Sunday, August 5, 2018


O Bar do Traidor tem a honra de apresentar do Mestre da Ratice,
Abraão, a sua obra imortal: Gente de Vícios.
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Oito dias depois de se conhecerem, Chicras aproximou-se da porta do trabalho de TóZé e chamou-o ao lado.«Meu irmão! Não orientas aí 0 resto duma cerveja e um cigarrito cá para o amigo que já não fuma desde ontem?» - Foi assim que ele entrou. TóZé fitou-o bem nos olhos e exclamou em tom baixo. «Entra e encosta-te ao balcão mas não pies alto.» - A seguir, ordenou ao colega de serviço que lhe orientasse uma cerveja, não queria correr o risco do patrício 1 manjar e lhe fizesse pagar a bebida. Instantes depois, entrou e empurrou Chicras para o canto do balcão. «Orienta-te aí ao copo e tá calado.» - Disse ele, tratando de dar um arrumo ao serviço.
E Chicras não pediu licença a ninguém para beber de lance o gole de cerveja que embelezava o copo de publicidade BEBA SUPER BOCK. Depois disso, esgotou a paciência ao outro que o pusesse a fazer fumo dos queixos.
O fumo alimentou o vício. No centro do cinzeiro, uma porrada de beatas foram transformadas por TóZé em charros prolongados com pó de talco, pitadas de sal miudinho e cabeças de fósforos. E Chicras deu o primeiro chuto aspirando para dentro todo o fumo possível e, a seguir, fitou TóZé de olhos abertos e disse: «O  vício é um martírio privilegiado.» - A seguir ao primeiro estouro dos fósforos, Chicras gritou como um desalmado. «O que é esta merda? Charros a deitar foguetes?» - Chicras caíra na tentação do vício e o fumo alastrara-se até aos fundilhos das calças e ele arrastara-se até à porta cheio de histerismo. Lá dentro do balcão ninguém se mexeu. Cá fora, Chicras, agitando os braços, dizia sem interrupções. «Estou a ver a ressurreição de Cristo, estou a ir para
o calvário, e vou falar com o Pilatos.» -
Às vezes essas comoções terminavam em soluços. Chicras, no seu esgotamento-para-além-do-esgotamento, descontrolava-se e punha-se a ganir toda a noite até cair para o chão e dormir.
Não a dormir: a sonhar.

Padrinho, quando  desliza no sonho, de pálpebras pesadas até ás orelhas, as visões ganham outro contorno e passa pela infância nos tempos que era menino quando subia às àrvores para tirar laranjas. Meu mafarrico, ralhava o jardineiro, mas depois era ele próprio a atirar-lhe com as laranjas à mão, os rapazes são mesmo assim e ele continua mergulhado. Afastando-se dos tempos da infância, tornando cada vez
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1 Patrão.
                maior à medida que o sol vai crescendo, a voz do avô chega-lhe lá
ao longe aos ouvidos, vê como cresceste meu malandro, agora és tão gigante como o Deus Neptuno, tens os pés no horizonte e os braços ao redor das massas.
Nas primeiras visões, vê o organizador, Cafú expulso da fábrica das
molas, com os livros de Lenine debaixo do braço, tentando lançar a greve mas a precipitar-se no caos, só meia dúzia de fominhas o acompanharam no vazio. Mas aguentou firme, não estava nem podia estar derrotado e entoou lá de baixo das profundezas do inferno o cântico dos desconsolados, eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada. Oh! Que suaves baladas ele sabia. Com as operárias a acompanhá-lo nos coros, todos os três a sorrir, pareciam os Bee Gees, a darem risadinhas e a apalparem-se uns aos outros. E mais adiante da visão, quando Cafú toma consciência que fora corrido de todos os trabalhos que arranjara desde a greve na fábrica das molas, o pânico invade-o. «Ó Santo Antoninho da Telheira», -grita ele. -«Ó santos todos da minha aldeia, valei-me, caraças, já não aguento mais esta merda.Tenho a cabeça numa fona, estou doido como do costume.»- Exactamente o mesmo que ele, o Cafú sentiu e viu o demónio pela primeira vez. Pensou que estava louco, quis atirar-se do alto do Monte do Corgo, um monte tão alto que ele não vê o fundo.
E pronto, acabaram-se as visões, tomem lá os contos. As visões são fáceis de espanar; basta transformá-las em sonetos e depois é só escolher o instrumento que se quer tocar. Os humanos são mais duros de roer, duvidam de tudo, desconfiam do nada e até nem confiam nos seus próprios olhos. Daquilo que, enquanto ele se afunda na visão, com pálpebras pesadas até às orelhas, sucede atrás dos olhos fechados...
A mulher vem interromper Padrinho.
«Ah! Chamaste-me?» -
Levanta-se: tem o aspecto sonolento, pensativo, ainda envolto das visões, arrasta os pés. Os seus passos poderão parecer grandes para as pernas altas que tem, mas é um homem pesado e cansado. Para acordar de  vez, esfrega  os    olhos  com bastante água   e     decide pôr camisa e gravata. Lá vai ele, por entre as árvores da rua, é um homem alto e robusto, o oposto do pançudo. Segue pela rua, às vezes pára e fica a olhar, com o único fito de pensar. Agora sim, adoptou o letreiro que diz Zona Industrial, e é para lá que ele caminha, à luz do sol.

