Sunday, August 12, 2018



                                                                FANTASIA E EROTISMO
                                                                                II


Em jovem, Ave Rara possuíra um rosto de uma esperteza verdadeiramente espantosa, um rosto que parecia nunca ter conhecido burrice nem obstáculo de espécie alguma. De pele marcante e grossa, essa cara ajudara-o bastante nas suas conquistas com as mulheres e, para dizer a verdade, foi um dos motivos pelos quais a sulista Marta Chata se apaixonara por ele desde o primeiro instante em que ambos se conheceram naquele dia, na taberna do Rato. «É assim tão persistente e tão machão!», -maravilhava-se ela, apertando-lhe a mão. -«Quem lhe resiste, seu  durão?» -
Ele surpreendeu-se. «De durão não tenho muito, minha querida», - defendeu-se ele.-«Teimoso, sim, tenho um pouco.» -
«Eu vou-o ajudar a acabar com essa teimosia», -admitiu ela. -«Com um pouco da minha paciência.» -
A partir daquele momento, a relação entre eles permaneceu no bom sentido de amigo e amante. Teve, portanto, a sua cota parte o facto dela estar a morar próxima do trabalho onde esporadicamente se encontrava de passagem, afim de curtir umas férias entre a aventura, uns copos e umas boas noitadas. E, quando Ave Rara dormiu a primeira vez com Marta Chata, ela encerrou-o no coração da sua piela e passou a cantar lhe a canção da princesa apaixonada.

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Quando Ave Rara acordou e se viu ao espelho, de cabelos no ar en desalinho total, olhos distorcidos do sono e cheios de ramela, descobriu um rosto que parecia não ser o seu! Tornou a olhar para  o espelho, verificando mais fixamente se realmente era ele. Eu sou eu próprio, disse ele ao espelho e traçou o seu futuro. Sou um homem à imagem de Lupin. para quem certas coisas são fundamentais; a multiplicação do mico, o amigos para a muleta e as mulheres para as cenas malucas. O ideal da esperteza e a contabilidade dos números sou eu: o espírito inovador e controverso do homem moderno, eficaz e mortífero.

Era já tarde. Ele não sabia de cabeça o número do telefone do escritório. Tinha-se esquecido da agenda na bolsa do carro. Tentou recordar-se dos números e marcou os seis algarismos.
Uma voz feminina atendeu ao primeiro toque.
«Está lá, quem fala?», -uma voz sonolenta, conhecida.
«Desculpe, é engano», -Disse Ave Rara de olhos fitos no telefone. -
«Ora gaita, era a minha mulher.» -
Deu por si a recordar um conto do amigo alentejano por causa da cena do telefone. Na verdade a história do amigo tinha graça, embora um pouco diferente. O amigo, durante um fim-de-semana, seguia no carro pela auto-estrada que liga Porto a Vila Real, acelerando o carro cada vez mais ruidoso e diga-se, em abono da verdade, que alentejano era responsável por uma boa parte daquele alarido, pois desatara a carregar no pedal a fundo e alguns condutores, a quem ele ultrapassava,  iam buzinando, chamando-lhe ao mesmo tempo a atenção para a alta velocidade como ele conduzia o carro. É claro que ele era sempre um mais maluco do que nós. Bem, o problema é que instantes depois, passou por ele um carro mais veloz e ele não pôde reagir perante tanta velocidade a não ser ofender, chamando panasca ao chanfrado do motorista. Porém, nem um minuto se tinha passado, quando de repente, o seu telemóvel tocou e ele olhou perplexo para a mulher que seguia no banco ao lado e atendeu a chamada: «Polícia de Trânsito. Violou o código de estrada ao ultrapassar duzentos quilómetros à hora. É favor encostar o carro.» - Ficou sem fala. «Como é que o gajo soube o número do telefone.» - Dois minutos depois, um amigo passou por ele e mandou um piropo ao ar. «És alentejano quanto baste.» - Ele deixou-se cair na sua melancolia, lamentando-se. «Malditos sejam os telefones.» -
Ave Rara, no quarto, anda dum lado para o outro. Depois de algumas

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tentativas para ligar para o escritório sem resultados práticos, deixa-se ficar inerte durante uns segundos até pensar na melhor forma de resolver a questão. E cinco minutos depois, já estava a despedir-se da sua.amiga com um «Até já» e abandonava o quarto.
Foi nesse momento que o número do telefone lhe veio à memória.

Eu sei o que é ovício, disse ohomem de olhar semicerrado. Chamava-se Hamilton Borrachão; tinha cinquenta anos de idade e agarrava a caneca de verde tinto na mão, cuspindo para o chão, antes de enfiar uma golada pela goela abaixo. -E sei também o que é apanhar uma ramada de caixão à cova uma vez por dia, não é disse ele, a cuspir outra vez para o chão. Falar dessas tretas só me dá mais sede. O que é um bêbado? Uma pessoa alegre, nada mais. -Ao que o borracho do Hamilton, com trinta e quatro copos bebidos, costas marretas e semblante torcido, - revirou para o céu os olhos num instante, para implorar o passado. Venham mais pipas de vinho generoso para o cais das Devesas, suplicou: voltai, minhas queridas pipas.
Há quinze anos, aproximadamente, o cais ferroviário da estação das Devesas estava dividido em locais de mercadorias e locais de vinhos, com os comboios diariamente a descarregar as suas mercadorias nas arrecadações respectivas. Ele, o borracho número um do cais, ajudava ao desembarque das pipas provenientes da Régua para os armazéns de vinho, em Vila Nova de Gaia, e colaborava na tiragem das amostras do vinho logo de manhãzinha cedo; e, por volta do meio dia, já via o sol da cor do carvão e as pipas a serem descarregadas pelo ar...
Cinquenta anos! Havia duas décadas que  ele emborcava mil e quinhentos litros de vinho. Nas noites de luar, com o céu sem nuvens, ele punha-se no cais à espera que aparecessem os comboios carregados de pipas de vinho, e o local onde ele costumava estar era junto à linha de mercadorias, onde estacionavam os vagões. Explicava a sipróprio, parece que me estou a ver de verruma na mão, chegar ao pé da pipa e furar o casco de madeira até o vinho espichar para dentro da minha boca; beber até me fartar ejá não poder mexer a queixada. Durante a tardinha, quando o luar aparece na escuridão, é a hora de eu me ir embora e o percurso de trezentos metros que me leva para subir a Ilha do Carneireiro demora me quase duas horas a caminhar a passo trôpego. Quando caio na cama, fico como um tordo sem me mexer e sei que sóacordo no dia seguinte, ao

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som do apito do comboio a chegar.
O Hamilton, com a pele da cara vermelha como um presunto e os dentes podres do tabaco, transpôs a porta principal, a deslizar entre º'
bancos de madeira, como um eco a ressoar de recordações e anseios {: depois o silêncio, um silêncio fúnebre.
-Uma vez, quando era rapaz, nas Devesas, gostava de contar.
sempre com as palavras coçadas do tempo, -uma vez, era eu criança e estava sozinho, vi-me de repente desamparado, junto de uma garrafa de vinho tinto. Com o medo, experimentei beber um gole e senti-me crescer. Fiquei com tanta força, que um miúdo veio-me chatear e eu dei-lhe uma cabeçada com tanta raiva que o pus a dormir! A partir daí, o vinho foi o meu melhor amigo e aliado, acompanhando-me sempre nas horas boas e nas horas más. Fechou os olhos. Quando os abriu de novo, viu à sua beira um copo cheio de vinho. Não havia dúvidas que era vinho, bebeu dum fôlego só.
-O  que ele disse na sua excitação: Não acredito! O combóio ali na estação? E à minha espera! -Com o coração aos saltos, Hamilton correu em passo trôpego e foi buscar a verruma.
Enquanto no cais, junto da gare, o Diabo olhava com a boca cheia de água, não, não era vinho.
Cheia de vinho .

Rtu !
Padrinho cuspiu no chão; ao mesmo tempo que se ergueu de um salto. como que impulsionado  por urna mola; desejou amar ardentemente a Pina-Colada -comojá anteriormente -muitas vezes repetira esse desejo.
E, naquele dia, começou a sacudir o pó das mangas do casaco e deu um jeito ao seu decoro olhando para o espelho: «Caraças, - gritou ele, andando para trás e para a frente -tenho que matar este desejo.» -
A seguir, tomou o caminho e começou a dar passos pelo passeio tipo militar -um dois, um dois -entoando uma quadra chalada dum poema do Rato «Quando a sorte não penetra, três na peida, etc.» -
Aproveitamos para referir que era um hábito, de alguns clientes da taberna do Rato, entoar os seus poemas malucos ...

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«Vamos embora, meu velho, adianta o passo», gritou Padrinho, fervendo com a ideia. -«Vamos tomar de assalto esse plano.» - Voltando costas à rua, lembrando as boas recordações, apaixonado como sempre fora pelas boas novidades, ele teria dado ali (caso trouxesse consigo tal objecto) um tiro para o ar, tomando conta da Pina-Colada de assalto. Ao chegar à porta, inclinou-se para a frente, murmurando: «Já chegamos, agora porta-te bem.» -
- Pina-Colada era uma mulher lésbica; tinha à volta dos trinta e um anos de idade e olhava de uma forma sensual. E todo o seu corpo revestido duma fina pele, lisa como o vidro, um sonho das Caraíbas...
Quando ele se. aproximou, invadiu-o um calor tórrido de estalar, e sentiu o sangue a correr vertiginosamente pelas veias e a sua pele ferver como caldos de galinha. Estava cheio de palavras para lhe dizer tudo mas um «Olá» bastou para ele ficar ali como um morcão na expectativa a olhar para ela, como no filme A Vida é Bela, quando o Roberto Benini choca com a sua Princesa e caem ambos junto ao celeiro e ele afasta-lhe as palhas do rosto, em vez de lhe apalpar os marmeleiros, mas não, aqui não foi assim, porque, a acontecer isso, ele poderia levar uma lambada nas ventas e então, sim, o caldo ficaria entornado...Tinha os olhos fitos na prateleira das garrafas e reparou então, através dos espelhos, que meia dúzia de lesmas estavam sentados à mesa a beber umas bebidas quaisquer. Ás tantas, piscou os olhos com tanta força que ela finalmente sorriu, dando origem à ideia deles se sentarem a conversar. Escolheram um sítio recatado a um canto do bar. «Ü que é que julgas que eu vim cá ver?» - Disse Padrinho de olhar sereno, enquanto, ela lhe pegou nas mãos e lhe fez u_ma meiguice. Começou a tremer; a vibração era tão intensa que ele receou que ela se apercebesse e puxou dum cigarro para descontrair. «Eu sei, eu sei.» - Respondeu Pina-Colada. E depois não disse mais nada. Estavam ambos no vazio do silêncio e, se ele quisesse apalpá-la, teria que inventar uma cena, só que não valia  a pena preocupar-se agora com tais assuntos, pois ali, diante dele, surgiu o inevitável; a figura alta e desengonçada da Preta, com lenço vermelho ao pescoço e um chapéu de coco na mão, calçando uma botas à.cowboy verde-azeitona . «Isso é propriedade privada.» - Disse numa voz trémula e excitada.
A seguir, a Preta inclinou-se para Pina-Colada e beijou-lhe os lábios, enquanto Padrinho se levantou silenciosamente edeixou-as a sós. E, à roda da cabeça de Padrinho, desvanecem-se as ideias e perde-se na rua.

