Wednesday, December 30, 2015





A pensão do avio ficava bem perto da Praça dos Poveiros. No Largo do Padrão, os únicos que andavam por ali perto eram os homens da rapidinha, à procura de um consolo. Nos dias esfriados, ao cair da noite, as gordas e magras mulheres do avio costumavam manear-se pelos passeios da rua e pensar que, numa boa hora, estariam a apanhar um freguês, para o levar para o cardenho. Chegavam, até, a fazer de sentinela um pouco antes de aparecer a aurora. Havia um café a cerca de quarenta metros mais à beira na rua onde, por vezes, com as malas aos ombros, as mulheres, encostadas às montras mostravam os seus atributos. Mas, habitualmente, engatavam-nos ao passar com um piscar de olhos acenando a cabeça, pois já era habitual. A pensão do avio era conhecida como a velha pensão de Coelho Neto. Na verdade, Coelho Neto era apenas o nome da rua. A pensão era num prédio antigo pintada de cor deslavada com três andares, e tinha janelas, com vistas para a rua. O dono pedinchara aos proxenetas para porem as suas prostitutas a servirem de taxímetro nas ruas e levar os homens para os quartos. Os proxenetas gostavam muito da dormida de Coelho Neto. Diziam que uma dormida naquela pensão sabia tão bem como uma boa golada de vodka para os aquecer nas longas frias noites de sentinela à espera delas. A pensão de Coelho Neto amontoava as prostitutas à volta dos passeios, até pareciam uma verdadeira escolta. É claro que a vizinhança já não se importava com aquele cenário porque já estavam habituados. Mas não era suposto alguém se incomodar com aquilo durante estes anos todos. De resto, quando havia quaisquer escaramuças, os proxenetas eram os primeiros a refugiarem-se num qualquer local da cidade. Depois de a procissão passar, o dono voltava a oferecer-lhes uma dormida e trazerem as mulheres para o negócio, e tudo voltava à mesma forma.

Naquela noite de Dezembro, a rua parecia escura e solitária e as poucas prostitutas que se aventuravam no vaivém, como era habitual, sempre que passava alguém pelas proximidades, diziam vamos subir aos homens que as olhavam, uns por acaso e outros para um caso. Jó, a prostituta da rua, acabava de iniciar a sua faina e puxava os colarinhos do blusão para cima quando viu umas pernas longas atravessar a rua ao fundo. Era um homem alto. Parecia tão alto como um gigante e tinha despertado nela uma curiosidade súbita. Avançou na sua direção e, agarrou um velho exemplar da Nova Gente, preparado para o atrair. Jó gostava deles assim. Altos, fortes e grandalhões. Se tivesse sorte podia ganhar com ele o equivalente a dez cabritos. Já não era a época dos camones, mas aquele devia ter estado a emburricar por ali perto ou algo semelhante. O camone foi direto a ela, batendo as mãos para se aquecer e exclamou num português tacanho “tu fode?”. Ela disse que sim e enfiaram-se os dois dentro de um cardenho aquecido por um aquecedor a gás. Ainda estava algum calor lá dentro... O alemão atirou uma nota para cima da cama que agradou a ela e preparou-se para o trabalho. Sorrateiramente, Jó olhou de soslaio por entre a enroscada camisa e, reparou que as suas duas longas pernas já tinham saído para fora da cama. A seguir veio o serviço. Mas o camone nem lhe deu tempo para respirar e, atirou-se para cima dela. Uns minutos depois, caiu para o lado com um suspiro profundo e, por fim, ouviu-se apenas uma exclamação ofegante Oh, My God. Não mais do que um espernear de corpo; a satisfação era visível. Vestindo-se trauteando, já que a noite estava ganha, Jó voltou a pisar os passeios para fazer-se à vida. Foi nesse momento que um tiro entoou. Correu para uma portada de um prédio, colocando os braços sobre a cabeça, de maneira a proteger-se e procurou ver o que se passava lá à frente. Aguardou e contou os segundos, sustendo a respiração. Dezoito, dezanove, vinte. As estrelas brilhantes sobre a cidade ofuscaram-na. Escurecera; ouviu um ah ténue à distância e a primeira luz surgiu dum prédio. Um feixe de luz branco e brilhante, pouco luminoso quanto baste. Lá no fundo, por entre a luz de um carro, um grupo de homens deixava um rasto que se assemelhava a sangue humano. Rapidamente, Jó, sacou do telemóvel e ligou para o 112. E, então surgiu outro feixe de luz e depois outro. Três, quatro, cinco, todos voltados em direção ao corpo, estendido no chão, que procurava levantar-se a custo. Depois, surgiram pessoas vindas de outros lados. Jó correu até ao fundo. O corpo ainda mexia. E foi nesse momento, com a ajuda de algumas luzes que o reconheceu, com a sua velha revista numa mão. Vermelho como um pimento, agarrado ao braço ensanguentado. O camone agarrou a mão de Jó e esboçou um esgar sofredor. «Polissia! Polissia! Roubaram meus marcos...!» De repente, ouviu-se a sirene, muito veloz, à entrada na rua. Tinoni, tinoni! A ambulância estava a chegar. E, mal o enfermeiro o ajudou a pô-lo na ambulância, Jó apercebeu-se que não era tão grave. O seu estômago contraiu-se como um soco. Não estava com medo; apenas lamentava. Subitamente, toda aquela cena escura se transformou num lívido e brilhante branco. O barulho da ambulância a arrancar ecoou pela rua. O frio notava-se nos rostos gelados das pessoas. Todos permaneciam em silêncio, excetuando o frenético ladrar de um cão; numa varanda. De seguida, ficou tudo tão tranquilo na Rua de Coelho Neto! Apenas na rua alguns transeuntes citadinos que podiam muito bem ser confundidos com os mecos... E passo a passo, com o olhar concentrado, Jó voltou às lides.

Naquela altura, teve início uma segunda procura de consolos. Alguns homens chamavam as prostitutas, através dos carros, originando uma onda de palavrões incorrigíveis. Podia ter feito alguns deles, mas não se atreveu a aventurar-se. Certa vez, assistira ao que um gangue tinha feito a um dos clientes da pensão, o velho picheleiro Tomás. Foi Jó, precisamente, quem o encontrou. O vidro do carro partido e Tomás jazia como uma almofada sangrenta. Roupas rasgadas, golpeado no pescoço, num estado lastimoso e ofegante... Rastejava, penosamente, de um lado para outro. A princípio, Jó, pensou que ele estivesse morto. Mas o pobre Tomás ainda dava sinais de vida, esticando as pernas na direção da porta e, após esticar um bom bocado, respirou devagar, mas muito profundamente. Subitamente, decidiu que preferia ser cortada pelo gangue do que ficar testemunha daquela embrulhada. Colocou a saca sobre os ombros, numa tentativa de não perder o que ia lá dentro, e correu em direção ao posto policial mais próximo. Enquanto percorria, uma respiração muito forte alastrou-se. Recordou que percorreu como o corredor de pista até alcançar a meta. Achou que nunca na vida correra tanto. Mas os seus esforços revelaram-se preciosos. A polícia levou-a de volta até ao local e encaminhou o pobre Tomás numa ambulância para o hospital. Começou a olhar para o relógio. Em breve, o trabalho da putaria acabaria. Em breve, estava a deixar a rua e a entrar no seu quarto... Um táxi buzinou. Era sempre fácil identifica-los, porque os táxis traziam um candeeiro aceso sobre o tejadilho. Uma voz vacilante, exclamou: «Me-ni-na! Me-ni-na!», fazendo o gesto com a mão. Como uma cobra, esgueirou-se rente aos prédios. Uma corrida de cem metros livres. «Me-ni-na!», levantou de novo a mão em direção ao braço. Queria dar a atender onde tinha sido ferido. Apontou para baixo para o braço atado ao peito. «Mim...tá...vivo!» Parecia muito radiante consigo próprio. Tomou outro fôlego e exclamou: «Mim... ter sorte». Jó fitava-o sorridente, pacientemente. «Portuguese, não ser bom atirador!» A seguir exclamou em voz alta e calorenta. «Tu... me-ni-na grande... ami... amiga ser».  Jó nem queria acreditar, nesse momento, viu uma lágrima a descer pelo seu rosto. Estendeu os braços e deu-lhe um abraço. «Friend, Friend», a sua mão enorme, em busca, à volta do corpo dela, até que a segurou. «Friend, Friend.»Assim permanecerem enquanto o taxista aguardava e zumbia o taxímetro à volta deles, e as luzes se apagavam intermitentes e poucos carros se ouviam na rua. E foi assim que as colegas foram dar com eles, quando se despediram. Olharam, estupefactos, para os dois, à luz do candeeiro da pensão de Coelho Neto.

