Saturday, June 29, 2013

FERNANDO ABRAÃO
E RATAZANA
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(7)

                                              


O MUNDO
      DA
  NOITE
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O sol de Abril batia no carro e Cavaleira, como era chamada no Grupo de Traidores, estremeceu quando as suas pernas tocaram no assento. Nessa manhã, a mãe advertira-a para levar calças, mas recusara, sabendo a cena que se seguiria e, de facto, assim foi. Era uma intuição, sabia-o, mas sentia-se com intuito. E porque não tê-lo? Não seria esta uma boa oportunidade para se comportar de forma intuitiva? No dia de festa do bar? (3 de Outubro de 2008) «Há homens para todas», anunciou o dono do bar, Ratazana, à medida que as raparigas iam entrando na sala. «Vamos lá, Cavaleira, hoje é que tu os vais comer!» — «Vamos a ver», respondeu Cavaleira. «Há muitos homens, não há?» — «Sim, é uma ocasião rara», retorquiu Ratazana. — «A primeira vez que venho de saias», observou Cavaleira. — «Que seja a primeira de muitas», vaticinou Ratazana, acrescentando de seguida. «Bem, espero que as saias te tragam bons proventos.» — «Sim, claro», concordou Cavaleira, inclinando-se e sorrindo para a plateia, que olhava espantada para as suas ganchetas. Era engraçado, pensou Cavaleira, a primeira vez que tinha vindo de saias ao bar, era admirada. As outras raparigas vestiam vestidos e calças de ganga, mas não de saias curtas, exceto Cavaleira. Talvez eles não estivessem habituados a vê-la de saias. Talvez achassem que ela até tinha umas pernas atraentes. As saias da Cavaleira acabaram por atrair a malta da traição. Chegaram três pedidos para Cavaleira se sentar à mesa de uns construtores civis e outro para uma ida direta ao quarto. Significava que ela se sentia pretendida... Eles vão endoidecer se não saírem com ela. Não pensam noutra coisa senão naquelas finas pernas que ela tem; davam tudo o que tem para se sentirem enroscados nelas, agora que ela tinha puxado as saias mais para cima. Cavaleira descola da sala em direção à pensão. Miguel tem andado como um perdido atrás dela, que já não pensa perder esta oportunidade, de modo que o chamamento direto à pensão, foi uma bela ideia. Arrastaram-se por todo o quarto! Já se tinham realizado uma vez, quando ele bateu com a cabeça na perna da cama, e logo mudou de direção. Depois, rolaram-se no chão, enroscados um no outro, sobre uma alcatifa pré-aquecida pelo aquecedor e começaram a possuírem-se outra vez. Foi espetacular, e claro, se bem que Cavaleira tivesse alguns sentidos ligados à freguesia que a esperava no bar. Quando acabou, retirou-se rapidamente para o chuveiro e disse-lhe que tinha adorado aquele bocadinho, principalmente, o da primeira parte. Saídas! Quatro... Cinco... Construtores civis, engenheiro, vendedor de máquinas e empregado de mesa. Pousa delicadamente as notas debaixo das solas dos pés e arranja-se rapidamente ao espelho, saindo em bolina. Entra no bar cheio de gente. Ouve-se o seu petulante Quem quer que lhe faça umas cócegas? E explica ao cliente, a sua técnica de arrefecer cócegas. A explicação parece resultar e sabe que está a um passo de se concretizar. Saídas rápidas... Cavaleira, como que reaparecida, passado quinze minutos, mostra-se de novo eufórica em relação àquela festazita de algumas horas atrás. Ri-se para toda a gente, mas no seu riso transparece um certo cansaço. É extremamente perspicaz acerca das energias que já esgotou depois de ter andado numa roda-viva, a tirar e a pôr as saias. Assim que chega, Cavaleira lembra-se de que tem um outro compromisso e sai. Desta vez vai no carro do cliente para o seu apartamento. Cavaleira afoga-o com os seus problemas. Está decidida a pedir mais alguma coisa por ter vindo ao apartamento dele. Um bónus, considera ela. Senta-se no divã, e deixa-o ver-lhe as pernas e as coxas, enquanto relata os nomes dos grandes fodilhões da História dos traidores que a comeram. Talvez... quem sabe?... até ela pode promovê-lo a ingressar na sua grossa lista, confidencia-lhe. Enquanto se encontram na marmelada um com o outro, vai desvendando alguns casos das suas relações sexuais com os tarados daqueles seus clientes-traidores. À medida que vai ficando mais ardente, fala mais livremente. Não há nada que ela não faça, desde que o cliente saiba levá-la. Ainda não se passaram cinco minutos e já ele está a estrebuchar-se e a perder gás e a começar a pôr-se de pé. Depois de tudo terminado, mantém-se a conversar e combinam a próxima rapidinha com uma nova posição e outros sabores...