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Quando. mais tarde, Pina-Colada encontrou a figura bizarra d1 Padrinho, deu-lhe uma explicação anda lá, esquece isso. Ao vê-lo atravé do vidro do carro, com os olhos enevoados de sono, sentiu pular e coração, tão forte eram as pancadas que receou que ele fosse parar; e foi naquela forma complacente que elajulgou esquecer o assunto como
se nunca tivesse existido e desceu a ladeira do caminho acompanhando.
-o, de modo a sanar o problema.
Normalmente ela era intransigente na defesa dos seus vícios, e quando os seus amigos, aos fins-de-semana a assediavam com propostas maliciosas, argumentava contra eles como umafera danada, como ela costumava referir, ao explicar: -aqui é o meu paraíso, onde está o meu jardim, entendem? - E se eles respondiam malcriadamen te - qualparaísoqualcaralhosuafressureira - ela ia ao balcão buscar um copo de whisky com gelo até cima, dirigia-se para a mesa do canto, sentava-se com uma revista na mão; tudo isto com um sorriso encantador nos lábios: Os cavalheiros não se importam que eu saboreie a minha bebida, pois não?... Oh!, ela era uma figura única, famosa na noite, rainha nos tablados onde os homens eram artistas e nenhum deles se pode gabar de ter conseguido pôr-lhe as patas em cima, não porque eles não quisessem, disse ela, mas porque foi ela sem apelo nem agravo que lhes deu de sopa.
Para Padrinho não houve patas nem sopas e muito menos negas . Para ele no seu contexto, a amizade perdura para sempre quer haja baldas ou não. No seu padrão , a amizade é intocável e está acima dos desejos da pessoa . Depois dele molhar os lábios com a bebida que tinha na mão, tapou o nariz enquanto cheirava qualquer coisa à distância. Foi quando a Preta (que ainda continuava de chapéu de coco na tola), se aproximou. Depois, com um aceno de timidez, saudou-o com um ar altivo e murmurou um convite; -é melhor sentar-se aqui ao pé de nós para não apanhar frio. - Tornou a afastar-se a passo lento, deixando-o grato por lhe ter avermelhado o rosto, com aquela frase -um bom motivo para sorrir.

Quando era uma miúda nova, Pina-Colada possuíra um rosto duma inocente, verdadeiramente excepcional, um rosto que parecia de anjo. A sua pele suave e macia era como a de uma mão de Princesa . As suas feições gaiatas ajudaram-na bastante nas suas relações com as mulheres efora, por assim dizer, um dos primeiros motivos apresentados pela sua

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primeira namorada, Susana Carrapito, para se ter apaixonado por ela. "Tens um rosto tão redondinho, pareces um queijo», - Maravilhava-se da, apertando-lhe o queixo entre as mãos. -«Um queijo amanteigado Ja serra.» -
Ela   rendeu-se aos ditos. «Não    digas    isso», - respondeu. - «Senão,
babo-me já toda.» -
«Aqui dentro?», -perguntou a outra. - «Com toda esta gente?» -
Ela afastou-se para dentro. A partir daí atormentou-a durante algum tempo a ideia da sua atitude perante as mulheres; qual a medida a tomar para combater essa sensação e apurar esse desejo que era agora a sua segunda natureza. _Teve, no entanto, a sua gravidade o facto de Pina Colada, ao acordar dum longo sono maléfico, transformado por várias cenas nas quais se destacavam imagens de Susana Carrapito na série duma sereia cantando em cima duma gigante baleia, não podendo pôr os pés em terra firme; chamando-a, chamando; -mas, quando foi ter com Susana, ela foi engolida pela baleia e o seu chamamento passou a ser um tributo de culpa e tormento ... e quando Pina-Colada  acordou e olhou para o espelho e descobriu a imagem de Suzana a fitá-la com o seu rosto sedutor, atirou com o espelho contra a janela, partindo-o aos bocados pelo chão, dando sinais de indícios de que sentia uma enorme e forte dor na cabeça.
Quando, mais tarde, pegou noutro espelho olhando para o seu rosto alterado, vendo um par de inchaços à volta dos olhos, horrivelmente feia, nem julgou ser quem era.
Era já noite. Ela não sabia as horas. Além de não ter relógio consigo, no quarto não havia relógio. Vestiu-se à pressa e desapareceu pela rua a correr, em direcção ao bar.
Volta   de  novo ao seu local de trabalho, como uma tresloucada à procura da sua amada. Visita a sala toda e descobre que a amante, sentindo-se sozinha, meteu-se na marmelada com outra rameira qualquer. Fica durante algum tempo imóvel, no escuro dum recanto da sala, sente-se traída e luta contra os seus próprios sentimentos. Depois, tira a fotografia da amante da carteira e rasga-a aos bocadinhos para o chão; e parte sem dar a conhecer a sua presença.
Pina-Colada volta ao quarto e deita-se com a roupa vestida em cima da cama a chorar. «Putas malditas.» - Gritou para a roupa da cama que lhe amortecia a voz, enquanto esmurrava as fronhas cheias de folhos, compradas no Armazém Samberi de Antero de Quental, com tanta força

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que o tecido velho de dois contos se desfez em trapos. «Mas que
raiva. Que ordinarice,foda-se aputa, que pega.» - Voltou a sair e foi para o mundo...O mundo da noite.


Ao fim da tarde do dia seguinte àquela em que recolhera amostras do novo carregamento de vinho, Hamilton o Borrachão tornou a ficar de sentinela na gare a ver passar os comboios e contemplando a estação ferroviária dos cinquenta anos de idade. O mal cheiroso dormia no banco de madeira junto à gare, sempre que estava bêbado e nunca atinava com o caminho de casa. Ele tinha-se instalado no andar de cima, enquanto observava lá ao longe, ao fim da linha, o barulho dum comboio a aproximar-se e o apito reconfortante. E, sob o seu ressono, Hamilton, de cara voltada para o chão, tratou-o num murmúrio, por um nome que há muito não pronunciava. Moscatel, disse ele.
De repente, ouviu o barulho do comboio a apitar ao longe, como se o nome proibido tivesse chamado o comboio. Ao virar o corpo no banco de madeira, desequilibrou-se e caiu redondamente ao chão, ficando inanimado. Durante o tempo que esteve adormecido, reviveu o sonho e viu o comboio a parar junto a ele e o descarregador de botas longas a ranger na madeira do vagão, de verruma na mão a furar o casco de madeira da pipa de vinho Moscatel e a dar-lhe prioridade para ele provar o toque do vinho. Ele esticou a língua o máximo que pôde e pôs-se a lamber o chão húmido e frio da gare. E, por um momento , perdeu o olfacto de distinguir o paladar, na sua dor começou a dizer: só sabem fazer batota. Este vinho não é o verdadeiro Moscatel. Acto contínuo, tornou a adormecer.
De manhã cedo, alguém tinha dado pela presença dele estendido no chão e mandou chamar os arrumadores do lixo que o levarem dali para junto do cais de descargas e puseram-no à sombra do depósito da água.


A taberna do Rato recebeu a visita dum jovem Inspector do Turismo, Henrique Secura, a arrastar os pés, a esfregar a penca vermelha que nem um chouriço parecendo mais velho e mais gasto de que os seus trinta e nove anos. Ele bateu no peito e soltou um grunhido à Tarzan: Unhnh. A esta hora da noite, o que vem a ser isto, murmurou o barman, mas ele não ia permitir que um simples empregado lhe desse ordens com

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0 homem da inspecção do Turismo, por isso, ficou esticado e de olhar malandro.
«Peço perdão, Snrº.barman», -confidencia. -«lnformações que trago
na algibeira, temos motivos para investigar.» -
«Não achamos ser necessário, esta casa possui todas as normas exigidas», - começou o barman por esclarecer.- «Mas já que está aqui, faça o obséquio de pôr-se à vontade.» -
Nesse momento, o Inspector pareceu confuso sem saber por onde principiar. E, antes de mais, agradeceu a gentileza do empregado que lhe pôs uma garrafa de whisky à discrição. E, para não lhe fazer desfeita, entornou um duplo-a valer. Depois afastou-se e pôs-se a medir a parede, não deixando de olhar bem para o tecto.Argumentou :«Isto aqui está baixo. O pé-direito vai ter que crescer.» -
Oempregado começou a sorrir e pediu-lhe explicações .«E então, Snrº. Inspector, como se deve proceder à altura se não existe mais espaço a não ser o tecto do vizinho?»
Ele respondeu rindo à socapa. «Temos Inspector sem dúvida. - comentou o barman, voltando a carregar no copo mais um duplo - É claro que a inspecção está concluída.» - O empregado não viu na inspecção motivo para grandes modificações e tratou de encher o copo outra vez do Inspector Henrique Secura que não deixou para amanhã o que hoje se deve beber.
«Pois é, então, estamos entendidos», - disse o Inspector de olhos arregalados. - «Vou aumentar aqui no projecto mais dois metros de comprimento para isto ficar dentro da alçada da lei .» -
O que o Inspector nunca disse, nem mesmo quando resfriou a cabeça com água na casa de banho, é  que se tinha equivocado; em vez de medir a altura da sala, mediu sim, mas foi a parede do quarto de banho.
«Aqui tem o meu número de telefone de Lisboa»,-comunicou ele antes de sair. - «No caso de haver sarrabiscada, contem comigo para testemunhar.Muito boas noites.» -
Henrique Secura recobrou de novo as forças. «Só um instantinho»,- disse bem alto. - «Deixe-me molhar a goela com mais um copo, é um crime deixar a garrafa a meio.» - Depois de beber de chimpam, os olhos reviraram várias vezes, subitamente apontou a direcção  da    rua  e     lá foi; ele a assobiar o hino da Ponte do Rio Kwai.