Naqueles tempos, criar amizade com um camone era um caso raro. Seria considerado leviandade. Chamava-se Jack Smith. O camone escrevera a Jó depois de chegar a Inglaterra para lhe agradecer. Enviou-lhe uma fotografia da mulher e do filho. Jó ficou contente. Pela família. Mas nunca lhe respondeu. Sentia-se demasiado confusa. 
Ainda se sente.



Tuesday, December 8, 2015





A entrada no alterne de Elisa Mota começara quando tinha a menoridade e fazia gazeta ao trabalho para ir beber um drinque a um pequeno bar de Nevogilde, com uma saia justa. Um freguês aproximou-se dela e perguntou-lhe se alguma vez tinha pensado em entrar para o alterne. Por intermédio de um amigo do freguês, Elisa (cujo alcunha era Bomba-Loira) conseguiu estagiar aos fins-de-semana num cabaré do centro. A «rapariga da saia justa» ganhou fama durante o estágio e tornou-se a mulher preferida dos clientes boémios. O seu primeiro casamento à moda de Campanhã, (juntamento) com o chefe de mesa durou três meses, provocando-lhe um vazio no coração. O segundo juntamento, um afamado boémio chamado Tony Chucha, convidou-a para uma ida ao casino em palpite de uma sorte, juntando-se a ela dois dias depois; era mais velho quinze anos. O seu terceiro juntamento foi com um comercial, Morgado; o quarto com o chamado Grego do Grupo de Traidores, Lacerda. Teve também um numeroso grupo de flirtes sobejamente conhecidos, com o Cavaleiro da Triste Figura, Dom Paco e o grupo dos Cartolas. Em meados dos anos 90, a sua imagem de «rapariga da saia justa» foi esquecida com a idade e a sua carreira estava a apagar-se.
                                                                                       
Depois de ela acabar a relação com o Grego, Serrão, antigo pretendente à vista, apareceu-lhe repentinamente, convidando-a para tomar um copo, apesar de ter o carro avariado. Serrão era um tipo frangalhote, com uma cor esbranquiçada, que tinha por alcunha «Pintor», manifestamente porque uma parte do seu vocabulário tinha por hábito pintar todas as telas. Como a maioria das loiras, Bomba-Loira gostava de homens dominadores e grosseiros. Num dia, Serrão dissera-lhe: «Quando eu digo cala-te, tens de calar; quando digo vem, tens de vir». Bomba-Loira não se opunha a receber as ordens, mas, quando estava com os gazes à solta, o seu temperamento era conflituoso. É verdade que havia uma obsessão mútua. Quando ela veio à residencial fazer amor com o Grego, Serrão esperava-os no átrio e, depois de uma discussão tão barulhenta, ameaçaram-se um ao outro de pistola em punho, os amigos viram-se forçados a separá-los. De regresso ao trabalho, foi com Serrão passar um fim-de-semana para a Foz e a cama fê-los esquecer os conflitos.

No Dia do Trabalhador de 1995, Serrão e Bomba Loira foram para o apartamento desta, na Senhora da Hora, discutindo violentamente. O barulho era tão intenso que Bomba Loira receou que ele fosse deitar a casa abaixo. Mas quando começou a gritar, pedindo-lhe que se fosse embora, um vizinho bateu à porta para ver o que se estava a passar; o pintor abriu a porta e pisgou-se numa brasa. Nesse momento, a Bomba Loira correu para o vizinho a gemer, de olho pisado «à Neca». Pouco depois, o olho de Bomba Loira deixou de inchar. O caso apareceu na primeira página de O Jornal Dos Traidores e juntou achas à fogueira, quando o antigo homem de Bomba Loira, o Grego, declarou aos amigos que se o pintor lhe batesse outra vez, lhe pregaria um tiro na cabeça. As fofoquices de desgraça apressaram-se a divulgá-las em maior escala. Revelavam concretamente que ela estava desesperadamente apaixonada por Serrão. A sós, Bomba Loira e Serrão tiveram toda a noite na marmelada e, juraram um pacto de não-agressão. Nessa altura, os bares não tinham dúvidas de que, para espanto de todos, a desgraça teve um efeito favorável; a clientela de Bomba Loira, que estava em baixa, renasceu em grande. Durante a passarela para a eleição de Miss Lord — o concurso que englobava as mulheres de bares — clientes da sala gritavam: «Estamos na bicha, Bomba Loira». E a sua clientela aumentou uma vez mais, como sucedera no início dos anos 80. A desgraça revelou-se o melhor meio de promoção.



Quando Novais ou «Baixinho», veio para O Mundo da Noite, no início dos anos 80, consta-se que riscou no papel de um guardanapo uma lista de nomes de prostitutas com quem queria ir para a cama, e depois, riscava-os um a um depois de conseguir os seus intentos. Contava-se a piada que, para os empregados de mesas de O Mundo da Noite a definição de «mulher esquisita» era aquela que não tinha caído nas graças de Baixinho. Mas os fala-baratos do bar aproveitavam-se em catapulta para se baterem a todas as doçuras que adoravam Baixinho pela calorenta balela da sua voz e pelo seu sorriso atrevidote.


