GANHAR CONFIANÇA AO FERNANDO ERA FÁCIL.
FALAR DE CINEMA É QUE ERA OUTRA COISA...
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Estava frio naquele dia na Arca d´Água,
Porto; mas eu aquecia, andando a pé na minha rotina em que fazia dois
quarteirões a pé. Finalmente, desci à rampa da garagem, e após abrir o portão,
fiquei surpreso ao ver: um filme antigo Asphalt pousado, numa velha
cadeira de plástico. Após um momento de hesitação, disse:
«Antiguinho.»
«Como sabe?», perguntou o vizinho.
Mas eu tinha na cabeça as palavras da minha
mãe: se admirares uma coisa, trata de saber quem a fez.
Como se tomasse a deixa, o vizinho, um homem
na casa dos 70 anos pôs a vassoura de lado. Bom conservador, parecia saído duma
emissora qualquer. Os seus olhos castanhos espreitavam com ar acolhedor por
detrás dos óculos brancos, e acenou com a cabeça.
«Então, não quer pegar nele?», perguntou o
vizinho. «Chamo-me Fernando Almeida. E você?»
«António Reis», respondi eu, pedindo licença
para ver a capa do filme. Mais descontraído, perguntei: «Foi você quem fez a
copilagem?»
«Sim», respondeu, num tom orgulhoso.»
«Fez um bom trabalho.»
«Sim.»
Fiquei admirado com o à vontade dele. E
então o Fernando perguntou: «Tem copilado muitos filmes?»
Perplexo, disse: «Desculpe! Não estou a
entender...»
«Se não copiou nenhum, como é que sabe que
fiz bom trabalho?»
Fiquei embaraçado. Mas limitei-me a dizer:
«Sei reconhecer um bom trabalho.»
Quando subíamos no elevador, Fernando
surpreendeu-me com outra pergunta:
«Quer ver os meus ficheiros?»
Tive um imprevisto.«Claro.»
«Então, vou já ter consigo. O que é que o
senhor faz?», perguntou ele.
«Sou professor universitário.»
Uma rusga franziu-se-lhe um pouco e
perguntou com mais realce: «Professor?»
«Português. Mas estou ligado à cinemateca.»
«Ah! Então já tenho parceiro.»
«Nem sempre», disse eu.
Os ficheiros vinham em duas caixas
totalmente preenchidas de fichas e havia uma divisão entre realizadores e
atores. Fernando mostrou-me mais de 1.500 filmes copiados: comédias, dramas,
aventuras, terrores, suspenses, policiais, infantis, e documentários obviamente
todos numerados. A dada altura, passou-me para a mão um filme. Era a primeira
obra de 1917 daquele realizador em que tocava, e despertou-me a vontade de o
ver.»
«Se o quiser levar, não deixe de o fazer.
Julguei que conhecia o realizador?», atirou ele.
«Este não.»
«Vou-lhe tirar uma lista dos meus
clássicos», disse ele. «Hei-de ter muitas fitas que o professor ainda não viu.»
Apareceu um dia depois. E sempre que me
apanhava na garagem, Fernando passou a falar de cinema. Um homem
desconcertante, sem dúvida.
Descobri também que poucas pessoas no Amial
não tinham uns predicados como o Fernando. Os seus conhecimentos nos filmes
chegavam a altura de comentador. Vendo-o amiúdas vezes, conheci-lhe duas
facetas: o Fernando violista e cantador de fados, umas vezes, o Fernando
eletricista e limpador das garagens, outras. Admirava-o no fundo, e
mantinha-nos uma relação normal, mas sempre esbarrávamos numa conversa que não
ia além disso.
Comecei a evitá-lo também com os argumentos
por eu ser da cinemateca. Tocámos no assunto, um dia, quando ele tirou do torrent
um filme Aves de Rapina (1924), e o passou para a minha mão, na intenção de lhe
dar uma referência. Eu dei uma olhadela, e resmunguei: «Quando tiver tempo eu
vejo.»
Fernando sentiu a resposta, voltou-se e
seguiu para a garagem. Eu fiz o mesmo. No retorno, aproximei-me dele e disse:
«Sr. Fernando, gostava de saber o que é que
o fascina tanto no cinema.»
Fernando mordeu os lábios e
nuns rápidos segundos, respondeu: «Chegue aqui, sr. professor. Vou contar-lhe
como começou.»
Olhou-me cara a cara. «Rápido e claro como a
água, sr. professor: eu vi o meu primeiro filme aos 11 anos. Chamava-se
"Rio Sem Penas", um western, com Guy Madison. Para mim as
imagens fazem todo o sentido. Cenas... cenas é outro mundo. Até o meu pai,
salsicheiro de profissão, queria lá saber se ele em vez de pôr carne de porco
na montra, tinha lá eu os meus livros de BD para venda e troca. Para
ele, se não lês nem sabes, não vales um chavo. Despertaram-me tanto, que tive
de desistir depois da 4. classe.»
«Sr. Fernando... Nem sei o que dizer.» Eu
tinha os olhos calisbaixos, mas quando olhei para ele, ele estava a sorrir.
Apanhou-me a dormir. E sorri também.
«Olhe-me só para isto?», disse ele quase ao
meu ouvido. Tirou duma mochila um
amontoado de papeis
amarrotados, pedaços de cartolina e resto de anotações presas a clipes.
Folheando-os vi linhas traçadas a lápis de cor, cartoons de artistas, nomes que
reconheci e outros que nunca vira.
«São os meus rascunhos», explicou o
Fernando. «Rascunhos de apontamentos que fazem circular muitos dos meus livros
e blogues espalhados pela internet. Sr. professor, nunca mostrei isto a
ninguém.»
Tinha a confiança dele. E sentia-me
mergulhado. «Como é que aprendeu tudo o que sabe sem tirar um curso?»,
perguntei.
«Encontrei uns tantos companheiros de
diversão, incluíndo o meu irmão Jorge, que incutiram em mim o espírito de
cinéfilo.» Fez um intervalo.
«O melhor depois da escola, professor, foi
passar a escolher os meus filmes.» Juntou os rascunhos e guardou-os. «Bom... e
esse filme? Vá ver o filme que vale a pena.»
O passar das semanas seguintes, enquanto
andávamos nas nossas lides, concluí que as revelações do Fernando acerca do seu
passado tinham cimentado a nossa amizade.
Um dia, mostrei o meu lado mais proveitoso
ao Fernando, comportando-me como um verdadeiro apanhador de pauzinhos caídos
das árvores. Quando ele me perguntou para que era tanto caixote vazio, eu
expliquei-lhe que era para armazenar os pauzinhos ao fundo da garagem. «Se o
Inverno for rigoroso, nada melhor que ter lá os tais pauzinhos de reserva.»
Ficamos de pé com ele a contar-me peripécias surpreendentes que ocorrem nos
bastidores da Meca do cinema, e vi-lhe sorrisos na face, como havia na minha.
O Fernando continua a morar no mesmo prédio
que eu há mais de vinte anos, e continua a fazer parte das minhas amizades.
Desde que saí para a reforma, a parede da minha estante ostenta uma foto dele,
muito artística no seu livro de piadas que em tempos me ofertou. Será talvez a
curiosidade que leva muitos a perguntarem: «É um seu aluno ou o seu diretor?»
«Não», digo eu. «É o Fernando. Um bom
vizinho meu.»
Oferta
do autor ao Professor António Reis. Porto.