Wednesday, December 19, 2012



FERNANDO ABRAÃO
               E RATAZANA
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                                                                 O
                                                           MUNDO
                                                                DA
                                                            NOITE
                                                               ~~~  



A história do Grupo dos Traidores começa em 1983 quando Fernando Abraão, hoteleiro, da cidade do Porto, deu este nome a um numeroso grupo de clientes que frequentavam o seu bar não muito longe da Rua de Antero de Quental, no Porto, para onde tinha decidido ir estabelecer-se depois de se tornar empresário em nome individual. Mas se por Traidores entendermos o negócio de meninas da rapidinha, é então discutível que a história dos Traidores — e da pinadela — três anos antes, no dia 3 Outubro de 1980, quando o padeiro Carlos engatou uma prostituta menor de um bairro. Na tarde daquele dia, Carlos estava a trabalhar na sua distribuição de pães, na baixa portuense, quando foi intercetado por um «mãos-leves» que desejava discutir a dívida de três contos que Carlos tinha para com uma prostituta chamada Malha Susana. Como forma de obrigar Carlos a pagar a dívida, o «mãos-leves» insinuou que a prostituta Suzana sabia da morada da padaria do Carlos e que o denunciaria à mulher, a menos que recebesse o seu dinheiro. Carlos apressou-se a ir falar com a prostituta Suzana. Tinha motivos para estar receoso, porque a sua mulher estava a quilómetros da vida boémia que levava. O que a prostituta Suzana lhe falou enfureceu-o. O tal «mãos-leves» tinha deixado a prostituta Suzana no quarto de uma pensão, para umas brincadeiras de sexo, (não podia ultrapassar os quinze minutos) e a partir da primeira cena de apalpões efetuosos entre ambos, podia deduzir-se que se retardaram até não poderem mais. O padeiro Carlos estava no Dallas, longe da padaria, mas o magricela e tísico «mãos-leves», um sacador de fraco estripe, não estava muito longe dali, estava na casa do esfola de 5 de Outubro. Carlos meteu-se na carrinha e foi até lá, onde o avistou e chamou por ele. «Mãos-leves» veio ao seu encontro. «Aqui está o dinheiro que te devo, e o troco também», disse o padeiro Carlos, e deu-lhe com a saca dos cacetes nas fuças. Naqueles tempos, no Porto era vulgar haver extorsões e um homem que tivesse sido chantageado devido a um caso de proxenetismo suscitava a simpatia geral. O «mãos-leves» apregoou incapacidade física, indicando que Carlos lhe dera um bolo-rei como troco. Ambos deram o caso por encerrado.

Um amigo de Abraão, Rufino M, teve um pequeno papel importante, quando lhe apresentou duas quarentonas da vida fácil na sua residencial. A partir daqui, Abraão desenvolveu um sistema para chamar clientes ao bar, numa roda constante atrás de uns rabos de saias. O primeiro casal a sair para uma rápida, levou Abraão a entrar no balcão, a abrir os braços e a dizer «Até já, meus pombos. Espero que fiquem radiantes com o amor-instantâneo». O amor-instantâneo era simplesmente um engate banal, ao qual homem e mulher conversavam o que tinham a conversar, e depois, seguiam para o cardenho de uma pensão. Mas quando o sistema foi lançado ao público em O Bar do Traidor, numa tarde de Fevereiro de 1983, o seu criador, Abraão sabia que tinha dado um passo importante no seu negócio. Comentou: «Sabia que os tinha apanhado quando vi os desejos nos olhos dos clientes do bar». Abraão foi o primeiro a aproveitar na totalidade este sistema revolucionário num bar de estilo inglês e uma decoração rústica, com a monta envidraçada para a rua que deixava transparecer uma visibilidade pura, tal como os cafés parisienses. Hoje em dia achamo-lo normal, porque desde há uns anos, estamos familiarizados com a inovação e o modernismo. Abraão veio a Lisboa em 1982, a fim de fazer uma visita aos bares da capital e estudar os seus funcionamentos. Sabia que os seus métodos eram populares, porque rendiam dinheiro. Mas quando voltou para o Porto, trazia na bagagem um monte de ideias. Cada vez que lançava uma ideia era aplaudido e apreciado pelos clientes e amigos, e por um rancho de raparigas da rapidinha, que adoravam trabalhar no seu método. Foi devido a esse facto que a mulher da rapidinha se tornou como uma espécie de fruta apetecida, que o mais pequeno sopro do chega aqui podia-se transformar numa  ida para o Muro dos Prazeres (residencial).

A primeira grande desgraça de O Bar do Traidor ocorreu em 1981, quando chegou a notícia de que a encantadora e atraente Profe — como ficou a ser tratada —, fugira da boémia e fora atrás de um homem casado dono de uma churrascaria, no Porto. (contava ela dezoito anos e ele trinta e oito anos). A sua história era a história clássica da aventura. Enquanto adolescente, tinha-se pirado de casa dos seus pais, e de uma infância infeliz, para ser estudante em horas vagas nos cafés. Depois recebeu um convite de um bar para fazer permanência como «chamariz perfeito» alternando e aceitou. A seguir, tornou-se uma das raparigas de Abraão, e mais tarde uma empregada de boite. Amantizou-se com outro patrão da hotelaria, Toni «Qualquer-Coisa», um homem pacato do tipo homem bom. Mas as relações entre ambos revelaram que Profe já não era a encantadora atraente que frequentava a boite. Profe chegara à noite antes do amante e os seus passeios incluíam bares de diversão mal frequentados, muita bebida juntamente com elementos do submundo portuense. As más bocas começaram a dizer coisas referindo que ela frequentava estes lugares na tentativa de apanhar bebedeiras para se manifestar e acabou por se viciar. Mais tarde ainda, as outras más bocas revelaram que ela própria tinha aderido à bebida e ao fumo antes de se amantizar com Toni. As más bocas da última hora anunciavam: «Profe, alcoólica». Os amigos da noite acreditavam que aquela relação não era duradoira — Profe e Toni «Qualquer-Coisa» tinham acabado de se separar para seguirem outros caminhos —, mas isto era esperado. Profe acabou por sobreviver à desgraça, mas mudou radicalmente a sua vida.

A desgraça que se seguiu ainda foi maior. Em finais do ano de 1980, a menor Rute, jovem camareira, morreu de um aborto mal feito depois de ter sido tratada por uma parteira particular. O seu corpo estava depositado no velório da igreja da Sé, no Porto, e só meia dúzia de pessoas assistiram ao funeral. Tinha apenas dezassete anos.

O próprio Abraão teve a sorte de escapar a algumas ratoeiras que se depararam pela frente. Quando veio para a chefia da Boite O Inferninho, em 1974 (com vinte e sete anos), a sua vida sentimental tinha sido atribulada e sofria com a solidão. Tinha uma preferência especial por mulheres mais jovens. Quando conheceu Fátima — preferia dizer Fatia —, num dia de folga, contava esta dezasseis anos. Na noite seguinte anunciou que tinha perdido a virgindade, o que forçou Abraão a querer levá-la à farmácia para um teste, seguido do rompimento duas noites depois. (Abraão desabafou a um amigo que a mulher não tinha «as aduelas no sítio».) Acusou-a de inventora e ela acusou-o de crueldade — conceito que os seus amigos acharam difícil ligar ao novato espertalhão da noite.

