Quando a velha feiticeira Varila
disse que tirou um pêlo do ânus e brotou uma lágrima do olho esquerdo,
compreendeu que a sua feitiçaria estava ao rubro da sua magia. Deu um valente arroto.
- era
já um hábito que se pegou, provocado
com o passar dos anos,
um gaguejar na linguagem e um empastamento do corpo, um manquejar de passos
transviados, que faziam
de Varila, aos cinquenta anos
de idade, uma
figura diferente daquela que, em nova, quando rapariga,
dera brado nas fileiras
dos feiticeiros do Monte Corgo. Às vezes sentia que a feitiçaria já não era nada como dantes, a
tal ponto que o mais fraco dos pastores já não
acreditava nela... e Varila também devia ter mudado muito,
para os outros
já não requisitarem as suas rezas e obrigá-la
a andar de mãos vazias, sem urna moeda sequer.
A minha feitiçaria desapareceu, perdeu encanto e
ficou sem raiz, pensou Varila,
mas os pastores, que vêem os seus rebanhos a não engordarem, precisam
dela. Afastou-se do Monte Corgo, saindo para a rua soalheira, e ouviu atrás de si um risinho de desprezo. Voltou-se, demoradamente; ninguém à vista. Sómente a sombra dumas calças a desaparecer no virar da esquina. Havia tempos que a feiticeira Varila provocava
muitas vezes gargalhadas de pastores em plena rua.
«Cambada de estafermos!», berrou
ela em alto som e sem gaguejar,
deixando estupefactas as pessoas que ouviram o seu palavrão .
Varila, a feiticeira emborrachada, outra vez a portar-se mal. Paciência, ela encolheu os ombros e dirigiu-se até casa.
A cidade onde se
situava o Monte Corgo (com o mesmo nome) já não era feita só de areia. Ou seja: com o passar
dos anos, a magia dos ventos do monte, o interesse
dos habitantes e o crescimento a olhos vistos
175
da população e o inevitável progresso tinham feito crescer a cidade de tal forma, que os antigos
refugiavam-se na sua natureza pura do monte
fazendo dele um lugar prosaico
e quotidiano (tal como os seus
feiticeiros). A feitiçaria
de Varila fora-se tornando
cada vez mais fraca; e só com 0 leite da cabra salvava a sua existência e fazia dele a sua alimentação.
Até o próprio
seu Deus estava
com um ar desgastado, cabelo amarelado e sem dentes.
Já não fazia a barba
assiduamente e ele também
não possuía energia para dar fé -ou murmurava pelas colinas do monte
a pedir que o substituíssem -Havia dias que só bebia leite da cabra, 0 que acentuava a sua imagem num mamão à beira da chupeta,
derrotado e amargurado.
Só Varila continuava igual àquilo que sempre fora. Sempre tivera
uma grande fama de bruxa capaz
de criar doenças a quem não lhe fizesse
vénias à sua passagem e fartava-se de apregoar que transformava os homens
em bichos sem pêlo e que os mandava cozinhar
para servirem a refeição aos porcos. Agora,
que estava a caminhar para
os sessenta anos, a
sua lenda começava
a envelhecer e só um milagre a poderia levar
de novo à glória do passado.
Enquanto tudo
à sua volta estava estagnado, enquanto os novos pequenos tubarões de meia-idade passavam o dia a roçar o traseiro pelas mesas dos cafés e lanchonetes, a ler histórias
de amor e fazer bonecos coloridos pelos tampos das retretes e tantos a jogar nas máquinas de diversão, enquanto as velhas
feiticeiras já sem clientes morriam
de fome pelas valetas e
nem as esmolas as salvavam da porca miséria, enquanto ia crescendo uma geração
cujo conformismo roçava
os consumimos e cuja veneração pelos vícios modernos
derivava de um desemprego e de
uma penúria mais que provável,
enquanto a pequena
cidade adormecia ao som das promessas futuras duma juventude
promissora, para maior alívio dos camaleões da terra, cuja aversão pela ideia de serem colocados a um canto da prateleira com a carteira
rota, era de todo
o modo compreensível...
Enquanto isso, Varila
continuava a pregar
os seus sermões, trazendo a velha garrafa
de vinho dentro
duma saca ao lado dos crucifixos e santinhos com imagens de cabras, porcos,
corvos e outros
animais do monte.