Saturday, November 21, 2015




         Quando Ratazana me convidou para o ir visitar na sua casa em Arca d´ Água, na Praça 9 de Abril, no Porto, em fins dos anos 96, tive ocasião de olhar para os seus inúmeros álbuns fotográficos. O que me saltou à vista não era a quantidade de fotos, tiradas de várias épocas, mas o facto de mostrarem várias facetas das suas multiplicas funções.
         As funções de Ratazana eram sortidas, e havia quem dissesse que era o barman dos sete instrumentos. Dom Oliveirinha recordou:
         ─ Na boate Electra Club, com 35 camareiras na sala, Ratazana quase nunca se dava por ele e era ele que punha tudo em funcionamento.   
         Já em 1970, o violista Mário Reis, que fazia parte do duo Os 2 do Norte relembra que, quando estavam a actuar na boate Tamariz, Ratazana usava um vocabulário de camareira, típico e bairrista, apesar da intromissão insistente dos empregados, antes de entrar em palco.
         Na verdade, muito dessas conversas eram calões. «Chama-se zé-das-notas», disse-me Ratazana, um zé-das-notas tão volumoso que parece banqueiro. Todos os calões tinham um tom de originalidade, fazendo jus à fama do barman como homem versátil.
         Outra faceta digna de realçar no vocabulário era o facto de haver muitas alcunhas diferentes. – Estas pessoas têm todas as minhas alcunhas – disse. – Se o meu dicionário aumentar, tenho sempre alternativas. 
         Quis saber como conseguia inventar tantas alcunhas, algumas mesmo a condizer com as respectivas personagens. Ratazana informou que estavam todas registadas com fotografias e coladas nos álbuns: homens e mulheres, alcunhas. Por cima de cada fotografia havia um número a preto numa etiqueta e cada alcunha seguia por ordem numérica.
         ─ Não gosto de baldaria, quando gosto de pôr tudo por ordem.       
         Depois, num tom mais humorado, acrescentou:
         ─ Nunca consegui imaginar chegar até aqui e tenho orgulho no grupo da minha obra. É algo fabuloso, único e belo. 
         Eng.º Carlos Artaloytia, o secretário-geral do Grupo de Traidores, congratulou-se quando fora nomeado por Ratazana para o cargo, no Restaurante Trave-Negra, no Porto. Alguns minutos antes, a eleição de Artaloytia gerou um banzé de comentários e piadas, que galvanizaram freneticamente o grupo. Durante o jantar, Ratazana e Artaloytia falaram dos tempos de Ratazana: dos tempos iniciais e dos tempos que fizeram parte do passado de Ratazana.
         ─ Uma ocasião, tive um bar à exploração ─ disse Ratazana ─ que gostava de transformar num bar-citadino. Era perto da baixa do Porto. A empregada estava ao balcão. Estava a contar o conto da camareira a um cliente para lhe sacar uma garrafa de champanhe e tinha os peitos sobressaídos. Olha, lá no alto da parede, o relógio a badalar próximo da meia-noite, o fecho do bar, num segundo saca uma garrafa de champanhe e logo outra e pede a conta. A empregada segreda ao ouvido do cliente qualquer coisa e a seguir desaparece. É a fuga mais rápida que alguma vez fez e livra-se de apanhar uma valente ensaboadela.
         Ratazana parecia ter embalado para um intervalo.
         ─ E o que aconteceu depois? ─ Artaloytia debruçou-se para a frente da mesa.
         Ratazana voltou-se e sinalizou o cliente ao seu lado direito, Novais, que era alcunhado de Baixinho e que mais conhecia as suas histórias.
         ─ Pergunte a Baixinho. O resto é com ele.
         ─ Estou a lestes ─ replicou Novais.
         ─ Também quis fazer parte do engodo ─ prosseguiu Ratazana. ─ Quando ouvi os desabafos dele, à porta do bar, percebi de imediato que aquele era um cliente ainda verde, em especial em barretes, e sem o sangue na guelra.
         «E preparei outra manobra, à espera de outro engodo: levei os dois para dentro do meu carro e fui até Espinho. Enquanto o carro se movia ao largo da estrada 109, os dois iam a falar das suas combinações: uma rapidinha com ele, o pagamento dos espumantes, e outras questões de somenos. Mal o carro pára no local marcado, é quando a empregada se esgueira pela outra porta, e o cliente fica dentro do carro. Perguntei-lhe se ele não ia com ela, ele respondeu que o barrete só se enfia uma vez. Pensei: que homem inteligente! Um inteligente num campo minado. Uma vez qualquer um cai duas só cai quem quer.
         «A verdade é que ele não caiu, pelo menos que eu saiba.»
         ─ Só não sei onde vai buscar tanta malandrice para as suas histórias ─ disse Artaloytia.
         ─ São rasteiras ─ explicou Ratazana. ─ As rasteiras são o meu entretenimento. Sempre me interessei pelas rasteiras porque delas subtraio algo de muito hilariante que contadas depois são histórias do arco-da-velha.
         «A manobra na noite é normal, todos nós sabemos que ela há. Mas dominar a manobra no escuro, isso é uma coisa que requer pesquisa.
         «A manobra nem é tão difícil de desvendar. Afinal, todos nós fizemos manobras quando éramos putos. Nada que espante. Só a ratice é diferente. Esse predicado de esperteza está enraizado em todas as pessoas.
         «É aquilo que nos atrai que nos seduz, aquilo que a nossa natureza suspira, já que no contexto, o apetecível é mais cobiçado do que o comível. A novidade é sempre bem-vinda. Nunca fui adepto da cara incapaz de encher gavetas e de outros monos. Gosto de uma coisa mais «chamariz». Qualquer coisa bela que aparece num quotidiano palpitante. O quotidiano chamariz é uma ocasião única para o sucesso e engrandecimento.
         «Pessoalmente, sempre me despertou reunir as pessoas fora do vulgar.
         «Resumindo, tudo se conclui a despachar o mono. O nosso próprio mono e o de algumas pessoas. Não é só aquilo que nos livramos. É também aquilo que toda a gente se quer livrar e procura livrar-se.
         Ratazana estava sentado em frente de Artaloytia, durante a comezaina do Grupo dos Traidores, na Adega dos Abraões em Vila Nova de Gaia. Este engenheiro amante da dolce vita criara à sua própria volta uma onda de simpatia, levando os traidores a terem um respeito recíproco pela sua personagem vincada.
         Ratazana perguntou:
         ─ Como veio parar até nós?
         Artaloytia respondeu:
         ─ Quando me convidaram disseram ‘Venha connosco!’ Não quis dizer que não… só para os não contrariar.
         ─ Foi uma boa atitude da sua parte ─ comentou Ratazana. ─ Não podia ter escolhido melhor hora.
         ─ Não foi boa nem má ─ prosseguiu Artaloytia. ─ Só quis conhecer a casa e conhecer outros amigos. Não contava conhecer assim tantos.
         ─ Não confiar em todos os amigos é uma boa precaução durante a vida ─ disse Ratazana. ─ Sabe, no festejo do 6º Aniversário do bar, fiz um acordo pré-assinado com os traidores para evitar a confusão dos cravanços de amizade. Praga. Era mais praga de que qualquer praga de ilusão. Nessa altura, ninguém deixou de assinar. Era confortante. Mas ficou-me na ideia durante todos estes anos.