Em 1980, o imobiliário P. da Costa foi levar uma mulher chamada Mónica, que conheceu pela primeira vez, a ver um apartamento que esta pretendia alugar, na zona do Carvalhido, no Porto. Quando estava a observar o apartamento, Mónica suspeitou nitidamente das intenções de Costa e não tirava os olhos de cima dele. Três anos mais tarde, Mónica, no seu comentário pessoal, revela: «Queria que eu fosse a sua amantezinha — e queria que eu metesse a língua na sua boca. Sabia que ele estava pronto por me saltar para cima...» A atitude de Costa a este acanhamento simulado foi preparar-se para o assalto a ela, de calças em baixo. Mónica ficou completamente arrasada, com as suas «maneiras bruscas» e gritou para ele acabar com aquilo. Ele obedeceu prontamente. Na próxima vez, foi mais cavalheiro. Levou-a a ver outro apartamento para alugar, mas mobilado e recheado com todos os eletrodomésticos, na zona do bairro de Monsanto, no Porto. E a relação há muito esperada aconteceu na cama. «O calor que parecia ardente aumentava, tornava-se cada vez mais quente, e rapidamente puxou a persiana acima, e o ar ficou mais respirável... A seguir, Costa deitou-se ao meu lado, excitando-me com beijos ardentes e meigos nos ouvidos... e, de repente, tentou convencer-me a praticar  — sexo anal — e, quando eu me recusei, ele disse-me: «Relaxa-te amorzinho — todos os casais o experimentam». Depois senti uma dor aguda a penetrar dentro de mim e no último segundo gritei, mas não parei o ritmo. A dor cegou-me mais do que o calor do ambiente, e pedi-lhe num murmúrio que dissesse: «Chama-me tua panelinha, chama-me! e entrei em loucura, como se estivesse em êxtase, — e depois aceitei-o por completo». Costa detestava preservativos e, como resultado disso, a sua amantezinha-panelinha engravidou. Tinha de assumir a paternidade ou então concordar ambos num aborto. Costa e Mónica tentaram levar a coisa nas calmas, e Mónica foi fazer um teste que confirmou a sua gravidez e que ia ter uma menina. A ideia de ter uma menina quase o ia levando ao delírio, pois Costa era casado e pai de três meninos. Consta que Costa disse aos amigos na festa de anos: «Bem rapazes, isto é melhor do que a lotaria, mas ainda vamos ter que esperar». Costa começou a passar a maior parte do tempo a conviver com clientes da boémia, enquanto Mónica e as suas meninas tomavam conta do bar. Dois meses depois, Mónica abortou e Costa desfez-se em lágrimas de pranto. Os rumores começaram a circular de boca em boca; continha pormenores das manobras de Mónica, incluindo o simulado da gravidez, e por fim, um bocado de uma tripa de porco comprada no talho, como amostra de um possível feto de criança. As bocas tiraram o maior partido destas revelações. Houve alguém que comentou: «Mesmo os palermas, que gramavam o Costa há meia dúzia de meses, preparam-se para fazer abrir as goelas para se rirem dele». Um ano depois, enquanto Costa se debatia com problemas intestinais, Mónica terminou a relação e proibiu-lhe a entrada na sua casa.

Outra grande desgraça que se seguiu aconteceu antes de P. da Costa ter sido lobrigado na história do aborto com Mónica. Pinto, sócio de um club noturno e funcionário bancário, era o responsável por um dos gabinetes com maior destaque no banco, o gabinete de câmbios. Em 1973, tinha Pinto quarenta e um anos. Possuía o tipo de pessoa ideal para esse lugar, magro e perspicaz. Parecia e falava como um típico fidalgo português. Uma tarde de Março, Pinto saiu do banco e foi a casa por voltas das 3 e 30 da tarde e encontrou a mulher deitada na cama, com outro homem. Nem um murmúrio saiu dos seus lábios. Pinto bateu com a porta e mandou-se. Evitando o divórcio, Pinto e a mulher representavam os mesmos papéis de casados, para defenderem a integridade física de um filho menor às suas guardas, e fizeram um pacto de cada um fazer a vida à sua maneira. Falava-se que para colmatar esse desgosto, Pinto tivesse investido no negócio do club noturno, para desanuviar a alma. Constava também que passava parte da noite em comezainas e copos onde o pessoal da noite — ia cear depois do trabalho a restaurantes longe da cidade. A noite fatídica na vida de Pinto aconteceu nove meses mais tarde, quando o seu carro em andamento acelerado teve uma derrapagem e foi contra o muro do mercado da feira, em Vila do Conde, e ali ficou. Era evidente que acusava álcool. No funeral, a pequena capela do cemitério de Coimbrões estava apinhada de gente, desde familiares, amigos e pessoal da noite, juntaram-se para prestar a sua última homenagem. A mãe de Pinto, em estado de choque, não autorizou que o pessoal da noite (principalmente mulheres) fosse despedir do falecido. E mostrou a sua ira ao gritar para elas: «Não entreis aqui! Foi por vossa culpa que o meu filho morreu!» Houve um silêncio tenebroso em volta da capela. A cerimónia acabou pouco tempo depois; as pessoas afastaram-se lentamente do cemitério.

As bocas dos clientes habituais aproveitaram todas as oportunidades para incendiar os tarados e viciados de O Mundo da Noite; continuaram a tirar partido dos casos de P. da Costa, mesmo depois de este ter desaparecido do ambiente. Os patrões de O Mundo da Noite achavam que teriam de fazer qualquer coisa urgentemente para mudar a imagem da capital do prazer. Abraão foi na deixa e fundou um pasquim semanal intitulado O Jornal Dos Traidores, cuja primeira edição era aguardada com enorme frenesim e, Abraão, que era um ótimo contador de histórias com mais de uma dezena de livros publicados sobre histórias de frequentadores da noite, aproveitou o seu bom humor para fazer valer os seus dotes literários. O seu objetivo principal, consistia muito simplesmente, em detetar desgraças dos clientes e das mulheres da noite — as que eram tara-maníacas, as que eram dependentes de comprimidos, as que partilhavam o homem com a amiga, e as que eram histéricas ou lésbicas. O sucesso do pasquim foi tão grande que Abraão se podia dar ao luxo de ter informadores por todo o lado a dar-lhe dicas para um artigo para as colunas das fofoquices. As notícias chegavam às manadas. Abraão depressa compreendeu que a maioria dos frequentadores preferiam saber das bisbilhotices dos outros, ignorando as suas. E logo, uma das vítimas decidiu contestar o jornal; depois de um artigo que se referia a umas brincadeiras de vibrador numa banheira. Ana Cinzenta roubou O Jornal Dos Traidores. Só havia uma tiragem. Outras mulheres da noite seguiram-lhe o exemplo. Fifi fez um escabeche e escondeu debaixo do sofá O Jornal Dos Traidores por a ter acusado de pagar as despesas a um cliente da noite. Dois meses depois, na Residencial da Xangô, Albertinho das Flores, ameaçou O Jornal Dos Traidores por insinuar que tinha drogado uma acompanhante para fazer amor com uma prostituta, jurando não mais voltar ao bar. Foram tantos os clientes-traidores que apresentaram reclamações que Abraão decidiu mudar de estratégia e deixar de publicar fotos das personagens. Depois de Abraão se ter tornado o «rosto de O Mundo da Noite», foi escrevendo história sobre história, a qual escrevia qualquer artigo capaz de provocar a fofoquice, mesmo em casa alheia. Mas os casos escandalosos continuavam a aparecer. Abraão dizia às suas prostitutas e colaboradoras que deviam limar a sua vida pessoal de modo a que qualquer atitude «vergonhosa e suja» fosse evitada. Todavia, ele mesmo era conhecido por se aproveitar de sua posição para ir para a cama com as colaboradoras, enquanto as suas histórias malandras incluíam sempre um bacanal lordesco ou cenas que havia casais na mesma cama.

No mês em que O Bar do Traidor lançou o célebre programa Shows em Vídeo — Julho de 1981 — O Mundo da Noite sofreu outro grande abalo, quando o seu novo empresário Miro, se ressentiu da saúde e a mulher mandou-o para um hospital da cidade. O empregado informou que este sofria de um esgotamento derivado a excesso de trabalho, mas a mulher de Miro, preferiu dizer a verdade, admitindo que o marido era viciado em comprimidos. Três anos antes de Miro se ter envolvido no negócio, experimentara relações anais com camareiras; e usara comprimidos para potenciar o pénis; tornou-se dependente e acelerou o seu martírio ao tomar em excesso. Esteve numa cama internado algum certo tempo, até à sua morte sofrida, ocorrida em anos 80.

Seguiram-se outras desgraças de comprimidos. Em 1982, Cristina, a camareira chamada por Sarampo, era uma «tara-maníaca» por comprimidos. Por doença, foi internada num sanatório por problemas pulmonares. Uma amiga fez chegar a público que o internamento se deveu a uma dieta de magreza, mas em breve, a verdade veio ao de cima.
                                                        
Glória Caída, a rapariga do Cardinal Segundo sofreu um «ataque epilético», quando o médico lhe tentou dar uma injeção, às três da madrugada, e mandou uma cabeçada num funcionário da portaria do hospital. Fugida da enfermaria, tomou a decisão de voltar à boite, mas foi impedida de entrar pelo porteiro, e voltou a fazer distúrbios, desta vez com as autoridades. Acabou por ser presa e mantida na prisão durante três dias, para verificarem se ainda sofria de epilepsia. Na realidade, tinha passado, mas a detenção abriu-lhe portas para outra carreira. Mais tarde, tirou um curso de serviços auxiliares e empregou-se numa unidade hoteleira, em Novembro de 1981.