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Nessa noite. à luz esverdeada da lâmpada fluorescente do escritório Padrinho foi abalado por um chamamento telefónico dum conhecido.
«Psst. Escuta lá, Padrinho, torna atenção.» -
Padrinho ouviu com atenção o que o outro lhe tinha para dizer. E nã1 foi capaz de reagir às suas palavras. «É isso mesmo, homem», , confirmou a voz. -«Tens que fazer qualquer coisa.» -
Ele tinha o corpo pesado e a cabeça parecia chumbo que nem consegufo rodar o tronco. «A polícia da rusga deitou-lhe a manápula», -explicou.
-«Agora vai ter que dar à língua como o macaco da Índia.» -
Nesse momento a voz tornou-se roufenha e desapareceu da linha. Padrinho sabia que tinha que agir e puxou pela cabeça uma série de soluções. «Oh!, que caraças, só me faltava esta agora.» - Ele continuava perplexo. A voz do outro parecia querer sugerir qualquer ideia mas ele não o entendia - responsabilidade de quem? Como é possível? «Não estou a ver», - arriscou um palpite. - «E que culpa tenho eu, se ele for para o xadrez de Custóias?» -
Dobrou o tronco para trás ouvindo-se o ranger das costelas, numa evidente maratona de elevação física. Por fim, ficou de pé e foi para junto da janela, soltando um grunhido. «Só queixinhas e mais queixinhas que me apetece mandá-los foder a todos e fugir para a Amazónia.» - E rompeu em gemidos repentinos e inconstantes. «Calma, calma», murmurou automaticamente para si. «Tudo se há-de arranjar, tenho a certeza. Vá lá, força.» -
Minutos depois, o telefone tornou a tocar. Ele correu para o auscultador. O conhecido disse: «Psst. Peço desculpa de te incomodar... entendeste o que eu quiz dizer? Vamos fugir daqui antes que nos transformem em bodes expiatórios da má política deles.» -
«Mas que culpa tenho eu dessa má política? -Quiz saber Padrinho.
«Figuram-nos» , -segredou o outro solenemente. -«Só isso. E, depois de nos figurar, tiram-nos a pinta mais fácil.» -
«Custa a crer que seja assim, mas se tu o dizes, fala a voz da experiência», - Objectou Padrinho. «Eu já vivo há muito ano neste mundo e nunca tal me aconteceu mas,... há um ditado que diz: nunca digas que desta água não beberás.»  -
Nest• momento, veio um queixume do outro lado da casa. «Faz pouco barulho. Deixa-me dormir.» - Gritou a voz da mulher. «É a voz da minha mulher. Vou desligar e daqui por um bocado, vou ter contigo ao local
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onde marcamos.»
E desligaram a chamada, ouvindo-se o clique.

Na manhã do dia seguinte não havia sinais de São Nicolau nem do conhecido e Padrinho, na sua perplexidade, deu por si a andar pela rua acima e abaixo num constante vai e vem, com vontade de esmurrar aquele patife que lhe tinha pregado uma valente espera de quase duas horas de seca... Mas, quando se cansou de esperar, ele apareceu a correr e segredou-lhe ao Quvido. «Desculpa lá, mas não consegui pirar-me mais cedo de casa por causa da patroa. -e ele compreendeu a situação - Sei que estás metido nisso, mas podes contar comigo.» - Ele acenou com a cabeça. Padrinho sentiu-se invadido por uma onda de calor.
«Pobre  Cornpincha», -murmurou Padrinho, seguindo pela rua acima na companhia do conhecido. - «Pode ser que ele se safe desta.» - Ao fim da rua, voltou-se para o outro. «Ora bem, -disse -vemo-nos ao fim da tarde, está bem?» -
O outro queria ficar ali mais um pouquinho na conversa de chacha, mas Padrinho respondeu que precisava de pôr a cabeça a resfriar.
Quando o conhecido desapareceu, Padrinho recostou-se a um poste de carreira das camionetas epôs-se a  raciocinar. Naquele dia tinha muita coisa para fazer e muita gente para tratar. Inicialmente, ocorreu-lhe ir falar com os Cartolas, mas depois reviu o caso e mudou de planos; e, antes que se fizesse noite, chamou o motorista para o levar ao Porto.
«Lembras-te daquele advogado que, há coisa de uma semana, me deixaste lá?», -virou-se para o motorista enquanto se sentava no banco do carro. - «Ali perto da baixa portuense, estás-te a recordar?» - O motorista acenou com a cabeça que sim. Pondo ocarro a trabalhar, seguiu directo pela rua que conduz à auto-estrada. Durante a viagem lembrou-se de muita coisa. Depois veio um silêncio; um riso sarcástico; o som do Compincha a sentar-se na cadeira em frente dojuiz e dizer: ele não está a(, mas devia de esta r, enquanto ele não estiver eu não digo nada. Padrinho recostou-se no assento e sorriu pela primeira vez desde há muito tempo. Não lhe ocorreu que a sua confiança no Compinhcha tivesse razões de recear qualquer traição e, antes que tivesse tempo de pensar de novo, desatou de novo a sorrir. Padrinho compreendeu que o melhor seria aguardar para ver o que fazer.

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Ao fim de algumas horas de interrogatório, São Nicolau foi posto na rua sobjuramento de não poder ausentar-se para parte incerta do País, enquanto decqrresse o processo judicial para averiguações de provas. Tratava-se afinal de um processo bem conhecido dele e, por conseguinte, agradeceu a forma como o processo foi dirigido pelo magistrado. Não sendo uma das grandes figuras do processo, São Nicolau limitou-se a aguardar, conforme as instruções, até que Padrinho veio ter com ele e saíram os dois daquela sala de tormento para a claridade dum candeeiro projectando uma luz quente e harmoniosa, passando por várias mesas até se colocarem numa mesa oval junto da porta. Havia muita gente à volta do recinto luminoso e São Nicolau não deixou de reconhecer a amizade do amigo Padrinho naquela hora de consolo.
 «Obrigado, Padrinho, és sempre amigo do teu amigo.» -
«Agora deixa lá isso, não te ponhas para aí a choramingar e bebe uma cachaça para te aquecer a alma.» -
«Tiveste uma boa ideia. Venha lá essa cachaça.» - Concluiu ele.
«Já tens ideia no que vais fazer para futuro?» - Perguntou Padrinho.
«A partir de agora», -disse São Nicolau, -vou continuar a dedicar-
-me às transferências de defuntos para o inferno e não quero saber mais nada de política, percebeste?» -
Padrinho respondeu: «E isso dá dinheiro, assim?» - O outro não deixou de dar uma risada.
«Se dá! Pega todos os dias nos jornais e vê quantos embarcam; e cada um leva o seu destino!...» -
Uns minutos depois, Padrinho e São Nicolau saíram pela outra porta do recinto em direcção ao carro onde o motorista de Padrinho os aguardava. «Segue para Sul.», -disse ele -enquanto São Nicolau ouvia o noticiário do radio sobre as notícias actuais. E para Sul seguiram ambos com os pensamentos absorvidos de tanta coisa...


Ave Rara tornara-se amante de Marta Chata apenas por uma semana e, por aquilo que ela mais tarde designou de «amor-instantâneo», na primeira noite que ambos se conheceram, depois de Ave Rara e Marta Chata terem  esvaziado duas garrafas de whisky, em menos de duas horas e trinta e cinco minutos, deixou Marta Chata sem saber o que fazer.-Se despir-se ou beber! -E ela adaptou pela primeira escolha e deitou-se na

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cama. Ele dá u ma curiosa opinião: «Prefiro ver-te vestida que nua.» - Bela frase, só que ela guarda a aflição toda para si, deitada na cama e bebendo  o ultimo copo da noite.
Marta Chata era uma mulher trintona de estatura normal, com ombros de guarda-vestidos e andava sempre com uma grande agitação nervosa, como evidenciava o rosto pálido e olheirento; o seu cabelo comprido - inteiramente negro e liso -tantas vezes pintado para ficar sempre negro como a noite que cada vez dava mais hipóteses de ficar em pouco tempo com menos cabelos e a ter que usar peruca mais cedo para tapar a sua calvície; e o seu riso soluçante e super agudo que se ouvia à distância dum quilómetro,-contribuíam para transformar Marta Chata na amante de Ave Rara, a mulher da gente, pensou ele, e pegou num cigarro para fumar.Começou a invadi-lo um pequeno ressentimento contra ele próprio. Acabar com aquela relação de ligação contínua; ou continuar às pinguinhas conforme lhe interessava e, para os dias de hoje, parecia ser a melhor solução.
Ele precipitara-se na sua direcção no instante em que lhe transmitiu, em primeira mão, a resolução que só poderia estar com ela em dias ímpares. Ela levou-o para a pequena sala bem ordenada em cuja estante figurava um cartaz do Mao Tsé Tung, fotografias de amigos e em destaque na parte de cima, um vibrador de barro em que se lia I love Amsterdam. E, enquanto ele olhava atentamente e via o Jornal de Notícias e alguns livros feministas, ela disse, num tom neutro: «E o que vais fazer nos dias pares?» - Ave Rara, que estava a passar uma vista de olhos pelas páginas do jornal,  estacou de repente e enrolou os braços como se fosse tirar uma fotografia à lá minuta: «Ó que coisa. Eu sou um homem casado.» - Depois, olhou e viu no chão as garrafas de whisky vazias. Ele e ela bebiam que nem esponjas e, o pior de tudo, é que não tinham dinheiro para
comprar mais whisky.
«É como quiseres.» - Disse ela e pôs-se a travar o fumo do cigarro.
Ave Rara decidira dar uma volta pelo quarto e sala. Procurou banir do pensamento aquelas ideias dos dias trocados e sentou-se no chão, olhando para uma foto da Marylin Monroe em trajes menores. Aquela imagem deu-lhe uma forte corrente no instrumento que se levantou como um lince e foi ter com ela, conseguindo arranjar coragem para lhe dizer:
«Diz-me uma coisa, estás aqui há horas e ainda não conseguiste ter tempo para me seduzires?» - E ela respondeu, sem parar para pensar.