Quando o coração do conhecido pintor Conde do Pincel deixou de bater, a senhora do pintor informou Abraão que não o tinha convidado para o funeral porque, o falecido tinha sido cremado na sua terra natal. «Convidava-me na mesma», afirmou Abraão ao telefone. — «Achei que não era necessário», concluiu a senhora do pintor, enquanto soletrava um passe bem em jeito de despedida. Abraão, pensou no cliente-amigo que tinha falecido inesperadamente. Eram amigos há cinco anos e tinham proporcionado bons momentos um ao outro. Não gostava de se meter em barafundas. Recordou que o pintor estava sempre com uma ilusão. O brilho dos seus olhos sobressaía no escuro da noite. Quando Conde do Pincel resolveu trocar a sua velha máquina fotográfica por uma nova máquina digital, avivou Ratazana que se propôs criar novos projetos para juntos realizarem curtas-metragens, a tempo extra no fecho de O Bar do Traidor, mas mesmo quando estava a tempo inteiro e não havia freguesia, Abraão estava sempre a escrever no computador. Conde do Pincel dizia que os sonhadores deviam ser os primeiros a ver os seus sonhos realizados. Por essa altura, Abraão e Conde do Pincel realizaram em conjunto as curtas-metragens Isto Vai de Mal a Pior, O Ébrio (Um gosto a cheirar ao torrado),e 28 anos, que navegam nas redes sociais. No cemitério de Paço de Sousa, Abraão descobriu o jazigo da família Os Curros, onde pensava existir as cinzas do pintor. Prostrou-se silencioso em frente ao jazigo, se houvesse um coveiro ou um funcionário que pudesse dar-lhe uma informação, tê-lo-ia perguntado. Abraão tinha o vício de falar sozinho. E logo arranjou maneira de inventar um texto para homenagear o seu velho amigo.

         “Amigo Conde do Pincel, o nosso conhecimento não foi imenso, mas foi intenso. Obrigado por o ter conhecido.
          Revejo nas noites solitárias as nossas curtas e, não deixo de me rir, com as nossas interpretações. Prometo que sempre que vier a esta terra, não o olvidarei. Adeus».

O homem apareceu por detrás dela, no momento em que vagueava na sala junto às prateleiras de O Bar do Traidor. A sua cara era desconhecida e nunca ela o tinha visto antes. Foi engenhada a forma como o homem entrou com ela, durante três segundos e desapareceu. Ela não se lembrava de como é que ele era. O homem entregou-lhe um papel e disse: «Isto é para si». Depois, passou por ela apressadamente em direção à porta, antes que lhe desse tempo para ler. «Lara», perguntou a baixota Carolina, «quem era aquele gajo?». Ela guardou rapidamente o papel no bolso. «Deves ter sempre muito cuidado», avisou-a a baixota Carolina. «Quando menos se espera, estes gajos lixam-nos.» — «Não sei quem era», respondeu. «Não ligues, deixa para lá.» Atravessaram a sala e passaram na direção do balcão. Deliberadamente, olharam à volta delas para ver se alguém as chamava. «O que foi que o gajo te deu, Lara?», perguntou Carolina. — «Não fales agora», pediu-lhe. «Preciso de pensar.» Há uma dúzia de clientes na sala a beber com as raparigas, sem muito interesse. Continuam encostadas ao balcão do bar, na tarde em que o Grupo dos Traidores se pôs a disputar um jogo de futebol de cinco num campo da cidade. Lara dirigiu-se à casa de banho, assim que apanhou uma nesga, depois sentou-se sobre o tampo áspero da sanita e pegou no papel.