O Mundo da Noite dançava na corda bamba. O Porto divertia-se com a entrada do fado e o apetite de bebidas alcoólicas, e os frequentadores de casas de diversão, desejavam estar a par de tudo. O barzito de Abraão queria «fofoquice», mas o frequentador exigia «prazer». Em 1976, um jovem desconhecido, de nome Banda Miguel, chamou atenção como dançava o Pop-Music — fazia-o de forma a parecer que estava a escalar muros, ou pronto a desaparecer no muro mais próximo. Na sua dança seguinte, depois de ter ido ao quarto de banho, o brilho voluptuoso dos seus olhos, quando entrou para a pista de dança, não deixou qualquer miúda solta no sofá presa ao seu charme há muito cobiçado. Mas Miguel tinha uma vida particular infeliz; as suas duas amorosas eram fufas — a primeira sacava-o para dar à «mulher-macho», e a segunda só o deixava coisar, quando ele dava uma boa palmada. Numa rusga policial, em que o apanharam a transportar droga numa mala turística para Espanha, mergulhou-o na penumbra, apanhando doze anos de grelha, mas não os conseguiu cumprir, morrendo de abatimento e também de um estômago canceroso. Dezenas de miúdas choraram a sua morte a 13 de Setembro de 1981, algumas até desmaiaram.

Clara do Foxtrot de Miguel, que em 1982 se tornou numa esperança da entrada do fado, quando apareceu como aprendiz no programa radiofónico O Fado Procura. A própria Clara nem acreditava nas suas potencialidades. O seu nome foi badalado pela rádio quando gravou um original de sua autoria. Corriam, na altura, uns versos seus que diziam:                                                           

Gostavas de ir prá cama comigo
Ouvir os meus versos ao teu ouvido?
Ou preferias comigo pecar
Sobre outros versos?
                                             
Não há dúvida de que era uma quadra demasiado provocante. Depois de Gostavas de Pecar Comigo, Clara tornou-se a miúda «Pecar», o protótipo da «atrevida», a jovem rapariga tola que andava de casa típica em casa típica, emborcando uísque e dando gargalhadas sonoras. Para a gerência, o problema de Clara era um pouco como as atitudes que desempenhava na vida particular. Foi acusada num processo de divórcio, quando a mulher do seu dentista alegou que este achava necessário tirar o sutiã e apalpar os seios a Clara antes de a tratar. Clara foi forçada a mudar de dentista por alienar os sentimentos do dentista. Foi também amante de Toni Violas, o homem que a lançou no fado. Chegou a referir-se-lhe como «Clara, um problema-em-cada-hora». Houve caso para isso, quando estacionou num casino em Espinho, jogando a roleta convencida de que aquele era o seu dia de sorte, quando na verdade era o seu dia da desgraça. Acabou por ter de assinar um cheque de 500 contos, sabendo que o cheque era «pró Infante». Na manhã seguinte, aconselhada por Toni Violas, mandou reter o pagamento do cheque por dois dias, a fim de ir penhorar as suas joias e outros valores, e foram recambiar o cheque. Toni Violas e Clara precisaram de economizar em todas as extravagâncias possíveis durante alguns meses depois do incidente. Alguns amigos que tomaram conhecimento da história retratavam Clara como uma fraca jogadora, pintavam a sua manta de «coisinha estrambólica». Depois, surgiu o aparecimento de novas vozes ao fado e a carreira da Clara ofuscou mais profundamente; os seus admiradores curtiram-na como o tipo de miúda filha de um deus menor e o som de uma pronúncia castiça do Norte a sair daquela boquita convidativa como um foguete de ilusões, foi um descalabro. O melhor estava guardado para o fim sob a forma de uma amiga chamada América Manca, uma solteirona de 30 anos que se tornou sua amiga e dama de companhia durante dois anos nas suas idas ao casino. Um cinquentenário apresentável, secretário de embaixada em Gibraltar, chamado Gomez del Noche, apaixonou-se rapidamente por Clara e começou a querer saber alguns detalhes íntimos a respeito de Clara. Levada pelo ciúme, a solteirona Manca tentou aproveitar-se da ocasião e pediu ao espanhol duzentos e cinquenta contos em troca de confidências relacionadas com Clara. Como o espanhol não estivesse interessado, Manca tentou enveredar pelo caminho da sedução. Quando viu as suas intenções goradas, vingou-se, dizendo uma série de casos sobre a vida sentimental de Clara e incluía revelações como de uma vez Clara se entregou a toda uma equipa de empregados de mesa da noite. Como resultado disso, a miúda «pecar» e Gomez Del Noche romperam a relação, e Clara teve um esgotamento nervoso — o primeiro de muitos. Enrolou com o seu admirador Neca Pedrinha, indo viver para um restaurante que ele explorava em Gondomar, onde a abundância de molhos picantes nas comidas puxaram pela pinga que lhe causaram gorduras a mais e outro esgotamento nervoso. Passou a maior parte do tempo da sua vida em casas de saúde. A sua carreira de alternadeira terminou aos vinte e oito anos.

A seguir ao seu apagamento, surgiu Luísa Rara, era dez anos mais velha que Clara e a sua vida amorosa não era menos acanhada, embora mais contida. Reaparecida em 1980, depois de uma ausência prolongada em França, Rara foi apresentada aos noturnos como «a Madame Vamp» antes da reaparição. Em 1981, ao apresentar no palco do Lord com a sua amiga Susana Bilontra, durante a hora do jantar, um número de cabaré chamado Vuelven Las Camareiras, esteve debaixo de olho de uma certa clientela, apaixonada pelo seu charme. Conseguiu em seguida chamar a atenção com a sua pronúncia franciú, ao carregar nos erres. No seu primeiro flirte, preferiu uma das suas frases clássicas — quando a cozinheira diz: «Oh, mulher! Tiveste cinco dias na cama com um homem, a fazer o quê?» responde (com a sua provocante voz sensual): «Oh, mulher! O que é que tu achas que eu estava a fazer? A foder!» Tinha o prazer de elevar o sexo ao alto. Clientes e empregadas do bar exultavam quando expressava: «... gosto de um homem que ao fim da primeira, esteja preparado para a segunda». Depois de uma adaptação ao ambiente (1982) tornou-se badalada pela forma como chamava o barman Fernando «Ferrnand, Ferrnand!» Os seus clientes eram do melhor patamar que havia no métier e levaram o Lord a um crescimento global. Mas as insinuações incendiaram o bar e deram origem a uma maior quantidade de frases como:
                                                   
        Rara: Gosto que homens bem cheirosos me convidem a jantar.
        Cliente: Na verdade, não sou bem-cheiroso.
        Rara: Na verdade, também ainda não está malcheiroso.    

Quando o seu rompimento com Tito R. foi constado no bar, um grupo de clientes à bica fez a sua manifestação com uma boca: «Sou o próximo?» Tiveram de os calar. Para o flirt seguinte, o barman Fernando empurrou o separado Filipe (Também ele imigrante de França), para pagar-lhe uma bebida na mesa. Mais tarde, no relacionamento com Filipe perdeu, pelo menos, dois dos melhores clientes; o que a levou a expressar: «Nem sempre se pode abranger o céu e a terra» e «Mais vale um homem em casa do que dois na rua». Finalmente, obrigada a mudar de ares, devido ao avanço da idade, e ao aparecimento de novos rostos, voltou às origens. Aos quarenta e cinco anos, um flirt de esperança, que apareceu na hora H, esteve na origem de arrumar as trouxas e fugiu pra terra. A desgraça provocada por Rara passou-se toda no noturno. Era conhecida por amar homens músculos e engravatados, mas era discreta em relação a eles.

