Saturday, September 22, 2018



A saga continua. Gente de Vícios.



Quando a velha feiticeira Varila disse que tirou um pêlo do ânus e brotou uma lágrima do olho esquerdo, compreendeu que a sua feitiçaria estava ao rubro da sua magia. Deu um valente arroto. -  era um hábito que se pegou, provocado com o passar dos anos, um gaguejar na linguagem e um empastamento do corpo, um manquejar de passos transviados, que faziam de Varila, aos cinquenta anos de  idade, uma figura diferente daquela que, em nova, quando rapariga, dera brado nas fileiras dos feiticeiros do Monte Corgo. Às vezes sentia que a feitiçaria não era nada como dantes, a tal ponto que o mais fraco dos pastores não acreditava nela..e Varila também devia ter mudado muito, para os outros não requisitarem as suas rezas e obrigá-la a andar de mãos vazias, sem urna moeda sequer. A minha feitiçaria desapareceu, perdeu encanto e ficou sem raiz, pensou Varila, mas os pastores, que vêem os seus rebanhos a não engordarem, precisam dela. Afastou-se do Monte Corgo, saindo para a rua soalheira, e ouviu atrás de si um risinho de desprezo. Voltou-se, demoradamente; ninguém à vista. Sómente a sombra dumas calças a desaparecer no virar da esquina. Havia tempos que a feiticeira Varila provocava muitas vezes gargalhadas de pastores em plena rua.
«Cambada de estafermos!», berrou ela em alto som e sem gaguejar, deixando estupefactas as pessoas que ouviram o seu  palavrão .
Varila, a feiticeira emborrachada, outra vez a portar-se mal. Paciência, ela encolheu os ombros e dirigiu-se até casa.
A cidade onde se situava o Monte Corgo (com o mesmo nome) já não era feita de areia. Ou seja: com o passar dos anos, a magia dos ventos do monte, o interesse dos habitantes o crescimento a olhos vistos
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da população e o inevitável progresso tinham feito crescer a cidade de tal forma, que os antigos refugiavam-se na sua natureza pura do monte fazendo dele um lugar prosaico e quotidiano (tal como os seus feiticeiros). A feitiçaria de Varila fora-se tornando cada vez mais fraca; e com 0 leite da cabra salvava a sua existência e fazia dele a sua alimentação.
Até o próprio seu Deus estava com um ar desgastado, cabelo amarelado e sem dentes. não fazia a barba assiduamente e ele também não possuía energia para dar -ou murmurava pelas colinas do monte a pedir que o substituíssem -Havia dias que bebia leite da cabra, 0 que acentuava a sua imagem num mamão à beira da chupeta, derrotado e amargurado.
Varila continuava igual àquilo que sempre fora. Sempre tivera uma grande fama de bruxa capaz de criar doenças a quem não lhe fizesse vénias à sua passagem e fartava-se de apregoar que transformava os homens em bichos sem pêlo e que os mandava cozinhar para servirem a refeição aos porcos. Agora, que estava a caminhar para os sessenta anos, a sua lenda começava a envelhecer e um milagre a poderia levar de novo à glória do passado.
Enquanto tudo à sua volta estava estagnado, enquanto os novos pequenos tubarões de meia-idade passavam o dia a roçar o traseiro pelas mesas dos cafés e lanchonetes, a ler histórias de amor e fazer bonecos coloridos pelos tampos das retretes e tantos a jogar nas máquinas de diversão, enquanto as velhas feiticeiras sem clientes morriam de fome pelas valetas e nem as esmolas as salvavam da porca miséria, enquanto ia crescendo uma geração cujo conformismo roçava os consumimos e cuja veneração pelos vícios modernos derivava de um desemprego e de uma penúria mais que provável, enquanto a pequena cidade adormecia ao som das promessas futuras duma juventude promissora, para maior alívio dos camaleões da terra, cuja aversão pela ideia de serem colocados a um canto da prateleira com a carteira rota, era de todo o modo compreensível...
Enquanto isso, Varila continuava a pregar os seus sermões, trazendo a velha garrafa de vinho dentro duma saca ao lado dos crucifixos e santinhos com imagens de cabras, porcos, corvos e outros animais do monte. Varila continuava com poucas rugas no rosto, com o corpo tão duro como uma mocetona de _dezoito anos, o olhar cintilante como o mocho, o cabelo negro entrelaçado em pôpa de pavão, o porte altivo e a