Varila continuava com poucas rugas no rosto, com o corpo tão duro como uma mocetona
de _dezoito anos, o olhar cintilante como o mocho, o cabelo negro entrelaçado em pôpa de pavão, o porte altivo e a
176
voz grossa do bagaço, não tolerando ainda
a menor oposição. Era Varila a velha
feiticeira, a bruxa
que dominava o Monte Corgo;
ou pelo menos disso ela estava
convencida.
À medida que a pequena cidade
se mudava numa
reforma promissora e bem vinda, o comandante Fiúza, chefe supremo
da guarda, dirigiu uma série de rusgas pela população, afim de enxotar
e até acabar de vez com as bruxarias e feiticeiras da cidade. De forma que os habitantes começaram a aperceber-se que Fiúza queria limpar a cidade e pô-la bem mais apetecível
do que a imagem que lhe devolvia
o espelho do rosto
torcido de Fiúza.
Os cartazes dele influíam mais nos espíritos do que nos bruxedos
de quaisquer feiticeiros.
Mas Varila, por exemplo, não acreditava. Ela alheava-se de todas
as questões políticas e fazia
ainda uns bruxedos
por amor à arte e nunca
pelo dinheiro; cada um dava o que quisesse.
Mastigando uma chiclete, chegou a casa,
depois de transpor um arco meio empobrecido numa parede cheia de lanhos.
Encontrava-se agora junto dum pátio que cheirava intensamente a mijo, casca de bananas, penas e sangue. Não havia sinais
de vida humana.
Apenas, mosquitos, lixo e sombras. Nos tempos que corriam, era preciso ter muita cautela. Uma seita de maus-maus
rondava a cidade.
As pessoas de bem eram aconselhadas a entrar pelas traseiras das suas casas, averiguando
primeiro se não havia ninguém por perto com intenção
de pregar uma cacetada no próximo.
Porém, Varila não temia ninguém
e nem se dava ao cuidado de averiguar se estava alguém à sua espreita e até fazia ouvidos de mercador às notícias que circulavam por aí. Sempre
fora forte e corajosa,
em tempos, mas isso fora no tempo da outra senhora.
Sonhava com os tempos
em que, no dia dos seus anos, celebrava à ganância, não ignorando as orgias sequer,
ria às risadas
quando alguém falava da extravagância do seu guarda vestidos, das suas trezentas
e trinta camisas de noite de seda persa e dos seus quinhentos e vinte decotes de todas as cores
em que se viam desenhos
eróticos por fora. Varila subiu vacilante a escada tosca de madeira
que conduzia ao pequeno quarto onde habitava. O que tinha ela que fosse de utilidade
para ser roubada? Não era pessoa que merecesse levar u ma facada.
177
Abriu a porta
e, quando quis entrar, recebeu
um empurrão que a atirou contra a parede. Valeu então levar as mãos à frente
e evitar o pior. Mesmo assim, ainda deu para pôr o nariz à prova.
«Não me mates, por favor»,
- gemeu ela. - «Eu não faço mal a ninguém.» -
A outra mão fechou a porta, ficando
postada na sombra da claridade. Varila sabia que, por muito que berrasse, nada adiantava. Ficariam
ali os dois sozinhos,
isolados do mundo, naquele pequeno e miserável quarto. Varila limpou com as costas
da mão o rosto suado, tremendo
descontroladamente.
«Eu não tenho dinheiro», - implorou. -«E nem sequer valores.» Então o intruso falou:
«Se uma bruxa em desespero não sabe endrominar, não é o ladrão
que a vai curar.» - E, depois,
a seguir a uma pausa:
«Varila. Desiludiste-me. Esperava mais da tua magia.»
Agora Varila sentia-se
intrigada, além de assustada. Seria o intruso algum seu fã enlouquecido, disposto
a dar-lhe cabo dos seus cacos por
não ter feito qualquer feitiçaria
em conformidade com os seus desejos? Ainda a
tremer de medo, fez um esforço para comentar:
«Eu conheço-te, não?», -arriscou. -«Quem és tu?» - O outro ignorou a observação.
«Claro que conheces.
Há muito tempo,
pedi-te uma malga de leite da
cabra lá em cima no monte e tu disseste uma frase que me arrasou com a
vida: Quanto
mais próximo se está
duma vigarice mais fácil
se torna cair na imundice.» - retorquiu amargamente Padrinho.
