Tuesday, January 25, 2011





CONTOS DE RATAZANA
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TOZÉ, CHICRINHAS E MEI
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Quanto mais tempo passava sem dormir mais falador se tornava e começou a ficar chanfrado e a disparatar com os condutores dos carros que estacionavam no parque do quarteirão – esses condutores, ante tanta falta de educação por parte dele, revelaram ser tão malcriados quanto ele – «Queres saber porque é que eu estou aqui?», – Chicrinhas ofereceu a Tozé mais algumas confidências. – Mas queres saber ou não? – E disse-lhe logo, sem esperar pela resposta. – «Por causa de uma mulher. Pois é, pá, por causa de uma esperança da minha vida eu ando para aqui a chutar pó, a ver se me esqueço dela, já que ela se esqueceu de mim.» - E: «Como é que te hei-de explicar? É algo que brota aqui do meu mais profundo ser (e apontou com o dedo o coração), juro-te: quando a beijei toda, até fiquei sem saliva na língua, as minhas peles até mingaram que eu quase estiquei do esqueleto, e eu já beijei muitas miúdas mas, como aquela, juro-te que nenhuma. Chiça, pá, ela tem cá um calor que eu derreto-me todo em água.» - Já não sabia que dizer mais, dessa miúda que lha tinha feito o sonho num oito e que levara a sua vida entalada no pó branco, para dizer como fora esse momento, que ela passara a ser a visão desse sonho. «Não estás a entender», – o outro desistiu. – Tu não sabes o que é um gajo ser um teso, não ter um cobertor para poder roncar à vontade. Se eu tivesse um balão e pudesse dar a volta ao mundo, metia-la dentro comigo, só os dois, numa ilha deserta a comer cocos e bananas e a beber água. Depois, fazia-lhe uma dúzia de filhos e nem precisava de abono social!...» Quanto mais Chicrinhas se esforçava para explicar a sua obsessão pela miúda dos seus sonhos, Mais Tozé procurava evocar a imagem de Mei, mas não aparecia. A loucura de Chicrinhas começou a encher Tozé de raiva e frustração, mas Chicrinhas não reparou e deu-lhe um palmadão nas costas anda lá pá, puxa por ti e conta lá a história das tuas gajas.

Oito dias depois de se conhecerem, Chicrinhas aproximou-se da porta do trabalho de Tozé, empregado de mesa da Boite P.A., e chamou-o ao lado. «Meu irmão! Não orientas aí o resto duma cerveja e um cigarrito cá para o amigo que já não fuma desde ontem?» – Foi assim que ele entrou. Tozé fitou-o bem nos olhos e exclamou em tom baixo. «Entra e encosta-te ao balcão mas não pies alto.» – A seguir, ordenou ao colega de serviço que lhe orientasse uma cerveja, não queria correr o risco do patrício(1) manjar e lhe fizesse pagar a bebida. Instantes depois, entrou e empurrou Chicrinhas para o canto do balcão. «Orienta-te aí ao copo e tá calado.» – Disse ele, tratando de dar um arrumo ao serviço. E Chicrinhas não pediu licença a ninguém para beber de lance o gole de cerveja que embelezava o copo de publicidade BEBA SUPER BOCK. Depois disso, esgotou a paciência ao outro que o pusesse a fazer fumo dos queixos. O fumo alimentou o vício. No centro do cinzeiro, uma porrada de beatas foram transformadas por Tozé em charros prolongados com pó de talco, pitas de sal miudinho e cabeças de fósforos. E Chicrinhas deu o primeiro chuto aspirando para dentro todo o fumo possível e, a seguir, fitou Tozé de olhos abertos e disse: «O vício é um martírio privilegiado.» - A seguir ao primeiro estouro dos fósforos, Chicrinhas gritou como um desalmado. «O que é esta merda? Charros a deitar foguetes?» – Chicrinhas caíra na tentação do vício e o fumo alastrara-se até aos fundilhos das calças e ele arrastara-se até à porta cheio de histerismo. Lá dentro do balcão ninguém se mexeu. Cá fora, Chicrinhas, agitando os braços, dizia sem interrupções. «Estou a ver a ressurreição de Cristo, estou a ir para o calvário, e vou falar com o Pilatos.» -