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voz grossa do bagaço, não tolerando ainda a menor oposição. Era Varila a velha feiticeira, a bruxa que dominava o Monte Corgo; ou pelo menos disso ela estava convencida.
À medida que a pequena cidade se mudava numa reforma promissora e bem vinda, o comandante Fiúza, chefe supremo da guarda, dirigiu uma série de rusgas pela população, afim de enxotar e até acabar de vez com as bruxarias e feiticeiras da cidade. De forma que os habitantes começaram a aperceber-se que Fiúza queria limpar a cidade e pô-la bem mais apetecível do que a imagem que lhe devolvia o espelho do rosto torcido de Fiúza. Os cartazes dele influíam mais nos espíritos do que nos bruxedos de quaisquer feiticeiros.
Mas Varila, por exemplo, não acreditava. Ela alheava-se de todas as questões políticas e fazia ainda uns bruxedos por amor à arte e nunca pelo dinheiro; cada um dava o que quisesse.
Mastigando uma chiclete, chegou a casa, depois de transpor um arco meio empobrecido numa parede cheia de lanhos. Encontrava-se agora junto dum pátio que cheirava intensamente a mijo, casca de bananas, penas e sangue. Não havia sinais de vida humana. Apenas, mosquitos, lixo e sombras. Nos tempos que corriam, era preciso ter muita cautela. Uma seita de maus-maus rondava a cidade. As pessoas de bem eram aconselhadas a entrar pelas traseiras das suas casas, averiguando primeiro se não havia ninguém por perto com intenção de pregar uma cacetada no próximo.
Porém, Varila não temia ninguém e nem se dava ao cuidado de averiguar se estava alguém à sua espreita e até fazia ouvidos de mercador às notícias que circulavam por aí. Sempre fora forte e corajosa, em tempos, mas isso fora no tempo da outra senhora.
Sonhava com os tempos em que, no dia dos seus anos, celebrava à ganância, não ignorando as orgias sequer, ria às risadas quando alguém falava da extravagância do seu guarda vestidos, das suas trezentas e trinta camisas de noite de seda persa e dos seus quinhentos e vinte decotes de todas as cores em que se viam desenhos eróticos por fora. Varila subiu vacilante a escada tosca de madeira que conduzia ao pequeno quarto onde habitava. O que tinha ela que fosse de utilidade
para ser roubada? Não era pessoa que merecesse levar u ma facada.
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Abriu a porta e, quando quis entrar, recebeu um empurrão que a atirou contra a parede. Valeu então levar as mãos à frente e evitar o pior. Mesmo assim, ainda deu para pôr o nariz à prova.
«Não me mates, por favor», - gemeu ela. - «Eu não faço mal a ninguém.» -
A outra mão fechou a porta, ficando postada na sombra da claridade. Varila sabia que, por muito que berrasse, nada adiantava. Ficariam ali os dois sozinhos, isolados do mundo, naquele pequeno e miserável quarto. Varila limpou com as costas da mão o rosto suado, tremendo descontroladamente.
«Eu não tenho dinheiro», - implorou. -«E nem sequer valores.» Então o intruso falou:
«Se uma bruxa em desespero não sabe endrominar, não é o ladrão que a vai curar.» - E, depois, a seguir a uma pausa: «Varila. Desiludiste-me. Esperava mais da tua magia.»
Agora Varila sentia-se intrigada, além de assustada. Seria o intruso algum seu fã enlouquecido, disposto a dar-lhe cabo dos seus cacos por não ter feito qualquer feitiçaria em conformidade com os seus desejos? Ainda a tremer de medo, fez um esforço para comentar:
«Eu conheço-te, não?», -arriscou. -«Quem és tu?» - O outro ignorou a observação.
«Claro que conheces. muito tempo, pedi-te uma malga de leite da cabra em cima no monte e tu disseste uma frase que me arrasou com a vida: Quanto mais próximo se está duma vigarice mais fácil se torna cair na imundice.» - retorquiu amargamente Padrinho.