“Estás no apartamento.
Rua de Costa Cabral. Ás 17:30

Parecia ser a caligrafia de um amigo seu, o Senhor Magalhães. Foi a expressão “Estás no apartamento”. Essa é uma espécie de senha-convite de Magalhães. Quando ele diz “Estás no apartamento”, significa algo para ela e mais ninguém. Lara saiu para dar à língua. Queria descomprimir. Não diria nada a ninguém, nem mesmo à Carolina que não confiava, nem às raparigas da vida da noite. Havia sempre uma ponta de inveja nelas; elas não eram de fiar. Lara rasgou a mensagem e lançou os bocados dos papéis no cesto do lixo. O táxi levava pouco mais de dez minutos ao local.
Saiu do bar e na entrada encontrou a mais velha das raparigas, Big Bela, que estava a chegar. Lara fumava um cigarro esguio e comprido More, que tinha sido oferecido pelo Ratazana. Ele dava às raparigas, frequentemente, pequenas lembranças para as cativar. Era suposto enganá-las, mas acreditavam nele. «Que cigarro tão giro, Lara» exclamou Big Bela. «Quem é que to deu?» — «Foi um amigo. Toma lá um!», passou-lhe um cigarro e entrou para dentro do táxi. O apartamento de Magalhães era pequeno, tinha apenas quatro divisões minúsculas. As paredes eram ocas que dividiam uma sala pequena. Isso significava que se ouvia os ruídos com facilidade. Lara dirigiu-se à porta da entrada, assim que chegou, levantou o tapete e retirou a chave para entrar. Abriu as janelas para refrescar o ambiente, depois sentou-se no divã, enquanto aguardava por ele. O Senhor Magalhães era um tipo especial. Em linguagem corrente é aquilo que se pode chamar um provocador de saias, só taras-manias e depois... um pesadelo. Nas duas horas que esteve no apartamento, Magalhães, visionou dezenas de fitas sobre relações sexuais entre animais para duzentas posições... ou era o porco que fazia truca-truca em cima da porca ou era o cão a experimentar comer a ovelha. A única forma que Magalhães necessitava arranjar um animal que o provocasse para depois provocar Lara. Lara tirou as saias para o pressionar, e pôs as suas monumentais coxas a descoberto... ele olhou durante uns segundos, mas estava ali mais concentrado nas imagens do porco com o membro todo enroscado na porca e discutiu com ela para a possibilidade de ela se colocar assim. Mas Lara estava já cansada de ver todos aqueles vídeos... quer ser comida ao natural, diz, e se Magalhães não lhe der uma como deve ser, ela nunca mais o vem visitar. Magalhães então esfregou-se um pouco mais sobre ela e a seguir mostrou-lhe a imagem de um capão a ter relações sexuais com a parceira com uma velocidade de jacto que lhe devia ter feito trocar os olhos. «Ora vê!», diz. «Estás-lhe a ver o cu a tremer, ou coisa parecida?» Ela delira quando se está a vir. «Não acreditas? É tudo tão maravilhoso...» Magalhães, concentra-se novamente nas imagens que está a ver. «Mas, loucura minha, quando eu me vier dentro desse buraquinho...» Agarra-lhe as ancas por trás e quase que a atira para fora do divã. Penetra-se nela e o divã treme... mas talvez seja Magalhães. A miúda mantém as pernas abertas o que lhe permite ir tão fundo quanto possível, e ele já está a imaginar comer o seu botão de rosa... «Oh, Padroeiros da minha terra!», arfa Magalhães, «aguentai-me firme!...» Magalhães sente realmente tudo a abanar quando a coisa acaba. Está em pior estado como quando começou e o seu aspeto não é exatamente o de um cravo. Quanto a Lara, está ali para as curvas, dá a impressão de que não se passou nada com ela. Quer saber se ele a leva a casa. «Apanha um táxi, Lara», diz-lhe Magalhães, ainda deitado no divã. «Pega ali no envelope em cima do móvel... É que eu não me consigo levantar daqui...»