A outra imagem de vamp de O Mundo da Noite, Suzana Bilontra, foi imposta a indiscrição devido ao peso do cliente, Amadeu (apenas), comerciante de produção de galináceos da «galinha maravilhosa», na aldeia, a Norte do Porto. Amadeu era um parolo casado de falas mansas que tratava as mulheres como se fossem dulcineias de um colégio de meninas desamparadas. Tinha-se perdido perdidamente de amores, com todo o romantismo por Susana, constando que tentou divorciar-se quando a conheceu. Em 1978, depois da sua estreia em grande nas lides artísticas na boite-barco de Azurara, Amadeu levou Susana ao seu apartamento privado e enquanto bebiam uísque junto à janela, conversaram pormenorizadamente sobre investimentos. Mais tarde, Susana contou ao seu patrão por que motivo gostava de Amadeu: «Paga uns champanhes e dá a entender que sou uma mulher inteligente. É diferente dos outros e não fala de sexo, sexo e só sexo». Dois meses depois, Amadeu e Susana tornaram-se símbolos de O Mundo da Noite, a «morena irresistível». Chamou a atenção sobre si num espetáculo Vuelven Las Camareiras, com Luísa Rara, quando ambas dançavam o can-can; tornou-se famosa, em 1982, quando foi cartaz no Lord. Os seus vestidos exuberantes eram decotados e parecia-se como uma star e falava como uma amante de um sacador. Era, realmente, inteligente e uma deliciosa companhia. Seis meses depois de aceitar uma proposta de trabalho para Las Palmas, em meados de 1982, Amadeu arruinou-se com o negócio dos galináceos, no seu enorme aviário, lá na aldeia. Desabafou um comentário:



Infelizmente esta é a única forma de expressar o mal que me vai na alma, a paixão da minha vida.
                                                                                                                                            Amadeu.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                      

Monday, December 10, 2012





                            
          
      FERNANDO ABRAÃO E RATAZANA
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ESTE LIVRO CONTÉM          HISTÓRIAS  SOBERBAS


Edição nº 1.144
Reportagem dos Maus-Olhados

Sai à segunda-feira

Diretor Ratazana


O JORNAL DOS TRAIDORES
DIZ QUE AS PROSTITUTAS FAZEM UNS
«ARRANJINHOS POR FORA».
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            ORIGINAL
            _________   
SEXO........ DINHEIRO......
ÁLCOOL...  VÍCIOS ..........

 

  A História do
«Morto-Vivo»
Uma aventura torna-se num
Pesadelo!!!



                                  






         

Saturday, November 10, 2012


BREVEMENTE...

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´O MUNDO DA NOITE 


«O JORNAL DOS TRAIDORES DIZ QUE AS PROSTITUTAS FAZEM UNS ARRANJINHOS POR FORA»




                     ___________NÃO PERCAM!...

___________ ESTA SAGA CONTÉM HISTÓRIAS SOBERBAS!...



                                                      2012


Wednesday, September 19, 2012


CONTOS DE RATAZANA
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O Vendedor das feiras e os clientes que o adoravam




Mário foi um dos grandes vendedores de feiras dos anos 90. A sua imagem esteve ligada a uma cigana que o incentivou para as vendas de tecidos e roupas para vendedor de porta a porta. Em 1964, a cigana, convenceu-o a mudar-se para ir viver com ela numa parte de casa onde vivia, nas Devesas. Fez questão que ele se dedicasse ao ofício e deixasse de vagabundear. Mário prometeu a si mesmo seguir essa via.
 Mário começou a carreira nas Devesas, Vila Nova de Gaia, em Abril de 1965, e era um dos raros vendedores brancos que foi apelidado de «Cigano». Era um homem atrevido, que falava alto, e teve uma preparação escolar mínima (mas ninguém o batia em contas) até ir para a rua aos vinte e sete anos. Aos trinta e dois anos, tornou-se vendedor de uma pequena banca na feira de Santana, Ponte da Pedra, e começou a desenvolver o seu talento como vendedor de feiras. Era acima de tudo um vendedor: preferia estar de pé ao lado de um furgão ou numa banca do que num estabelecimento comercial; falava com uma tal variedade de gestos e expressões faciais que as pessoas que o ouviam pensavam estar no circo. Numa ocasião vendeu tão bem um corte de fioco que um comprador ao ir buscar o fato na lavandaria pasmou e gritou: «Céus! Mingou!» No que respeita ao seu aspeto físico, Mário não era nada um homem atraente: tinha um rosto estreito, lábios finos e cabelos escassos. Mas os clientes da feira achavam-no elétrico e as mulheres adoravam-no. Os seus métodos de trabalho continuavam a ser os mais simples que mais rendiam; que «mais facilmente venderia uma peça de roupa do que pregaria um botão numas calças.» Passados três anos, as suas vendas atraíam uma clientela superior a quinhentas pessoas, e tinha o maior espaço de feira do Norte de Portugal. 
 Em 1969, a simpática e popular cigana separou-se de Mário; após uns anos de vida conjugal; tinha dado à luz um filho. Na altura da separação fez valer a Mário que se desobrigasse da educação e sustento do filho um desejo que o surpreendeu. Tinha tomado nos ombros esse encargo. Mário sentiu-se numa situação fácil. Depois disso, deixou de aparecer na estação das Devesas e, não muito tempo depois, alugou uma casa em S. Mamede de Infesta e trocou de carro, a vender as suas novidades a novos fregueses. Isso foi muitos meses antes de ter criado amizade com a empregada fabril, chamada Benilde. Quando Mário se fixou em S. Mamede de Infesta, as suas vendas tinham atingido proporções fabulosas. Se alguém lhe tivesse dito que a sua vida chegaria a esse ponto, ele não se acreditaria de forma alguma. Em 1970, Mário envolveu-se a sério com a jovem empregada fabril, de olhos risonhos, Benilde — mais nova um par de anos — a paixão entre eles foi tão intensa que consumiram o amor antes do padre os ter unido pelo matrimónio. Dois anos depois do casamento, Benilde presenteou-o com dois filhos.
 Á medida que os anos passavam, Mário foi mudando constantemente de local, e o vendedor limitado, incansável, conquistador da sorte, tornou-se revolucionário que defendia os vendedores e se manifestava contra os aumentos dos alugueis no espaço das feiras. Por esta altura comprara o seu primeiro furgão, mas este tornava-se um pouco espaçoso, que pensou comprar um camião. Insistia que o seu segredo do negócio deveria ser respeitado — chamava-lhe «lábia de papagaio» indo buscar a expressão à observação de aves. Durante mais de trinta anos, Mário mantinha que, apesar de tudo, preferia a venda ao ar livre ao estabelecimento e, com a ajuda da mulher, conseguiram obter uma conta bancária, de fazer inveja a muita gente. Poucos anos depois, Mário mudou-se com a família para uma moradia majestosa, estreada em primeira mão, e decorou-a com tudo o que há de melhor. Depois disso, apareceram várias divergências entre o casal em diversas ocasiões, na respetiva moradia ou nos «locais da feira.»    
 Mas a delicada e formosa Benilde não era talhada para as casas grandes. Isso começou a criar-lhe um estorvo. Mário tinha muito mais gozo em viver na casa independente do que viver num andar com condomínio. Era evidente que tinha tanto gozo, que Benilde começou a pegar-se com ele por tudo e por nada. A dificuldade de Benilde tinha chegado ao limite. Logo a seguir, Mário viu uma oportunidade de vender a moradia, e não esteve com meias medidas. Na altura própria tratou de ver imóveis e decidiu-se pela compra de um amplo andar, situado no centro de S. Mamede Infesta. Foram então morar para o amplo andar e a harmonia voltou entre eles. Mas Mário tinha problemas com os filhos que apoiavam a mãe em todas as situações. Daí que, as escaramuças entre eles não acabassem de vez. No Verão desse ano, Benilde foi passar os dias quentes — como era seu hábito — a casa de sua filha, na Vila da Feira. Mas na semana seguinte, atormentada pela consciência, voltou a S. Mamede de Infesta e discutiu azedamente com Mário. Mário ficou profundamente abatido, A sua reação inicial, compreensivelmente, foi tentar «deitar água na fervura», mas a mulher antecedera a rejeição, exigindo a separação e a divisão de partilhas. Na manhã seguinte ainda tinha a cabeça confusa quando foi para o escritório do advogado. Admitiu mais tarde que o seu maior desejo era encontrar um volte face para a mulher. Decidiu que «... ela excedeu-se como acontece num momento de alarido. Acho que não é uma pessoa que atue independentemente. Penso que quarenta e três anos de casamento pesam na sua consciência. O melhor será dar tempo ao tempo...» Mário decidiu ainda que não iria fazer a vida negra à mulher, não queria de maneira algum alvoroço, mas que esperava que fosse a própria Benilde a reclamá-lo que tinha saudades dele.
 De regresso ao seu quarto de solteiro, em S. Mamede de Infesta, Mário sentiu uma espécie de êxtase; nas três semanas seguintes «vagueei pelas ruas, mal reconhecendo o meu rosto nos espelhos das montras.» Então o silêncio venceu-o. Tinha de contar a alguém. Numa tarde, um amigo de longa data — um homem chamado Abraão — encontrou-o numa tabacaria e Mário levou-o a um café próximo e teve um desabafo sobre a «vida cruel» que lhe afetou o seu lar. Quando voltou a estar com Abraão, no Centro Cultural da Centralidade, na sala a sós, confessou-lhe em pormenor a situação real. Em seguida Mário teve uma recaída física e mental, quando andou por aí a monte. Mais tarde referiu-se-lhe como «um problema de solidão», e parece não haver dúvidas de que não se adaptava à vida de solteiro. Ficou em estado de grande angústia. Os filhos não lhe falavam — passava a maior parte do tempo no Centro Cultural da Centralidade, que se tornou o seu ponto de encontro — e num dia Mário foi ao Jardim de Arca d´Água e conversou com Abraão no banco do jardim, até chegar o autocarro, que o levou a casa. Mário foi então reunir-se com o advogado, que preparava os documentos para as partilhas, ficando ele com uma parte substancial de dinheiro (45.ooo€) e ela com o amplo andar. Seguiram-se idas e voltas de um lado para o outro, entre Mário e Abraão que, apesar de tudo, não o deixava de o influenciar para tentar a todo o custo a reconciliação.
 A 15 de Abril de 2011, Benilde mandou-lhe uma mensagem, pedindo-lhe que a viesse ver. Mário tinha nessa altura sido contatado pelo advogado sobre as datas para o reembolso da partilha, mas pediu para deixar o assunto para outro dia. Tinha ansiedade de rever o «amor da sua vida», e apressou-se a ir ter com ela. Achou-a mais formosa, no início da conversa, que parecia mais corpulenta do que estava à espera — mesmo quando lhe mostrou os sorrisos todos. Em breve se mostraram bem-humorados — de facto, Benilde havia-lhe proposto que quando Mário quisesse, podia voltar lá para casa. Sem dúvida que Mário disse a si próprio que tentava unicamente evitar a separação e preservar o amor de Benilde. Mas quando Benilde se recusou deixar Mário ir dormir para à sua cama e enviá-lo para o sofá, Mário entrou no buraco.
 Uma semana depois, Benilde foi passar uns dias de férias para casa da filha, e pediu repouso absoluto. Ficou furiosa quando Mário recusou aceitar a sua oferta e, em vez disso pediu ao advogado que andasse com o processo para a frente. Benilde ficava cada vez mais aborrecida e chateada. E, finalmente, fez o que Mário sempre temeu acontecer; descarregou todo o tipo de conversa, com o respetivo «calão». O resultado foi tão dramático como tinha esperado. Agora tudo voltava à estaca zero. Mário passava parte do tempo nas conversas com o advogado e o mesmo fazia a sua rabugenta, Benilde. Mário defendeu a sua posição de que nunca, em tempo algum, tinha sido mau ou violento para a mulher, mas reconhecia-se culpado em permitir que o filho o não gramasse até por parte da filha. Seis meses mais tarde, a reunião conjugal Benilde-Mário começou às duas da tarde, e demorou menos de uma hora. (com base em nova reconciliação) Todos os amigos mais próximos queriam saber se Benilde era fiel e Mário um conflituoso. Mário que desde sempre tinha estado mais ou menos ao lado de Benilde (pelo menos ao tentar evitar o descasamento), ficou agora a roer de indignação. O próprio clã do Mário aumentou-lhe os problemas ao insistir na desunião do cônjuge. Mário ficou a ferro e fogo com os filhos. Os advogados deliberaram durante oito dias, mas foram incapazes de conseguir um consenso total. No entanto, as reuniões ainda não tinham acabado. Mário acusou Benilde dela não querer ir ao registo pôr a assinatura no papel. Depois, Mário exigiu que a partilha fosse liquidada, ou por troca, a reconciliação assinada. Benilde acabou por aceitar o ultimato como um bem menor, e Mário saiu da reunião conjugal como um homem feliz. Mário correu à morada antiga buscar as suas roupas e coisas do uso pessoal para a sua nova residência. Quando se fixou de vez, dois meses mais tarde (em Junho de 2012), o seu andar retardado de monge era agora o andar dum maratonista.     
 Lançando um olhar retrospetivo, é fácil concordar com Abraão que escreveu no seu blogue: «As desavenças deixaram feridas nas pessoas e, desde então, tem vindo a deixar, mas poucos chegaram ao ponto a que chegaram Benilde e Mário.»