E Padrinho recuou no passado, desabafando com os seus botões.
Nos finais da fábrica das molas, os trabalhadores viram-se sem emprego e, por conseguinte, sem trabalho e mais pobres. Durante algum tempo, uns financiaram-se a si próprios e outros desenrascaram-se noutros ofícios atacando por todo o lado à procura dum ofício que lhe desse condições garantidas. Cafú não tinha tempo a perder com escrúpulos, disse Padrinho a Varila, nem problemas de se distanciar dos demais. Os trabalhadores trabalhavam à margem da lei, mas fora nesse tempo que Cafú se revoltou contra a lei. Debaixo das palmeiras, Cafú

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aparecia de dia e punha-se a despejar regras e mais regras que até os desempregados ficaram com vontade de dizer que chegava de regras, disse Padrinho, regras para comer, regras para cagar, e havia também uma regra para a mão quando alguém quisesse tocar ao pífaro. Nada ficava ao acaso. Depois vinha a novidade -fundos pró tacho - dizia aos camaradas como haviam de  esmifrar um biscate para encher mais as tripas. Com o sistema part-time, descansavam mais e melhor. E fazer sexo como os coelhos, de modo a resguardar energias para o dia seguinte, enquanto os chefes e figuras de relevo ficavam proibidos de utilizar o sistema em que a fêmea ficasse no primeiro andar. Vetou o consumo em abundância da cachaça e vinho e exigiu que todos cumprissem com as regras, pois era uma forma dos trabalhadores se organizarem, e estabelecerem a sua regra - sem força não vergalho que vergue a porca. -A partir daqui, Cafú uniu-se a São Nicolau e ambos reuniram os trabalhadores para discutirem as opiniões de São Nicolau que propôs viagens no combóio e camioneta para todos até ao fim do país. O trabalho aparecia com mais facilidade, afirmando com toda a naturalidade que era possível o trabalhador pôr uma pata aqui e outra acolá, desde que soubesse fazer o tal equilíbrio de artista; mesmo os piores trabalhadores acabariam por ser repescados pelos outros, ao serem-lhes dados os famosos chocolates Ferrero Rocher.
O caso mudaria de figura, queixou-se Padrinho a Varila, se São Nicolau tomasse as suas posições firmes depois de receber indicações de Cafú para organizar uma greve frente ao patronato, mas não; um ditava as regras e, a seguir, o outro planeava viagens para pesquisa de emprego de mão barata; por isso, aquilo começou a cheirar mal e eu pensei: deve ser a fama desses lendários personagens de contradição aos costumes e factos de cada país que lhe subiram à espinha do miolo.
O cheiro a esturro começou a obcecar Cafú, que era o mais instruído na linha do Leste, em relação ao seu camarada São Nicolau, que preferia o ensino pró capitalismo. Em virtude dessas duas vertentes ranhosas, Cafú tornou-se o escrivão de São Nicolau, de modo que lhe coube a ele especificar e estabelecer as regras que ambos iriam perfilhar todas aquelas sintonias de conveniência, disse ele a Varila e, quanto mais eu recuava no trabalho, piores se tornavam as coisas. Durante algumas semanas e meses até, Cafú tivera que pôr de lado as suas regras e procurar, a todo o custo, safar o seu barco e demandar-se daquele grupo antes que visse o barco afundar-se.
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O que a seguir se passou é bem sabido, não preciso de estar a repetir a mesma coisa, disse Padrinho. E a seguir à deserção de Cafú? Varila queixou-se a Padrinho: Era de esperar que o tratassem por um traidor, mas ele pouco se importou, o mais importante era ter uma gamela nova e marimbar-se para os direitos da honra e para a ingratidão dos trabalhadores; a vida dele estava acima de tudo e valia bem um truque daqueles; como se ele não tivesse dado o melhor que pôde e sabia e perdido uma data de amigos desde então, mas a verdade é que as pessoas não gostam nada que venha alguém tirá-las de apuros. Oh, que homem aquele, tão prático e reguila, desabafou Padrinho no quarto de Varila.
Entretanto, a bruxa tinha tirado da prateleira uma garrafa de litro verde tinto da região, e agora bebiam ambos copo atrás de copo, à luz decadente do fim da tarde. Padrinho ia falando cada vez mais palrador à medida que descia o nível do liquido escuro da garrafa.; Varila não se lembrava da ultima vez que alguém falara  tanto.
O que acabou de afastar Cafú de São Nicolau: a questão do tacho, e de ambos serem homens casados e chefes de família. Ouve, eu não sou de contos e ditos, confiou ebriamente Padrinho, mas a seguir ao emprego de Cafú, não foi anjinho, não senhor, não sei se me estás a entender. Só que na capital as coisas não se piam como por cá. Empregados são aos magotes, os patrões de fizeram-lhe a cabeça numa nora e as mulheres num ano puseram-lhe as barbas num molho de grelos perfumados. O problema dele, minha cara Varila, é que não gosta de ouvir a mulher repreendê-lo. Mas, na capital, as mulheres são diferentes. Tu nem imaginas, aqui nesta parvónia fazemos das mulheres gato sapato, mas lá nem pensar nisso. As mulheres de zangam-se de manhã ·e à tarde estão a pregar c'os palitos num gajo com uma descontracção como eu beber um pirolito. Olha só, que escândalo, não achas? E mesmo, depois da cornada, tudo fica como dantes, ou seja, tudo canta e tudo ri. É como se nada tivesse acontecido. O que a mulher fez ao homem, dias depois, o homem faz à mulher e a sociedade mantém-se entre os dois. Que maravilha, não é? Agora, imagina tu, se a moda pega e as nossas inocentes raparigas da terra começam também por a pôr os palitos a torto e a direito e a meterem-se umas com as outras. Qualquer dia, um homem casa-se é com uma vaca ou com uma mula; sabe-se , para onde este mundo vai parar. Afinal de contas, o Paraíso para uns calha a tornar-se o inferno para outros.