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A cidade onde mora o Padrinho é toda construída de pedra, cimento e areia, as suas construções são antigas e recentes. Na baixa da cidade onde se eleva o edifício da Câmara Municipal, há um panorama fantástico: cercada de altas muralhas, com as suas portas de ferro zincado, toda ela um verdadeiro orgulho para os seus habitantes, que aprenderam a gostar da cidade.
Enquanto ele sobe o Monte Corgo, comemora mais um aniversário do  lançamento da escola de formação. Há muito tempo que São Nicolau lhe tinha endossado aquele esquema giratório para a mão mas, na altura certa, o sacana foi-se embora. Desde o principio que achara ser o negócio obra de·Deus e era verdade que os homens sempre se serviram de Deus  para  justificar  as  suas grandes  ou  más  obras.  As  suas satisfações são sempre inconsoláveis, dizem os homens. Não admira pois que as mulheres estejam de fora e dizem que em tudo só se fala nos homens. - mas voltemos atrás; Padrinho sentia-se um homem confiante. Depois de subir a colina, foi ter com uma velhota, a quem pediu uma malga de leite quente de cabra e pôs-se  a beber com sofreguidão para comemorar à saúde da sua independência económica.
Hoje era dia de feira na cidade. O esplendor da feira dos negociantes de calçado, há um ror de especiarias, de folhas de alumínio, de tractores para o campo, de madeiras aromáticas, de vendedores da sapatos e chinelos disputando os pés dos viajantes, e também as suas bolsas. A cidade está virada num inferno. No ar pairam os cheiros: a resina perfumada, plantas e flores coloridas. Os viajantes bebem vinho nas malgas e comem chouriço com broa e andam dum lado para o outro. E, no meio deles, vagueia Padrinho com o rosto ossudo; o seu andar tem a cadência dum militar. Grande mesmo entre os grandes de notáveis da cidade, dono e senhor dos lucrativos fundos monetários, abastado em viaturas de diversas marcas, tendo por esposa a maior simpatia da terra, que mais poderia desejar este homem? E, no entanto, também para ele se aproximava uma crise. Um nome o atormenta  e  não é difícil distinguir esse nome; a  justiça.
Padrinho espreita mais uma vez para as tendas dos negociantes; os seus olhos nunca se afastam das mãos deles; e vai abrindo caminho por entre a multidão, resmungando entre si, até desaparecer entre o pó que infesta o chão.
Um vendedor de jornais passa por ele, transportando uma saca de
jornais debaixo do braço. Padrinho chama o homem a pretexto de saber

