Sunday, May 3, 2020






                    GANHAR CONFIANÇA AO FERNANDO ERA FÁCIL.
                 FALAR DE CINEMA É QUE ERA OUTRA COISA...
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   Estava frio naquele dia na Arca d´Água, Porto; mas eu aquecia, andando a pé na minha rotina em que fazia dois quarteirões a pé. Finalmente, desci à rampa da garagem, e após abrir o portão, fiquei surpreso ao ver: um filme antigo Asphalt pousado, numa velha cadeira de plástico. Após um momento de hesitação, disse:
   «Antiguinho.»
   «Como sabe?», perguntou o vizinho.
   Mas eu tinha na cabeça as palavras da minha mãe: se admirares uma coisa, trata de saber quem a fez.
   Como se tomasse a deixa, o vizinho, um homem na casa dos 70 anos pôs a vassoura de lado. Bom conservador, parecia saído duma emissora qualquer. Os seus olhos castanhos espreitavam com ar acolhedor por detrás dos óculos brancos, e acenou com a cabeça.
   «Então, não quer pegar nele?», perguntou o vizinho. «Chamo-me Fernando Almeida. E você?»
   «António Reis», respondi eu, pedindo licença para ver a capa do filme. Mais descontraído, perguntei: «Foi você quem fez a copilagem?»
   «Sim», respondeu, num tom orgulhoso.»
   «Fez um bom trabalho.»
   «Sim.»  
   Fiquei admirado com o à vontade dele. E então o Fernando perguntou: «Tem copilado muitos filmes?»
   Perplexo, disse: «Desculpe! Não estou a entender...»
   «Se não copiou nenhum, como é que sabe que fiz bom trabalho?»
   Fiquei embaraçado. Mas limitei-me a dizer: «Sei reconhecer um bom trabalho.»
   Quando subíamos no elevador, Fernando surpreendeu-me com outra pergunta:
   «Quer ver os meus ficheiros?»
   Tive um imprevisto.«Claro.»
   «Então, vou já ter consigo. O que é que o senhor faz?», perguntou ele.
   «Sou professor universitário.»
   Uma rusga franziu-se-lhe um pouco e perguntou com mais realce: «Professor?»
    «Português. Mas estou ligado à cinemateca.»
   «Ah! Então já tenho parceiro.»
   «Nem sempre», disse eu.
   Os ficheiros vinham em duas caixas totalmente preenchidas de fichas e havia uma divisão entre realizadores e atores. Fernando mostrou-me mais de 1.500 filmes copiados: comédias, dramas, aventuras, terrores, suspenses, policiais, infantis, e documentários obviamente todos numerados. A dada altura, passou-me para a mão um filme. Era a primeira obra de 1917 daquele realizador em que tocava, e despertou-me a vontade de o ver.»
   «Se o quiser levar, não deixe de o fazer. Julguei que conhecia o realizador?», atirou ele.
   «Este não.»
   «Vou-lhe tirar uma lista dos meus clássicos», disse ele. «Hei-de ter muitas fitas que o professor ainda não viu.»
   Apareceu um dia depois. E sempre que me apanhava na garagem, Fernando passou a falar de cinema. Um homem desconcertante, sem dúvida.
   Descobri também que poucas pessoas no Amial não tinham uns predicados como o Fernando. Os seus conhecimentos nos filmes chegavam a altura de comentador. Vendo-o amiúdas vezes, conheci-lhe duas facetas: o Fernando violista e cantador de fados, umas vezes, o Fernando eletricista e limpador das garagens, outras. Admirava-o no fundo, e mantinha-nos uma relação normal, mas sempre esbarrávamos numa conversa que não ia além disso.
   Comecei a evitá-lo também com os argumentos por eu ser da cinemateca. Tocámos no assunto, um dia, quando ele tirou do torrent um filme Aves de Rapina (1924), e o passou para a minha mão, na intenção de lhe dar uma referência. Eu dei uma olhadela, e resmunguei: «Quando tiver tempo eu vejo.»
   Fernando sentiu a resposta, voltou-se e seguiu para a garagem. Eu fiz o mesmo. No retorno, aproximei-me dele e disse:
   «Sr. Fernando, gostava de saber o que é que o fascina tanto no cinema.»
Fernando mordeu os lábios e nuns rápidos segundos, respondeu: «Chegue aqui, sr. professor. Vou contar-lhe como começou.»
   Olhou-me cara a cara. «Rápido e claro como a água, sr. professor: eu vi o meu primeiro filme aos 11 anos. Chamava-se "Rio Sem Penas", um western, com Guy Madison. Para mim as imagens fazem todo o sentido. Cenas... cenas é outro mundo. Até o meu pai, salsicheiro de profissão, queria lá saber se ele em vez de pôr carne de porco na montra, tinha lá eu os meus livros de BD para venda e troca. Para ele, se não lês nem sabes, não vales um chavo. Despertaram-me tanto, que tive de desistir depois da 4. classe.»
   «Sr. Fernando... Nem sei o que dizer.» Eu tinha os olhos calisbaixos, mas quando olhei para ele, ele estava a sorrir. Apanhou-me a dormir. E sorri também.
   «Olhe-me só para isto?», disse ele quase ao meu ouvido. Tirou duma mochila um
amontoado de papeis amarrotados, pedaços de cartolina e resto de anotações presas a clipes. Folheando-os vi linhas traçadas a lápis de cor, cartoons de artistas, nomes que reconheci e outros que nunca vira.
   «São os meus rascunhos», explicou o Fernando. «Rascunhos de apontamentos que fazem circular muitos dos meus livros e blogues espalhados pela internet. Sr. professor, nunca mostrei isto a ninguém.»
   Tinha a confiança dele. E sentia-me mergulhado. «Como é que aprendeu tudo o que sabe sem tirar um curso?», perguntei.
   «Encontrei uns tantos companheiros de diversão, incluíndo o meu irmão Jorge, que incutiram em mim o espírito de cinéfilo.» Fez um intervalo.
   «O melhor depois da escola, professor, foi passar a escolher os meus filmes.» Juntou os rascunhos e guardou-os. «Bom... e esse filme? Vá ver o filme que vale a pena.»
   O passar das semanas seguintes, enquanto andávamos nas nossas lides, concluí que as revelações do Fernando acerca do seu passado tinham cimentado a nossa amizade.
   Um dia, mostrei o meu lado mais proveitoso ao Fernando, comportando-me como um verdadeiro apanhador de pauzinhos caídos das árvores. Quando ele me perguntou para que era tanto caixote vazio, eu expliquei-lhe que era para armazenar os pauzinhos ao fundo da garagem. «Se o Inverno for rigoroso, nada melhor que ter lá os tais pauzinhos de reserva.» Ficamos de pé com ele a contar-me peripécias surpreendentes que ocorrem nos bastidores da Meca do cinema, e vi-lhe sorrisos na face, como havia na minha.
   O Fernando continua a morar no mesmo prédio que eu há mais de vinte anos, e continua a fazer parte das minhas amizades. Desde que saí para a reforma, a parede da minha estante ostenta uma foto dele, muito artística no seu livro de piadas que em tempos me ofertou. Será talvez a curiosidade que leva muitos a perguntarem: «É um seu aluno ou o seu diretor?»
   «Não», digo eu. «É o Fernando. Um bom vizinho meu.»

                                                                                    Oferta do autor ao Professor António Reis. Porto.