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A maior parte do tempo só estivemos aqui a beber.» - E logo ela se riu totalmente. E ele pôs-se por cima e ela pôs-se por baixo, depois enrrolaram-se e trocaram as posições e, derivado aos whiskys entornados, fizeram o «sessenta e nove» -e ficaram ambos em colapso de orgasmos
 - Pouco tempo depois, virou-se para ela a gaguejar uma banalidade qualquer; ela lançou-lhe um olhar mordaz e disse com os lábios besuntados, que loucura, meu! Ele ficara bastante confortado, tão confortado que olhou de relance para a foto de Marylin como a agradecer lhe aquela inspiração momentânea
 Era evidente que ele atinava com ela na cama. E, no fim, quando fumava um cigarro, ela encostou a cabeça ao ombro dele e disse em voz embriagada: «Não imaginas o gozo que me dá estar com uma pessoa que me satisfaz e não me chateia com nada.» - Ele ficou à espera de ouvir mais mas ela fechou os olhos a seguir e deixou que a sua mão poisasse na dele. «Dorme passarinho.» - Afastou a mão dela para o lugar onde tinha a boca à mercê, beijou-a carinhosamente. «Adeus minha querida. No dia ímpar, conforme o prometido, cá estarei.» -
Tempos mais tarde, deitada na cama, adormecida, estava a sonhar com o seu Príncipe Valente, com as suas idas e voltas ao paraíso dos lençóis, com o escoar das garrafas de whisky e aquelas posições no chão do tempo dos faraós que faziam bradar os sinos dos Clérigos, quando Ave Rara entrou de repente no quarto e a sacudiu para a acordar, gritando: «Pronto, minha querida, tenho que te dizer. São: Ímpares e Pares.» - Ela virou-se para o outro lado e mergulhou nas trevas do sonho.

O facto de se ter um vício compensa aquilo que a vida não pode dar
a uma pessoa. Nessa noite, na sala dejantar revestida a painéis de madeira   folheada e decorada com garrafas tradicionais de bebidas variadas, a
Madame Rara, com o seu vestido espampanante, comeu carne e bebeu uma garrafa de Mateus Rosé, celebrando um novo começo, um idílio amoroso. Para se criar um vício, tem que se viciar primeiro; pelo menos é assim a regra. Sob os olhares malandros dos outros clientes, comeu e bebeu sozinha, recolhendo cedo ao seu apartamento, situado na zona da baixa. Chegada ao quarto, tomou um duche demorado com cheiro a alecrim e esperou pela visita do amigo conhecido recentemente. O seu nome somava sete letras Baixote.

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Na sequência do contacto com a água, sentiu que o seu corpo lhe (ugia: por exemplo, as formas físicas e esculturais, há muito fizeram dela a rainha do nigth and day. Tinha percorrido os quatro cantos do mundo; passara pelo Muro da China ao lado do famoso Chung-Su-Sim, campeão do martelo nas Olimpíadas do Caraças. Recordando o Visconde das calças curtas que a quis levar ao Club dos Lordes de Londres para a apresentar aos amigos das calças à boca de sino, Madame Rara murmurou para si própria que também ela tinha a sua história da Arábia. A seguir à libertação do homem que a amara, deu-se a primeira fuga com o Xá das sete amantes, durante a qual ela percorreu o deserto do Sahara; umas vezes em cima dos camelos dos marroquinos e outras vezes em baixo dos cavalos dos árabes. O Xá (conhecido a partir dela como Moamé da Rosca) fora nesse período um fardo para a jovem Madame, cobiçada por toda a ala de camelos atrás de si pelo deserto sem árvores...
Agora, bem quente na cama do seu pequeno apartamento, Madame Rara livrou-se do fantasma do passado e preparou-se para receber a visita.
Baixote tocou na porta e ela foi abrir.
E entraram juntos. A seguir, beberam vinho, Madame tinha visto na televisão um filme de piratas etomou a liberdade de contar que se deliciara a ver o Pirata da Perna Amarela. Ele riu-se e bebeu a isso; um copo de Mateus Rosé. «Gostaste desta, hem?» - Ele respondeu: «Essa teve piada. À tua saúde.» - Toca a beber. Depois de beber um gole de vinho, ele voltou-se para ela e disse: «Mas ainda não me disseste quem é esse Pirata da Perna Amarela.» - Madame Rara esvaziou o copo e poisou-o a seu lado. «Ah! Pois não, mas vou-te agora dizer: és tu.» - Baixote estava estático a olhar e ela sorria.
Havia muitas coisas para te dizer, Baixote. Coisas que para ti talvez não sejam importantes :queria dizer-te que não me importo nada de fazer o papel  de tua mulher; - lavar-te as camisas e as peúgas  e passá-las  a ferro. - E há  a situação de às vezes poderes  dormir cá uma vez por outra, também não me incomoda mesmo nada. O nosso amor é um caso passageiro,  não achas o mesmo? -Um caso flutuante nas nossas  vidas. Resumindo: Um belo tema para mais tarde recordarmos. Que é que achas,? E mais duas coisas te vou dizer. Se eu dizia que fazias o meu tipo de homem, logo lisonjeavas-te todo e a seguir dizias que era bluff da minha parte, que eu é que tinha a mania de comparar-te com o meu ex.-querido das

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lidas foi não saber amar-te à tua maneira; estava escrito
que. seria a mulher para preencher esse  teu espaço.
Adeus Madame Rara, ele bebeu o ultimo copo da noite.A chuva voltava a bater nasjanelas de caixilhos de alumínio; ela correu as cortina, e deu-lhe um beijo na despedida, fechando a porta suavemente .
Ali deitada na cama, lembrou-se duma última coisa que tinha a dizer ao Baixote e que não foi dito. «Na cama», vieram as palavras, «nunca pareceste interessado em mim, excepto para me ajudares a subir para a cama, fora isso, acabei por sentir que não era uma amante o que tu procuravas . Era uma preta para tua criada.» - Pronto. Agora está tudo dito. Que tenhas boa viagem.
Nessa noite sonhou com ele, o rosto dele preencheu-lhe esse sonho.
«Só é pena não te ter conhecido dez anos antes», -dizia-lhe ele. -«Nunca te deixaria fugir, mesmo sabendo que ia levar com um par de cornos toda a minha vida.» -
Ela não disse que sim nem que não; limitou-se a sorrir, nem mesmo em sonhos jogava certo, pois a um canto da sua memória, já espreitava por ela outro Pirata da Perna Amarela ...

Depois de sair para a rua, Baixote foi até à taberna do Rato, na parte alta da cidade do Porto, e sentou-se a uma mesa a tentar decifrar as palavras que ela lhe havia dito. Ainda não era muito tarde, por isso a sala estava quase vazia, só com poucos clientes a beber uns refrescos, enquanto uma fulana gorda se entretinha noutra sala fazer as palavras cruzadas do jornal, bebendo um cocktail ciclone1, de palhinha. Baixote sentou-se com o seu whisky de malte novo com gelo, por cima de um vidro grosso na mesa onde um quadro representava um boémio à mesa de um bar, de rosto melancólico e triste e com um copo na mão, aparecendo em baixo um escrito -O bar sem um boémio não existe, o boémio sem um bar não sobrevive. -O empregado reparou que ele estava completamente em baixo.
«Ei, amigo!», -disse-lhe ao pé dele. -«Tristezas não pagam dívidas.» - Baixote levantou a cabeça. E logo respondeu: «Porquê, devo-lhe alguma coisa?» - O empregado era um indivíduo entroncado, de braços musculosos, com uma enorme barriga e usava barba espessa.

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1Bebida da noite, preparada segundo o critério do barman.
o empregado corou ao ver Baixote responder-lhe com aquele ar atrevido e Baixote considerava-o como uma espécie de parente mais afastado. «Ouça, não ligue  ao  que  eu  disse.» - Quando o dono da taberna, de nome Rato-Ratão, chegou ao pé dele e perguntou: «Então, foi você que trouxe o mau tempo?» -
«E você ganha algum com isso? » - Respondeu Baixote.
«Eu, pelos visto, não.» -
«Ponha aquela gorda que está ali dentro a dançar à chuva, quem sabe, se não aparecem por aí uns camones 1» -
«Com aquela gordura, desconfio que nem um caolha entrava cá para dentro.»
«Nunca se sabe. Gordura é formosura.» -
«Você é que estava bom para ela; passava-lhe o mau tempo e ela, em troca, dava-lhe um bocado de chicha para aquecer os dedos.»
«Deixe lá isso. Prefiro entreter-me com os meus.» -
«Console-se, então, a ver a chuva a cair», -concluiu ele. - «É mais idiota que eu pensava.» -
«Obrigado, pelo elogio», -disse Baixote, acabando o whisky. -«Nós os dois na balança, não sei para onde o prato da estupidez balancearia mais.» -
Rato-Ratão, sabendo que espicaçando o outro estava a animá-lo,
apesar dele continuar com cara de poucos amigos, chamou o indivíduo com cara de indiano, amarelado de pele e olhos negros que acabava de entrar, envergando umas calças e camisola em tom de laranja. «Ei, amigo,
- gritou - só faltava cá você. Entretenha ali o Baixote que está cismado com aquela gorda que está lá dentro.» - Toy, de apelido do tempo em que andava na catequese e sobrinho duma figura conhecida do mundo do chuto da bola, tendo agora adaptado uma profissão de não fazer nada na vida a não ser viver dos rendimentos da velha mãe, e solteirão de gema, aproximou-se da mesa de Baixote. «Se é verdade o que ele diz, veja lá, se não se quer fazer ali ao pastelão, eu cá por mim não lhe perdoo, atiro-me já a ela». - Responde Baixote. «Isso é uma coisa que me ultrapassa. Atire-se lá a quem quiser, duma coisa tenho a certeza; a mim é que você não se atira.» -
Toy deu uma palmada no ombro de Baixote. «Não me leve a mal, só estou a brincar consigo», -disse. -«Mas, em relação à mulher, digo-lhe, se ela me der uma balda, atiro-me nem que seja de cabeça.» -
«Por mim atire-se à vontade», - disse Baixote. -«E, se assapar nela...