E Padrinho recuou
no passado, desabafando com os seus botões.
Nos finais da fábrica das molas, os trabalhadores viram-se
sem emprego e, por conseguinte, sem trabalho e mais pobres.
Durante algum tempo, uns financiaram-se a si próprios e outros desenrascaram-se noutros ofícios atacando por todo o lado à procura dum ofício
que lhe desse condições garantidas. Cafú não tinha tempo a perder com
escrúpulos, disse Padrinho
a Varila, nem problemas de se distanciar dos demais. Os trabalhadores trabalhavam à margem da lei, mas fora nesse tempo que Cafú se revoltou contra a lei.
Debaixo das palmeiras, Cafú
178

O caso mudaria de figura, queixou-se Padrinho a Varila, se São Nicolau tomasse as suas posições firmes
depois de receber
indicações de Cafú para organizar uma greve frente ao patronato, mas não; um ditava
as regras e, a seguir,
o outro planeava
viagens para pesquisa
de emprego de mão barata; por isso, aquilo começou a cheirar
mal e eu pensei: deve ser a fama desses lendários personagens de contradição aos costumes e factos
de cada país que lhe subiram à espinha do miolo.
O cheiro a esturro começou
a obcecar Cafú, que era o
mais instruído na linha
do Leste, em relação ao seu camarada
São Nicolau, que preferia
o ensino pró capitalismo. Em virtude dessas duas vertentes
ranhosas, Cafú tornou-se o escrivão de São Nicolau,
de modo que lhe coube a ele especificar e estabelecer as regras que ambos iriam
perfilhar todas aquelas sintonias de conveniência, disse ele a
Varila e, quanto mais eu recuava no trabalho, piores
se tornavam as coisas. Durante
algumas semanas e meses até, Cafú tivera que pôr de lado as suas regras e procurar,
a todo o custo, safar o seu barco e demandar-se daquele grupo antes que visse o
barco afundar-se.
179
O que a seguir se passou é bem sabido,
não preciso de estar a repetir
a mesma coisa, disse Padrinho. E a seguir
à deserção de Cafú? Varila queixou-se a Padrinho: Era de esperar
que o tratassem por um traidor,
mas ele pouco se importou, o mais importante era ter uma
gamela nova e marimbar-se para os direitos
da honra e para a ingratidão dos trabalhadores; a vida
dele estava acima de tudo e valia
bem um truque daqueles; como se ele não tivesse dado o melhor que pôde e sabia e
perdido uma data de amigos
desde então, mas a verdade
é que as pessoas não gostam
nada que venha
alguém tirá-las de apuros. Oh, que homem aquele, tão prático e reguila, desabafou Padrinho no quarto
de Varila.
Entretanto, a bruxa já tinha tirado da prateleira uma garrafa de litro
verde tinto da região, e agora bebiam ambos
copo atrás de copo, à luz decadente do fim
da tarde. Padrinho
ia falando cada
vez mais palrador à medida que descia o nível do liquido
escuro da garrafa.; Varila não se lembrava da ultima vez
que alguém falara tanto.
O que acabou
de afastar Cafú de São Nicolau: a questão do tacho, e de ambos serem homens casados
e chefes de família. Ouve, eu não sou
de contos e ditos, confiou
ebriamente Padrinho, mas
a seguir ao emprego
de Cafú, não foi anjinho,
não senhor, não sei se me estás a entender. Só que na capital
as coisas não se piam como por cá. Empregados são aos magotes, os patrões de lá fizeram-lhe a cabeça numa
nora e as mulheres
num ano puseram-lhe as barbas num molho de grelos perfumados. O problema
dele, minha cara Varila, é que
não gosta de ouvir a mulher
repreendê-lo. Mas, na capital, as mulheres são diferentes. Tu nem
imaginas, aqui nesta
parvónia fazemos das mulheres gato sapato, mas
lá nem pensar nisso.
