinho ressonava a bom som e nunca o incomodarão.
Um pouco mais tarde, quatro sombras desceram o sótão agachadas à altura da curta escada que as fazia arquejar em dois tempos. Às sete da manhã, Mariazinha foi acordada ao ouvir a porta do seu quarto ser aberta.

— Quem está aí? — gritou.

Como se despertasse de um pesadelo, Mariazinha olhou para a cama e só então deu conta que se encontrava deitada e vestida. O velho entrou no quarto e foi direto a ela.

— Oh, que borracheira tu apanhaste! — revoltou-se. — Oh, Mariazinha, aqueles que te trouxeram a casa ainda são bem piores do que tu!

Em casa do Pipocas, contentes, quatro amigos estavam sentados nas cadeiras. Acordaram bem pela manhã cedo, pois os seus desejos estavam realizados. E Mariazinha, ao deitar a mão no bolso, descobriu, um volume de notas das pequenas, perguntou brandamente a si mesma qual dos amigos do Pipocas seria o responsável.