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lTuristas estrangeiros.

8aixote levantou-se da cadeira. «Sois boas pessoas mas acho que está na hora de eu ir dormir.» - Responde Toy, que foi à casa de banho para espreitar a tal fulana gorda, e falou bem alto: «Não se vá embora ainda; a noite ainda é uma criança. E nós vamos ...» - Baixote, interrompeu a frase para se ir mesmo embora. «Vai passear menino, o que tu queres é paleio e eu não tenho a tua vida. Boas noites.» -
Este desenlace entre Madame Rara e Baixote, depois deles terem experimentado as conjunções do amor com um entusiasmo inicial de bradar aos céus, com uma ternura dos anos quarenta de enaltecer, fazia prever que aquele relação tinha pernas para andar, só que terminou antes do tempo de chegarem à meta . Durante esses dias ambos viveram a comunhão de bens de passar camisas e peúgas a ferro e, no meio dumas marmeladas, foi um remedeio. Baixote desabafou que nunca tivera sorte com as mulheres, mas que nunca se sentira bem sem elas, porque lavar camisas e passar a ferro era uma missão a que ele nunca se habituara. Além de que, na pensão onde estivera antes, fartou-se de apanhar piolhos e chatos, tendo que andar sempre no coça-coça! Foi  um tempo inesquecível para ambos. Na ultima noite em que passaram juntos, ele disse a Madame Rara que tinha sido nos tempos da sua juventude  o melhor stick da sua turma. No momento em que as palavras lhe saíram da boca, ficou com receio de ter estragado aquele momento, receando que ela levasse a peito aquela leviandade. Mas escusava de ter medo, pois o que Madame Rara fez foi apalpá-lo de cima a baixo e beijá-lo por todo o lado, ao ponto de o deixar na cama virado ás avessas.

Padrinho tinha um certo receio de andar de combóio, mas desta vez não teve alternativa. Uma vez que o seu motorista estava doente, seguiu no Alfa para a capital. Tinha-se instalado em primeira classe junto à janela, de costas para a máquina porque era adverso à velocidade. O terror de pensar em acidentes de comboios dava-lhe alguns calafrios. Ficou sentado com os punhos metidos na gabardina de forro azul e tentou não entrar em pânico. Quando veio o revisor picar o bilhete, já Padrinho

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tinha acalmado na viagem e começara a ler o jornal duma ponta a JLttra. À medida que o comboio avançava, transportando-o através de iuas linhas paralelas de metal presas ao chão, Padrinho sentia a atracção
.Ja grande cidade começar a exercer sobre ele um domínio mágico que lhe fazia adivinhar num grande futuro. Levantou-se de repente do seu iugar e foi pelo corredor do compartimento da carruagem até à casa
,te banho. Lá dentro, no W.C., voltado para a janela, começou a
desenhar-se a capital. A Lisboa que ele queria ter ali mesmo, à luz do seu pensamento. Disse em voz alta o nome dela. «Aleluia. Até que enfim, stás aí à minha espera.» -
Padrinho saiu e fechou a porta da retrete.
Ao voltar para o lugar, reconheceu a figura do seu primo que o cumprimentou com amabilidade. «Aleluia! -disse o outro -Já faz um tempo que não te ponho a vista em cima.» - Era visível que Mequinho, o primo, estava cheio de curiosidade para lhe fazer as mais variadas perguntas e agora, que desatara a falar, não havia meio de fazê-lo parar.
«Ouço dizer por aí que agora descobriste o ovo de Colombo. E que subiste depressa na vida, isso é tudo verdade, meu caro primo?» - Mequinho fez um intervalo para respirar. Era um homem alto e bastante magro, no seu sotaque de provinciano. Trajava um fato ás riscas, feito por medida, o relógio de ouro com a respectiva corrente presa ao colete, os sapatos à medida dos seus pés confeccionado na sua fábrica, brilhantemente engraxados, os botões preciosos nos seus punhos brancos engomados. Acima desta vestimenta de vendedor de calçado, surgia uma cabeça rectangular, coberta de cabelo espesso muito bem alisado, e de onde brotavam sobrancelhas carregadas, sob as quais ardiam os olhos perspicazes em que Padrinho já tivera o cuidado de reparar. «Estás a ficar muito janota», -comentou em tom irónico.-«Dá-me a impressão que vais ver as meninas da capital.» - Mequinho acenou que sim com a cabeça chegando-se mais para ele e sussurrando em baixo tom: «Vou a Lisboa ver a merda que lá se côa!» - Mequinho sempre tivera veia poética e sentia um certo orgulho em presentear os amigos com quadras instantâneas como agora, quando se pôs a recitar:


Companheiro, peço-te: ouve com atenção
Não queiras ser o mealheiro, nemflor de quem se cheire Umperfume envenenado, não...

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 Padrinho felicitou-o pelo verso e esperou que u primo se calass mas foi então que Mequinho se expandiu ainda mais. «Tu não precis0 de me falar de ti», -disse jovialmente. -«Naturalmente, eu quero qu estejas bem, mas só te aviso para teres cuidado com quem andas.» Piscou um olho com ar entendido e colocou um dedo espetado à frente do nariz. «Nada de confiares em ninguém. Eu respeito a privacidade da pessoas,  podes  crer.» -
Durante uns segundos, Padrinho permaneceu calado e Mequinho, sem
esconder a sua desilusão, viu-se obrigado a falar por ele. «Quero que saibas que não me quero meter na tua vida e podes contar comigo seja para o que for», '-- murmurou. -«Vou ficar aqui umas horas a tratar duns assuntos e, na volta, se quiseres, podemos combinar irmos jantar e depoi seguirmos juntos na viagem.» -
Padrinho pôs-se de pé, e o primo levantou-se também, quase que ocupava todo o espaço disponível entre os bancos. O comboio passou num túnel e por sua vez Padrinho teve que se desviar à pressa para não levar com o outro contra si, que foi agarrar-se ao fecho da porta de correr para não se estatelar no chão. Instantes depois, o comboio saiu do túnel e Mequinho ficou a puxar os dedos da mão com a cabeça cabisbaixa. «Có o diabo! Estava a ver que ia fugir do chão!» - Disse ele por fim.
Eles abandonaram o compartimento, ao som dos apitos sonoros do combóio a querer dizer que estava a chegar ao destino.A cidade -Lisboa
-nem mais nem menos! Estava vestida de branco, parecia que ia a um enterro. E quem será o morto, homem, perguntou a si próprio Padrinho, oh! caraças, espero bem que não seja o meu! Quanqo o comboio parou na estação de Santa Apolónia, saltou para o chão, acompanhado de perto pelo primo.
As pessoas afastavam-se umas das outras. E depressa eles se precipitaram para as saídas até à paragem dos táxis. Nesse instante, Padrinho despediu-se de Mequinho e combinou irjantar com ele, depois de tratar os assuntos que o tinham levado até à capital. Ainda antes dele se perder entre a multidão, dizia Padrinho: «Agora vê lá se perdes a maior parte do tempo a mostrares sapatos sem veres as sapateiras!» - Gargalhada geral. «Em linguagem geral, quer dizer, recoveira da olheira.» - Quando Padrinho voltou costas ainda ouviu os murmúrios do primo.
«Raios te parta, és sempre o mesmo.» -
O tempo estava a preparar-se para uma grande chuvada.

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«Se vós não sabeis o que é um pesadelo eu sei muito bem o que isso
, )>  • dizia Madame Rara a um grupo de camareiras com os rostos
;·i"uminados pela chama interior da curi.?sidade. «No ponto baixo das nossas vidas acontece amiúdas vezes. As raparigas desamparadas ou aniquiladas de tristeza e profunda dor, ou simplesmente àquelas que se deixam viciar pelo álcool e drogas pesadas, esperando chegar ao cume mais depressa para morrer por aí numa valeta mais cedo.» -.
Lá dentro da sala, o fumo acumulava-se no ar e na pequena extensão do recinto. Por debaixo das luzes em tom de amarelo-sujo que entorpecia os corações e tomava os sonhos mais imaginários, saía dos alto-falantes a voz de uma cantora a cantar um trecho de música com letra da desgraça da alma. Aqui rio recinto raso de luz amarelada também a música cheirava a pesadelos e não havia pássaros a cantar.
«Madame, Madame?» - As mãos de uma rapariga acenando no ar, chamaram-na a um canto da sala e levaram-na até à casa de banho.
«Aquela rapariga está ali completamente embriagada e não diz coisa com coisa! Será que está com pesadelos?» - No rosto da rapariga notava-se um ar de angústia. A outra moça estava deitava no chão com o rosto pálido, que coisa incrível. «Porque é que fizeste isto para estares completamente embriagada?» - A outra ouvira-a dizer algo, mas estava demasiado excitada para responder-lhe. Os seus olhos não se arregalavam, antes estavam semicerrados, pelo efeito do álcool e os seus lábios tomaram-se pálidos em vez de rubros. Madame Rara, a dado momento, pegou pelos braços da moça e bradou alto com insistência:
«Acorda, pá, tu não és nenhum saco do lixo, deixa-te destas fitas e encara a realidade.» - E soprava-lhe no canto dos olhos, sacudindo o corpo até chegar a pôr-lhe água na fronte para dar mais ênfase: Oh, como arde a testa. Deve terfebre. Madame Rara tentou controlar-se. «Deixai-a estar aí um bocado a descansar e vamos nós ao trabalho.» -
«Pesadelos», -repetiu a frase com firmeza. -«Isto são é bebedeiras.
Estas gajas são viciadas e malucas ao mesmo tempo.»
E logo voltou a falar. «No meu tempo de menina moça, eu vi tanta fulana a apanhar a piela por causa dos chulos delas e depois diziam que era para esquecer; o tanas é que era, tudo não passava era duma dor de corno que elas sentiam pelos seus gajos. E depois, claro, viciavam-se no álcool e, volta e meia, andavam com semelhante carrascão que nem vos conto nem vos digo.» - Elas foram para a sala trabalhar e, durante o resto do dia, entretiveram-se na conversa com os clientes na sala.