As mulheres de lá zangam-se de manhã ·e à tarde estão
a pregar c'os palitos num gajo com uma descontracção como eu beber um
pirolito. Olha só, que
escândalo, não achas? E mesmo, depois da cornada, tudo fica como dantes, ou seja, tudo canta e tudo ri. É como se nada tivesse
acontecido. O que a mulher fez ao homem, dias depois, o homem
faz à mulher e a sociedade mantém-se entre os dois. Que
maravilha, não é? Agora, imagina
tu, se a moda pega e as nossas inocentes raparigas da terra começam também por aí a pôr os palitos a torto e a
direito e a meterem-se umas com as outras. Qualquer dia, um homem casa-se
é com uma vaca ou com uma mula; sabe-se lá, para onde este mundo
vai parar. Afinal
de contas, o Paraíso para
uns calha a tornar-se o inferno para outros.
180
«Seja como for», -disse Padrinho, já perto de beber o ultimo copo da garrafa.
-Ainda não chegamos a esse tempo, por isso, ficamos por aqui.» -
Certo
dia o escrivão Cafú teve um sonho que pairava
acima da sua cabeça quando
se sentou perto
da cabana no Monte Corgo.
Levava para ler um livro sobre
o Miguel Strogoff, no qual, depois
de o ler, relembrou 0 incidente que cegou
o mártir da revolução russa
Strogoff, no seu tempo
de luta contra o poder dos czares,
tão nítido como se o episódio tivesse acontecido na semana passada.
«Gostava de ter sido Miguel
Strogoff» - Esta ideia deu-lhe
uma força diabólica. A partir daí,
começou a fabricar novas regras na sua cabeça
e a escrevê-las em folhas de papel mata-borrão para apresentar a São
Nicolau quando estivesse com ele. A principio, São Nicolau nem
ligou a essas regras.
E eu já andava a preparar o meu caminho
para me integrar na nova comunidade europeia que se propagava na comunicação social. Mas, caraças, se eu não aproveitava agora a minha
oportunidade, quando é que ia aproveitar? Quando estivesse velho?
Garanto-te que fiquei
tão radiante que nem dormi de noite; tão abalado fiquei
com o coração a bater que nem o cavalo de Tróia. Uma coisa
é um tipo pensar que é
vivaço e não passar de um perneta
e outra coisa
é um tipo perneta deixar de pensar e ser um vivaço.
Ouve lá, Varila, mudei
a minha vida
por causa daquele
homem. Deixei a minha profissão de estatuto não
especificado, digamos assim, e instalei-me na sociedade moderna
como um empresário de longo alcance...
o resto é conversa fiada.
Para dizer a verdade, quando
fiz a minha primeira aparição
em público para dizer -quem
quiser aprender só necessita querer
saber -eu não esperava ter o bom acolhimento que tive por parte dos novos alunos.
Pois é, só que eu enganei-me, que estupidez a minha! E verifiquei que afinal a sorte batera-me à porta e eu não podia recusar
essa chance. Por
isso não pude
mais parar com aquilo.
Acredito que tenha estado distraído esse tempo todo,
mas um homem
só se distrai uma vez. O que eu queria era
ter aquele homem
pelo meu lado. Por isso, no mês seguinte à minha independência social, cresci muito rapidamente. Ele dizia: cresce
e multiplica mas eu triplicava. De
certeza que ele ficou
contente; como poderia
não ficar? Mas,
quando comecei a crescer socialmente e a engordar economicamente, a partir daí,
percebi que os meus dias na cidade estavam
contados; mas tinha que dar prosseguimento à minha jovem carreira comercial. Tinha mesmo.
181
Não há maior amargor num homem que acreditar ser
um vitorioso e descobrir que não passa
dum unhas de fome. Por isso continuei com a minha
tarefa, alternando com o programa
da formação dos jovens
aprendizes sem o rótulo «Qualificados». Até que um dia tive
um reunião com ele
e, ao entregar-lhe o caderno de encargos, eu vi-o a franzir 0 sobrolho e abanar a cabeça como
para planificar ideias.
Depois fez um sinal de aprovação com bastante lentidão, mas ainda com
um pouco de dúvidas. Entendi que tinha ido longe demais
e que, para a próxima
vez, quando levasse
o caderno, teria que corrigir
a minha forma de organização.
Nessa noite
fiquei acordado, com as contas
na mão e com os olhos na televisão a ver os desenhos animados
do Pato Donald. Como vês, a vida não
é fácil. Na hora das opções não tinha muito para escolher. Antes do amanhecer, saí de Lisboa no combóio
e vim para aqui fazer contas à minha
vida. Varila perguntou: «O que é que te leva a supor que a mama está para
acabar?» -
Padrinho, o empresário, respondeu: «É a posição
dele contra a minha.» -
Quando Padrinho deslizou consciente para se sentar
em cima da pedra
junto à lareira, Varila deitou-se
na sua velha cadeira de palha, sentindo
um odor azedo a tingir-lhe as narinas, dando um espirro.