Monday, August 20, 2012






CONTOS DE RATAZANA
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17. Episódio


Como o luto dos amigos do Faísca enlutou a povoação. Como os amigos se foram embora sozinhos


A morte é um caso pessoal que provoca dor, agonia ou desespero. Os enterros, por um lado, são funções sociais. Imagine-se ir a um funeral sem primeiro dar brilho aos sapatos. Imagine-se estar-se junto da campa sem se levar o melhor fato escuro e vestido a melhor camisa branca, primorosamente adornada por uma gravata preta. Ah, também não pode esquecer-se, de levar flores para um funeral sem fazer acompanhar o ramo de um cartão para se provar que se fez a atitude correta. Calcule-se o choque se, nos velórios, não se usasse uns bancos de madeira ou umas cadeiras para as pessoas se sentar, mesmo de assento duros. Não. Moribundo, um homem pode ser amado, odiado, chorado; mas, uma vez falecido, passa a ser o principal ornamento de uma celebração social e formal. O Faísca estava morto há um dia; e já deixara de ser o Faísca. Embora o rosto das pessoas estivesse sentidamente abatido pela tristeza, havia alvoroço nos corações. A Comarca prometera um funeral simples a todos os seus filhos nascidos e criados na terra que o desejassem. O Faísca foi o primeiro sem-abrigo da terra a morrer e o povo estava pronto a pôr em marcha as promessas da Comarca. Já se tinha informado as entidades, e o corpo do Faísca tinha sido embalsamado a custo da Comarca. Já se tinha tirado os despojos da casa do Faísca e entregue aos amigos, incluindo o cão, e feito uma limpeza à casa que fora colocada, à espera de novos inquilinos. Já fora redigido o adeus final referente a quinta-feira:

      «Faísca, foste um carola da gente. Um camaradão. Partes como um guerreiro.»

Na noite do segundo dia, os amigos estavam reunidos na casa do velório. O choque e o vinho tinham passado; estavam exaustos, visto que, em toda a Comarca, só eles, os amigos, é que mais tinham amado o Faísca, que mais tinham recebido do seu coração, só eles, é que faziam parte da sua família. A impaciência que se lhes esvaziava do corpo era frenética. Amaldiçoaram o dia. Pela porta do velório viam alguns moradores afastarem-se dali. Os amigos estavam sentados, de mãos dentro dos bolsos das calças, torturados pelo seu mau dia. Todas as ideias tinham sido postas em discussão. Pela primeira vez na sua vida, o Pipocas descera ao absurdo.

— Cada um de nós podia, esta noite, ir engatar uma gaja — sugeriu.

Sabia que era uma proposta doida, pois nessa noite todos os sentidos estariam vocacionados para o luto. Era bronca certa engatar uma gaja.

— O Motel do Pedaço às vezes dá dormida às gajas soltas — disse Very nice.
— Já lá estive — retorquiu Pascácio. — Desta vez têm meia dúzia de gajos, mas nem uma gaja.

De todos os lados não havia volta a dar-lhe. Nino Cardoso entrou com o seu novo lenço vermelho enrolado no pescoço, mas o ambiente que encontrou fê-lo rumar de volta dizendo já volto.

— Se tivéssemos mais uns dias à nossa frente, podíamos ir à Senhora do Porto — disse o Pipocas sem cerimónia—, mas o funeral é amanhã. Temos de nos concentrar nas horas. Não podemos deixar de ir ao funeral.
— Então? — quiseram os outros saber.
— Podemos ir visitar as nossas amigas, enquanto elas ainda estão de pé. Há sempre uma pinga para oferecer. Podemos deitar-nos com elas e dividi-las por todos, como fez o Cristo.

Os amigos olharam para o Pipocas com admiração. Sabiam como o seu fino traquejo tinha estado a pensar todas as soluções. Mas a presença no funeral era importante. Era a melhor homenagem que se pode prestar a um amigo. Deixaram as coisas neste ponto, mas sentiam que não tinham hipóteses. Durante a noite vaguearam pelas ruas. De manhã, a campa no cemitério que iria receber o corpo do Faísca estava quase coberta por montes de ramos das mais bonitas flores dadas pela maioria dos moradores do Marco de Canaveses. Quis a natureza que o dia de quinta-feira, o tempo estava bonito. O Sol raiou como se nesse dia fosse haver um piquenique. Os pássaros voaram através do espesso monte para as grandes árvores e pinheiros. As lojas do comércio fecharam meia portada em sinal de respeito pelo falecido. O barbeiro pôs um letreiro na janela: «Volto daqui a pouco», e foi para casa equipar-se para o enterro. Um camião entrou na rua carregado de pipas de vinho. O Papagaio pintou o casco e mudou-lhe o nome para «Faísca». José Gabardines, o guarda-noturno, prendeu um casal de motoqueiros no trequibrec, deixou-os ir embora e bebeu duas ginjinhas. Os amigos do Faísca acordaram melancólicos e levantaram-se da sala, improvisada de camas, na casa do Pipocas. No lugar do Faísca estava apenas o cão, de orelhas em baixo e olhar triste. O Sol aqueceu com entusiasmo e colou no chão as delicadas sombras das teias das aranhas.