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Mais tarde, quando a outra moça abriu os olhos, deu conta qu Madame Rara estava ao pé de si e saudou-a com um ligeiro aceno de cabeça. Ela foi-lhe buscar um pouco de água no copo e deu-lhe a beber. Uns minutos depois, a moça recompôs-se totalmente e acabou por comportar-se da maneira mais natural do mundo, como se nada tivesse acontecido antes e voltou para o seu serviço.
Madame Rara conversou bastante com ela. «Nestes últimos tempo tenho andado desvairada, nem sei o que faço -e manifestou entre outras coisas o seu repudio por se ter deixado envolver na tentação de tirar umas passas na casa de banho. - aquela sacana da espanhola é que me meteu o vício de experimentar emoções fortes para entrar no mundo da droga.» - Tudo isto e mais algumas confidências a outra contou a Madame Rara eprometera não voltar a infringir aregra dobar.«Prometo-te não voltar aexperimentar essas merdas. Palavra de mulher que quero cumprir.» -
Mas o que ela não disse às colegas foi o seguinte: é que já era um habito seu estas fumaças; desde os tempos em que conheceu algumas colegas viciadas no chuto, e que aquela cena de hoje não fora um acidente mas, sim, um sinal de fraqueza, um sinal de desgraça pura e total. Era possível que também algumas andassem metidas no vício mas, para já. remetiam-se ao silêncio das trevas da noite.
As camareiras estavam à espera de Madame Rara, já impaciente com toda aquela conversa sobre os pesadelos. Queriam saber mais história. como por exemplo a história dela.
«ÜS meus pesadelos já os tive noutra idade. Agora não, aos quarenta anos, o qe eu quero são umas noitadas bem passadas e, de vez em quando», - disse ela com emoção, - «arranjar por aí um manduca qualquer que me aqueça os pés no Inverno para não ganhar calos no Verão. Ésó isso que eu quero mesmo.» - Madame Rara era uma mulher fascinante que cativava qualquer pessoa ao primeiro contacto. «Se fosse hoje»,- acrescentou ainda. - «Não acreditava em tudo o que em nova acreditei;que o amor era para durar sem a gente se cansar, que se podia confiar num traidor fiel, tudo. Ver os homens adorarem-nos como se fôssemos galinhas de ouro e não termos os chulos a sugar-nos o leite e os patacos até à quinta parte de sua majestade: O camelo!» - Ouviram
-se as gargalhadas das camareiras; todas elas estavam estupefactas com o conto de Madame Rara.
Quando ela saiu da sala, os risos ainda pairavam no ar.

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A seguir à Rapariga da Saca Preta, Golias voltou ao mundo da fantasia que começara com a nova realidade a mover-lhe os sentidos. Tinham-lhe aparecido, por exemplo, algumas delas armadas em fidalgas da capital, sem lhe deixar credenciais de boa técnica, até que mais tarde, durante a festa da inauguração do Salão do GAS viu uma mulher vestida de negro que mais parecia um uniforme. Após trinta e nove minutos de conversa pró tecto e encostos propositados, tomou a liberdade de a convidar a ir visitar o seu quarto de fantasia erótica e, por fim, ei-lo sentado junto duma urna enfeitada de flores com um manequim de plástico a imitar o morto, de olhos bem abertos ao silêncio, fitando, com o seu vestido à uniforme.
Mas quem é ela? Uma prostituta? Uma imigrante, visitante ou uma
companhia qualquer? Não confundir o termo das palavras; uma visita é uma visita. Não está em causa a sua condição de visitante. Uma visita é para ser estimada, apreciada e até gozada.
Chama-se Graça Boa Hora. Era uma mulher quarentona, mas apresentando uma fotografia invejável. E, nestas coisas, Golias sempre se deixa atrair por um bom porte físico.
O papel espesso na parede, ás riscas azul-marinho sobre o fundo creme, perdeu um pouco de cor, o bastante para desenhar quadrados vivos nos lugares onde antes havia rectângulos. Golias não gosta de saturação.
Quando  se mudou para  ali, compôs  uma  decoração  cheia  de
recordações. Na chaminé tem uma colecção de postais com dedicatórias às namoradas, à qual chama simplesmente recuerdos de mi vida, uma gigantesca pista de automóveis telecomandada ao canto do sofá. Mas no quarto onde ele se deita, na parede em frente, está o retrato de uma mulher de preto, tão corpulenta como ele é forte. Uma mulher poderosa, como ele a amoli: assim a guarda perto de si.
Da mesma forma que, nos dias da sua loucura pelo erotismo, ele abre a urna camuflada debaixo da cama onde ela está oculta. Sob um medalhão junto à garganta, vê-se o retrato dele. Ela é a Viscondessa, e o seu nome é- pois, qual havia de ser? -Centopeia. Noutros tempos, tempos remotos ejá longe, ela e ele comungaram o bem e o mal um com o outro.
Os reposteiros, de veludo encarnado grosso, ficam corridos em dia de sol permanente e descobertos em dias de sombra frequente. A dura realidade de estar aqui a apanhar sol permanente e não estar lá, no lugar

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da  urna,  em dias de sombra frequente, prendem-lhe  todos os seus pensamentos.
Quando chega o inicio do seu ritual, Golias cruza as mãos diante.do
corpo e fixa os olhos no manequim de plástico, fazendo-se credor das suas graças, apesar da luxúria, da maluqueira e dos costumes do acto que em redor imperam. Outro motivo que o leva a correr as cortinas é que há, evidentemente, a concentração total no erotismo. A paranóia para o lascivo é um acto de pura imaginação que o leva aos confins do além. Cheia de arrepios de medo estava Graça Boa Hora que, em boa fé, não via chegar a hora de se pôr dali a desandar que nem um foguete. A cobrança por tal encomenda ficara-lhe bem penoso e, para desanuviar o seu suplício, disfarçou-se de coveiro coberta de um sobretudo preto e uma colher de sopa na mão; e pôs-se ao fresco que nem uma borboleta
conseguiria desaparecer dali tão rápido.
 Quando chegar ao fim do seu ritual, Golias emocionado pelas imagens televisivas que os seus olhos encaixaram, terá um prazer total poder dizer que já falou com a Viscondessa Centopeia, onde se viu obrigado a contar-lhe as suas leviandades, epor conseguinte ficou incorrupto, puro.

O Deus Neptuno é inimigo das mulheres solitárias. Sempre que vê uma mulher sozinha não espera pela demora para a·devorar. E só se sente satisfeito quando puxa a portinhola para cima e aperta os botões das calças. Nos dias em que ele sai de casa para visitar a taberna do Rato, entrelaça as mãos diante do corpo e fixa os olhos nas pessoas que estão sentadas à sua volta, de maneira a ver se encontra alguma alma feminina numa mesa e de preferência sozinha.
Uma história que ele contara a um dos seus favoritos, o espalhafatoso Baixote e famoso apresentador de programas de mulheres, na taberna do Rato, onde o Deus Neptuno tem o hábito de comer todas as mulheres desamparadas à procura do subsídio da febra abonada. Ali, contou ele, acabou por conhecer uma jovem de vinte e sete anos, profissional de analises de produtos  variados, também pelos  vistos desamparada,  e

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Juseram-se os dois na conversa. Muito bem, essa tal analista de produtos
·variados era uma figura atractiva. Mal acabara de tirar os trapinhos do corpo como uma taxi-girl, pôs-se aos saltos dum lado para o outro, confessando que não estava ali para mais nada a não ser fazer um srrip-tease em rodopio. Foi isto nem mais nem menos que o Deus Neptuno viu para seu desabono, deixando-se ficar ali, insignificante, a olhar o talen to da artista. Apeteceu-lhe arrancar as unhas dos pés ou pôr-lhe a vagina careca, mas não perdeu pela demora. No dia seguinte, subiu o preço da oferta da febra abonada e voltou ao local do espectáculo.
Durante o trajecto, chegou a falar para si próprio. Muito bem, monte de esterco, andas a gozar-me mas hoje vou-te pôr de língua afiada que
nem um galg'o atrás da galga. Quando ela acabou o programa, Deus Neptuno, espalhado sobre o sofá, implorou à analista de produtos variados, de mãos entrelaçadas: «Minha querida, não me dês mais baile, eu gosto muito de ti, mas tu pões-me as tensões ao máximo.» - Quando Baixote ouviu a história, abanou a cabeça e disse: «Que pu ta, fez-se artista e não queria molhar o pincel; era só receber o pataco e pronto, já estava o trabalho feito.» - Mas a verdadeira moral da história era que o Deus Neptuno tinha levado a artista ao tapete e carimbado o seu passaporte de ejaculação.
O Deus Neptuno é o maior.
O movimento do GAS aumenta a partir dele, quase doze horas por dia. Ele está constantemente a beber água, um copo de dez em dez minutos para se manter em forma; o próprio tesão limpa as impurezas antes dele se realizar. Todos os novatos que o rodeiam conhecem a sua fama sobre as solitárias pois, segundo o Deus Neptuno, secomunica à desamparada, através do seu peso monetário, que faz dela ficar aliviada.
«A mulher solitária», -fez ele notar. -«Necessita de consolo físico, além do vil metal que é importante para a manter na sedução do pecado. A solitária bebe leite enquanto eu bebo água, essa é que é a nossa diferença.» -
Deus Neptuno muitas vezes teve ocasiões de contar mil histórias de mil dias em que participou ao lado das mais belas mulheres mundanas daquele tempo. Quem não teve nunca u m sonho de ser o Rei dos Atiradores do Sexo um dia? -Mas ele sonha com mais de um dia; sente o poder crescer-lhe nas pontas dos dedos para que possa fazer umas coceguinhas nas desamparadas solitárias com que controlará a história.
A história do Rei do tiro, note-se. Do tiro ao sexo.