Muitas vezes o seu cansaço da vida a tinha feito não desejar
chegar a velha mas, como dissera Padrinho, sonhar com uma coisa
é muito fácil, mas eu confrontado
com essa mesma coisa é totalmente diferente. Tinha consciência disso,
havia já algum tempo, de que o mundo se estreitava ao seu redor.
Já não podia fingir
que os olhos eram o que deviam
ser e a sua falta de visão tornava as coisas mais obscuras, mais difíceis de topar. Toda aquela falta de
pormenores não gerava grande confiança. Não admira que a sua feitiçaria fosse pela água abaixo. Por este andar acabaria
em breve isolada
de tudo e a caminho
do asilo... Mas talvez não chegasse a tanto.
Havia um velho feiticeiro que gostava dela. Talvez nunca mais beijasse um homem. Um velho feiticeiro. Para que é que este bêbado tagarela de meia
tigela vem ter comigo? Pensou
irritada. O que é que eu tenho a ver com
aquele samelo? Toda a gente sabe que o escorracei há anos, quando
era menina não me faltaram por aí gabirus a querer
saltarem-me prá cueca;
182
ele também sabe disso, com certeza. Olhem só para mim: pesada,
tonta, meio cega, quase mouca. Quem é que me quer? Eu, um caco velho? ficou meio sonolenta. Padrinho
abanou-a: acorda, ainda tens que expulsar
do meu espírito a praga que deixaste
ficar em mim.
A bruxa colocou-se de cócoras, com as pernas
abertas viradas para cima,
as mãos apoiadas no chão, as costas voltadas para a parede
e olhos fechados. Varila, concentrada pela ciência espiritual, deixou-se levar pela enxerga. A praga, pensou, como é que era? Não te lembras, ora bolas, já não se recordava bem, ele deu uma dica,
sim, era mais ou menos
isso, já se passara tanto tempo que também não era de estranhar,
uma feitiçaria mal dada acaba por dar sempre cagada,
pelo menos sabia que acabava assim. Padrinho, a todas as feitiçarias são colocadas
duas questões. Quando é fraca: está disposta
a aceitar todo o
compromisso? E agora, Padrinho, que voltas ao Monte Corgo,
é tempo de perguntar a segunda questão: Porque é que te deixaste
vencer quando tinhas o poder na mão? Quando tinhas os
teus amigos à mercê e o teu poder
era titânico: agora,
o que queres, então? Todos nós mudamos; mas prevejo ainda um grande futuro para ti. Vais viver até aos
noventa anos, casar de novo e ter uma mulher que te dê um filho.
Prestes a mergulhar
no sono, Varila
pensou ainda na sua arte de
enfeitiçar. Agora, que abdicara de todas as concentrações públicas, os seus feitiços
estavam cheios de magia
perdida: a juventude, a beleza, o amor, a saúde, e tantas coisas
como as incertezas, a esperança, a energia.
O tempo perdido. O dinheiro
perdido. O feiticeiro perdido. Nas suas magias, havia figuras e factos que se afastavam
dela e, quanto maior paixão punha em chamá-los, mais as figuras se punham
à distância e fugiam
dela.
A imagem da sua magia
ainda era a escuridão, o silêncio da noite com os
uivos dos corvos e pegas a fugir por entre
o arvoredo. Nuvens elásticas , viagens marinhas e dunas movediças . Como dar magia ao vento que à noite configurava novas formas? Tais interrogações tornavam
a sua linguagem demasiado comprida, a sua lengalenga demasiado abstracta e levavam-na a criar formas
irreais, impossibilidades com cabeça do alho
choco, língua de gato morto,
penas de frango
de aviário e outros animais do monte, cuja configuração se sentia obrigada
a alterar assim que a traçava
a feitiçaria, de forma que o elemento
de escrita se infiltrava em magia
duma pureza sensual,
e a feitiçaria de salvação era constantemente
183
defraudada por motivos
de farsa. Ninguém
engole destas coisas,
pensou ela pela milésima
vez e, ao voltar-se para cima na sua inconsciência, concluiu: ninguém
se vai lembrar de mim.