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«Seja como for», -disse Padrinho, perto de beber o ultimo copo da garrafa. -Ainda não chegamos a esse tempo, por isso, ficamos por aqui.» -
Certo dia o escrivão Cafú teve um sonho que pairava acima da sua cabeça quando se sentou perto da cabana no Monte Corgo. Levava para ler um livro sobre o Miguel Strogoff, no qual, depois de o ler, relembrou 0 incidente que cegou o mártir da revolução russa Strogoff, no seu tempo de luta contra o poder dos czares, tão nítido como se o episódio tivesse acontecido na semana passada.
«Gostava de ter sido Miguel Strogoff» - Esta ideia deu-lhe uma força diabólica. A partir daí, começou a fabricar novas regras na sua cabeça e a escrevê-las em folhas de papel mata-borrão para apresentar a São Nicolau quando estivesse com ele. A  principio, São Nicolau nem ligou a essas regras. E eu andava a preparar o meu caminho para me integrar na nova comunidade europeia que se propagava na comunicação social. Mas, caraças, se eu não aproveitava agora a minha oportunidade, quando é que ia aproveitar? Quando estivesse velho? Garanto-te que fiquei tão radiante que nem dormi de noite; tão abalado fiquei com o coração a bater que nem o cavalo de Tróia. Uma coisa é um tipo pensar que é vivaço e não passar de um perneta e outra coisa é um tipo perneta deixar de pensar e ser um vivaço. Ouve lá, Varila, mudei a minha vida por causa daquele homem. Deixei a minha profissão de estatuto não especificado, digamos assim, e instalei-me na sociedade moderna como um empresário de longo alcance... o resto é conversa fiada. Para dizer a verdade, quando fiz minha primeira aparição em público para dizer -quem quiser aprender necessita querer saber -eu não esperava ter o bom acolhimento que tive por parte dos novos alunos. Pois é, que eu enganei-me, que estupidez a minha! E verifiquei que afinal a sorte batera-me à porta e eu não podia recusar essa chance. Por isso não pude mais parar com aquilo. Acredito que tenha estado distraído esse tempo todo, mas um homem só se distrai uma vez. O que eu queria era ter aquele homem pelo meu lado. Por isso, no mês seguinte à minha independência social, cresci muito rapidamente. Ele dizia: cresce e multiplica mas eu triplicava. De certeza que ele ficou contente; como poderia não ficar? Mas, quando comecei a crescer socialmente e a engordar economicamente, a partir daí, percebi que os meus dias na cidade estavam contados; mas tinha que dar prosseguimento à minha jovem carreira comercial. Tinha mesmo.