Pateca estava sentada numa cadeira, demasiada gasta, na sala de O Bar do Traidor, um dos mais badalados bares do Porto. Rodeavam-na um grupo de raparigas da rapidinha, jovens sem carisma, mas muito sabidas, ratoeiras que fazem lembrar o filme O Medo Come a Alma, clientes de bar emproados em roupas fatelas que dirigiam olhares provocadores — e nenhum deles é jovem, exceto Pateca e as raparigas da rapidinha que se arrastam por lá. Pateca estava lá para conhecer um tipo-correio-de-droga, mas ele não a conhece. Na verdade, nunca ouviu falar de Pateca. Mas isso não a impede de estar ali à espera de o conhecer. Pateca nunca conheceu Manuel, conhecido pelo Pica. Esta é a sua alcunha nos meandros do pó. Tornou-se passador de drogas, há três meses. Até as mulheres da rapidinha já ouviram falar dele. Pateca está lá para que Pica lhe dê uma amostra de pó para snifar. Pateca aguarda a visita de Pica, enquanto espera vai dando papo ao empregado do balcão. Até que uns bons dez minutos depois, Pica chega ao bar. Vai direito para uma mesa da ponta e junta-se a um grupo qualquer que se dedica ao consumo de “drogas”. Compram-lhe as doses debaixo de mão e ficam-se no falatório. Pateca não perde tempo. Quando as entregas terminaram, apressa-se a ir ao seu encontro c´um um cigarro na boca. Dá-lhe um olá, e senta-se. Volta a fixar os olhos para ele. Um tipo com cerca de quarenta e cinco ou quarenta e oito anos, magro, de bigode grosso. A certa altura diz: «Pica, és tu? Faz-me um favor! Dá-me meia grama para eu curtir!», pede. — «Como descobriste que era eu? Quem te deu a informação?» Pica olha, curioso, para Pateca. — «Não houve informação nenhuma. Sou a única pessoa que sabe, porque te conheço através de umas amigas. Por favor!, sê simpático para mim. Quero só que me dês meia grama.» — «Quem não quer.» — Por favor, ajuda-me. Dá-me uma chance?» — «Sem dinheiro, não há chance.» — Oh!» — «Para além de não te conhecer, miúda, não sou dono do material. Agora, diz-me, onde é que tens o dinheiro que se possa ir buscar?» — «Nenhum, que eu saiba.» — «Talvez não, miúda, mas já estou farto de mixórdias. Passam a vida a dizer que não tem dinheiro. Quer dizer que não me estás a enganar?» — «Não faria isso.» A porta do bar abre-se. Pateca olha e observa. Deslumbra dois tipos suspeitos no balcão. Apetece-lhe cavar. Quase por instinto, de repente, acotovela-o. «É a bófia!» «É a bófia!» Pica levanta os olhos e atira c´um pacote debaixo do braço para as pernas de Pateca e pira-se para a saída. Num ápice, Pateca devolve o pacote para outro tipo, e o outro atira para o outro e por aí adiante... Pateca vai atrás dele. Os bófias ao balcão curvam-se e um deles barra-lhe a passagem. Estão à paisana. Os bófias murmuram para eles: «O BI, miúda. E você também.» Pica vira-se furioso, para o polícia. «BI! Roubei alguma coisa a alguém?» O bófia passa os olhos no BI e desaparece. Tal como Pateca que corre na direção do Pica, escondido atrás de um carro. Pica perdeu o ar desconfiado. «Vamos zarpar daqui antes que nos chateiem o juízo», declara. Seguiram pela rua. «Como é que sabias que era a bófia? Não traziam farda. E estavam a fazer rusga. Então, como?», pergunta ele. Pateca lança-lhe um olhar. Está a tentar pensar como deve responder. Volta-se para Pica. «Sou citadina noturna e já manjo estes moinas é ene tempo. Sei quando eles saem à rua para apanhar infratores e este é o melhor sistema que há. Não dá nas vistas. Por isso, passei o tempo todo, no balcão, à cuca para a porta. E sabia que virias abastecer a tua freguesia: com o teu remédio. E quanto à minha meia grama?» — «Dizes que não tens dinheiro. Por isso, como é que me vais pagar?» — «Estás-te a fazer a mim?» — «Faço-me a qualquer uma amiga nova.» — «Mas