Às vezes essas comoções terminavam em soluços. Chicrinhas, no seu esgotamento-para-além-do-esgotamento, descontrolava-se e punha-se a ganir toda a noite até cair para o chão e dormir. Não a dormir: a sonhar. Na fatídica manhã do seu trigésimo sétimo aniversário, dentro do seu carro, junto à praia do Cabedelo, em Vila Nova de Gaia, Tozé via dormir a amante e sentia o coração a encher-se até mais não de puro amor. Tinha por mais de uma vez acordado aos repelões, antes do nascer do sol, com o traga amargo na boca que lhe deixara um pesadelo, o seu sonho de reconstruir um lar único – dos casais que adoram o ar livre da natureza – e acabara por adormecer de novo enrolado na construção do paraíso ali à beira-mar. Despertando ao som das ondas e envolto no nevoeiro do céu, ficou irritado consigo mesmo por se ter esquecido da parte final do sonho. Ergueu-se sem ruído, agora estava bem desperto, e olhou pela janela do carro em direcção à praia, ainda enevoada. Lá um pouco mais distante, ouviu ligeiramente o chiar da passarada junto ao arvoredo ao pé da Fábrica da Seca do Bacalhau. Tozé puxou o pescoço mais para cima e pôs-se a fumar um cigarro, abrindo um pouco o vidro da janela. A areia da praia estava envolta em névoa, no meio da qual rodopiavam as gaivotas, fazendo a chiadeira do costume.

Desde o início do romance entre Tozé e a sua amante, no local do trabalho onde se conheceram, há mil e quinhentos dias, os sonhos tinham-se desvanecido aos poucos, da mesma forma que as ilusões se criaram no domínio imaginativo em que ele sonhara um dia: construir um castelo de areia à beira-mar para a sua princesa. Por isso, sempre que voltavam à praia, aquilo parecia tratar-se de um presságio de alguma coisa maravilhosa, uma vez que a curtição entre ambos eras totalmente diferente das outras curtições entre eles. Daí, o regresso à praia, em horário de pescador, animara o espírito de ambos e, depois duma boa curtição, dormiam até o sol raiar pelos vidros do carro. Quando ela acordava, via-o em cima do rochedo, tentando pescar com uma cana e uma linha com um anzol e um isco enfiado. Tudo o que é corriqueiro acaba por se tornar impróprio para consumo e Tozé sabia muito bem como devia fazer feliz a amante; tornar-se ele num verdadeiro erudito. Na manhã do seu trigésimo sétimo aniversário, quando a primeira luz do dia afluiu na praia a as gaivotas começaram dum momento para o outro a banharem-se nas águas, a beleza do momento cortou-lhe a respiração. Correu na direcção do carro onde a sua amante Mei dormia ainda e acordou-a com meiguices nas partes íntimas. Tozé sentiu vontade de fazer amor e não esperou sequer pela autorização das gaivotas, estendendo-se sobre ela, beijando-lhe a boca até desaparecer a comichão. Quando terminou, ficou a olhar para a inocência da silhueta meio adormecida. Ela tinha o cabelo comprido, loiro malhado, uma pele branca e os olhos atrás das pálpebras eram dum castanho claro. Os pais dela não eram conhecidos. Por isso, a união dos dois foi fácil e amor à primeira vista. Com o passar do tempo, foram trabalhar juntos para os copos e entendiam-se às mil maravilhas no mundo da copofonia. (2) Como não tinham filhos, transformaram-se numa união sagrada de amor único e soberano, onde a natureza era a rainha-mãe dos seus segredos e mistérios. Cheio de emoção, Tozé observou Mei enquanto ela dormia e expulsou o espírito maligno do pesadelo que o atormentava. «Quem diz que viver assim na praia», – raciocinou alegremente, – «ouvir o relento, cheirar o aroma, fazer amor ao som dos uivos das gaivotas a dançar nas águas frias e tépidas, sem pagar luz nem renda que é maluco: eu direi mesmo que malucos são eles todos.» -

Olhando fascinado a aurora maravilhosa, voltou a dirigir um discurso silencioso à amada adormecida. «Mei, eu faço hoje trinta e sete anos de idade e estou maravilhado com este amor. Só desejo do fundo do meu coração envelhecer ao teu lado.» – Disse-lhe enquanto ela dormia, atirando-lhe um beijo com a ponta dos dedos e inclinou-se para o lado e acabou por adormecer. Baixou logo os olhos. Nem um ai mais disse e ali ficou entregue ao sonho, como ele desejara. Desde o dia dos anos que Tozé andava louco de desejos apaixonados. «Parece que começo agora a viver uma nova vida.» – A união deles estava segura e tornara-se tão firme que nenhum cliente conseguia arrebatar-lhe a amante mesmo com promessas fortes de suborno de dinheiro ou até à base de bebidas espirituosas. Tozé alimentava uma secreta aspiração de dormir com ela na praia, o entusiasmo contava e era maior e, por muito que os amigos dissessem o contrário, ele é que achava que estava no caminho certo. Para isso, o seu carro fazia de quarto, o ar condicionado de frigorífico e os tapetes serviam de mantas. Por conseguinte, a secreta aspiração dele, levando-a todas as noites depois do trabalho findo para a praia, foi acolhida pela amante com um encolher de ombros como quem diz: «tu é que decides.»- Por isso, Tozé chegou à noite depois duma noite de trabalho, disse: «Não achas que seria uma delícia ir ver o mar?» – Ela respondeu: «Como queiras, Tozé.» – Ela compreendeu que aquilo para ele era uma espécie de jogo erótico e, como já estava habituada, resolveu sujeitar-se.