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as ultimas notícia e diz: «Vem algo de novo aí no panorama político?» O homem abana a cabeça e conclui: «Infelizmente é sempre a mesma coisa. Isto está bom é para os chouriços.» - E ele afasta-se. Padrinho dá uma vista de   olhos pelas notícias e fica  maravilhado pois não vê nada de especial.  A seguir atira com o jornal por uma ribanceira abaixo e   segue o caminho de casa.
Diz-se na cidade que este monte é a fonte da sorte do mundo. Que o mundo, quando estava a ser feito, girava à volta deste monte. Adão veio aqui à procura da Eva e foi aqui que também ele bebeu a sua primeira malga  de  leite da cabra e, segundo bocas das profecias antigas, foi debaixo daquela árvore de vinte pés e de quatrocentos ramos à volta, que Adão assentou a Eva no mocho de madeira e lhe deu a primeira carambola que ela até berrou, imitando a cabra. Foi a primeira vez, porque outras iriam chegar antes dela comer a maçã de Adão.
A partir de então, começaram os ídolos a aparecer no Monte do Corgo. Na época do pé descalço, havia meia dúzia de ídolos de barro apinhados à volta das árvores de muitos pés.
O que pensariam as pessoas daquele tempo? E os filhos deles e os filhos dos outros: os próprios ídolos de barro, os pastores dos rebanhos, a lua no luar e também o perigoso do Caim? Também ele fez história e da grossa.
Há aqui qualquer coisa que não rima certo, mas não faz mal. Não estamos aqui para rimar mas, sim para contar. E o melhor possível. Continuemos, pois.
Padrinho, a transpirar por todos os poros, chegara a casa e deitara-se sobre o sofá, cansado e exausto da caminhada.Agora a .casa está vazia e ele agacha-se e pega num cobertor que pôs por cima dos pés. E observa com interesse o que a televisão comunica. Padrinho, apesar do pequeno descanso, não deixa de ironizar aquilo que o locutor da televisão diz sobre os novos dirigentes do seu club da bola. «Olhai pra estes idiotas - foda-se, estes ladrões. Não sabem pôr a equipa a ganhar, que grandes ursos.» - E, mais adiante, volta a falar sozinho. «Não precisas de te preocupar com estes palhaços. O que é que ganhas com isso? -abanou a cabeça sorrindo - Ai, ganho, ganho. Vão-me ao bolso todos os meses sacar setecentos paus de cotas, para nunca lá pôr o cú naquelas bancadas frias, geladas e cheias de pó.» -
Daqui por um bocado, olha atentamente para o tecto e começa a fechar os olhos. «Vê se dormes.» - São as ultima palavras dele.

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o Grande Golias está deitado no seu quarto, enquanto a sua massagista trata das suas necessidades. Óleo de fígado de bacalhau para lhe abrir o apetite de comer, gema de ovo de peru para amaciar a calvície total da cabeça, língua de burro cansado para açoitar as banhas da barriga. Cheio de preguiça, começa a contar à massagista que as varizes das pernas o deixam dolorosamente chateado e pede-lhe para lhe arranjar um medicamento que esconda aqueles frisos negros atrás das coxas. Ele, o Grande Golias, quer ter um corpo de atleta; tem as suas fraquezas sexuais e quer manter a forma física por mais uma centena de anos. Faz prognósticos de chegar aos cem. Não sabe é a que «cem» se refere ele. Não pode tolerar aquilo que não sabe e, ainda que não haja outro remédio, isso chega para o importunar quando pensa nele. Depois da massagista sair, ele ri-se como um perdido. «Esta noite, serás minha.» - Respondeu ele em canto sem tom. Blasfémia, cheio de desejo. E mandou uma enorme farpa para a janela. «Que é que disseste?» - Repetiu ele mais uma vez o canto.
Embora a verdade seja mais gloriosa que a mentira, Golias foi muitas vezes derrotado no jogo do amor, socorrido pelos amigos ou pela sorte dum fado maldito que sempre o testou nas horas do infortúnio. Tem dinheiro que chegue para contratar trinta massagistas por mês para lhe fazerem cócegas aos pés. E a  idade e o facto dele ser um cota em espírito de jovem não constituíam um obstáculo às suas paranóias e fantasias eróticas.
Ela ainda não chegou a casa, murmura ele depois de desligar o telefone. E Golias fica irrequieto. Mas já passaram duas horas que saiu do trabalho, onde raio aquela miúda se teria metido? E  pergunta. Ela não vai ceder?  E o seu subconsciente repreende-o com brandura: Ó, pá, deixa-te de mesquinhices, o que lá vai, lá vai. Vais ver como não demora a aparecer por aí... Golias passa o lenço pela careca suada. Não deixes que ela veja que estás com cara de aguado, diz, mesmo que estejas todo entesoado.
Ele fecha a janela quando a Rapariga da Saca Preta bate à porta; ela entra e gira à sua volta. Golias recua. «Já se sente melhor depois da última vez?» - Diz no seu trocadilho de camareira. «Voltamos a fazer as pazes. Daqui não arredo pé.» -
Golias senta-se no rebordo do sofá e sorri. «Vou propor-te um acordo.» - Ela  pergunta: «Que tipo de acordo?» - Golias sorri  de  novo: «Pelo menos um. É uma coisa pequena - prossegue - Que faças o papel  de Josephine.