O esquecimento é firme. Depois o seu coração
inquietou-se e ela ficou, de repente, bem desperta. Passou
o resto da tarde escutando
as histórias compassadas de Padrinho.
Padrinho falou de loucuras.
Uma figura lendária e inesperada surge, numa certa noite, entre os
clientes da taberna do Rato. Talvez por causa do cio ou então era a potência dele ali - dir-se-ia que o grande
Padeiro, rei da cacetada, neste momento retomara
o seu poder, mostrando a força que tinha como nos
velhos tempos. Vem sozinho como
sempre; e quem
o conduz à presença da jovem
Bambolina é Rato-Ratão, o dono da taberna.
A seguir, Padrinho falou sobre
o regresso de Golias, o sonhador.
A sala está cheia de pito novo e juntou-se uma seita de galdérios à sua volta. Ao fim de alguns minutos,
ouve-se a voz de Toni da Gota, vibrante de emoção. «Eu já vou. Se ela for boa, eu depois conto-vos.» - Depois, a um canto
da sala, Rato-Ratão aparece e pede aos clientes
que se assentem no lugar e moderem a linguagem. O Grande Golias
surge ao lado da Rapariga da Saca Preta; e recebe um par de beijocas
em cada face, não conseguindo evitar que o baton dela o deixasse
marcado em tons de vermelho.
Mais ainda, o Grande Pénis-Padeiro saiu
com duas.
Golias, enfim convencido, perdeu boa parte
da sua arrogância. Deixa que a Rapariga
da Saca Preta
vá fazer um «cabrito» para, só depois,
o vir deitar abaixo. Diz Ave Rara, solitariamente encostado na cadeira: Rato-Ratão prometeu
que quem moderasse a língua tinha
direito a galinha de borla. «Por isso vou estar calado, porque
senão não fodo.» -
Rato-Ratão responde à letra, enfurecido. «Não fale antes do tempo.
Pela boca morre o peixe, pela língua pica o anzol, pelos olhos
entra a cobiça e o leite sai pela pi ...»
Golias continua calmo e sereno, palitando os dentes
por tanta língua de gato e amendoim torrado ter comido.
«Elas também dizem
que quem quiser lanchar
na malga de pêlos é à discrição e, se for
ao monte, é mais
barato, fazem desconto.»
184
Pela terceira vez consecutiva, Toni da Gota entrou
e saiu, voltou a entrar e tornou a sair e vice-versa; é uma cena danada, na mesa a falar de sexo; dou três em meia hora. Não pode haver competitividade com Toni da Gota, berra Fífia, ele arrebenta com uma
mulher, tem a força do Sansão, pois, de dez em dez minutos, salta de cima de uma mulher e vai
pôr-se debaixo do chuveiro a molhar a pila!. Ela própria diz mal dele mas
está mortinha para se pôr debaixo daquele
chanfrado. «Vão todos ver que a desgraçada que for com ele vai gritar que nem um bezerro.
Ele faz assim a todas e, qualquer
dia, já não tem quem queira
sair com ele, a não ser uma cegueta que esteja para aí com os olhos
tapados. Comigo é que ele não sai, a não ser que pague bem e, mesmo assim, ainda vou
pensar.» - Rato-Ratão pede para que falem mais baixo. Mas os clientes não ligam patavina.
Na Residência da Xangai continuam
a aparecer os casais do amor
instantâneo e os seus semblantes são nítidos. Faz muito tempo que ali não albergavam tanto par romântico mas, como ultimamente os pares nocturnos têm vindo a preferir ver
as imagens por vídeo sobre
o sexo, a quantidade deles cresceu a olhos vistos.
Só quem não experimentou é que não sabe que, a ver, o sexo tem mais poder.
Um grupo que permaneceu convicto da sua grandeza e encaixe, que decidiu mostrar esse tabu, contra tudo e contra todos, - que o sexo é para ser livre - é um grupo
do caraças, ou de loucos.
Agora o Grande
Golias despertou da sonolência e esfregou os olhos e viu a sua cara-metade aproximar-se apressada. E depois começou a preparar-se e saiu mais
depressa daquilo que
pensava, antes que viesse
outro estupor que a levasse
dali para fora. Abandonou a sala com ela,
rapidamente. E partem para casa a fechar-se a sete chaves.
