Thursday, May 30, 2019






                          Padrinho e o Porto

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   O boletim meteorológico dava sinais de chuva intensa e húmida e o céu apresentava uma lua em quarto minguante em estado de uma obscuridade quase total, e a noite dera lugar a uma tenebrosa trovoada. As árvores abanavam ao sabor do vento que fustigava cada vez mais, ouvindo o ruído de sons agudos que pairavam na rua.
   A passo lento, segue Padrinho, chapéu enterrado na cabeça, bolsa de cabedal dos documentos fortemente atada à mão direita, enquanto a outra mão se enfiava no bolso da gabardina escura.  
   No silêncio da noite, ele baniu do pensamento todo o remorso pelo período em que duvidara de si mesmo, substituindo por uma ideia nova: devolver a si próprio a imagem do passado. Sentiu que a sua fé o abandonava e encolheu os ombros, numa expectativa de aguardar de momento o que o futuro lhe reservava — embora isso também estivesse para breve.
   Envolto pelas ruas da cidade que se enroscavam em seu redor, contorceu-se num esgar de frio e olhou para o horizonte. O Porto mostrava-se uma cidade airosa, revelando a sua verdadeira raça de natureza pura, a sua beleza arquitectónica de cidade que tinha ganho a noção de si própria e, por conseguinte, se rebolava num presente auspicioso, diferente, de borgas e paródias, sem nunca ter rejeitado o passado, olhando a escuridão de um futuro promissor.
   Padrinho vagueou nas ruas nessa noite seguindo a luz e as trevas da madrugada. Lembrava que muito antes da chuva cair, um certo número de casos que o haviam abalado lhe vieram à memória trazendo alguns nomes que haviam sido expulsos do seu espírito por terem falhado na hora do compromisso e, em consequência disso, haviam-se deixado, como no filme O comboio apitou 3 vezes em que o artista, o xerife, fica a falar sozinho à espera dos meliantes que lhe queriam fazer «a folha». Ó falsas criaturas! Que mal eu vos fiz! —
   Quando o Deus para uns é cego, não há força da razão que resista tal encomenda. Padrinho estivera à beira do abismo na derradeira queda. Como a Boa-Estrela havia sido benévola para com ele! — Via que a escolha era simples: o amor ao próximo e fé em Deus. Uma possibilidade que não podia deitar a perder, antes que fosse tarde demais.
   Tirou do bolso da gabardina um pequeno livro de apontamentos que ali se encontrava desde que saíra de sua casa, havia mais de três horas e meia: o livro com os nomes dos meliantes que lhe queriam fazer a tal dita «folha», os dignos companheiros, amigos de longa data, os seus nomes estavam escritos à mão, em tinta preta, e deitou-os a uma valeta…
   Numa esquina, na zona da Rua Chá, outrora conhecida pela sua população de artistas de várias artes, vagabundos e homens à procura de prostitutas, e agora ocupada por profissionais de comércio e pequenos empresários de negócios, Padrinho teve ocasião de encontrar uma alma perdida à procura de alguém.
   Era ainda jovem, de sexo feminino, alta e duma beleza exótica, com um nariz tipo chafariz e cabelo preto e riscas brancas, penteado com azeite e tinha dentes pintados a várias cores. A jovem estava mesmo à beirinha do passeio, encostado a um varão de ferro, de costas voltadas para a estação ferroviária, levemente inclinada para a frente e segurando, na mão esquerda, um objecto rectangular de estimação.
   O seu comportamento chamava a atenção: primeiro fitava com olhar sombrio o objecto que tinha na mão e depois olhava à sua volta e rodava constantemente a cabeça dum lado para o outro, pondo os transeuntes demasiado concentrados.