— O Faísca ficava tão feliz em manhãs como esta — disse Catanada.

Depois de terem ido à ravina, os amigos sentaram-se por uns momentos, como de costume, no quintal e elogiaram a lembrança do amigo. Honestamente, recordaram e anunciaram a virtude do Faísca. Honestamente, esqueceram-se dos seus defeitos.

— É ágil — disse Pascácio. — Ágil como uma lebre. Era capaz de correr as ruas para vender um santinho.

Contaram pequenas histórias acerca do Faísca, da sua bondade, da sua lealdade, do seu bom coração. Em breve se fez horas de irem para a igreja. Atravessaram a rua albergando uma roupa de cada cor. Cheiraram interiormente tanta Água-de-Colónia dos outros que até aspiraram. Do seu lugar de observação viram o grupo coral da igreja interpretar uma música missal. O sonoro oh-oh das gargantas dos coristas encheu de ânimo o coração dos amigos do Faísca. Viram o caixão ser colocado em cima da carrinha fúnebre e ornamentado pela bandeira dos Sem-Abrigos que o cobriu. A carrinha fúnebre movimentou-se. Atrás, num passo imponente, caminhavam os homens e mulheres aprumados e de olhar sério. Toda a gente estava lá, Xanana Maluca, a Senhora do Porto, o Papagaio e a sua rechonchuda cara-metade, Nino Cardoso, o fugitivo, Roque, José Gabardines e o Barbeiro. Enfim, todos, os que na Comarca valiam alguma coisa e também os que não valiam coisa nenhuma. Durante o percurso, os amigos foram pelo passeio fora, um tanto colados ao muro, sustentados pelo heroísmo. Foi uma cerimónia breve e simples. Baixaram o caixão; as pessoas deitaram os olhos na terra. Very nice, baixou a cabeça e desatou a chorar e, ao ouvi-lo, o Vigília atirou a cabeça para trás e pôs-se a uivar. O Pipocas ficou orgulhoso do seu novo companheiro! A cerimónia acabou depressa demais; os amigos afastaram-se rapidamente para que as pessoas não os topassem. Ao irem para casa passaram pela adega do Papagaio. Catanada entrou pelo postigo aberto e trouxe duas garrafas de uísque. Depois, dirigiram-se lentamente para a acolhedora casa do Pipocas. Encheram com cerimónia as tijelas e beberam.

— O Faísca gostava da pinga — disseram. — Era feliz quando bebia uma boa pinga. 

A tarde passou e a noite chegou. Com o uísque bebido levou-os a navegar pelo passado. Às sete e pico, um tímido Nino Cardoso entrou, trazendo uma caixa de cigarrilhas que lhe tinham oferecido. Os amigos acenderam as cigarrilhas e abriram a segunda garrafa. O Pipocas tentou entoar algumas notas do tango «Adeus Muchachos...» para ver se a voz estava nos trinques.

— Hoje a Xanana vinha sozinha — disse Catanada especulativo.
— Talvez não fosse mal de nossa parte irmos cantar umas cantiguinhas tristes — opinou Very nice.
— Mas o Faísca não gostava nada de cantigas tristes — retorquiu Pascácio. — Do que ele gostava era daquelas músicas pimba, que as letras falavam de coisas atrevidas.
   
Seriamente, todos exprimiram a sua concordância, com um aceno de cabeça.

— Sim, para as músicas pimba não havia pai para ele.

Pipocas tentou o último verso do «Adeus Muchachos...» e Catanada ajudou-o um bocado; os outros acompanharam-no na parte do fim. Terminado o tango, o Pipocas tirou umas trincadelas numa maça, mas a maçã caíra-lha ao chão.

Very nice — disse —, chega aí o tambor para a gente fazer mais acompanhamento?

Estendeu a mão e atirou fora o caroço com um piparote. O caroço engrossado foi cair em cima do carrito que estava encostado à parede. Levantaram-se para segui-lo com os olhos; mas voltaram a sentar-se; tinha-lhes acorrido um pensamento cinematográfico. Fitaram-se nos olhos e exibiram o sorriso sabedor de homens para quem a fé e a morte não existem. Olharam, numa fantasia o carrito imóvel e inclinado para o lado. E os homens continuaram a sorrir à medida que a ideia e o rápido pensamento era apanhado.
Assim vai ser, ó malandros amigos do Faísca. O elo que vos unia, rompeu e perdeu o poder. O carrito passara para as mãos do Pipocas. Agora este objeto da amizade sincera, este excêntrico carrito de bugigangas e ganha-pão, de amor e trabalho, parta como partiu o Faísca, num último, honroso e significativo gesto de solidariedade. Sorriam. Então os amigos levantaram-se e, como se estivessem a viver o sonho, pegaram no carrito e saíram para a rua. Catanada, que tirava proveito de toda a sua habilidade, ligou o motor e pô-lo a trabalhar. Os amigos sentaram-se nos lados. O Pipocas tomou conta da condução. O carrito desceu a rua em segunda. O toque da buzina chamou atenção a um monte de gente do Marco de Canaveses. Estavam fascinados, ao ver o carrito transformar-se numa carripana de passeio e turismo. Depois, o carrito dos amigos deu uma volta, afastando-se. A população do Marco de Canaveses dissolveu-se no escuro da noite. Os amigos do Faísca iniciaram a subida ao monte com o carrito. Ao chegar ao cume, pararam. Olharam-se uns aos outros estranhamente e em seguida viram o carrito voar até aos baixos como um pedregulho e, saltitando, escaqueirou-se aos bocados contra as árvores do monte.

Instantes depois, voltaram-se e saíram dali lentamente.



Monday, June 18, 2012



        
CONTOS DE RATAZANA
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16. Episódio



Da tristeza de Pipocas, para a noite na casa do fado-vadio. Como o Faísca foi notícia


Depois do seu delírio, o Pipocas voltou para casa e para os seus amigos. Vinha demasiado cansado. A sua fúria fora tocada pelos dedos ásperos da violenta experiência. Começou a viver de uma maneira sóbria, levantando-se da cama tarde e a más horas, só saindo de casa depois de comer para ir para a loja. As conversas zumbiam à sua volta, ele ouvia-as, mas não se ralava. A Xanana Maluca teve uma rápida e cobiçada rede de amantes e em Pipocas não se produziu a mínima emoção. Quando, uma noite, Artur Bófia se enfrascou e se meteu no apartamento na cama dele, foram Catanada e Pascácio que tiveram de o tirar de lá, tão sóbrio o Pipocas se encontrava. Quando Simão Simãozinho, emborrachado e com uma garrafa de vinho, festejou uma vitória do Benfica, já muito fora de época, partiu um vidro e foi de cana, não conseguiram sequer atrair o Pipocas para a discussão habitual do caso, embora os pormenores fervilhassem ao seu redor e o seu parecer fosse entusiasticamente solicitado. Não tardou muito que os amigos não começassem a ficar preocupados por causa dele.

— Está pesado — disse Catanada. — Está feio.

Very nice sugeriu.  

— Num mês, o Pipocas gozou tudo o que tinha para gozar numa vida toda. Fartou-se de malhar e fartou-se de prazeres.

Em vão os amigos tentaram tirá-lo da gruta da sua sobriedade. Ao fim da tarde, no quintal, contavam as histórias mais bizarras que conheciam. Narravam os pormenores do quotidiano do Marco de Canaveses e Catanava pesquisava todas as freguesias do concelho à procura de notícias e trazia para o quintal tudo quanto tivesse o mínimo interesse para o Pipocas; mas nos seus olhos lia-se a idade e a moleza.

— Tu não andas fixe — insistiu de novo Very nice. — Há qualquer problema dentro de ti.
— Não — replicava o Pipocas.