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1 \ 1(11 i 1tho Toy inclina-se para o Tio do chuto da bola e faz-lhe v1 i
inakào li ma dúzia de copos enquanto o diabo esfrega um olho. O Tio escutv quieto e deixa-o palrar à vontade, pois sabe que é tudo letra o que el diz e que tudo não passa de conversa de copos. Entretanto, Toy, comii cabeça demasiado pesada para o corpo que possui, equilibra todo o set1 peso no pescoço grosso. Os seus olhos começam a ficar turvos; os lábio vão mexendo para contar uns filmes à maneira. Ele é a força pura do alcoolismo; move-se ao retardador, e as suas histórias, no seu passe de conversa sonolenta, dão para adormecer um morto.
Não, um morto não, um vivo assim é que é.
As explicações que ele dá podem ouvir-se no mesmo preciso momento, à distancia dum quilómetro. Começando por uma série de insultos à equipa de futebol da sua terra, melhor dito, ao seu treinador e aos jogadores por uma falta de atenção táctica, estupidez momentânea e burrice de camelo do Presidente, e assim por aí adiante, chega ao cúmulo de berrar alto e pôr-se a coçar os colhões perante a plateia de clientes que o tinham que gramar naquela estúpida conversa. «Eu fazia uma revolução que mandava aquela cambada toda para o galheiro 1.» - E continua a dizer alto e bom som: «Porque os otários dos sócios é que têm que gramar com as burrices daquele treinador que estava bom era para treinar os tomates do Padre Inácio.» -
A história anima-o edeita abaixo mais uma golada de whisky com muita água no copo. Toy ergue de novo a sua voz. «Se Domingo não ganharmos àqueles pascácios», -declarou, levando o copo à boca, - «eu juro que mando à merda o Presidente e desisto de ser sócio.» - O Tio continuava a deixá-lo falar esóseria. E, de vez em quando, murmurava num tom autoritário e sonoro.«Não sabes o que dizes. És sempre o mesmo pateta.» -
Passaram ali um bom bocado do tempo ao balcão do bar. Enquanto ele repetia as queixas contra os maus resultados da sua equipa, o Tio respondia-lhe, longe a longe, com brandura: «Ü teu sofrimento é o nosso sofrimento. Por isso cala-te e não digas mais asneiras.» - Mas ser viciado no álcool é motivo de opressão constante. O hábito de beber muda o seu timbre de voz, a sua atitude de carácter e contagia todos os que dele se aproximam.
Toy continua a dirigir-se ao Tio. «Sabes que mais? Que selixe o futebol; é melhor eu virar-me para as mulheres que essas ao menos não me chateiam tanto e dão-me mais gozo de entretenimento.» - Bebeu outro

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1Cadeia.

opo e, no final, deu um arroto, dizendo a palavra: «Amem.» Deu por encerrada a conversa da noite.
Padrinho está a olhar-se ao espelho. Parece tudo menos um santo, é simplesmente um homem de carne e osso com as suas próprias roupas que veste todos os dias: blusão de couro e chapéu de feltro, umas calças de bombazina presa a uns suspensórios, camisola de lavrador, acompanhado duma camisa branca a realçar o corpo. Este Padrinho tão sentimental está cada vez mais vulnerável ao grupo de amigos que o acompanham nas suas passadas pelos meandros do vício e do prazer.
Ele fala num tom rabugento para disfarçar o seu mau dia e vira-se para Rato-Ratão, o dono da taberna. «Então, rapaz, como vai isto por cá?» - O outro abana a cabeça e fala num tom irónico. «Vai-se-lhes indo.» - E volta a falar: «E a sua escola de formação, os aprendizes como vão?» - Padrinho fecha os olhos, suspira. «Vai um pouco mal. Quero regularizar a situação mas as Finanças não autorizam.» - Então, aproximam-se mais clientes e eles vêem-se obrigados a mudar o tema da conversa. Pega no copo de whisky e muda-se para o outro lado da sala. De repente entra Ave Rara e dirige-se a Padrinho enviando-lhe uma saudação através dum toque de mão nos ombros. «É hoje que me vais levar a comer a uma marisqueira?» - E logo o outro responde: «Ó que caraças, é para já.» - Então alinham as ideias e vêem-se de repente com Fífia também a bordo do carro de Ave Rara, a caminho do restaurante. E precipitam-se pela noite fora. A lua começa a aquecer, a fervilhar, como a água aquece o lume. O calor torna-se mais forte e Fífia, com um movimento rápido, arregaça as saias para cima, mostrando um par de coxas bem torneadas. Depois chegam à sala do restaurante, uma sala em forma de postal, com um aquário ao centro e sob uma temperatura amena
e dócil.
Padrinho e Ave Rara, com Fífia sentada ao meio, preparam-se para dar ao dente. «Ü que desejam para comer e para beber?» - A voz do empregado ressoa ao pé deles. Padrinho faz a encomenda. «Traga-nos uma travessa de percebas, e mande preparar uns tigres grelhados à maneira da casa; e para beber, sirva-nos um Alvarinho bemfresco .» -
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. ..;ala do restaurante estava bem apinhada de homens e mulheres, Jiante dos quais, os empregados andavam nu.ma fona dum lado pra 0 outro, nas mesas e no balcão, sem mãos a medu para atender os pedidos encomendados pelos clientes.
Padrinho dá inicio ao jantar. «Começai, meus amigos, comei e que
vos faça bom proveito.» - A seguir, a voz de Ave Rara não se fez esperar.
«A quem tu o dizes. Estou com uma fome de leão.» - Momentos depois, quando chegam as travessas, é chegado o grande momento; eles batem-se como tigres aos mariscos do mar e depois calam-se por instantes, quando o inimitável vinho escorrega pelas suas goelas. Até os sufoca e faz arregalar os olhos de estremecimento. O Ave Rara suspira fundo.«Já está. Venha mais outro.» - Fífia resolve intervir na conversa: «Não há garganta no mundo que resista a um copo destes.» - Responde Padrinho:
«Aí é o teu engano. Resisto mais depressa a um copo destes que ao teu amor.» - Ela dá-lhe um empurrão. A explicação parece magra mas serve para a ocasião.
«Vocês gramam-se», - diz Ave Rara. - «Mas eu gramo mais o caneco.»- Eles riem-se e continuam a comer, sem tempo marcado nem horário apalavrado. E assim se passa ojantar, até Ave Rara se levantar da mesa com um já volto e nunca mais voltou . A palavra engodo fica marcada no dicionário do Padrinho.
Depois desta cena não haverá outra igual.
Na fatídica manhã do seu trigésimo sétimo aniversário, dentro do seu carro, junto à praia do Cabedelo, o empregado de mesa TóZe via dormir a amante e sentia o coração a encher-se até mais não de puro amor. Tinha por mais de uma vez acordado aos repelões, antes do nascer do sol, com o travo amargo na boca que lhe deixara um pesadelo, o seu sonho de reconstruir um lar único -dos casais que adoram o ar livre da natureza -e acabara por adormecer de novo enrolado na construção do paraíso ali à beira-mar. Despertando ao som das ondas e envolto no nevoeiro do céu, ficou irritado consigo mesmo por se ter esquecido da parte final do sonho. Ergueu-se sem ruído, agora estava bem desperto, e olhou pela janela do carro em direcção à praia, ainda enevoada. Lá um pouco mais distante, ouviu ligeiramente o chiar da passarada junto ao

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arvoredo ao pé da seca do bacalhau. TóZé puxou o pescoço mais para cima epôs-se a fumar um cigarro, abrindo um pouco o vidro dajanela. A areia da praia estava envolta em névoa, no meio da qual rodopiavam as
aaivotas, fazendo a chiadeira do costume.

Desde o inicio do romance entre TóZé e a sua amante, no local do
trabalho onde se conheceram, há mil equinhentos dias, os sonhos tinham-se desvanecido aos poucos, da mesma forma que as ilusões se criaram no domínio imaginativo em que ele sonhara um dia; construir um castelo de areia à beira-mar para a sua princesa. Por isso, sempre que voltavam à praia , aquilo parecia tratar-se de um presságio de alguma coisa maravilhosa, .uma.vez que a curtição entre ambos era totalmente diferente das outras curtições entre eles.
Daí, o regresso à praia, em horário de pescador, animara o espírito de ambos e, depois duma boa curtição, dormiam até o sol raiar pelos vidros do carro. Quando ela acordava, via-o em cima do rochedo, tentando pescar com uma cana euma linha com um anzol eum isco enfiado. Tudo o que é corriqueiro acaba por se tornar impróprio para consumo e TóZé sabia muito bem como devia fazer feliz a amante; tornar-se ele num verdadeiro erudito.
Na manhã do seu trigésimo sétimo aniversário, quando a primeira luz do dia afluiu na praia e as gaivotas começaram dum momento para o outro a banharem-se nas águas, a beleza do momento cortou-lhe a respiração. Correu na direcção do carro onde a sua amante Mei dormia ainda e acordou-a com meiguices nas partes intimas.
TóZé sentiu vontade de fazer amor e não esperou sequer pela autorização das gaivotas, estendendo-se sobre ela, beijando-lhe a boca até desaparecer a comichão. Quando terminou, ficou a olhar para a inocência da silhueta meio adormecida.Ela tinha o cabelo comprido, loiro malhado , uma pele branca, branca e os olhos atrás das pálpebras eram dum castanho claro. Os pais dela não eram conhecidos. Por isso, a união dos dois foi fácil e amor à primeira vista. Com o passar do tempo, foram trabalhar juntos para os copos eentendiam-se às mil maravilhas no mundo da copofonia 1 • Como não tinham filhos, transformaram-se numa união sagrada de amor único e soberano, onde a natureza era a rainha-mãe dos seus segredos e mistérios. Cheio de emoção, TóZé observou Mei enquanto ela dormia e expulsou o espírito maligno do pesadelo que o atormentava. «Quem diz que viver assim na praia», - raciocinou alegremente, -«ouvir o relento, cheirar o aroma, fazer amor ao som dos

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1 Bar de alternos .
-




t Olhando fascinado a aurora maravilhosa, voltou a dirigir um discurso silencioso à amada adormecida. «Mei, eu faço hoje trinta e sete anos de idade e estou maravilhado com este amor. Só desejo do fundo do meu coração envelhecer ao teu lado.» - Disse-lhe enquanto ela dormia, atirando-lhe um beijo com a ponta dos dedos e inclinou-se para o lado e acabou por adormecer.
Baixou logo os olhos. Nem um ai mais disse e ali ficou entregue ao sonho, como ele desejara.