         ─ Acho que há poucos clientes que venham verdadeiramente para cravar, seja no bar ou num estabelecimento similar. Só tem de disfarçar, porque cravanço é uma coisa que toda a gente procura esquivar e pôr-se a francos. O cravanço pode ser mais horrível de que qualquer coisa que nós possamos imaginar.
         ─ Tentar ajudar os amigos quando se puder também requer algum simbolismo de amizade ─ observou Novais.
         ─ Ouvi falar de um cravanço que o senhor anda a querer receber há uns meses mas … ─ disse Ratazana.
        ─ Mico ─ interveio Novais. ─ Teria sido um empréstimo sem importância mas abafaram-no para que ninguém desse ao lamiré. Mas não estão zangados.
         ─ O meu coração é muito sensível aos amigos ─ explicou Artaloytia. ─ Mas quando as pessoas não sabem comportar-se como deve ser ou não tentam, fico três vezes mais sentido que o próprio.»
         ─ Mudemos de tema ─ disse Ratazana. ─ Desde os meus tempos de miúdo que sou um ferrenho de livros de todos os géneros. Quando comecei a interessar-me pelo mundo da noite passei a sentir mais atracção pelas histórias, e em especial, às histórias nocturnas, que poderiam ser a base para uma carreira.
         «Há uma história que li num livro qualquer, não me lembro qual, e de que nunca mais me esqueci. Não é por aí uma história de grande monta, mas merece ser contada.
         «Era uma história sobre uma prostituta veterana que gozava ao sexo. Era tão boa na matéria que atraía os clientes-broncos à conquista por blá-blá-blá para seduzi-la. Não é difícil de entender que uma cantada mal cantada e fora de tom deve ser extremamente desconsolada quando as peles não aumentam.
         «Um lambido cabeludo que se atirava ao barrote pôs-se a fazer olhinhos e, habilmente, a tal prostituta usou a técnica de levantar o músculo com a maior descontracção mas nada resultou.
         «O lambido disse: ´És boa demais.`
         «A prostituta respondeu: ´E tu mau de menos.`
         «O cabeludo saiu de cabeça cabisbaixa. Que frustração!
         «Não sei a história era assim ou não, acrescentou Ratazana, mas é tão rocambolesca que talvez fosse.
         A nossa conversa era à roda do mundo da noite, um tema que apaixonava Ratazana e, Artaloitya não se cansava de o ouvir. Artaloitya era muito mais velho do que Ratazana.
         ─ Penso que as pessoas que gostam de beber ─ disse Ratazana ─ têm menos interesse pelo sexo.
         «Quando era miúdo, eu era muito ardido e sexualmente descomplexado. Era trintão quando casei.
         Notando na expressão de malandro no rosto de Novais, riu-se momentaneamente e, logo, prosseguiu.
         ─ Penso que demasiada bebida quando se está desocupado aniquila o sexo. Por isso, tem de se parar de beber para se libertar o sexo. Acho que isso ajudou a criar um ambiente de sexo no meu ofício. 
         «Tal como o engasgo, experimentar uma tossidela faz-nos sentir atrapalhados. Na noite, podemos experimentar estes sintomas dispersos, sem ter culpa disso.»
         No fim do jantar, Ratazana tomara a sua bebida preferida na juventude: um pingo de café com leite. Tanto Ratazana como Artaloitya comiam muito devagar. Já que ambos pareciam apreciar as histórias e estar interessados em ouvi-las.
         As moças que andavam a servir às mesas não passavam de camareiras de bar que Ratazana trouxera para ajudar a servir o jantar. Uma das moças trouxe a cabeça do galo em cru e sorriu abertamente, de fila de dentes cerrados e saia muitíssimo curta. O seu olhar resplandecia malícia ao informar a Artaloitya, que o pica-no-chão, era uma oferta ganha a leilão pelo Engenheiro Campos, acrescentando em seguida, num acto de meia-galisse para Artaloitya, que sentia uma enorme atracção física pela sua pessoa e que a noite era ainda uma criança. Como que entusiasmada da sua própria lata, afastou-se vagarosamente para a sua cadeira. Artaloitya, que a cortejava á bastante tempo, olhou-a e distribui-lho um olhar não menos malicioso.
        Então, voltou-se para Ratazana e disse:
         ─ As suas camareiras não são marotas, são maroteiras.
         Disse que lhe fazia lembrar a primeira namorada que deveria ter sido a última. Deveria ter sido o seu primeiro amor mas não o foi.
         ─ A minha namorada favorita conquistei-a num luxuoso bar de hotel, onde o barman me estava a servir um bourbon. A jovem vinha de penteado aos caracóis e trazia um saco floreado da moda e estava a dar uns pequenos retoques ao cabelo através do espelho da sala. Depois, a jovem dirige-me um olhar deveras cativante, enquanto caminha. Está muito compenetrada no seu olhar. Saboreia-o mentalmente. 
         «Mas todos nós sabemos o que acontece quando alguém pensa numa conquista. A ilusão irá criar um balão cheio de oxigénio e naturalmente os intervenientes também. Quem sabe como esta jovem que acabei de referir.
         Um cliente perguntou a Ratazana se o grupo quando saísse dali iria para algum lado especial. Ratazana disse que não e acrescentou que todos os presentes, incluindo ele, seguiriam em directo para o bar, excepto alguma excepção à última hora.
         ─ Há uma coisa que gostaria de lhe perguntar ─ disse Artaloitya. ─ Como foi passar assim tão repentinamente de um bar de alternos para um bar de saídas?
         ─ Não foi tão diferente como esperava ─ explicou Ratazana. ─ Com clientes melhores e bom grupo feminino, todas as possibilidades eram atraentes. Por outro lado, na cidade do Porto tudo parecia muito igual e, logicamente, mais saturador por causa dos sistemas rotativos e da necessidade de um projecto mais aliciante. Além demais, a cidade do Porto está cheio de bares das mesmas características.
         «Loureiro, o meu primeiro boss da noite, queria implantar num velho bar da baixa que servia de bar cervejaria para uma casa de passe com quartos. Queria explorá-lo numa casa de prostituição mas, acabou por isso, ir parar à prisão.
         ─ Que coisa feia ─ disse Artaloitya ─ porque a prostituição é ilícita. Foi brilhante não se ter misturado numa coisa dessas. Não podia ter feito melhor opção.     
         Enquanto Artaloitya se serviu de novo uísque, Ratazana acabou de fumar um cigarro e propôs uma malandrice.
         ─ Vamos jogar o jogo da pitarrela ─ disse. ─ Escolhemos uma rapariga e, depois, vamos tentar descobrir a pitarrela.
         Deu uma olhada em volta e decidiu-se por uma rapariga de aspecto desconsolado, branca e de lábios finos. ─ Num bar cheio de clientes bem consolados, essa rapariga salientava-se por estar extremamente desconsolada. ─ Uma desconsolada é como um bife sem sal, porque ninguém a quer comer de cebolada ─ explicou Ratazana.
