Tuesday, September 4, 2007

CONTOS DE RATAZANA


                        O Guitarrista Caspa e o
                                                           Viola Caguinchas
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O viola Caguinchas nunca gostou daquele guitarrista, o Caspa, como era apelidado no meio fadista. Uma ocasião, dei com eles a discutir:

«Ouve o que te digo, o tom é si bemol e não mi menor.» ─ Dizia o Caspa. Contrariado, o Caguinchas viria a não aceitar aquele raspanço e não tem outra alternativa senão responder-lhe:
«Não digas asneiras! Eu é que sei qual é o tom.» ─ O Caspa preferiu não responder. Nunca cheguei a entender porque era que eles passavam o tempo do ensaio a discutir.
«Já está melhor assim? ─ interrogava Caguinchas em frente de Caspa. ─ Vê lá se esta combinação de tons não te soa melhor aos ouvidos! ─ O guitarrista esteve quase a zangar-se.
«És teimoso e burro! ─ disse. ─ Só tu é que tens a mania que sabes tudo e depois só fazes cagada em palco.» ─ Agora foi a vez de Caguinchas não lhe dar resposta.

E os momentos mais interessantes eram quando havia espectáculos com os dois a intervir lado a lado no programa. E eles eram promovidos à categoria de estrelas profissionais, conduzindo os outros artistas na programação do show. Na hora de irem embora, depois do programa acabado, eles nunca perdoariam a si próprios senão molhassem a goela com uns bons copos de verde tinto ou branco (não interessava a cor) da região.

«Não acreditas que já toquei dentro de uma pipa de vinho? ─ disse Caspa entornando mais uns copos pela goela abaixo.
«Já estás bêbado! ─ responde Caguinchas limpando a boca à manga do casado. ─ Eu também te podia dizer que já pus uma garrafa de vinho a tocar música!» ─ O guitarrista engasgou-se a beber e a seguir tossiu… e depois respondeu-lhe:
«Olha para ele! ─ disse Caspa com a voz estrangulada. ─ Tu nem com as cordas te safas quanto mais com as garrafas.» ─
«Vamos mas é embora antes que me chateie.» ─ Gritou ele.

E ambos, um pouco grossos, tiraram a rolha de uma garrafa de tintol, maduro, e encheram mais dois copos para a despedida e taparam o gargalo com a palma da mão. E, com a outra mão, pegaram nos copos.

«À partida» ─ bradou o Caguinchas.
«À saída» ─ responde o Caspa.

Lá vão eles para o Fiat Bravo. Caguinchas abre a porta e entra no carro; a seguir entra o Caspa. Dirigem-se para o Norte, mais propriamente dito para o Norte da cidade tripeira. Pela estrada de Famalicão passam junto duma ponte velha. Ao longo do caminho, há juntas de bois a pastar nos campos, e lavradores a cultivar centeio. De repente, ouve-se um estrondo! Caspa mandar parar o carro: «MATASTE A VACA!» -
O carro pára mais à frente e descem ambos. Ficam diante de um campo silvestre, junto de uma lomba, de pé; a brisa do ar refresca-lhes os rostos; Caguinchas põe-se em bicos de pés olhando para cima e para baixo e volta-se para trás:

«Eras tu a sonhar ou quê? ─ diz ele de ar sisudo. ─ Vês alguma vaca?» ─
«Ali abaixo – diz Caspa apontando – eu vi a vaca a voar por cima de nós.» ─ Caguinchas voltou a pôr-se em bicos de pés e olhou pela ravina.
«Ali – volta a dizer Caspa. – O que é que vês?» ─
«Nada – responde Caguinchas desorientado. – Tu deves estar é c´os copos.» ─
«Não é ali, é acolá» – insiste o Caspa e Caguinchas vê o dedo do outro a apontar para o fundo do campo.
«Ali! Acolá! Ali? – pergunta. – O que é que tu viste? Uma vaca a voar pelo ar? Deves estar cá com uma visão como eu ver um elefante andar por baixo das asas de um jacto a voar no espaço…

Caspa, vermelho como um chouriço, dá em filosofar:

«És teimoso como um burro! Eu bem te avisei que tivesses cuidado. Eu vi a vaca voar à minha frente e agora? Foi-se!... Desorientado, Caguinchas berra:
«Vai-te lá comer com a vaca ou com o boi; burro sou eu em estar para aqui armado em elefante a aturar-te.

E correu para o carro. Caspa seguiu atrás dele. Instantes depois, lançou-se ao encontro da estrada, seguindo em marcha mais lenta. Talvez por recear que aquele estoiro de há momentos atrás estivesse relacionado com a história que Caspa referiu, ou talvez porque o outro estivesse mesmo um pouco pingado do álcool. E foi com a visão da vaca a voar no ar que chegou ao local do regresso e deixou ficar Caspa, seguindo depois para casa. Quando desceu, olhou com a vista mais acentuada para a chaparia do carro e viu à frente uma grande amolgadela!... Coisas que acontecem; depois do Caguinchas se deitar no choco, embora tentasse dormir o mais rápido possível, o corpo sentia arrepios de frio. No momento, com os dedos gelados de raiva, ele não suportou durante muito tempo aquelas visões de uma nuvem passageira coberta de uma manada de vacas em perseguição dele pela estrada adiante…