   Padrinho, numa primeira passagem, olhou para o objecto que a jovem agarrava: era um cartaz escrito a letras miudinhas. À segunda passagem, pôs os óculos e leu com atenção o cartaz: Por favor, dê uma esmolinha à ceguinha. A seguir ofereceu-lhe a sua ajuda. A jovem passou o cartaz para a outra mão e voltou a repetir o mesmo refrão.
   «Este dinheiro — disse ele — é teu e não é muito, mas é de boa vontade.»
   E retomou o caminho, olhando a pequena multidão silenciosa. Ali, na esquina de uma rua movimentada, andavam almas a sondar em busca dum corpo à deriva.
   Mais adiante, quase ao fundo da rua, Padrinho viu claro uma prostituta a ser assediada por um esgazeado que, sem mais nem menos, agarrou o rosto dela com ambas as mãos e deu-lhe um beijo firmemente na boca. No entanto, ela reagiu de maneira surpreendente ao ser assim agarrada bruscamente, exclamando:
   «Vai-te foder», — berrou com toda a força — posso estar desesperada, meu, mas ainda não estou esgazeada a esse ponto.» —
   Ao que o freguês, dando mostras de mau perdedor, deu-lhe um valente soco no nariz que a pôs a sangrar. A seguir, pirou-se pela rua abaixo e perdeu-se na escuridão.
   Quando Padrinho foi atrás dele, o freguês já tinha cavado não se sabe para onde mas, em vez disso, encontrou uma amiga dos tempos da desgraça que veio flutuar para a sua beira, já com uns copitos a mais no estômago.
   «Olá! A uma hora destas por aqui — disse ela — só se for para curtir o fado do Pescador!» —
   Padrinho sorriu.
   «Olha, que é que queres que te faça? — acrescentou. — Não tenho sono, tenho medo da solidão e, como não consigo dormir, prefiro passear pela noite.» —
   As palavras dela continuavam a ser irónicas.
   «Está-me a contar essa fita a mim? — olhou maliciosa. — Esse filme vai no Batalha!.» —
   Ele próprio também foi obrigado a rir. Tal como ela, Padrinho pôs-se na galhofa a lembrar cenas do passado num jogo de perguntas e respostas para fazer passar o tempo.
   «Eram todos filhos de Adão», — contava ela uma cena antiga. — Mas quando se deitaram na cama, os cabrões arrancaram logo as suas roupas para mostrar as suas vergonhas.» —
   Ouviram-se as suas gargalhadas. E Padrinho, logo a seguir, contou a dele:
   «Uma noite, às quatro da manhã, completamente embriagado, já tinha bebido o uísque todo da garrafa, tirara a escova dos dentes e preparava-me para ir à casa de banho, quando se apresentou no meu apartamento, uma jovem sem ser anunciada e não dava mostras de querer sair dali. Eu, educadamente, fui à casa de banho lavar os dentes e, ao voltar, encontrei-a de pé no meio do tapete da sala, completamente nua, exibindo um corpo de tarar. Quando eu vi aquele espectáculo ali diante de mim, gritei:
   -Toma-me! Sou todo teu. Faz o que quiseres!» — Ela pôs-se a mijar em cima do tapete e, a seguir, desapareceu calmamente para fora.» —
   Padrinho contara a ela a história num tom franco e risonho, sugerindo, em princípio, que a tempestade já não se desencadeava. O certo é que ela não parava de contar histórias e ele foi obrigado a gritar-lhe:
   «Agora chega», — disse ele. — Vou-me embora.» —
   Apertando bem o cinto da gabardina ao corpo, seguiu a passo rápido pela rua em frente. O nariz de Padrinho, escorrendo pingos de orvalho, começou a latejar dolorosamente. Nunca fora capaz de suportar o frio. Deu por si a murmurar uns versos que lhe saíam à memória repentinamente,