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 Em contrapartida, garanto-te que seremos mais amigos do que dantes.» - A Rapariga da Saca Preta olha e sorri: «Se mostrares ser um Napoleão à altura, poderei mostrar-te como se porta uma verdadeira fidalga para o seu amor, poderei chamar-te os nomes mais lindos e fazer-te as coisas mais feias.» - Golias confirma com a cabeça o que ela dissera.
«Sabes, minha querida, eu tenho aprendido pouco a pouco como habituar-me ao teu fado. Muitas vezes, quando estou só, é como se o teu  fado  estivesse dentro  do  meu coração; dentro do mais fundo da minha alma.
«Há quanto tempo nos conhecemos - insiste ele - e andamos para aqui sempre com o mesmo  credo na boca?» -
A Rapariga da Saca Preta ri, com ar divertido. «Talvez seja por avaliares muito mal as minhas capacidades físicas e técnicas. -      diz amavelmente -Da     ultima vez  não  leste  os versos  que  te  espalhei  no  teu quarto?»- Pôs-se a cantarolar:

              Já tantas vezes. disseste Vou deixar-te, vou partir Já tantas vezes disseste
              Que, se quiseres, podes ir...

«Precisamos sempre dos outros, não te esqueças.» - Exclama ela.
Um silêncio constrangido envolve os dois; trocam olhares profundos entre si, abanam as mãos uma contra a outra. Golias põe-se de pé, afasta-se para junto da janela. Ela coloca a saca na cadeira e começa a tirar alguns utensílios lá de dentro. Ele sai da janela,  suspira, vem juntar-se  a ela.
«Estás pronta? -diz,  passando um braço pelos ombros dela -Vamos a isso.» -
Com uma súbita expressão de alívio no rosto, Golias deixa-se cair ao chão e prostra-se diante dela, que tira da saca o lendário leão vermelho de muitos dentes. De tronco nu, membros húmidos e cabelos molhados, ela começa a ungi-lo com leite de cabra e a afagá-lo. Quando ele alcança o êxtase final, grita por um nome estrangeiro Belami, Belami. Quando se separa dela, está cansado e cai para o lado. Golias pede paz.
«Como Napoleão?» - sugere a Rapariga da Saca Preta.
«Não. -diz Golias entendendo o sadismo dela. - Como amigo.» -
«Monarca e amigo - diz ela. -    Golias  e  a   Rapariga  da  Saca  Preta tem  ambos a mesma  lata.» -  Ele  percebe  quais  são  as  intenções  dela.

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Ela que se divirta com o seu fado sarcástico; entre nós o sexo nunca contou . Eu acabarei com ele quando achar que o devo acabar. Eis uma grande mentira, pensa no seu subconsciente. Sucumbido ao sono, adormece e o pesadelo é mais forte que o fado da má sorte.

Adormecido ou acordado, Chicras enche-se muitas vezes de pressentimentos pelo facto dela nunca aparecer nas visões que o atormentam. Ela nunca se mostra, essa tal que ficou longe de mim quanto eu me enfiei na passa, quando eu precisava mais dela. Chicras sente-se deitado no chão,- completamente snifado à procura da visão para adormecer.
E hoje o que acontece?  Isto: Chicras, ainda no seu sono-não-sono, olha espetado, com as veias do pescoço a querer saltar cá para fora da pele, salientes ao máximo. Parece  que vai ter um ataque epiléptico, mas não. Ou serão os fumos acumulados durante a noite na sua cabeça que fizeram um caldo espesso  pondo  ao  léu  um  Romeu  atormentado  por  uma ilusão  de  papel pendurada  num  papagaio  de  fio  dourado? A dor, de  novo a  dor e sempre a dor, a forçar qualquer coisa e Chicras começa a sentir esse ímpeto, agora na sua boca, fazendo-a funcionar num abrir e fechar interrupto; e a energia chega às cordas vocais, e a voz dele faz-se ouvir.
Eu via-a. Ele nunca sentira aquela emoção e as palavras eram semelhantes à  voz de um moribundo.
Os olhos de Chicras arregalam-se cada vez mais. Naquele instante ele está a ter uma visão qualquer, fita-a babado, a espuma cai-lhe da boca. Os  seus lábios  movem-se  e  as  pernas  esticam-se. E  as palavras voltam a  sair-lhe da boca, por entre os dentes podres, murmurando: Eu vi-a .
Caiu para o lado.
E  finalmente adormeceu.