         Um cliente que se encontrava aos fundos da mesa do nosso lado direito, profundamente entretido em estilhaçar os palitos, chamou a atenção de Ratazana. Os dedos do cliente tornavam-se num alicate. Olhando o homem, Ratazana salientou que o homem não se sentia à vontade. ─ Vê-se que ele está nervoso com os palitos, caso contrário não teria feito um monte de pauzinhos, que estavam a ornar a taça de champanhe.
         «Estão a ver o homem? Tem uma pele muito fina. Pode ficar-se a saber muita coisa acerca de um homem, olhando-lhe para a pele, ─ disse Ratazana.
         Artaloitya bebeu um gole duma golada só.
         ─ Acredita que, quando era menino e moço ─ disse Artaloitya «era tão corpulento que as namoradas, a minha mãe, as criadas, estavam sempre a tentar dar-me uma dieta? Comia de tudo que viesse para a mesa e bebia de tudo um pouco que estava numa mesa. Pensava que tinha a bicha-solitária. Nesse tempo, só vivia para o estudo.
         ─ Eu era ao inverso ─ disse Ratazana. ─ Sempre fui leve mas era forte. Acho que nunca perdi a sorte porque não tenho aspecto de não ir a todas. Não tenho aspecto de quem desiste à primeira, só por ver aquela palha.
         ─ Há-de ganhar muitas sortes ─ observou Artaloitya. ─ Dê tempo ao tempo.
         Artaloitya perguntou a Ratazana se gostaria de ser magro e meio gordo.
         ─ Gostaria. Mas gostaria pensar que não corro à balda. Corro o essencial. É a minha disciplina prioritária.
         Enquanto a conversa decorria, Novais mantinham-se contador de anedotas, um homem baixo, simpático, que conversava muito. Ratazana olhava de lado para ele, para ver a sua reacção quando o picava.
         ─ Sabem como é que este senhor se deu comigo? ─ perguntou Ratazana, olhando de sobrolho para Novais. ─ Acompanha-me sempre nos espectáculos. Tem dom, mas para eu aturar as suas embirres, só preciso de tapar mais os ouvidos. E depois manda-me àquela parte. Não posso enervá-lo por muito tempo, senão Baixinho chama-me ranhoso certamente. 
         ─ É um homem calmo ─ comentou Artaloitya.
         ─ Fomos feito um para o outro ─ disse Novais. ─ Os nossos estilos centralizaram-se.
         ─ O Novais já era cliente de bares quando o conheci mas não sabia tanto como eu ─ prosseguiu Ratazana. ─ Fui eu quem o ensinou. Por isso é que ele me aturou tanto.
         Novais soltou uma risada envolvida com o fumo do tabaco. ─ Porque gosto de ranhosos como você.
         ─ Que boa piada ─ observou Artaloitya.
         Ratazana acenou.
         ─ Sim, já a conheço.
         ─ Vocês são um ponto ─ disse Artaloitya olhando fixamente para Ratazana.
        ─ Ouvi dizer que, depois de acabar o serviço, você consegue saber o movimento todo ─ disse Artaloitya. 
         ─ É verdade, sim senhor.
         ─ Já conseguia fazer isso, quando começou a iniciar a sua carreira, no início dos anos 70?
         ─ Sim. A minha mente funciona às maravilhas, tal como a mente de um contabilista, pensando por números. Tenho armazenado boas lembranças da minha infância, dos tempos do tasco de meu pai. Posso é não ter a certeza de me lembrar de todas. 
        Ratazana fez uma pause para o cigarro, prosseguindo:
         ─ Aprendi a fazer isso com ele. Agora não sou capaz de passar um dia sem revisar todas as mesas, todos os clientes da sala, todas as despesas dos clientes. Demoro é às vezes um tempito a mais. 
         Ratazana rematou:
         ─ A minha vida é um livro. Se assim não fosse, não sei do que estaríamos agora para aqui a falar?       
         Perguntei a Ratazana se era verdade que não esperava pelo total da máquina registadora no fim do serviço.
         ─ Não e explico-lhe porquê – respondeu.
         ─ «Aí por volta de 1971, depois de acabarmos os trabalhos juntos, o patrão Loureiro, chamou-me para assistir com ele à soma do apuro do dia. Como já não estava ninguém na sala, fui à casa de banho, tirei o bloco de notas do bolso das calças, somei parcela por parcela e, quando cheguei ao balcão, depositei o dinheiro e disse-lhe: ´Este é o meu apuro. Agora, desconte os créditos que fez aos seus amigos.´ A partir desse momento, estabelecemos uma regra como fazer em termos de créditos e, por isso, nunca mais tive de utilizar o bloco de notas. Agora, só preciso de estar atento ao movimento para saber exactamente qual a parte que me cabe.»
         Artaloitya relembrou o slogan de Ratazana no certame para a eleição da Miss do Bar, todos os anos eleita, de que «as raparigas dos arranjinhos merecem esse tributo.»
         ─ Fui elogiado de dizer isso ─ confessou Ratazana ─ mas acho que o que faço não passa de uma simples brincadeira. É evidente que gosto de tudo o que é festas e as raparigas não me levam a mal por isso. 
         «Sempre estive de braços abertos para dar uma boa festa às raparigas que colaboravam comigo.»
        Enquanto falávamos, aproximou-se um cliente, a pedir uma boleia para casa a Ratazana e ele prontificou-se a levá-lo. Depois do cliente se afastar, Artaloitya virou-se.
         ─  Estão sempre a chateá-los estes tipos.
         ─ Nunca me chateiam – replicou Ratazana. – Numa família têm de haver sempre um ´Cristo.´ E porque não ´eu?.`
         Dava-lhe enorme prazer que os clientes ou as raparigas do bar requisitassem os seus serviços e contribuíssem com a mesma moeda.
         ─ A moeda tem duas faces e a face é incógnita. Por isso mesmo, para mim, prestar serviço e fazer com que ele angarie mais público é a principal função de um servidor. Caso contrário, é melhor mudar de ofício.
         Ratazana deitou o cigarro fora.
         ─ E é uma boa maneira de não andarmos para aqui a estorvar-nos uns aos outros. Engenheiro Luís V. de Almeida tem a resposta certa. Quando não gosta dos seus empregados, despacha-os.
         ─ Há alguns colegas com que gostasse de ter trabalhado?
         ─ Claro que sim. Hamilton da Tentativa. Sabia que conseguia ter três amantes juntas na boate? Gostava de ter traba-lhado com Reinaldo Teles. A Taberna do Infante é uma casa soberba, uma das melhores. E gostava de ter trabalhado com Aurora, mas tal nunca acabou por acontecer.
         Intervim que tanto Hamilton, como Reinaldo Teles e Aurora estavam fora do ofício.
        ─ Invejo-os – disse Ratazana. – São todas umas grandes personagens da noite. Eles sabem que eu me entusiasmava com os seus efeitos. Eu próprio lhos disse numa certa ocasião. É verdade. Penso que, na realidade, comandar mulheres é somente uma questão de começar por escolher as melhores camareiras. Depois, tem-se uma táctica para elas.
         Quando estávamos a levantar da mesa, Artaloitya disse: ─ Tem uma folha de serviços de que pode orgulhar-se muito, mister, nem sei o seu nome verdadeiro. 
         ─ Trate-me por Ratazana. É a minha alcunha traidora. Orgulho-me sim, mas tive alguma sorte. A parte principal é saber aproveitar.
         «Algumas vezes, sentia que ia bacilar. A meta que separa o êxito do malogro é muito rente. Consegui equilibrar-me no trapézio, apesar de não ter tido vocação para trapezista.»