Morrerá quem suporta o frio?
Quem, não se alheie ao abandono, embora a ele condenado?
Tu também farias isso, e te tornarias um oculto, de qualquer das formas.
Mas longe do frio, onde pudesses trocar,
Um pouco de sossego e paz…

   Ele próprio não saberia dizer melhor.
Qualquer pessoa que desse por si no meio da noite, ao relento, a falar sozinho, diria que ali ia um maluco… pôs-se a limpar o nariz a um lenço de papel e murmurou:
   «Devias era ter ido para poeta», — opinou voltado para o candeeiro da rua. — Podias muito bem ter tido êxito. Eu sei escrever embora só tenha a quarta classe, mas que raio? Uma pessoa não precisa de ter muitos estudos para saber dizer uma dúzia de frases bonitas, não é? É claro que não sou burro de todo: há por aí mais camelos do que eu a pastar que não vão a lado algum mas eu cheguei lá! Mais longe do que eles pensavam, disso tenho a plena certeza e mais digo: esses nem daqui a cem anos chegam onde eu cheguei, disso garanto-te, palavra de Padrinho.» —
   Ele desvaneceu-se da fúria e até lhe deu para fumar um cigarro, puxando primeiro pela aba do chapéu para a frente da cabeça, enquanto tirava umas fumaças de fumo para o ar. Nesse instante, reparou que duas pessoas o olhavam com curiosidade, a primeira um jovem de aspecto aguerrido, com roupas de couro guarnecidas com letras em relevo, um cabelo cortado à pica e uns olhos de esfomeado; a outra, uma mulher de meia-idade com um guarda-chuva na mão.
   «Vocês tiveram azar», — gritou Padrinho. — Pois já fui assaltado ali atrás e fiquei teso como um virote.» —
   «És mais desgraçado do que nós», — disse o Pica lançando uma pedra contra os sapatos dele. — «Ao menos, deixa ficar o tabaco.» —
   Depois dele ter pegado nos cigarros, retomou o seu caminho; enquanto a mulher retorceu uns passos para trás e disse:
   «Tenho a certeza que nos estás a enganar, mas a tua cara ficará guardada no meu espólio, ouviste, ó gamão?» —
   Pelos vistos, aquela era uma noite recheada de atractivos, compreendeu ele com surpresa.
   - «Mas que noite! É caso para eu dizer: o que mais falta para vir?»
   Padrinho ficou persuadido de que sair à noite sozinho era um perigo numa cidade como o Porto. E, tendo em conta aquilo que viu, a esmurrada no nariz, perseguida pelos Picas, a ceguinha a pedir esmola, a amiga das anedotas. Padrinho ficou mais decidido a recuar caminho e mudar de direcção, seguindo até ao Poente; mais propriamente dito, para a sua morada.
   Padrinho tinha a certeza que ali ninguém o incomodava.

Sunday, May 12, 2019




   «HÁ ANOS fiz uma descoberta com uma cabriteira chamada Ondina que não parecia mais do que um simples esqueleto ─ recordou Ratazana.
   E consegui, por muito que estranhasse, fazer coisas extraordinárias como trabalhá-la num só esquema, com algum êxito que não pensava. O esquema teve saída e senti-me lisonjeado ao saber que toda a manobra tinha a ver comigo. Esforçara-me a conduzir aquele ´bife-se-sal`, enquanto fazia o seu trabalho.
   Alguns meses depois da sua ida embora, numa aparição na sala de estar da Residencial X, no Porto, Ondina confessou-me que ficara muito satisfeita com o esquema de Ratazana. Ela vivera intensamente essa ideia; disse-me que esta fora a principal razão por que se deixara prender pelo Bar do Traidor.
   ─ Eu fiquei reconhecida a Ratazana e disse-lhe que estava imensamente grata por todos os momentos que lá passei. Agradava-lhe que os esquemas fossem bem sucedidos e que os clientes daqueles bons momentos pudessem falar disso durante muitos anos. Para mim, aturar qualquer um cliente era uma seca mas Ratazana foi muito perspicaz e até me deu uma dica nova para a entrada de mesa. Foi importante Ratazana ser o tipo de boss que era, porque muitos não teriam ido ter comigo, para me levarem às mesas dos clientes com todas as etiquetas. Francamente, preferia o cardenho (quarto) directo para o servicinho, embora alguns não fossem nessa corrida, apesar de estar ali tão perto, o cardenho...
    O cardenho que Ondina se tinha referido era o quarto da Residencial X, uma vez que era para lá que levava os clientes depois da conquista.
   ─ O meu esquema ficou tão conhecido que cedo demais começou a ser aproveitado por outras colegas de profissão mal me viram pelas costas. Seguiram-me logo as pisadas. Eu sei que Ratazana gostaria de me ter lá por mais tempo mas não podia, uma vez que eu tinha recebido uma proposta bem querida.
   Ondina confessou ainda:
   ─ Para sair da mesa, eu dizia: «Vamos, lá!» E o cliente, respondia:
   «Vamos, lá, onde?»
   Isto era ele a desconversar. Eu punha-me mula. Antes de um piscar de olhos, ele chegava-se para mim e dizia:
   «Pronto! Vamos, lá!»
   E lá íamos nós.
   Eram só dez metros de frente por dez metros de lado.
         ─ Uma certa parte da astúcia baseia-se nas dificuldades que tem uma rapariga de fraca pinta, quando tenta superiorizar-se a uma rapariga de boa pinta ─ disse Ondina, referindo-se aos esquemas. ─ Esse tipo de astúcia não é muito bom para os profissionais mas dá um certo gozo.
   Como me dizia Ratazana: “Pela astúcia chega-me o palmo e meio que tenho”.