Repararam que deixava as moscas pendurarem-se nos cabelos durante algum tempo e que, quando as enxotava, o fazia desajeitadamente. A pouco e pouco, a boa harmonia, a risada pronta foram desaparecendo da casa do Pipocas e precipitaram-se na larga fossa da sua falta de ação. Oh, que triste dava ver esse Pipocas que lutara por causas perdidas ou de qualquer outro género; esse Pipocas que era capaz de beber até mais não; esse Pipocas que respondia ao apelo do amor como um leão enfurecido! Agora passava o tempo sentado na loja, de óculos gucci, os joelhos esticados para a frente, os braços caídos, a cabeça erguida para a frente como se nela houvesse um escuro e gordo pensamento. Nos seus olhos não se lia o prazer, nem o desgosto, nem a alegria nem a dor. Triste Pipocas, como a vida te abandonou! Aqui estás sentado como o primeiro homem antes de a balança atingir o seu máximo de cento e trinta quilos; e como o último, depois de a balança se ter avariado. Mas cuidado, Pipocas! Não estás só. Os teus amigos estão atados a esse teu estado! Olham para ti por um olho fechado. Vê como eles sofrem! Acorda para a vida, Pipocas, para que eles vivam de novo! Foi assim, mais ou menos, embora não em palavras tão bonitas, o que Catanada disse. Depois, erguendo um jarro com chã de penas de melro, deu-a ao Pipocas.

— Bebe lá — disse —, limpa-me essas tripas.

Pipocas pegou no jarro e bebeu o chá. Em seguida voltou à sua preocupação e tentou de novo encontrar o seu ritmo emocional.

— O que é que te dói? — perguntou Catanada.
— Não me dói nada — respondeu o Pipocas.
— Estás doente, Pipocas?
— Não.
— Então o que é que te faz tão mole?
— Sei lá — disse o Pipocas. — Sinto-me bem assim. Não quero fazer nada.
— Talvez fosse melhor levarmos-te a um médico. Que dizes?
— Já vos disse que não estou doente.
— Então olha — exclamou Catanada. — Vamos dar uma festa em tua honra lá na adega do Ratazana. Todos os moradores vão estar presentes. Temos guitarristas, fado-vadio, comida e vinho à discrição! Há para ai umas dez ou vinte sardinhas a cada e pimentos. Não queres vir?

Pipocas respirou fundo. Voltou-se por um momento para o limoeiro alto e carregado. Talvez ele murmurasse às folhas do limoeiro uma promessa escondida. Voltou-se rapidamente para os amigos. Havia febre nos seus olhos.

— Claro que quero ir. Despachem-se. Tenho fome. Há lá raparigas?
— Montanhas delas. Todas as raparigas.
— Então contem comigo.

Catanada vazou-lhe outro jarro de chá e observou-lhe o rosto enquanto o líquido desaparecia pela goela abaixo. Os nervos ganharam uma certa energia. Lá do fundo, o velho Pipocas emergiu por um momento para a vida. Matou uma mosca com um sopro digno de um mestre. Lentamente, um sorriso vincou no rosto de Catanada. Mais tarde reuniu os amigos todos, Pascácio, Very nice, Artur Bófia, o Faísca, João-Ninguém e Nino Cardoso. Levou-os para os anexos para o fundo do quintal.

— Dei-lhe dois jarros de chá de penas de melro e fez-lhe bem. Do que ele precisa é de muito chá e talvez de um convívio. Onde é que se pode arranjar convívio?

Procuraram mentalmente todas as hipóteses em Marco de Canaveses, como cães perdigueiros numa corrida, mas não havia caça. Estes amigos eram amigos verdadeiros, capazes de tudo. Tinham amor por Pipocas. Por fim Very nice disse:
 
— No Ratazana canta-se agora o fado-vadio.

A mente dos amigos saltou como uma esfera, à procura de alguma coisa com curiosidade. Passaram-se alguns minutos antes que as suas baralhadas imaginações pudessem concretizar-se à alternativa.

— Mas, é uma ideia — raciocinaram eles em silêncio. — Uma noitada não era assim tão má... mas só uma noitada.

Os rostos revelavam o modo como, no interesse do Pipocas, os medos iam sendo vencidos.

— Vamos a isto — disse Catanada. — Amanhã vimos do trabalho e à noite levamos ao fado-vadio o nosso amigo Pipocas.

Quando, no dia seguinte, o Pipocas se levantou da cama e percorreu a rua em direção à loja, o seu optimismo estava em alta. Entrou na loja e sentiu-se, fino. Será uma mudança, Pipocas? Liberta-te do azar que te persegue? Já sentes os prazeres da vida? Sim. O Pipocas continua a ser o mesmo como o era antes umas semanas. Tal como, Marco de Canaveses, está bem diferente. Logo de manhã bem cedo espalhou-se o boato. «Os amigos do Pipocas vão ouvir o fado-vadio.» Falava-se neles na rua, em todos os lugares, e todos se apressavam a comunica-lo: «Os amigos do Pipocas vão ouvir o fado-vadio.» Fizeram-se alguns comentários de pouca valia. Havia meses que não acontecia nada de tão excitante no Marco de Canaveses. Durante toda a semana nem uma só pessoa se lembrou de falar em Xanana Maluca. Só ao fim da tarde vieram a lume notícias dignas de crédito, mas vieram de uma rajada.

«Vai os amigos do Pipocas ao fado-vadio.»
«Todo o mundo vai.»

Na sala da adega começaram a surgir modificações. O dono da adega limpou o pó do microfone e escolheu o guitarrista Pedro Simões e o viola Nel Garcia, os mais badalados que haviam. Saltara um raio e o Marco de Canaveses era um riacho. É que era uma mesa para sete amigos que iam dar uma festa em honra do Pipocas! Dito isto, até parece que o Pipocas só tinha sete amigos! A cozinheira desceu ao pátio e assou um cabaz de sardinhas e pimentos com tomates. Na ementa incluía também uma grande tarte de cereja. Por todo o Marco de Canaveses a guitarra e a viola fizeram ouvir os seus sons, ao serem experimentados.

«Rádio Marquinho e as notícias! Mais notícias da adega do Ratazana. Vão dar fado-vadio. Estão prontos. Serão pelo menos quinze escudos por pessoa. Vejam só se não vale a pena quinze escudos com vinho à disposição.»
     
O Papagaio não tinha garrafas para tanta gente. Toda a gente pelo mínimo bebia uma garrafa de vinho. O próprio Papagaio, apanhado na corrente da situação, disse à mulher:

— Talvez a gente lá vá fazer companhia a ele. Levo algumas garrafas para os meus amigos.

À medida que o dia escurecia, nuvens de entusiasmo caíram sobre o Marco de Canaveses. Fatos e vestidos guardados durante algumas épocas foram tirados dos cabides e pendurados ao ar fresco. Estavam cobiçados pelo caruncho, cheiravam um cheiro a naftalina. E o Pipocas? O Pipocas estava sentado como um homem meio cheio de gás, remexendo-se por tudo e por nada. Bem ele deu conta de que nessa noite a adega do Ratazana estava repleta de moradores do Marco de Canaveses. Bom do Pipocas! Pelo catorze pares de olhos observavam a porta da entrada. Antes de aparecer a comida levantou-se, ajeitou-se e saiu da sala em direção do quarto de banho. Mal voltou à mesa, apareceu a comida. Pratos de batatas, travessas com sardinhas a fumegarem, saladas de tomate e alface, tartes de cerejas que eram uma delícia! E veio a pinga, garrafas e garrafas dele. Martins desenterrou um pipo de cachaça do seu terreno de batata podre e levou-o para o oferecer a Pipocas. Por volta das oito os amigos começaram a puxar pelo ambiente, alegrando-o e incentivando-o, nas larachas. Riram e o cansaço largou-os. Estavam tão felizes que as lágrimas lhes chegaram aos olhos. As luzes apagaram-se e toda a gente se acomodou nas cadeiras. Depois, toca de acender velas e erguer os olhos para a cantadeira. E era ver os homens e as mulheres a fixar sem intermitentes os olhos no palco.

Mamã Rio, uma voz operária, avançou para o meio da sala e colocou-se ao meio da guitarra e da viola, cantando uma letra cheia de fado-vadio-puro. Tonito, esse reles indecente, espevitou a garganta soltando um grande berro e o dito: «Ah, leoa!» Berros, boas cantigas, vozes desgovernadas de homens e mulheres, a algazarra que todos em alvoroço faziam por toda a sala. Um carro da polícia apreensivo subiu a colina vindo do Marco de Canaveses, e abeirou-se da adega.

«Oh, é só um convívio! Claro que bebemos uma pinga de boa vontade. Não partem a cabeça a ninguém.»