         Quando saíamos do tasco, Novais disse-me: ─ Em todos estes anos que lidámos juntos, este maduro, desculpe o termo, nunca me aborreceu por completo. Não há muitos clientes que possam dizer o mesmo.


Saturday, October 3, 2015





Em 1980, o imobiliário P. da Costa foi levar uma mulher chamada Mónica, que conheceu pela primeira vez, a ver um apartamento que esta pretendia alugar, na zona do Carvalhido, no Porto. Quando estava a observar o apartamento, Mónica suspeitou nitidamente das intenções de Costa e não tirava os olhos de cima dele. Três anos mais tarde, Mónica, no seu comentário pessoal, revela: «Queria que eu fosse a sua amantezinha — e queria que eu metesse a língua na sua boca. Sabia que ele estava pronto por me saltar para cima...» A atitude de Costa a este acanhamento simulado foi preparar-se para o assalto a ela, de calças em baixo. Mónica ficou completamente arrasada, com as suas «maneiras bruscas» e gritou para ele acabar com aquilo. Ele obedeceu prontamente. Na próxima vez, foi mais cavalheiro. Levou-a a ver outro apartamento para alugar, mas mobilado e recheado com todos os eletrodomésticos, na zona do bairro de Monsanto, no Porto. E a relação há muito esperada aconteceu na cama. «O calor que parecia ardente aumentava, tornava-se cada vez mais quente, e rapidamente puxou a persiana acima, e o ar ficou mais respirável... A seguir, Costa deitou-se ao meu lado, excitando-me com beijos ardentes e meigos nos ouvidos... e, de repente, tentou convencer-me a praticar  — sexo anal — e, quando eu me recusei, ele disse-me: «Relaxa-te amorzinho — todos os casais o experimentam». Depois senti uma dor aguda a penetrar dentro de mim e no último segundo gritei, mas não parei o ritmo. A dor cegou-me mais do que o calor do ambiente, e pedi-lhe num murmúrio que dissesse: «Chama-me tua panelinha, chama-me! e entrei em loucura, como se estivesse em êxtase, — e depois aceitei-o por completo.» Costa detestava preservativos e, como resultado disso, a sua amantezinha-panelinha engravidou. Tinha de assumir a paternidade ou então concordar ambos num aborto. Costa e Mónica tentaram levar a coisa nas calmas, e Mónica foi fazer um teste que confirmou a sua gravidez e que ia ter uma menina. A ideia de ter uma menina quase o ia levando ao delírio, pois Costa era casado e pai de três meninos. Consta que Costa disse aos amigos na festa de anos: «Bem rapazes, isto é melhor do que a lotaria, mas ainda vamos ter que esperar.» Costa começou a passar a maior parte do tempo a conviver com clientes da boémia, enquanto Mónica e as suas meninas tomavam conta do bar. Dois meses depois, Mónica abortou e Costa desfez-se em lágrimas de pranto. Os rumores começaram a circular de boca em boca; continha pormenores das manobras de Mónica, incluindo o simulado da gravidez, e por fim, um bocado de uma tripa de porco comprada no talho, como amostra de um possível feto de criança. As bocas tiraram o maior partido destas revelações. Houve alguém que comentou: «Mesmo os palermas, que gramavam o Costa há meia dúzia de meses, preparam-se para fazer abrir as goelas para se rirem dele.» Um ano depois, enquanto Costa se debatia com problemas intestinais, Mónica terminou a relação e proibiu-lhe a entrada na sua casa.


As bocas dos clientes habituais aproveitaram todas as oportunidades para incendiar os tarados e viciados de O Mundo da Noite; continuaram a tirar partido dos casos de P. da Costa, mesmo depois de este ter desaparecido do ambiente. Os patrões de O Mundo da Noite achavam que teriam de fazer qualquer coisa urgentemente para mudar a imagem da capital do prazer. Abraão foi na deixa e fundou um pasquim semanal intitulado O Jornal Dos Traidores, cuja primeira edição era aguardada com enorme frenesim e, Abraão, que era um ótimo contador de histórias com mais de uma dezena de livros publicados sobre histórias de frequentadores da noite, aproveitou o seu bom humor para fazer valer os seus dotes literários. O seu objetivo principal, consistia muito simplesmente, em detetar desgraças dos clientes e das mulheres da noite — as que eram tara-maníacas, as que eram dependentes de comprimidos, as que partilhavam o homem com a amiga, e as que eram histéricas ou lésbicas. O sucesso do pasquim foi tão grande que Abraão se podia dar ao luxo de ter informadores por todo o lado a dar-lhe dicas para um artigo para as colunas das fofoquices. As notícias chegavam às manadas. Abraão depressa compreendeu que a maioria dos frequentadores preferiam saber das bisbilhotices dos outros, ignorando as suas. E logo, uma das vítimas decidiu contestar o jornal; depois de um artigo que se referia a umas brincadeiras de vibrador numa banheira. Ana Cinzenta roubou O Jornal Dos Traidores. Só havia uma tiragem. Outras mulheres da noite seguiram-lhe o exemplo. Fifi fez um escabeche e escondeu debaixo do sofá O Jornal Dos Traidores por a ter acusado de pagar as despesas a um cliente da noite. Dois meses depois, na Residencial da Xangô, Albertinho das Flores, ameaçou O Jornal Dos Traidores por insinuar que tinha drogado uma acompanhante para fazer amor com uma prostituta, jurando não mais voltar ao bar. Foram tantos os clientes-traidores que apresentaram reclamações que Abraão decidiu mudar de estratégia e deixar de publicar fotos das personagens. Depois de Abraão se ter tornado o «rosto de O Mundo da Noite», foi escrevendo história sobre história, a qual escrevia qualquer artigo capaz de provocar a fofoquice, mesmo em casa alheia. Mas os casos escandalosos continuavam a aparecer. Abraão dizia às suas prostitutas e colaboradoras que deviam limar a sua vida pessoal de modo a que qualquer atitude «vergonhosa e suja» fosse evitada. Todavia, ele mesmo era conhecido por se aproveitar de sua posição para ir para a cama com as colaboradoras, enquanto as suas histórias malandras incluíam sempre um bacanal lordesco ou cenas que havia casais na mesma cama.