Algures, pela banda do lado de lá, Fífia grita, implora
e solta os cabelos. «Venham acudir-me que este louco não sai de cima de mim!» - Mas todos partiram
e já ninguém a escuta.
E, nos outros quartos, o barulho é infernal, enquanto
longe um grande silêncio se abate sobre o
par sádico: Golias e a Rapariga da Saca Preta. E um grande
sossego começa na taberna e Rato-Ratão coça o queixo,
encostado à prateleira
do balcão.
A noite chegou ao
fim. Ave Rara murmura brandamente: «Hoje, já vi que é o meu dia do galo. Mas, amanhã, vou dar três enquanto
o diabo esfrega um olho.» - E, a seguir, sai para a rua, onde até os cães ladram assustados com a sua presença, e vai para casa.
185
Padrinho falou da taberna.
Rente ao muro do lado
norte da Residencia da Xangai, ficava a taberna do Rato. E o intocável Zé disse para Rato-Ratão, no dia da abertura da casa
e antes do público
chegar. «Vai e purifica este lugar. Livra-o
do mau olhado e esquiva-te dos parasitas.» - Então Rato-Ratão, com a sua ratice de malandro, deitou
creolina e pulverizou o recinto, deixando
na casa um ar a cheiro
de morcego, enquanto
os primeiros clientes
chegavam à porta do estabelecimento.
Quando o porteiro
da casa, Capitão
Guei, viu Ave Rara e o grupo dos Quatro aproximarem-se com um grupo
de amigos, pegou nas senhas de
entrada e acercou-se do primeiro: «Têm cartão de entrada ou são amigos da casa?» - Depois
de se certificar que eram todos amigos
do dono da taberna, o porteiro
disse: «Se é para fazer despesa e deixar cá algum pró meu
bolso, entrai com a graça do Senhor.» -
E Ave Rara mais os outros entraram
na sala e logo se sentaram numa mesa
junto à Deusa do amor, Madame Rara, que não mexeu um dedo
sequer. «Agora é que vou ver se é verdade o que dizem que aqui a beleza
é superior à inteligência carnívora.» - E Ave Rara, era um bon-vivant e logo se arrastou
pela sala toda a cumprimentar os outros clientes, estabelecendo amizades
e praticando o célebre mico fácil, e voltou para junto
do Baixote que chegara naquele
instante. E o outro perguntou:
«Andas muito atarefado?» - Ave Rara abriu os braços.
«Ó, pá! Até foi bom estares
aqui. Empresta-me aí dez contos
que eu pago-te amanhã,
prometo!» - E Baixote disse:
«Só se for em cheque,
porque em dinheiro não tenho.» - Ave Rara já tinha resposta
afiada na língua.
«Não há problema nenhum. Olha, já agora,
não ponhas o extenso, assina
o cheque em branco, que às vezes posso precisar
de mais dinheiro...» - O outro ficou sério.
«Tás-me a foder
ou quê? Passo-te o cheque de dez notas
de mil e não digas que vais daqui.»
-
Logo que apanhou
o cheque na mão, Ave Rara voltou
à
mesa onde
se encontrava Madame Rara e mostrou
o papel diante dos olhos dela, dizendo: «Tás a ver, minha pombinha? O pilím já cá canta.»
- E aí ela olhou de soslaio e deu um sorriso de mulher vamp, toda senhoril e pôs a língua
escarlate de fora, correndo atrás dele até chegar ao quarto dos espelhos sensuais.
Quando já estava
junto dele parou e recitou
na sua meiga voz de Cinderela de sapato número quarenta e um: «Em primeiro lugar, vou
186
recitar os versos
que compus quando
tinha quinze anos
de idade. São os
meus preferidos. Ora vê se gostas:
Quando eu era menina
Chamavam-me a mais bela do lugar Encheram-me de mimo numa terrina
E deram-me
penas de pato pra provar.
..
Ave Rara interrompeu-a, exclamando: «O que é que foi que
vieste aqui fazer?»,'- e ela
deu um sorriso irónico. - «Nada.», - disse
-Mas apetece-me declamar.» -
«Então vai pró diabo que te leve.»,
-exclamou ele de novo. -Eu não estou
aqui para ouvir esses
versos sem nexo.»