Tozé apareceu com o carro na rua e gritou: «Por favor, vamos embora.» – Ao cabo de vinte minutos, o carro de Tozé estacionou no local do costume, próximo da praia e ele ficou a olhar pelo espelho retrovisor a ver se vinha alguém atrás deles. Depois, olhou para o pequeno espelho da frente e viu o bigode engrossado e mal cortado, o queixo retraído, os lábios manchados de baton. Testa, rosto e nariz, tudo amarelo, amarelo, «O que é que esta mulher viu em mim?» – exclamou e reparou na sua agitação, que realmente estava doente de amor e não era só o erotismo que lhe criara aquela afeição por ela.

«Que raio de maluco eu sou», – suspirou para consigo. – «Merecia era que me dessem com uma vassoura pelo canastro abaixo.» – Mas não era o tipo de pessoa que se deixasse enredar por estas palavras. Em vez disso, encostou a cabeça ao ombro dela e deixou-se adormecer em sonhos: avermelhados como o luar.

O carro, apesar do seu formato pequeno e amanhado, era um sítio sólido, bastante exótico, apenas com o senão de servir numa causa complexa e excitante. Nesses tempos os amigos riram-se daquela aventura mas não faltou quem os quisesse imitar; embora apenas por um período de minutos ou até horas – de apenas tirar uns nabos ou coçar no pêlo – das suas futuras namoradas. Por isso, ali estava o carro, na praia, junto ao areal, ao lado do arvoredo, com as portas e os vidros bem fechados. Quando estava dentro dele, Tozé não se cansava de recitar na sua rouca voz de fadistola. São os seus versos preferidos.

Quem foi que inventou
A vida o trabalho e amor
Fez três coisas maravilhosas
Mas mais sábio


Foi quem se furtou à dor
E fez da vida
Um mar de rosas


Havia quem dissesse que o carro até dava mais brilho à praia e que se tornara numa lenda da praia do Cabeledo. Ao fim de meia dúzia de anos, começava finalmente a integrar-se na sociedade moderna e a deixar apenas o carro para a condução do passeio matinal. Mandou dar uma pintura nova ao carro e até os vidros mudou, bem como os tapetes já coçados e rotos de tanto uso terem. Muito poucos foram os amigos que acreditaram naquela nova mudança e, por isso mesmo, reinava no trabalho uma atmosfera barulhenta de aposta – saber se era para valer ou não – Tozé orgulhava-se de ter apenas uma palavra. Dormia agora num quarto das águas furtadas e a janela branca em flor, a escada tosca e velhas tábuas e a cama onde guardava um grande amor. A vida ali era doce e suave, tão suave e doce como árdua era a que se vivia dentro do carro; mas, mesmo assim, era uma existência tão fofa que valia todos os sacrifícios da vida.
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(1) Patrão
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(2) Bar de Alternes

Sunday, January 2, 2011




CONTOS DE RATAZANA
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AMIGOS E COPOS…



Margarida está apreensiva e o cliente de apelido Sacristão acabrunhado. Não posso dizer realmente o que vai sair dali. Claro que Margarida contribuiu para aquilo que a preocupa, mas o bom Sacristão…

Margarida mostrou as suas fotografias a Sacristão. Fotografias fabulosas, sem dúvida, atendendo às posições em que foram focadas. Mas Sacristão não conseguiu entusiasmar-se, pura e simplesmente. O que mais o assustou foram as fotografias em que ela aparecia acompanhada de um trio de gajas nuas. Uma com uma mama a chupar na boca, outra com um vibrador no cu e outra ainda, a fazer-lhe uma trombada de dedo. Primeiro acusou Margarida de gostar mais de mulheres de que de homens, mas ela tirou-lhe imediatamente a ideia da cabeça. Por fim, quando entendeu que havia meia dúzia de raparigas no bar com um programa dessa técnica, armou-se em ingénuo. Pelo menos é o que me conta Margarida… Não falei com ele na altura e se calhar não se perdeu muito. Tinha receio, pelo menos é o que ela me conta, de o deixar saber que o tinha levado um tanto pelo privilégio...