Friday, September 4, 2015




Eis como, nas mais diversas situações, Artur Bófia foi ao encontro do amor
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Para Artur Bófia, o amor era como o atuar. 
Esta é a história de um dos seus casos amorosos. Tinha regressado da esquadra do Porto, depois de mais uns dias de licença. O dia estava chuvoso. Poucas eram as pessoas que andavam a pé pelas ruas, mas de todos os estabelecimentos topava-se pessoas a ver a chuva a cair, e outras enroladas numa conversa. O ar cheirava a lavado e fresco. Quando, às quatro da tarde, a chuva pareceu querer escassear por uns instantes, Artur Bófia que tinha passado um bocado no café, saiu e pôs-se a caminho da casa do Pipocas. Estava com frio e com saudades. Na altura em que chegava precisamente perto da loja de frutas, levou com uma tromba de água em cima. Artur Bófia ficou como um gato-pingado. Correu da chuva, e procurou a casa mais próxima, que era aquela onde habitava a tia Justa, uma viúva de cerca de trinta e oito anos, cuja recente viuvez a deixara razoavelmente calçada. A tia Justa era em geral aberta e descomplexada, o que de certo modo, dispunha-se sempre alegre. Quando Artur Bófia bateu à porta, tinha ela acabado de tomar um banho e estava a secar o cabelo. Quando abriu a porta, Artur Bófia estava á entrada pingando água para cima do soalho.
— Entra e aconchega-te, antes que te constipes — disse a tia Justa.
Artur Bófia, olhando para os seios como um mirolha observa um elefante, tirou o casaco. A chuva batia no telhado. A tia Justa pegou numa garrafa de uísque e colocou-a no centro da mesa.
— Queres tomar um copo de uísque?      
Ainda o primeiro copo de uísque não estava emborcado e já os olhos de Artur Bófia estavam de novo pregados nos seios. Bebeu o copo de uísque antes de proferir palavra. A tia Justa bebeu também, pois só assim conseguiria descontrair e começou a saborear o uísque quando bebeu uma boa dose.
— Este uísque não é do mercado?
— Ah, pois não; uma amiga minha, uma senhora espanhola é que mo orienta.
Embutiu novo copo.
Começara a escurecer. A tia Justa atirou umas achas para o lume. «Já que a chuva tem de cair, que caia», disse de si para si. Fixadores, os seus olhos prenderam-se no enorme físico de Artur. O peito encheu-lhe um pouco.
— Andas a vir muito para estes lados, meu malandro. Chega-te, dá-me a roupa, que é para a pôr a secar, e cobre-te aí com o cobertor.
Artur Bófia não usava muito a mentira. O seu pensamento não atinava lá com esse processo.
— Tive no café a fazer horas com uns amigos.
— Mas estás feito numa rodilha.
Captou-o em busca de alguma reação em relação à sua generosidade, mas o rosto de Artur Bófia não alterou uma unha sequer, a não ser o contentamento que sentia por estar coberto da chuva e a beber uísque. Estendeu o copo para beber de novo. A tia Justa emborcou outro copo para si. O fogo aquecia, deu uma sensação de bem-estar que contrastava com o bater da chuva no telhado. Artur Bófia não fez o mínimo esforço para se mostrar grato para com a anfitriã. Bebeu o uísque em pequenas doses, sorria estupidamente para o fogo e fumava na cadeira. A ira e o desespero crescerem na tia Justa. «Olhem para este animal», disse de si para si. «Olhem que besta esta que me havia de aparecer. Antes tivesse eu abrigado um cão da chuva. Outro homem qualquer teria para mim, pelo mínimo, uma palavra amiga.»
Artur Bófia pediu para encher mais um copo. Foi a vez de tia Justa dizer o que ia dentro da sua alma.
— Quando a chuva cai e o fogão arde, não há como um grupo de amigos aconchegados no calor, não achas? 
— Acho.
— Talvez as persianas te incomodem — arriscou ela. — Queres que as feche?
— Não me incomoda — respondeu Artur Bófia —, mas se vê inconveniente, não faça cerimónia.  
A tia Justa fechou as persianas e a sala mergulhou no semiescuro. Depois, voltou a sentar-se esperou que Artur despertasse a sedução. Aos seus ouvidos chegou o ruído do brusco atirar do fumo do cigarro de Artur.
— Pensar — disse ela —, que ainda há minutos estavas lá fora, a correr da chuva, e agora, estás aqui, sentado na cadeira, a beber bom uísque, a fumar a teu bel-prazer e na companhia de uma viúva que te estima que quer o teu bem.
De Artur Bófia nem uma palavra se ouviu. A tia Justa não o via nem ouvia. Bebeu o último trago do uísque e atirou às malvas a vergonha por ares e ventos.
— A minha amiga Xanana Maluca contou-me que alguns dos teus amigos a visitaram numa ocasião em que chovia a rodos e ela tratou-os tão bem que eles foram muito gentis com ela.
Da direção de Artur veio o som de um pequeno ronco. A tia Justa quando se aproximou, nem queria acreditar no que os seus olhos estavam a ver. Artur Bófia estava mergulhado num profundo sono. A cabeça voltada para trás, os pés atirados para a frente, a boca toda escancarada. Enquanto a tia Justa, atordoada e chocada, comtemplava a cena, um tremendo ronco saiu da boca de Artur Bófia. Passou-se dos carretos. Nas suas veias correu uma boa dose de revolta e frustração. Não gritou. Não, embora a sua vontade fosse tanta, dirigiu-se à banca da cozinha, encheu um balde de água, deixou-o atestado, e pegou nele. Depois, voltou-se lentamente para Artur. O primeiro lanço apanhou-o na metade da cabeça e atirou-o da cadeira ao chão.   
— Reles! — gritou a tia Justa —, reles imundo! Vai roncar para a tua rua!
Artur rolou pelo soalho. O lanço seguinte fez-lhe um penteado novo no cabelo todo puxado para trás. Artur Bófia despertava agora rapidamente.
— Ei! — disse. — Que mal eu te fiz?
— Já te digo! — gritou ela.
Abriu a porta para trás e com o dedo esticado fez sinal de marcha. Artur Bófia levantou-se meio cambaleante sob as enxurradas de água. Saiu pela porta fora, enxugando o cabelo com as mãos.
— Não atires mais água — implorou. — Mas que mal eu te fiz?
Com uma fúria animal, agarrou-se a ela e caíram no carreiro do jardim. A fúria dele era terrível. Sem deixar de a largar, segurou-a forte contra si, enquanto ela agitava violentamente os braços, para se libertar dele. Continuando a agarrá-la e estado abraçado a ela, o amor surgiu nele. Acariciou-lhe o cabelo, percorreu-lhe o corpo com as mãos grossas, sacudiu-a como se sacode uma trouxa. Apertou-a por uns momentos até a calma dela abrandar. 
— Reles imundo — gritou —, cão!
À noite, no Marco de Canaveses, um guarda-noturno patrulha as ruas a pé para impedir que as coisas boas se transformem em más. Desta vez José Gabardines equipava uma gabardina impermeável com um brilho semelhante ao alcatrão. José estava triste e chateado. Não era nada difícil fazer patrulhamento nas ruas pavimentadas; mas parte do seu itinerário estava localizado nas ruas de paralelepípedos e nos caminhos lamacentos do Marco de Canavezes e aí, os seus calos sofriam mais. A pequena lanterna iluminava aqui e ali. A noite resplandecia com intensidade.
De repente, José Gabardinas gritou, espantado, e olhou para o chão.
— Ei, lá! Isto já vai aí?
Artur Bófia voltou a cabeça.
— Oh, és tu, José? Ouve, já que de qualquer modo viste o que não devias ver, não podes mudar de rua uns minutos?
O guarda-noturno fez as pernas mudar de rota.
— Acabem mas é lá com isso. Ainda alguém vos topa e vocês ficam nas bocas.
O guarda-noturno desapareceu por detrás do edifício dos correios. A chuva batia de mansinho por entre as árvores do Marco de Canaveses.


Monday, July 13, 2015


                   NÃO VOS PASSA PELA CABEÇA OS CASOS QUE SE PASSAM
                                                NOS CAMPOS DO FUTEBOL.
                                                                       ~~~~


                       

NUNCA VOU ESQUECER A PRIMEIRA VEZ que fui à bola. A primeira foi no estádio das Antas em 1959, quando o Porto jogou frente ao Atlético e ganhou. Tinha 13 anos e passei semanas a comportar-me bem para ver o meu nome na lista dos bem-comportados. Nos primeiros cinco minutos, julguei que me iam levar ao colo, tal era o fluxo da multidão, mas logo, aqueci com o ambiente. E, fartei-me de levar encontrões e pontapés nas canelas. Jamais tinha ouvido tamanha barulheira de gritos como na entrada da equipa do Porto, e naquela tarde, deviam estar mais de 30.000 pessoas no estádio, mas quando eles se punham a gritar todos ao mesmo tempo, parecia que o estádio ia abaixo. É uma experiência que fica marcada para sempre. Eu fiquei apanhado para a bola. Basta ver, quando o jogador chamado Hernâni, toque subtil na bola, faz um sprint veloz, já sabemos que o avançado tinha meio golo nas botas.
Vinte anos depois, tornei-me sócio do F.C. do Porto, e voltei ao mesmo local onde tinha estado, vinte anos antes. Muitos dos momentos mais memoráveis da minha vida, sem dúvida, saíram-me dos campos do futebol. Vinte anos depois, quase uma centena de jogos vistos, os casos mais extrovertidos ainda perdura na minha memória. Recordo o homem das rifas da Ribeiro que começara a ficar nervoso, no jogo em que o meu clube empatou em Coimbra, contra a Académica; viajamos quatro no carro e repartimos as contas à moda do Porto, e entramos aos repelões no estádio às 3 da tarde. O jogo começava uma hora depois. Apareceram aqueles chatos rapazes da terra, cabelo à escovinha, que se fartaram de nos picar, quando deixamos de os ouvir, já o rifeiro tinha enviado um sapato à cabeça de um deles. Menos de 5 minutos para acabar o jogo, há um livre soberbamente marcado por Cubilas e o empate surge, e o delírio nas bancadas passa-se dos carretos. Logo o segundo sapato voa em direção à cabeça dos rapazes, que fogem em debandada. Ele começara a rir-se e não conseguira parar. Troquei de turno ao trabalho, em 1978, para ver o jogo em que o meu clube se tornou bicampeão contra o Barreirense, no estádio das Antas. Recordo o momento em que o jogador Oliveira, o nosso cérebro da equipa falhou o golo ao poste contrário por uma unha negra. Quando um sócio do meu clube de rádio ao ouvido, ouvindo o encontro do rival, grita para ele aos altos berros, chamando-o de aselha e boémio para logo a multidão cair numa barulheira infernal durante 5 minutos, para aclamar o genial golo de Oliveira, já se sabe que o rádio voa das mãos do sócio e alguém vai ficar em mau estado.
Mais uma.
Que rica tarde soalheira nos aguarda à chegada ao campo do Varzim para assistir ao jogo que interessa ao meu clube: a vitória dá-nos o título de tricampeão. E nas bancadas, logo a seguir ao primeiro pontapé na bola, a emoção sobe ao rubro em jogadas a rondar a baliza contrária, perante o arrastar das vozes da multidão em pulgas, na eminência de ver uma bola entrar. Uma escapadela do jogador azul e branco põe tudo em choque, mas o avançado sem acerto atira a bola pró monte.
E o último quarto de hora é de gritos. Quando soa a apitadela final, o empate persiste, e a equipa do Varzim dirige-se à nossa bancada para a despedida da praxe, é claro que sai vaia e em seguida um coro de raiva. Quando um rapazito dos nossos, sufocado em lágrimas, sobe ao gradeamento debaixo de uma emoção forte para um polícia de cassetete na mão cair em cima dele, já se sabe, que a nossa claque e massa associativa solta um longo Ah, Ah, Ah, durante 20 segundos, e rápido o polícia cavar dali em passo de corrida. 
E mais outra.