Quando a perversa Linda chegou à maior idade e se tomou, em virtude da sua beleza atractiva e de parecer ter olhos postos em tudo, bibelô dos desejos de muitos homens, começou a constar que andava à procura doutro amante mais generoso na medida em que o primeiro já a tinha posto de lado. Os seus pretendentes rejeitados lamentavam-se que, em termos práticos, ela exigia demasiado para aquilo que dava em troca; mas em abono da verdade se diga, uma carícia dela a valer valia bem à vontade o ordenado mínimo daquele tempo. Alguns amigos mais azedos foram ao ponto de sugerir que, com todos os defeitos e virtudes, Linda procurasse amealhar mais amantes, de forma a praticar menos egoísmo e fosse mais generosa para com eles, dividindo uma parte da sua beleza e vícios com todos eles. Apesar dessas tentativas e algu.mas atenuantes deles quererem fazer dela a sua prostituta, predilecta. Linda não foi no balão e seleccionou um a um os seus amigos privados.
Depois dos amigos saberem da sua firmeza em manter ao bom estilo a sigla: -muitos e bons -ela começou a olhar ferozmente concentrada na carteira de todos eles, que era no geral tomado como um sinal de desdém. A partir daí, os «cabritos» rotulados de amigos passaram a ter mais liberdade de dormir com ela na sua choupana, (como ela referia) sozinha com os seus jogos de cartas, em que era uma viciada incorrigível, e os tradicionais copos de bebidas variadas a qualquer hora do dia. Certo amigo, no entanto, ganhou o hábito de a levar para o seu atelier particular, discretamente  sem dar muito nas vistas, muito embora ela já  não

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,precisasse de dar satisfações aos vizinhos. Era um amigo intocável já
.;om idade de ser seu pai, que se tinha convertido em seu conselheiro, Jesde os tempos, em que ela viera desaguar à cidade, dando o nome de Zé, apenas esse nome e mais não deu. Linda nunca mais o largou e deu sempre provas de ter por ele um carinho especial, não esquecendo como J obvio, a sua tentação à carteira dele.
O bairro onde ela habitava chama-se Bomsanto, rodeado por uma imensa floresta de árvores e de verdes à volta dos campos e logradouros, com as suas múltiplas raízes; u ma área de mais de dois quilómetros de diâmetro. Certas zonas das árvores tinham-se transformado em guaritas de amantes nocturnos; outras em refúgio dos cães e galinhas. Alguns moradores mà.is pobres fizeram abrigos toscos nos carros abandonados e viviam como lordes no seu palácio de quatro portas e quatro rodas. Quando a chuva e o temporal se faziam notar, desaparecia tudo e nem os cães e galinhas lá ficavam para contar onde se tinham alojado.
Era um bairro do povo, ao qual o intocável Zé viera parar com a sua carrinha de marca Citroen, trazendo uma vestimenta chique e um perfume não menos chique e os vizinhos, quando o viam passar, faziam-lhe uma continência como um soldado faz a um general «Bom dia, meu Senhor». Como filho de Deus e embora ele não tivesse sido nenhum oficial do exército, ele aceitava o cumprimento dos vizinhos sem se meter a dar sequer explicações.Zé ganhava a vida como industrial. O seu plafond monetário chegava e bastava para proporcionar àjovem Linda um futuro auspicioso e rentável.
«Que bairro simpático, este.» - Dizia Zé.
«Nem por isso.» - Discordava a Linda.
«Porquê? Olha só: não vês esta gente tão acolhedora que deve ser bastante tua amiga.
«Estás muito errado. Não passam eles duns pulhas e elas dumas putas.» -
«Ü quê? Então é um bairro de pecadores?» -
«Vamos mas é sair daqui.» -
Um tanto excitado com a conversa, Zé inclinava-se, colando a boca ao ouvido dela. «Diz-me então depressa. O que é que agora te apetece fazer?» - Então ela arranjou-se à pressa e saiu a passear com ele por entre as pessoas que estavam aglomerados à porta da entrada a cochicharem umas com as outras. Pelo caminho ela pediu-lhe dinheiro para comprar roupas e ele acenava com a cabeça, todo risonho.

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 Zé.0 intocável, era uma pessoa bem falante e o dinheiro para ele er" somenos, 0 mais importante para ele, era a pessoa, e essa pesso;i chamava-se Linda. No carro, ele confessara-lhe a sua excitação numu manobra táctica, «Tás a ver, tenho ali na mala do carro umas botas para te oferecer se te portares comjuízo.» - Ela ficara indignada com a maneira dele expressar e comunicara-lhe que hoje não era dia para fazer marmelada; simplesmente não lhe apetecia, bem podia ele voltar para as suas amigas do bar. O rosto da rapariga ia-se colorindo de várias cores conforme manifestara o seu desapontamento e foi esse desapontamento que deu a Zé optimismo suficiente para o fazer ficar agastado, a cinquenta
passos da casa dela, e deixá-la à porta da entrada, dizendo com ironia:
«Não há amor também não há botas para ninguém. Passe muito bem.» - No seu dia a dia, Linda era empregada num bar de alternos. Ela apanhava boleia num  transporte dum amigo qualquer, levando uma pequena sacola com as coisas mais úteis para a sua maquilhagem lá dentro do trabalho.  O bar  era  conhecido  em todo  o quarteirão  pela  sua excentricidade e, acima de tudo, pelas catraias que lá atraíam os clientes mais requintados do mundo nocturno. Uma vez por semana, Zé dava lá
uma saltada e ficava a vê-la pular na pista de dança até ela se cansar. No  bar,  depois  de Linda  dar  um  vistaço 1 ao seu pé  de dança,
encaminhava-se para uma mesa sem ser aquela em que Zé estava sentado. Nas paredes do bar liam-se os escritos em letra gótica: o entusiasmo com que se vive cada ilusão é fantástico  e fabuloso.
Linda devia-lhe uma explicação. Embora ele não estivesse zangado com a sua indelicadeza, comprometeu-se com o empregadô de mesa e mandou servir-lhe uma taça de champanhe .Mas, apesar dessa gentileza toda da parte dele, o rosto de Linda manteve-se inalterãvel. Quem muda de opinião quer dizer que também muda de feição, com certeza. Só a cabeça dele sabe o que lá vai mas, concretamente, isto com mais uma tacita de champanhe, a coisa compõe-se, pensou Zé e na boa hora o fez. O empregado levou a taça à mesa, acompanhada de um bilhete escrito, no qual englobava metade de uma nota de cinco mil escudos. O escrito dizia o seguinte: se quiseres a outra metade da nota, vem cá buscá-la. A seguir, cruzou os braços e fechou os olhos. Quando Linda pegou no bilhete e se preparou para ir embora, o empregado abriu os olhos instantaneamente. «Raios te partam». - berrou ele. - «Parece que nãoprecisas de dinheiro? Vai lá buscar a outra parte da nota, são cinco mil dele!...»

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lBoa figura.

A perversa Linda demorou um segundo a raciocinar se havia ou não havia de ir buscar a outra parte da nota. E levantou-se da cadeira num ápice. «OK. Não te preocupes comigo.» - Linda sorriu e atravessou a pista em direcção à mesa dele. Quando Zé pôs os olhos nela, ajovem foi invadida por uma onda de calor e sentou-se ao lado, dizendo simplesmente: «Olá». Nessa noite ela entrou na sua choupana e dormiu com ele até o dia seguinte, ficando assim o capítulo das botas encerrado; e ela acabou por aceitar o que perdera antes. «Ü tigre ataca sempre quando o sol se abre.» - Dissera-lhe Zé, citando-lhe um velho provérbio à despedida.

Pouco tempo depois, Linda apaixonou-se por um músico para viver com ele um intenso amor. Nos dias que se seguiram, passou muitas horas fechada em casa e abandonou a carreira de alternadeira. O músico da harpa tinha-a embalado num sonho em que ela se deixou seduzir sem nunca protestar; eu nunca imaginei vir a tocar harpa, o que é que vocês pensam que isso é, mas raios me partam, se um dia eu não vou aprender a tocar harpa, flauta, ou quem sabe, até pífaro. Comigo é que não é.
Quando ela acabou de vez com os amigos para se dedicar ao músico e se desviou do mau caminho para entrar noutro caminho menos mau, deu por si deitada na cama, descobrindo que já não tinha dinheiro que chegasse para os seus vícios, que tinha o corpo dorido da falta de ginástica diária, que lhe custava levantar em virtude de tanto pífaro tocar e, por ultimo, enrolou-se no travesseiro e puxou da garrafa da gota e mandou abaixo uma boa golada de líquido. Por fim, deixou-se ali deitada a sonhar com o tocador da harpa nos palcos de todo o mundo.

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