Na taberna do Rato, Ave Rara é esperado junto ao balcão. Golias, o aguado, como sempre o mais impaciente, vai ao seu encontro e dá-lhe um abraço forte. Champalinas, acostumado como todos os brasonados a fazer parte de uns joguinhos sociais, assenta-se na cadeira e põe-se a jogar dados com outros. A impaciência não é grande; ele já está calejado ao jogo; ás vezes passa horas, dias e semanas a jogar. E  hoje a taberna está   mais ou  menos  concorrida. Todo  os  clientes  se   reuniram   na  sala  para
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assistir à competição do grupo dos atiradores do sexo GAS. (Grupo de Atiradores de Sexo) Na algazarra, ouve-se o bater dos dados de Champalinas na mesa do pano verde e os gracejos de duas mulheres, visitantes vindas do Bairro dos Mareantes. Depois chegam os passos apressados de Toni da Gota. esbaforido, com ar cansado. «Ainda cheguei a tempo.» - Agora estão todos reunidos, perplexos ante o começo.
Golias toma o comando do grupo, evitando falatórios e indica a mesa para a concentração da prova. Os atiradores tinham-se reunidos cerca de vinte ouvem-no com atenção. Ave Rara é o mais veterano dos atiradores em prova. E só ele parece estar interessado em chegar à final; enquanto os outros estão distraídos a olhar para as visitantes.
No interior da sala, a clientela reage com entusiasmo à chegada do impopular Fala-Tudo e de alguns seguidores desolados. Mas, à medida que Golias vai explicando o regulamento de olhos encurvados, as vaias e os apupos esmorecem e faz-se silêncio. Ave Rara abre logo os olhos. Os atiradores ali reunidos são colocados nas suas posições. - Baixote está presente, claro - e observam com ar de gozo, mas também com um certo embaraço, o extrovertido Mister Louis. No meio do público, os clientes fazem apostas e preenchem o boletim de voto que dá direito ao vencedor ganhar a taça do Pénis Padeiro.
Agora, o Grande Golias encosta-se no sofá, em frente do balcão. Com ele, toda florescente, está a Rapariga da Saca Preta com um novo penteado à Zequinha. Ave Rara levanta-se e diz em voz alta. «Meus Senhores, bem-vindo sejam ao concurso do sexo. - A clientela impressiona-se. Ele acrescenta: - Portem-se  bem.» -  Não  hajam  dúvidas que é uma declaração de respeito, diz alguém no .meio da sala. Os atiradores chegam à fila da frente.  Ave Rara fala sem abrir os olhos e gagueja  ao  mesmo tempo. «Estão aqui reunidos os melhores atiradores desta cidade -  faz uma pausa para prosseguir -     eu não posso afirmar que seja melhor que eles. Mas vou fazer por ser  melhor  que  qualquer  um dos concorrentes.» -
O primeiro a sair foi Mister Louis que escolheu o tema «A estrela» - E o público começou a apostar no seu ídolo. O sexo é para o atirador como o divertimento é para o público. «Quem é o próximo?» - Diz Ave Rara. E o próximo era Champalinas que exclamou: «Comigo, eu venho-me  já!» -
Pela Santíssima Trindade: o vosso companheiro não está bem fixe da cabeça; dois minutos para o eclipse do pombo!