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Não maior amargor num homem que acreditar ser um vitorioso e descobrir que não passa dum unhas de fome. Por isso continuei com a minha tarefa, alternando com o programa da formação dos jovens aprendizes sem o rótulo «Qualificados». Até que um dia tive um reunião com ele e, ao entregar-lhe o caderno de encargos, eu vi-o a franzir 0 sobrolho e abanar a cabeça como para planificar ideias. Depois fez um sinal de aprovação com bastante lentidão, mas ainda com um pouco de dúvidas. Entendi que tinha ido longe demais e que, para a próxima vez, quando levasse o caderno, teria que corrigir a minha forma de organização.
Nessa noite fiquei acordado, com as contas na mão e com os olhos na televisão a ver os desenhos animados do Pato Donald. Como vês, a vida não é fácil. Na hora das opções não tinha muito para escolher. Antes do amanhecer, saí de Lisboa no combóio e vim para aqui fazer contas à minha vida. Varila perguntou: «O que é que te leva a supor que a mama está para acabar?» -
Padrinho, o empresário, respondeu: «É a posição dele contra a minha.» -

Quando Padrinho deslizou consciente para se sentar em cima da pedra junto à lareira, Varila deitou-se na sua velha cadeira de palha, sentindo um odor azedo a tingir-lhe as narinas, dando um espirro. Muitas vezes o seu cansaço da vida a tinha feito não desejar chegar a velha mas, como dissera Padrinho, sonhar com uma coisa é muito fácil, mas eu confrontado com essa mesma coisa é totalmente diferente. Tinha consciência disso, havia algum tempo, de que o mundo se estreitava ao seu redor. não podia fingir que os olhos eram o que deviam ser e a sua falta de visão tornava as coisas mais obscuras, mais difíceis de topar. Toda aquela falta de pormenores não gerava grande confiança. Não admira que a sua feitiçaria fosse pela água abaixo. Por este andar acabaria em breve isolada de tudo e a caminho do asilo... Mas talvez não chegasse a tanto. Havia um velho feiticeiro que gostava dela. Talvez nunca mais beijasse um homem. Um velho feiticeiro. Para que é que este bêbado tagarela de meia tigela vem ter comigo? Pensou irritada. O que é que eu tenho a ver com aquele samelo? Toda a gente sabe que o escorracei anos, quando era menina não me faltaram por gabirus a querer saltarem-me prá cueca;

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ele também sabe disso, com certeza. Olhem para mim: pesada, tonta, meio cega, quase mouca. Quem é que me quer? Eu, um caco velho? ficou meio sonolenta. Padrinho abanou-a: acorda, ainda tens que expulsar do meu espírito a praga que deixaste ficar em mim.
A bruxa colocou-se de cócoras, com as pernas abertas viradas para cima, as mãos apoiadas no chão, as costas voltadas para a parede e olhos fechados. Varila, concentrada pela ciência espiritual, deixou-se levar pela enxerga. A praga, pensou, como é que era? Não te lembras, ora bolas, não se recordava bem, ele deu uma dica, sim, era mais ou menos isso, se passara tanto tempo que também não era de estranhar, uma feitiçaria mal dada acaba por dar sempre cagada, pelo menos sabia que acabava assim. Padrinho, a todas as feitiçarias são colocadas duas questões. Quando é fraca: está disposta a aceitar  todo o compromisso? E agora, Padrinho, que voltas ao Monte Corgo, é tempo de perguntar a segunda questão: Porque é que te deixaste vencer quando tinhas o poder na mão? Quando tinhas os teus amigos à mercê e o teu poder era titânico: agora, o que queres, então? Todos nós mudamos; mas prevejo ainda um grande futuro para ti. Vais viver até aos noventa anos, casar de novo e ter uma mulher que te um filho.
Prestes a mergulhar no sono, Varila pensou ainda na sua arte de enfeitiçar. Agora, que abdicara de todas as concentrações públicas, os seus feitiços estavam cheios de magia perdida: a juventude, a beleza, o amor, a saúde, e tantas coisas como as incertezas, a esperança, a energia. O tempo perdido. O dinheiro perdido. O feiticeiro perdido. Nas suas magias, havia figuras e factos que se afastavam dela e, quanto maior paixão punha em chamá-los, mais as figuras se punham à distância e fugiam dela.
A imagem da sua magia ainda era a escuridão, o silêncio da noite com os uivos dos corvos e pegas a fugir por entre o arvoredo. Nuvens elásticas , viagens marinhas e dunas movediças . Como dar magia ao vento que à noite configurava novas formas? Tais interrogações tornavam a sua linguagem demasiado comprida, a sua lengalenga demasiado abstracta e levavam-na a criar formas irreais, impossibilidades com cabeça do alho choco, língua de gato morto, penas de frango de aviário e outros animais do monte, cuja configuração se sentia obrigada a alterar assim que a traçava a feitiçaria, de forma que o elemento de escrita se infiltrava em magia duma pureza sensual, e a feitiçaria de salvação era constantemente