De qualquer maneira ela vendeu-lhe uma rápida dupla… e, se conheço Sacristão, também deve ter oferecido os prazeres. Sacristão diz que ela ficou verde quando levou a primeira… uma bela foda, cheia de malabarismo, onde ela caiu da cama de cu ao chão, duas vezes e a dupla foi em cima do tapete, em jeito de coelha, ao rubro. E não se mostrou ingrata por todo o trabalho que teve em não o deixar amolecer enquanto chupava todo aquele esqueleto…

Quanto às quezíliazinhas de Araújo… são por causa de Chaninha, naturalmente. Há dias passados estava a beber uma bebida e saiu da mesa por ver ela a insultá-lo. Desde então ainda não deixou de andar irritado. Sempre que começa a ficar ranhoso decide que vai abrir o linguado em provocações a Chaninha e então eu tenho de deitar água na fervura mais uma vez. O seu sistema nervoso já começa a vir ao de cima… e o meu também. Esta situação não se pode tornar num hábito sempre… ou ele se comporta como um cavalheiro para o resto da vida, ou inventa uma saída em grande para sair daquela em que se meteu. Continua a bater-me no mesmo.

«Fiquei muito fodido, sabe», conta ele… e aqui sirvo-lhe um copo… «e ouvia-a a mandar-me pró caralho. Almas do Mundo, pensei que não estava lá… pensei que fosse para outro… sei lá o que mais pensei. Mas não me descontrolei. Deixei-a continuar… fechei os punhos durante uns momentos e deixei-a provocar-me… Estava a puxar por mim… você sabe como é que uma vagabunda dessas age, não tenho de lhe contar como é… e estava a levar-me aos píncaros do inferno… Aquela filha da mãe! Por Deus, eu sei quem é o culpado disto… é essa barriga de unto desse Sacristão! Ele disse-lhe o que disse e o que não disse, foi o que foi! O diabo leve Sacristão! Se eu soubesse nunca tinha ido à mesa! Por que é que não me avisou para não me meter com aquela puta ordinária? Por que é que não tive suficiente rasgo para me afastar daquela sujeira?»

Mudamos de assunto e vamos para o futebol, Araújo e eu, durante uns breves instantes. Visto que parece que a conversa ganhou novos contornos, carreguei-lhe mais duas medidas de malte e logo Araújo prossegue. Raios, agora podia desafiar-me nas cores clubistas, mas não… quer de novo desabafar comigo, suponho.

«Deixei-a insultar-me», repete. «Deixei-a continuar até estar quase a pifar da voz. Então, lentamente, comecei a perceber que andava por ali bocas de Sacristão… Meu Deus, que situação aquela! Espero sinceramente que nunca eu tenha de perder a paciência por casos semelhantes, pode crer!»

Também o espero. De certeza, vou ter mais cautelas para que isso não aconteça.

«Mas quando percebi verdadeiramente que o que ela queria era deitar-me abaixo, eu… eu não sei como me aguentei. Deu-me semelhante vontade de lhe dar quatro chapadas e até de a esganar! Olhei para ela… e ela atiçou-me mais, com aquela cara de cu… e eu meti as mãos aos bolsos e desandei dali. Estava enojado daquele paleio de cadela baixa…Fartei-me de perguntar a mim próprio, para que é que me deu vontade de me meter com aquela tipa? Somente eu… ou outro parecido…»

Por vezes quando diz isso Araújo lança-me um olhar muito carregado, que eu gostaria que ele recambiasse por outro. Não sei se ele realmente gosta de mim ou não. Tem uma pergunta a dançar-lhe na ideia, mas ainda não se resolveu deitá-la cá para fora.

«Tentei pedir a ela que repetisse o que estava a dizer… quando me insultou com uma rajada de nomes do piorio… mas não o fez. Se o fizesse teria que pôr o coiro de molho…»

Nesta altura virei-me para atender outro cliente, e a conversa resfriou um pouco. Se eles se vão falar outra vez, Chaninha é bem menina de o enxovalhar de novo… e há qualquer coisa que me diz que o mais certo é eles mesmo não se falarem. Quando um caso destes acontece, não acaba assim do pé para a mão.

«Claro que podia entrar numa de caixeiro-viajante e levá-la a dar uma rápida ali na pensão em frente», diz Araújo. «Era o que melhor devia ter feito se eu adivinhasse… se eu… vc sabe onde eu quero chegar. Mas agora nem suporto a ideia de sequer olhar para ela. Cheguei a um ponto em que tenho medo de regressar ao passado, quando eu era um marinheiro…»

Tudo o que tenho a fazer é esperar que Chaninha regresse ao poiso de onde veio o mais rápido possível e assim fique o problema resolvido de vez. Não me posso dar ao luxo de ser o bombeiro a apagar fogos como ando, nem me posso dar ao luxo de continuar descontrolado por muito mais tempo; não consigo atender ninguém de jeito quando ando assim descontrolado, mesmo se consigo enfiar um café com pouco leite pela boca abaixo quando vou até à cozinha rir-me para as panelas e faço a minha folha a que chamam apuro, e estou lentamente a ficar seco.