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Mas ninguém fala em nome dos seus próprios desejos. É apenas uma prova, e todos querem mostrar a força do seu instrumento das Caldas... Ele surgiu do meio da sala: o Grande Golias. Depois aproximou-se e saiu acompanhado da Rapariga da Saca Preta, a uma distância menor que uma passada das suas pernas.
O público delirava com a saída dos atiradores em estado de frenesim. Neste ponto sem sombra de dúvidas, Ave Rara ganha alguns aplausos e preparou-se para abalar,  mas, antes, deixa um palpite: «Vou apostar como o lavrador», - «Tudo no grelo.» -
Enquanto o ruído, berros e muitos vivas, misturados com gritos de desejos à deusa do – amor franciscano. Madame Rara - aumenta no interior da sala e o publico, curioso em assistir ao sorteio para saber quem era o par da deusa, leva o juiz do sorteio a coçar a ponta da orelha com o polegar  da mão direita e depois pronunciar muito alto o seu nome:
«Baixote.» - O próprio Baixote levou a mão à testa e exclama: «Com esta não me safo eu! Vou já às cordas.» -
Toni da Gota deixou-se ficar junto à  porta enquanto espera a sua vez. Agora observa, entusiasmado, os olhares das pessoas que enchem por completo o salão; todos estão eufóricos com o desfecho do concurso. E, a partir dele, seguem Fala-Tudo, Deus Neptuno, Indiano e outros seguidores desolados.
O juiz, esse continua de pé a contabilizar os votos dos concorrentes. Rompendo em pranto, Golias foge para casa com o coração destroçado pelo amor   desvairado. As  lágrimas que  lhe  caiem  no  rosto  enquanto corre tapam buracos na terra como se fossem pingos de solda.
Ave Rara permanece imóvel. Não se detectam quaisquer vestígios de euforias. Até ao lavar dos cestos a vindima continua ...
Nesse dia do entusiástico triunfo de Ave Rara, houve lugar a várias manifestações de júbilo por ele ser o vencedor incontestável do trofeu que o elege como o Príncipe do sexo, ao largar o pombo num minuto milagroso da  consolação  do  êxtase  total.
Foi uma noite de sexo. Ave Rara dirige-se sozinho para casa, de cabeça curvada. No limiar daquela vitória, lembrou-se do Grande Pénis Padeiro, uma figura histórica do grupo, agora ausente por motivo de doença. Ouve gritos atrás de si e olhou fixamente mas não viu nada; depois abanou a cabeça, e disse: «Estão com ciúmes da minha vitória! Enquanto houver língua e dedo não há mulher que meta medo, ouviram seus cabrões de merda?» - O silêncio envolveu-o na noite.

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O Padrinho acorda entre os lençóis de linho, com uma terrível enxaqueca e bicos de papagaio que até lhe custa levantar da cama. Depois de alguma ginástica, lá conseguiu pôr-se de pé.Do lado de fora da janela, o sol aproxima-se com todo o seu esplendor. Ao seguir na direcção do quarto de banho, liga o radio e escuta uma canção que soa em coro dedicada  aos aventureiros da vida .

                     Se têm sorte ganham  notas notas e mais notas até dizer chega.

                     Mas se perdem o mote logo fecham as portas voam como gaivotas
                                                                                              e enrolam-se na treta.

De volta da casa de banho não deixa de sorrir para si mesmo. «Que líricos estes cantores de agora.» - Senta-se na cama e bate palmas para a empregada lhe trazer o pequeno almoço. A empregada traz o pequeno almoço e sai apressadamente, enquanto ele se veste com fato e gravata e vai até à janela, pondo a mão na cabeça. «Que dor esta? Parece que alguém me deu uma mocada na cabeça.» - Ele continua na janela a olhar para fora. «Oh, empregada, empregada.», - Diz em tom de brincadeira. - «Traz-me a minha mala que hoje vou para o mundo.» - Ele prepara-se e está pronto para sair sem, antes disso, se virar para o espelho e comentar com um tom irónico. «Hoje, vou mostrar às putas quem são os coiros.» -
Poucos minutos depois dele sair, chama um carro de praça para o levar até à segunda cidade do País. Durante a viagem, procura soluções para o seus problemas sem o conseguir a prazo imediato; e deixa-se seduzir pelos pensamentos caóticos que lhe invadem a mente, até lhe fizeram esquecer a dor de cabeça e as enxaquecas. Padrinho, quando está caótico, sente-se capaz de tudo, até trepar pelos castelos como um chimpanzé e que mais? Voltar àquela cidade do vicio e do prazer e deitar-se no meio daquelas chocas que acabem por lhe purificar a alma gretada de comichões infinitas. O que ele deseja: um sonho infinito com um amanhã cor de rosa. Fodam-se os sonhos, só dão