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defraudada por motivos de farsa. Ninguém engole destas coisas, pensou ela pela milésima vez e, ao voltar-se para cima na sua inconsciência, concluiu: ninguém se vai lembrar de mim. O esquecimento é firme. Depois o seu coração inquietou-se e ela ficou, de repente, bem desperta. Passou o resto da tarde escutando as histórias compassadas de Padrinho.

Padrinho falou de loucuras.
Uma figura lendária e inesperada surge, numa certa noite, entre os clientes da taberna do Rato. Talvez por causa do cio ou então era a potência dele ali dir-se-ia que o grande Padeiro, rei da cacetada, neste momento retomara o seu poder, mostrando a força que tinha como nos velhos tempos. Vem sozinho como sempre; e quem o conduz à presença da jovem Bambolina é Rato-Ratão, o dono da taberna.
A seguir, Padrinho falou sobre o regresso de Golias, o sonhador.
A sala está cheia de pito novo e juntou-se uma seita de galdérios à sua volta. Ao fim de alguns minutos, ouve-se a voz de Toni da Gota, vibrante de emoção. «Eu vou. Se ela for boa, eu depois conto-vos.» - Depois, a um canto da sala, Rato-Ratão aparece e pede aos clientes que se assentem no lugar e moderem a linguagem. O Grande Golias surge ao lado da Rapariga da Saca Preta; e recebe um par de beijocas em cada face, não conseguindo evitar que o baton dela o deixasse marcado em tons de vermelho.
Mais ainda, o Grande Pénis-Padeiro saiu com duas.
Golias, enfim convencido, perdeu boa parte da sua arrogância. Deixa que a Rapariga da Saca Preta fazer um «cabrito» para, depois, o vir deitar abaixo. Diz Ave Rara, solitariamente encostado na cadeira: Rato-Ratão prometeu que quem moderasse a língua tinha direito a galinha de borla. «Por isso vou estar calado, porque senão não fodo.» -
Rato-Ratão responde à letra, enfurecido. «Não fale antes do tempo. Pela boca morre o peixe, pela língua pica o anzol, pelos olhos entra a cobiça e o leite sai pela pi ...»
Golias continua calmo e sereno, palitando os dentes por tanta língua de gato e amendoim torrado ter comido. «Elas também dizem que quem quiser lanchar na malga de pêlos é à discrição e, se for ao monte, é mais barato, fazem desconto.»