- E logo a seguir puxou
o fecho e bateu com a porta do quarto.
E voltou para junto dos Quatro na sala e contou o que tinha
acontecido. Eles nem acreditaram e puseram-se às gargalhadas. E o mais alto disse:
«Isso nem parece de um atirador do GAS!»
- E
Ave Rara respondeu:
«Juro que não
faço amor ao som daquela
poesia maluca.» - E levantaram-se todos da mesa e desceram
aos locais do prazer, à procura de novas
emoções em Nome do Altíssimo Tesão, o Consolador dos Humanos.
Quando Padrinho desceu o Monte Corgo já nem sabia quantas horas o
relógio badalava! Não esqueçam: doze horas e vinte e quatro minutos. Quase setecentas e vinte e
cinco minutos de conversas com Varila,
em que todas as questões, por mais delicadas, não foram poupadas.
E não só: a nova profecia encheu-o de inquietação e de algum entristecimento
por tão penoso martírio. E com que bem podia remediar
com isso? Caem almas; amaldiçoam-se as pragas; o que nasce torto não mais endireita.
Padrinho, após uma noite bem dormida em casa, parte em direcção
à escola de Formação. Quando lá chegou,
alguns alunos apinham-se à volta da porta, querendo
saber se é para continuar.
A submissão da escola: também
isto é fatal e não é coisa sobre a qual valha a pena alongarmo-nos.
Enquanto os alunos
se interrogam diante dele,
Padrinho murmura uma frase que o acompanha desde o passado,
o que eu não puder alcançar, que alcancem os outros.
Há alguém que lhe segreda ao ouvido; alguém
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de há muito esperado. «São Nicolau», - indaga o outro. - Já contactaram?» -
«Ainda não. Ele está escondido; mas não há-de tardar a aparecer.» .
Um estranho episódio desvia as atenções de Padrinho. Uma
jovem de vigília, possuidora de uma beleza
exótica, com um cartaz
agarrado à mão direita, aproxima-se dele e agarra-lhe a mão: «Por favor,
dê uma esmolinha à ceguinha.» Ele fita-a durante uns breves momentos.
«la pensar que já nos cruzamos
uma vez na vida.» - E vai ao bolso; tira uma nota que coloca na mão dela.
A jovem segura-lhe a mão firmemente e afasta-se, deixando-lhe um bilhete
entre a mão... e ele, confuso, fica a vê-la descer
a rua no seu passo
oscilante agarrada com vigor à bengala.
Padrinho concentra-se, estende a mão aos alunos e despede-se de todos com um sorriso amargo
nos lábios. «Gostei
muito de vos
conhecer.», -garante-lhes. - «A partir de agora, sois livres.» - Mas há nele uma grande tristeza
e confusão ao mesmo tempo. Uma mulher aproxima-se a pé. «Vem aí a esposa de Padrinho», - anuncia um deles bem alto, e faz-se silêncio. «Querida»,-diz Padrinho. -Não me
esqueci. Vou já.» - Ao fim de alguns
minutos, despedem-se uns dos outros
e ele acena com a cabeça. «Nada mais custa numa despedida que o sentir
duma lágrima sofrida.» -
Mas ninguém conseguiu encontrar São Nicolau. Apesar de algumas buscas e telefonemas aos amigos mais
próximos, foi impossível localizá-lo, pois, segundo constou,
estava para o estrangeiro, a fim de fugir à alçada
fiscal. Por fim, quando soube e sem qualquer
tipo de recriminação, Padrinho exclamou: «Aquele sacana
fê-la bem, assim eu tivesse feito também», -disse com os lábios separados dando voz às suas ironias.
- Mas havemos de nos encontrar, em qualquer parte, em qualquer lugar, eu esperarei .» - Padrinho ficara
silencioso a olhar
para o infinito; mas na penumbra do seu pensamento era impossível saber qual era o seu objectivo. Aquelas pálpebras descaídas davam-lhe às vezes
um ar cansado e triste. Além demais, o nariz tornava-se mais bicudo e a boca ficava
mais pequena, as orelhas já não arrebitavam como antigamente e o seu olhar perdia o brilho sensual dos olhares, no qual, ultimamente, se tornara possível distinguir as marcas deixadas
pela doença recente
que o estava a afectar.
Assim terminou o pesadelo.
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