não me conheces.» — «Isso é uma verdade. Mas quando fio a uma pessoa, fico a conhecê-la. Claro que não acredito em tudo o que tu dizes. Mas se me deres uma prova, acabo por considerar-te minha amiga.» Pica olha para Pateca como se fosse ele o consumidor. Sente uma atração física por ela! Não é nada que não se pareça. Chegam ao fim da rua, onde Pica deixara o carro, e seguem viagem. Entram no quarto, e sentam-se a uma mesa, a beber absinto. Quando acabam de beber, Pica espalha a meia grama de pó pela prata e entrega um instrumento de snifar a Pateca. «E agora dá aí um chuto», diz. Pateca tapa um dos lados do nariz e puxa com todas as suas forças. Depois, fica à espera que Pica lhe carregue mais, pois acha que sabe a pouco... O pó volta a pulverizar as narinas de Pateca. Pica, ajoelhado, suga os mamilos de Pateca... Pateca já se vê nas nuvens a voar no espaço, com as mãos dele a apalpá-la por tudo que o excita. «Tira a roupa e fode-me!» Pica despe-se e leva-a para o divã. Atira-se para cima dela e abre-lhe as pernas... Mas deixa ela snifar um pouco... Agora está a vê-la como deve ser, mas não quer perder a ocasião... Pateca parece estar estonteada... senta-se no chão e olha-o, abanando a cabeça como se quisesse saber onde estava... A tática de Pica absorve de uma vez todo o seu imaginário... continua a pedir-lhe para deitar mais pó... até que a excitação lhe rouba a fala... está a arder... é como estar abraçado a um lume. Pica está a comê-la como um louco, mas ela puxa-o pelas orelhas e quer sempre mais. Fica inerte nos seus braços... desmaiou a vir-se... Pica para com os movimentos de pra cima e pra baixo, e enfia-se na casa de banho, e senta-se na sanita a fumar um cigarro, enquanto contempla Pateca a dormir no divã, sossegadamente, como se fosse um bebé. Deixa-a estar assim, enquanto prepara novas embalagens para a distribuição, e só depois, lhe faz umas festas para a acordar. Pateca acorda rapidamente. Pica faz um discurso de despedida ao mesmo tempo que se enfia dentro das roupas. Que envergonhada! Pateca veste-se com uma rapidez e mantém os olhos afastados até se acabarem de vestir. «A tua amizade foi encontrada», diz-lhe Pica... «talvez possamos voltar a encontrar-nos amanhã... às cinco, talvez?... e tenho um ou dois pássaros grandes que gostariam de te conhecer...»


A amiga estava engripada nessa semana, por isso, Filipa teve de ser ela a descer à rua e ir à procura de comida. Nada teria corrido maravilha se André não a tivesse visto na rua, nessa terça-feira à tardinha, e decidido chamá-la. Habitualmente isso não a chatearia — apesar de estar sempre a chamá-la “Olhos de Fufa”. Porém, naquele fim de tarde, não podia ter tido melhor sorte. «Onde vais, Fofinha?», gritara, junto ao parque de estacionamento do minimercado Shop-Shop. Por estes lados, encontram-se muita variedade de lojinhas, onde se podia abastecer. Filipa não lhe respondeu, enquanto se dirigia para o carro que se encontrava estacionado e deixou o saco no banco de trás. André seguiu-a. A voz dele denotava admiração: «Fofinha? Que fazes aqui?» — «Vai brincar com as tuas amigas, André?» Respondeu. Ficara arreliada. Não era habitual vê-lo por aquelas bandas, mas não podia mandá-lo à fava: os morcões podiam esperar algum tempo. Tirou uma chiclete do bolso e dirigiu-se ao seu encontro. André olhava-a como se ela fosse um manequim. «Tás fixe?» — «Tou. Encontrei aquilo que queria e vou levar alguma coisa para comer». — «A tua amiga foi de férias, ou quê?» — Parecia mesmo preocupado com ela. Era, de facto, cómico, vindo de um homem que, certa vez, abrira a porta do seu quarto para, segundo afirmara, a comer de surpresa. «Estou com pressa, André!», sentiu-se baralhada, nesse momento, pois gritara tão alto