Ir a Viena de Áustria em 1987, quando vencemos o Bayern de Munique na final da Taça dos Campeões Europeus, e ver o fenomenal calcanhar de Madjer, é coisa única no nosso historial. Sumir chiclete atrás de chiclete até os engolir durante uma das maiores aflições de uma tarde gloriosa do Porto trazer a taça UEFA, em Sevilha, no ano de 2003. Essa era uma das minhas histórias que tinha para contar daqueles jogos e nunca deixei de o fazer.

Porque gostava de as contar.

Tuesday, June 2, 2015





                                                    ─ Recordo-me de casos ─
                                                                     ~~~

Nas casas da noite da minha cidade havia patrões que foram empregados da hotelaria. Eram bons profissionais. Tinham de ser. Se não fossem, os empregados sabê-lo-iam logo. Sabe muitas coisas, essa gente da noite. E recordo-me de uma noite, era ainda um novato, em que me encontrava no começo da minha carreira. Havia uma boate na cidade aberta há pouco tempo. A sala estava cheia de gente e havia mulheres bonitas vestidas à moda, uma pista de dança e uma artista de strip-tease. E durante a noite as pessoas divertiam-se e bebiam que se fartavam. No reservado do centro, um dos patrões chamou o sócio-trabalhador e disse: «Quero que me tragas a artista do strip-tease. E que a ponhas aqui sentada ao meu lado, acompanhada de uma garrafa de champanhe francês.» «Antes de actuar ou depois?», perguntou o sócio trabalhador. O grande boss deitou-lhe a mão no ombro e prosseguiu: «Quero que digas ao rapaz da cabina para pôr aquele disco “Je T´aime Mon Amour” e que abaixe a luz da pista, porque me dá uns calores diabólicos e quero relaxar. Também desejo não ser incomodado, nem pelos clientes, nem pelos amigos, pois quero estar à vontade. Estou em minha casa e os meus amigos que se divirtam. Diz-lhe que venha bonita. Diz-lhe isso. E diz-lhe também para pôr aquele perfume nocturno. O barman que faça umas tapas variadas e pede-lhe também para pôr umas fatias de presunto como eu gosto. Trata disso rápido.»
─ Porque lhe teria dado para aquilo? ─ perguntou o cliente.
─ Tinha visto a stripper ─ respondi eu. ─ Não era capaz de passar sem vê-la. Assistia a todos os shows e, passados uns dias, pegou no dinheiro todo que tinha no banco e começou a procurar uma casa. Foi então que resolveu abrir uma boate. Arranjou um sócio-trabalhador para orientar o negócio e deu-lhe uma cota adiantada. O boss nunca mais largou a stripper. Adorava-a.
─ Deixe-me só dizer-lhe isto ─ interveio o cliente. ─ Ele meteu-se no negócio da boate com todo o dinheiro que tinha, apenas porque viu uma strip-tease?
─ Ele não era o dono da boate ─ esclareci eu. ─ Os clientes nunca são donos das casas que frequentam. Mas por amor de uma stripper habilitou tudo.
O cliente ao lado estava a falar no seu sotaque citadino e, para eles, baralhado.
─ Acredito que o gajo, pá, teria pensado que era uma dança sensual e nunca tivesse assistido a um espectáculo de strip-tease, mas depois um gajo, pá, acaba por se habituar a tudo. Num bairro um indivíduo habitua-se a viver em meia dúzia de horas, depois pensaria noutras coisas.
─ É uma história bonita ─ declarou o cliente, com total espontaneidade que os outros votaram para ele os olhos sorridentes.


                                                                                                                       Abraão, em: bardotraidor.blogspot.com/ Porto.


Monday, May 4, 2015




Nesta cidade tudo se resolve. És Chefe de mesa, rapaz. Não podes ter o aspecto da Padeira de Aljubarrota nem do Zé do Telhado. Esse belo salteador. Deve ser atraente ser-se assim, ter uma vida atribulada e terra em vez de miolos. Mas deve ter pensado que não nascera para ser mártir quando acabou deportado naquela província colonial, em Benguela, com os nativos correndo à volta das fogueiras, e as silvas esmagadas pelos mocassins dos seus pés, e sem mais nada que os conformasse além do trepidante e adorável som do batuque, e os seus próprios guerreiros a rebolarem-se uns contra os outros, com medo que as fogueiras se apagassem. O seu corpo estava indescritível, escrevem aqui em O Primeiro de Janeiro. E foi naquela terra de Angola, onde conheceu a sua hora fatal, a última e para sempre. Pobre salteador, pensou. O fim de todas as suas ilusões. É a única coisa boa que têm os salteadores. Nunca têm ilusões, excepto más ilusões.

                                                                                                                                                             O Chefe, em Os Rapazes da Noite.    




MANUEL DIAS, que foi considerado o melhor motorista de todos os condutores que por aí circulam nas estradas, nesses tempos, ele guiou desde bicicletas, motorizadas, furgonetas, camionetas de carga, tractores e carros de todas as cilindradas até chegar ao famoso R.R. (Rollys Royce.) E ainda guiou uma avioneta que sobrevoou Vila Nova de Gaia sem uma asa. Ele conta esse acidente com grande satisfação: Assim que vi a avioneta sem uma asa, pensei logo em safar-me e levei o aparelho para a zona do Cabedelo e fui perdendo altura até embater contra um pescador e, por coincidência, foi o pobre desgraçado que serviu de asa, acabando por equilibrar a avioneta e, assim, aterrei na areia sem danos maiores, a não ser o pescador, que fracturou meia dúzia de costelas e partiu a cabeça.


                                                                                                                                                        Extraído do livro, A Música Que Eu Dou.