A noite passou tensa de novidades. Devia haver algum motivo, alguma confusão. Homens puseram-se à pancada, lutando uns contra os outros. Mães deram instruções aos filhos e incentivaram-nos a ir à luta. Nunca houve tanta pancadaria. Atrás das mesas havia recém-fadistas, esperando ansiosamente as últimas pancadas. E as pancadas chegaram.

«Pascácio deu uma cabeçada no cliente por este fazer barulho.»
«Ratazana deu um pontapé no cão do Faísca.»

 Pancadaria.

«O cão voltou a atacar.»
«Catanada anda de mau humor.»

Fizeram-se algumas queixas de pouco relevo. Havia muito tempo que não acontecia nada de tão excitante no Marco de Canaveses. Quando os ânimos acalmaram, na adega do fado-vadio, ficaram só lá os da casa. O Pipocas e os seus amigos abandonaram o convívio e dirigiram-se rapidamente para casa. Perguntaram:

— Viram o Faísca?
— Vimos, passou por aqui há um bocado, ia a mancar.

Pipocas e Catanada procuraram juntos. Seguiram o rasto do amigo pelo carreiro escuro. De resto, Catanada não se lembrava do Faísca se ter pirado e dito onde ia. Até que o toparam no fim do carreiro. Estava iluminado pela fraca luz do local. Precipitaram-se para ele. Quando chegaram perto, o Faísca não se voltou. Eles pegaram-lhe pelos braços e levantaram-no.

— Faísca! Tás borracho?
— Um pouco tonto.
— Tonto como, Faísca?
— Tonto.
— Então, vens connosco?
— Se é pra ir, vamos lá.

Com o Faísca pelo meio, desceram o carreiro a correr. Muito antes de lá chegarem, já ouviam o endiabrado carro da polícia a passar por eles em speed. Os três chegaram todos cansados de correr. O Faísca levantou a cabeça e uivou como um lobo. Os amigos estenderam uma garrafa de vinho às suas mãos, e o Faísca bebeu tudo de uma golada só. Aquilo é que foi o convívio! Mais tarde sempre que alguém falava de um convívio falava de um convívio com entusiasmo, era tão certo como o Sol iluminar que havia alguém que dizia com veneração: «Foste àquele convívio lá na adega do fado-vadio?» Aquilo é que foi um convívio! Nunca mais alguém tentou fazer um melhor. De resto, tal coisa era impensável; foi de facto, um dia depois, o convívio do Pipocas era posto a umas alturas que o punham acima de todos os outros convívios jamais realizados. Qual foi o homem que saiu de lá nessa noite sem sequer levar um soco? Nunca houvera tanto soco; não foram dois a bater, mas montes deles em que participarem na pancadaria, lutando uns contra os outros. Oh, os femininos gritinhos de revolta e incentivo que se soltavam das gargantas das mulheres! E os amigos do Pipocas..., cantaram tanto que a voz baixou nas últimas cantigas. Os instrumentos tocaram tão alto que quase ficaram com problemas pulmonares como pilecas arruinadas dos pulmões. Também o Faísca tornou-se o bombo da festa. Diga no futuro um idiota pretensioso cheio de inquietação: «Viste o Faísca pedir àquela estrangeira para cantar? Viste ele andar à roda das mesas, como duas pombas? Viste como ele se comportou na noite do convívio?»

Algum dia um escritor porá num escrito, talvez, uma história fria e doentia do convívio. Possivelmente referir-se-á ao momento em que o Pipocas e os amigos, virando as mesas de pernas no ar, desafiaram tudo e todos para uma batalha campal. E poderá rematar: «Veja-se com frequência que uns matulões descontrolados são capazes de uma resistência e de uma brutalidade animal. Onde quer que o Pipocas e os seus amigos fossem, surgia uma grande loucura. Afirmou-se apaixonadamente no Marco de Canaveses, que o Pipocas e os seus amigos, só eles à sua conta, beberam seis garrafas de vinho cada. É preciso ter um bom arcaboiço. Dentro de alguns anos são capazes de dizer sessenta garrafas. Daqui a dez anos é possível aumentar o número e por aí adiante. A noite passou rapidamente. O Faísca não abrandou na sua violenta agitação. O Faísca, diz toda a gente do Marco de Canaveses, mudara totalmente de aspeto, desde que se infiltrara no grupo do Pipocas. Os seus olhos diminuíam tanto como mirones de um grilo. Lá estava ele, de pé, na sala da sua própria casa. Numa das mãos segurava a lata das moedas, e até essa tinha já aumentado.

— Quem quer dinheiro? — berrou. — Há alguém nesta terra que não tenha dinheiro?

As pessoas não tiveram vontade. Aquela pesada lata de moedas, tão cheia, deixara de se tornar a cobiça deles. O Faísca balanceou-a em volta dele. O som dos pássaros deixou de se ouvir e cessou. O cão que ladrava abrandou. A sala esfriou e o silêncio pareceu rugir no ar como um leão.

— Não há ninguém? — berrou o Faísca de novo. — Então, ninguém quer o meu dinheiro?

Os homens compadeceram perante os seus tristes olhos e olharam atraídos a trajetória que a garrafa descrevia no ar. E ninguém aceitou a oferta. O Faísca esticou-se. Dizem que por pouco o seu corpo quase ia parar no chão com a lata.

— Então irei dar aqueles que são amigos dignos do Faísca!

Encaminhou-se para a saída a passos largos, mas um tanto cambaleantes. O vinho fervia-lhe nos miolos. As pessoas, assustadas, abriram alas para o deixar passar. Saudou-os ao sair de casa. As pessoas ficaram paradas e escutaram. Ouviram-no adiante bradar o seu grito de dor. Ouviram a lata de moedas voar como um foguete pelo ar fora. Ouviram o barulho dos seus passos a descer o carreiro. E, depois, por detrás do muro, na ravina, ouviram o Faísca precipitar-se para a descida. Ouviram lançar o seu último grito e depois uma queda. E logo o silêncio. Durante um largo período de tempo as pessoas esperaram, sustendo a respiração para que o ar fluido do ar vindo dos seus pulmões não abafasse som algum. Mas em vão escutaram. A paz descera sobre a noite e o cinzento despontar do dia aproximava-se. Catanada foi o primeiro a quebrar o silêncio.

— Que teria sucedido? — exclamou.

E Catanada precipitou-se pelo carreiro fora. Homem arrojado, não havia medo que o detivesse. Os outros seguiram-no. Foram atrás do muro, onde se tinha ouvido os últimos passos do Faísca, e chegaram à beira da ravina, onde um difícil carreiro em esse descia até ao fundo daquele antigo curso de água seco. As pessoas que seguiam o Pipocas e Catanada viram-nos descer velozmente o carreiro. Lentamente, foram no encalço deles. Encontraram-nos debruçados sobre o Faísca que estava feito num molho. Tinha caído de sete metros de altura. O Pipocas acendeu um isqueiro.

— Parece-me que ainda mexe — berrou. — Vão chamar um médico. Tragam também o curandeiro Valério.

O povo dispersou-se. Dez minutos depois, um médico era acordado e tirado da cama por fanáticos amigos. Não lhe deram tempo sequer para respirar. Não! Foi empurrado para a saída com a sua maleta dos instrumentos. O curandeiro Valério, arrancado da cama, subiu ofegante a colina, sem saber ao certo quem ia atender. Entretanto, o Pipocas, Catanada, Pascácio e Very nice subiram o carreiro levando o Faísca e deitaram-no na cama. À volta dele acenderam velas. O Faísca respirava arduamente. O médico foi o primeiro a chegar. Deitou um rápido e suspeito olhar sobre eles e não levou muito tempo a examinar o Faísca. Já tinha terminado quando o curandeiro Valério entrou. No quarto de dormir para além do curandeiro Valério, o Pipocas, Catanada, Pascácio, Very nice, Artur Bófia, João-Ninguém e Nino Cardoso encontravam-se lá; e eles eram a família do Faísca. A porta do quarto estava, e está, fechada. Mas cá fora, onde os moradores do Marco de Canaveses se aglomeravam a ponto de se acotovelarem, havia rigidez e um silêncio infernal. O médico e o curandeiro trocaram um subtil olhar entre si. Quando o curandeiro Valério saiu do quarto, o seu rosto não alterava; mas, ao vê-lo, as mulheres desataram num ruidoso e tremendo pranto. Os homens bateram os pés no chão como cavalos de corrida e depois saíram. O dia despontava. O quarto do Faísca permaneceu de porta fechada.