que alguém podia ter ouvido. A única coisa que lhe acorreu mesmo foi pedir-lhe que estivesse quieto com as mãos. «Então, o que...?», olhou atónito. «Vou atender os morcões», declarou, esperando que pensasse que estava apressada e a deixasse em paz. Levantou a chiclete com a língua e deu um estalido e fitou-o, de tal modo, que teve vontade de se mandar. «Caíste, finalmente...» — «Pois», respondeu e acrescentou: «Anda lá, depois de entrar podes apreciar as belezas da casa.» Atirou a chiclete para o chão, abriu a porta do carro e pôs o motor em marcha. André seguiu no carro e conseguiu apanhá-la rapidamente, ia já a meio da estação da Granja. O aspeto era o de sempre, paredes rabiscadas, cartazes de propaganda a cair e anúncios de alimentos. Já atravessara a cancela da entrada da casa e subia os degraus da escada quando voltou a ouvir a voz de André, e desta vez, pareceu aflito: «Fofinha! Não tenho cigarros», exclamou. «Queres que te traga?» Filipa atirou-lhe um sim e esperou um pouco. Alcançou-a segundos depois. «O que é que vens mesmo aqui fazer?», sussurrou-lhe baixo. «Cala-te miolos de galinha-do-mato, vais assusta-las!». Havia duas raparigas de aspeto provocante na desarrumada sala; olharam para os lados, assegurando-se que ninguém se encontrava nos quartos. As raparigas alegraram-se um tanto, quando viram Filipa avançar com o saco e tirar de dentro, uma embalagem de pão-de-forma, marmelada e outra de queijo, e mandá-las atulhar. «Assustar elas?» Sentaram-se no sofá a fumar. Filipa contou uma longa história ou, pelo menos, assim parecera quando ela a contara. Contou tudo a André — o que pensávamos ser verdade, em todo o caso. Como a sua vida crescera à volta dos morcões, deitando-os abaixo. (Assim alcunhava os cabritos) A maioria deles tinham idade para ser seu pai, tio, ou até avô, confidenciara a André. Outros, porém, eram mais novos, ou não tão ousados. Haviam começado a visitá-la nos locais do vício, visitando-a assiduamente de um sítio para o outro, aparecendo de carros e de motas. Em noites com luar ou calorentas durante as horas de vício, os mais arrebitados aventuravam-se, desenfreadamente, pelas ruas da cidade. É por causa deles que as casas de passe junto às povoações cresciam cada vez mais. Os mais tímidos permanecem nas sombras o tempo da aprendizagem. André escutou tudo isto com aquela expressão de “Fecha-o-ecler”. Mas nada disse até ao momento em que Filipa ficou sem palavras e começou a fazer-lhe mimos. Mas quando as raparigas apareceram na sala, André estava tão excitado que atirou-lhes um verdadeiro piscar de olhos e, a mais alta, olhou bem para ele, por instantes, depois atirou-lhe um chocho com os lábios comprimidos. Via-se que estava esfomeada; tinha os peitos arrebitados. No entanto, baixou a cabeça, vagarosamente, como uma cabra a bebericar água. Enquanto André bebia, as raparigas desapareceram. Talvez fossem atender algum morcão que veio visitá-las, ou que lhes tivesse telefonado. André atirou-se mais a Filipa e, beijou-a, gozando cada um o seu bocado. Permaneciam envoltos, em cima do sofá. André estava tão vermelho, com o calor a apoderar-se dele, que acabou por ir tomar um banho de água fria, de modo que ela encontra-o sem uma roupa por cima... o que parece estar mesmo a jeito para o que ela tem na ideia. Veio à procura dela para a comer... e para a ouvir contar um história de algibeira. André comeu-a. Ela ainda não está refeita da coisa, o que é perfeitamente natural, se considerarmos que se trata do morcão que lhe tirou os três vinténs na putaria. Claro que não é bem assim que a coisa se passou. Sendo André aquilo que é, os factos não se podiam dar desta maneira. Mas o que conta é o resultado... e o resultado é quase sempre o mesmo...