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Pela terceira vez consecutiva, Toni da Gota entrou e saiu, voltou a entrar e tornou a sair e vice-versa; é uma cena danada, na mesa a falar de sexo; dou três em meia hora. Não pode haver competitividade com Toni da Gota, berra Fífia, ele arrebenta com uma mulher, tem a força do Sansão, pois, de dez em dez minutos, salta de cima de uma mulher e vai pôr-se debaixo do chuveiro a molhar a pila!. Ela própria diz mal dele mas está mortinha para se pôr debaixo daquele chanfrado. «Vão todos ver que a desgraçada que for com ele vai gritar que nem um bezerro. Ele faz assim a todas e, qualquer dia, não tem quem queira sair com ele, a não ser uma cegueta que esteja para com os olhos tapados. Comigo é que ele não sai, a não ser que pague bem e, mesmo assim, ainda vou pensar.» - Rato-Ratão pede para que falem mais baixo. Mas os clientes não ligam patavina.
Na Residência da Xangai continuam a aparecer os casais do amor instantâneo e os seus semblantes são nítidos. Faz muito tempo que ali não albergavam tanto par romântico mas, como ultimamente os pares nocturnos têm vindo a preferir ver as imagens por vídeo sobre o sexo, a quantidade deles cresceu a olhos vistos. quem não experimentou é que não sabe que, a ver, o sexo tem mais poder. Um grupo que permaneceu convicto da sua grandeza e encaixe, que decidiu mostrar esse tabu, contra tudo e contra todos, que o sexo é para ser livre é um grupo do  caraças, ou de loucos.
Agora o Grande Golias despertou da sonolência e esfregou os olhos e viu a sua cara-metade aproximar-se apressada. E depois começou a preparar-se e saiu mais depressa daquilo que pensava, antes que viesse outro estupor que a levasse dali para fora. Abandonou a sala com ela, rapidamente. E partem para casa a fechar-se a sete chaves.
Algures, pela banda do lado de lá, Fífia grita, implora e solta os cabelos. «Venham acudir-me que este louco não sai de cima de mim!» - Mas todos partiram e ninguém a escuta. E, nos outros quartos, o barulho é infernal, enquanto longe um grande silêncio se abate sobre o par sádico: Golias e a Rapariga da Saca Preta. E um grande sossego começa na taberna e Rato-Ratão coça o queixo, encostado à prateleira
do balcão.
A noite chegou ao fim. Ave Rara murmura brandamente: «Hoje, vi que é o meu dia do galo. Mas, amanhã, vou dar três enquanto o diabo esfrega um olho.» - E, a seguir, sai para a rua, onde até os cães ladram assustados com a sua presença, e vai para casa.
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Padrinho falou da taberna.
Rente ao muro do lado norte da Residencia da Xangai, ficava a taberna do Rato. E o intocável disse para Rato-Ratão, no dia da abertura da casa e antes do público chegar. «Vai e purifica este lugar. Livra-o do mau olhado e esquiva-te dos parasitas.» - Então Rato-Ratão, com a sua ratice de malandro, deitou creolina e pulverizou o recinto, deixando na casa um ar a cheiro de morcego, enquanto os primeiros clientes chegavam à porta do estabelecimento.
Quando o porteiro da casa, Capitão Guei, viu Ave Rara e o grupo dos Quatro aproximarem-se com um grupo de amigos, pegou nas senhas de entrada e acercou-se do primeiro: «Têm cartão de entrada ou são amigos da casa?» - Depois de se certificar que eram todos amigos do dono da taberna, o porteiro disse: «Se é para fazer despesa e deixar algum pró meu bolso, entrai com a graça do Senhor.» -
E Ave Rara mais os outros entraram na sala e logo se sentaram numa mesa junto à Deusa do amor, Madame Rara, que não mexeu um dedo sequer. «Agora é que vou ver se é verdade o que dizem que aqui a beleza é superior à inteligência carnívora.» - E Ave Rara, era um bon-vivant e logo se arrastou pela sala toda a cumprimentar os outros clientes, estabelecendo amizades e praticando o célebre mico fácil, e voltou para junto do Baixote que chegara naquele instante. E o outro perguntou:
«Andas muito atarefado?» - Ave Rara abriu os braços. «Ó, pá! Até foi bom estares aqui. Empresta-me dez contos que eu pago-te amanhã, prometo!» - E Baixote disse: «Só se for em cheque, porque em dinheiro não tenho.» - Ave Rara tinha resposta afiada na língua. «Não há problema nenhum. Olha, já agora, não ponhas o extenso, assina o cheque em branco, que às vezes posso precisar de mais dinheiro...» - O outro ficou sério. «Tás-me a foder ou quê? Passo-te o cheque de dez notas de mil e não digas que vais daqui.» -
Logo que apanhou o cheque na mão, Ave Rara voltou à mesa onde se encontrava Madame Rara e mostrou o papel diante dos olhos dela, dizendo: «Tás a ver, minha pombinha? O pilím canta.» - E ela olhou de soslaio e deu um sorriso de mulher vamp, toda senhoril e pôs a língua escarlate de fora, correndo atrás dele até chegar ao quarto dos espelhos sensuais.
Quando estava junto dele parou e recitou na sua meiga voz de Cinderela de sapato número quarenta e um: «Em primeiro lugar, vou

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recitar os versos que compus quando tinha quinze anos de idade. São os meus preferidos. Ora se gostas:

Quando eu era menina
Chamavam-me a mais bela do lugar Encheram-me de mimo numa terrina
E deram-me penas de pato pra provar. ..
Ave Rara interrompeu-a, exclamando: «O que é que foi que vieste aqui fazer?»,'- e  ela deu um sorriso irónico. - «Nada.», -  disse -Mas apetece-me declamar.» -
«Então vai pró diabo que te leve.», -exclamou ele de novo. -Eu não estou  aqui para ouvir esses versos sem nexo.» - E logo a seguir puxou o fecho e bateu com a porta do quarto.
E voltou para junto dos Quatro na sala e contou o que tinha acontecido. Eles nem acreditaram e puseram-se às gargalhadas. E o mais alto disse:
«Isso nem parece de um atirador do GAS!» - E Ave Rara respondeu:
«Juro que não faço amor ao som daquela poesia maluca.» - E levantaram-se todos da mesa e desceram aos locais do prazer, à procura de novas emoções em Nome do Altíssimo Tesão, o Consolador dos Humanos.

Quando Padrinho desceu o Monte Corgo nem sabia quantas horas o relógio badalava! Não esqueçam: doze horas e vinte e quatro minutos. Quase setecentas e vinte e cinco minutos de conversas com Varila, em que todas as questões, por mais delicadas, não foram poupadas. E não só: a nova profecia encheu-o de inquietação e de algum entristecimento por tão penoso martírio. E com que bem podia remediar com isso? Caem almas; amaldiçoam-se as pragas; o que nasce torto não mais endireita.
Padrinho, após uma noite bem dormida em casa, parte em direcção à escola de Formação. Quando chegou, alguns alunos apinham-se à volta da porta, querendo saber se é para  continuar. A submissão  da  escola: também isto é fatal e não é coisa sobre a qual valha a pena alongarmo-nos.
Enquanto os alunos se interrogam diante dele, Padrinho murmura uma frase que o acompanha desde o passado, o que eu não puder alcançar, que alcancem os outros. Há alguém que lhe segreda ao ouvido; alguém
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de muito esperado. «São Nicolau», - indaga o outro. - contactaram?» -
«Ainda o. Ele está escondido; mas não há-de tardar a aparecer.» . Um estranho episódio desvia as atenções de Padrinho. Uma jovem de vigília, possuidora de uma beleza exótica, com um  cartaz  agarrado à mão direita, aproxima-se dele e agarra-lhe a mão: «Por favor,  uma esmolinha à ceguinha.» Ele fita-a durante uns breves momentos. «la pensar que já nos cruzamos uma vez na vida.» - E vai ao bolso; tira uma nota que coloca na mão dela. A jovem segura-lhe a mão firmemente e afasta-se, deixando-lhe um bilhete entre a o... e ele, confuso, fica a vê-la descer a rua no seu passo oscilante agarrada com vigor à bengala. Padrinho concentra-se, estende a mão aos alunos e despede-se de todos com um  sorriso amargo nos lábios. «Gostei  muito  de vos conhecer.», -garante-lhes. - «A partir de agora, sois livres.» - Mas nele uma grande tristeza e confusão ao mesmo tempo. Uma mulher aproxima-se a pé. «Vem a esposa de Padrinho», - anuncia um deles bem alto, e faz-se silêncio. «Querida»,-diz Padrinho. -Não me  esqueci. Vou .» - Ao fim de alguns minutos, despedem-se uns dos outros e ele acena com a cabeça. «Nada mais custa numa despedida que o sentir
duma lágrima sofrida.» -

Mas ninguém conseguiu encontrar São Nicolau. Apesar de algumas buscas e telefonemas aos amigos mais próximos, foi impossível localizá-lo, pois, segundo constou, estava para o estrangeiro, a fim de fugir à alçada fiscal. Por fim, quando soube e sem qualquer tipo de recriminação, Padrinho exclamou: «Aquele sacana fê-la bem, assim eu tivesse feito também», -disse com os lábios separados dando voz às suas ironias. - Mas havemos de nos encontrar, em qualquer parte, em qualquer lugar, eu esperarei .» - Padrinho ficara silencioso a olhar para o infinito; mas na penumbra do seu pensamento era impossível saber qual era o seu objectivo. Aquelas pálpebras descaídas davam-lhe às vezes um ar cansado e triste. Além demais, o nariz tornava-se mais bicudo e a boca ficava mais pequena, as orelhas não arrebitavam como antigamente e o seu olhar perdia o brilho sensual dos olhares, no qual, ultimamente, se tornara possível distinguir as marcas deixadas pela doença recente que o estava a afectar.
Assim terminou o pesadelo.

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