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cabo da cabeça dele e o tornam mais infeliz do que ele possa imaginar. Luta contra o sono e força os seus olhos a manterem-se bem abertos até traz. Depois de chegar à cidade, Padrinho deixa ficar a mala no hotel e segue o caminho na direcção da taberna do Rato com um sorriso nos lábios. Quando ele entra naquela sala, paragem provisória do amor, algumas caras conhecidas cumprimentam-no. «Bons olhos te vejam, tens andado pirado ou quê?» - Diz um deles em voz alta. «Da ultima vez que te apanhei foi no bar da Pina-Colada, lembras-te?» - Ele deu um sorriso transparente e pôs-se a cumprimentar um de cada vez. «Ó menino, já nem sei o que fiz ontem, quanto mais há uma semana e volta a dizer - sabes o que mais? Deixa lá isso e vamos beber um caneco que estou com sede.» -

Os amigos mais ele sentaram-se numa mesa junto ao canto da sala e deixaram-se estar a falar sobre os temas actuais; política, futebol, engates e todo o tipo de conversa que surgisse nas suas bocas era assunto para cochichos. Todos eles estavam ligados ao negócio de calçado e outros e a fúria de Magricelas, que trouxe roupas à lavrador e soltou um gemido de corvo, deixou-se rodopiar à sua volta como uma tempestade, dir-se-ia, tentando apagar as suas pegadas. Todos eles fugiam das suas zonas urbanas e ali se escondiam até às tantas e até o Piasca ainda não acedeu às súplicas da mulher, que quer que ele vá para a cama logo a seguir ao jantar... O Compridão, contrariando as opiniões dos amigos, visita muitas vezes a capital, e é lá que ele dá as facadas no matrimónio, atirando à cega sobre os paus de virar tripas que lhe aparecem à frente dos olhos... Apesar de tudo, o grupo é firme e remete-se ao silêncio das suas fraquezas. Reúne-se normalmente ali, sempre na convicção de assistir a um espectáculo de pôr os «cornos» uns aos outros, ou um escândalo entre duqueiras 1  ou a outro espectáculo qualquer. A taberna do Rato não os desilude.
Estacada diante deles está Fífia e mais três amigas. Padrinho segredou-lhe ao ouvido. Essas amigas saltam de comichão e sentam-se ao redor do grupo. «Amiga do meu amigo para mim é homem.» - Argumenta o Piasca, enquanto o Magricelas sacode as mãos e responde-lhe à letra: «Não te queiras pôr à frente, não!»,-e vira-se para os restantes.
-«Pois para mim, amiga do meu amigo é para deitar abaixo, ouviste?» - Magricelas levanta-se e, antes que alguém se intrometa; vai mudar as águas com uma pequena escolhida a dedo...

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1Companheiras das lésbica.

Após a borga com os amigos. Padrinho regressa a casa, onde o espera um pequena surpresa. Mas que surpresa era essa? E de  quem? - Compenetrado em si, abre a porta e depara com a mulher, debruçada no beiral da janela, muito direita, pronta a falar. Do bom ou do mau assunto. E começa por dizer que a escola de formação fora visitada por uma brigada fiscal e que há algumas denúncias de infracções ao código da lei; a ser assim, a conversa da brigada fiscal envereda por uma política de fiscalizações do sistema ao próprio sistema.
Padrinho, na sua dor, guarda silêncio. Passara semanas e meses a acautelar-se, sempre na expectativa de uma solução favorável aos seus interesses económicos e pessoais. E, por um desses pensamentos paradoxais, surge-lhe urna ideia vã de resolver a questão, fazendo uma oferta aos amigos do seu mini oásis da escola, ou quem sabe; até aos próprios alunos da aprendizagem. «Isso nunca conseguirás concluir. O melhor que tens a fazer é deixar de estares ai a sonhar e seguir o exemplo do São Nicolau: fisga -te daqui!» - Padrinho fica sozinho na sala e cheio de ecos a trespassar-lhe a mente com perguntas a que prefere não responder.

Do cimo do Monte Corgo, Padrinho assiste à festa da Nossa Senhora da Saúde e vê os fiéis devotos, trocando a cidade do trabalho por uma festa religiosa, prestando homenagem à sua Santa Santíssima. Aqui e acolá, pequenos grupos de pessoas de mãos a abanar, caminham através do sol, por uma terra de secas árvores e ribanceiras cheias de água, muita  água   mesmo. Padrinho senta-se num calhau e observa a multidão. Quantas vezes ele se via sozinho no alto do Monte Corgo, a olhar para as frias estrelas cadentes, vindas do céu nocturno, esvoaçando-lhe as ideias na cabeça.

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