Thursday, December 25, 2014


                                             
                       
                                                   O meu “Bolinhas”
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Já lá vai um bom par de anos, numa segunda-feira, quando comprei o meu primeiro carro. Ainda recordo da sua matrícula; BF-19-03 – Morris Minor de 1953, cor vermelha e riscas lilás. Era propriedade de um colega meu do conjunto onde eu tocava viola que, o tinha lá encostado na sua velha garagem. E eu gostei daquele automóvel. Comprei-o a prestações e custou-me quatro contos e quinhentos escudos. Era um carro à inglesa; tinha o banco de trás comprido e forrado a pele e dava a impressão de uma sala de visitas. Tinha um espaço quanto baste para duas pessoas pôr as pernas à vontade. E às vezes servia como beliche; tinha as cadeiras da frente que, quando rebaixavam, o tornavam íntimo e prestável. Conduzi por um cemitério local a cem metros de distância. Não havia lá nada que me estorvasse, mas ao curvar o muro, calculei mal a curva, e lá deixei a minha marca. Levei algum tempo a limpá-lo e a pô-lo bonito, puxando o lustro aos cromos com graxa dos sapatos, e pintando os pneus a branco estilo barão. Não me lembro de me haver sentido mais entusiasmado e com enorme alegria. Demorou poucas horas para que o meu “Bolinhas”, como o batizara, se transformasse no meu objeto de eleição. Andava comigo para todo o lado. 
Naquela época eu trabalhava em night-clubs, como violista de um duo. Lembro-me do frio que ele fazia no Inverno quando eu levava as catraias a casa pela madrugada e como estas desatinavam aos gemidos. Era um carro de muitos buracos. Não aquecia ninguém. E às vezes eu abria os vidros para elas respirarem para dentro, e só depois os fechava, para sentir mais calor. Quando a noite estava mais fria, o remédio era uns bocados de cartão e pano grosso que, assim, tapavam os furos. Por essa altura mantive namoro com uma camareira, que me pediu para levá-la à sua terra, perto de Chaves. Antes de ir levá-la, fui lavar o carro e perfumei-o todo por dentro. A viagem até à sua terra correu de feição, o pior foi o regresso. Atravessámos as terras de Chaves no meio de uma tempestade de neve a cerca de 50 metros da estação ferroviária. A minha companheira deitou-se ao comprido no banco traseiro, e cobriu-se com uma manta. De repente, um camião em sentido contrário, saiu fora de mão e barrou-nos a passagem. Saí do carro e fiz então parte da equipa de automobilistas que tentaram retirar a neve dos trilhos. Passado algum tempo, o limpa vidros bloqueou e tive que o substituir; pondo a mão de fora para tirar a neve e desembaciar o vidro. Chegamos ao Porto praticamente gelados, porque o sistema de aquecimento deixou de funcionar e o carro converteu-se num frigorífico… e era isso mesmo. Levei cinco a horas a chegar ao destino. A catraia parecia ter saído de um caixão. Ela nunca havia confiado muito no Bolinhas; aquela viagem não concorreu para melhorar a sua opinião.   
Com a falta de trabalho que se gerava, não sobrava muito dinheiro para a gasolina e um fadista meu amigo, quando precisava que o levasse para um espetáculo, chegava-se a mim e dizia: “Mete dois litros…” e, lá íamos numa calma. E depois de alguns minutos, propagou-se no interior um cheiro a borracha queimada. O meu amigo fadista e os seus acompanhantes, saltaram do Bolinhas, gritando: “Pára! O carro vai incendiar-se!” Parei o carro e eles saíram para fora. A princípio, não sabia donde vinha aquele cheiro. Talvez um curto-circuito; talvez um fio a bater na chapa. Mas aos poucos fui desvendando o mistério. Eu já tinha adquirido um certo instinto para estes serviços. O problema era passar a luz de mínimos para médios; a fase entrava em choque. Assim, a viagem foi feita em mínimos.    
Lembro-me da crise económica dos 70 e as complicações que eram na bicha nos postos de gasolina. Não havia muita paciência para muito e num domingo à tarde, fiz uma viagem com o Bolinhas pela terra de meu pai, com uns amigos. De vez em quando alguns carros passavam por nós, apitando; seus motoristas e seus passageiros gostavam de pegar com quem conduzia antigos carros. Mas naquele tempo, ou a gente era descontraído com o próprio carro, ou não ia a lado algum. Após dois quilómetros de viagem, consegui ultrapassar o carro que me tinha ultrapassado antes, creio que era um Peugeot cabriolet, de matrícula francesa. Ele deixou-se enganar na estrada pela bicha à gasolina, e eu passei por ele com uma vaia em voz alta e áspera: “Comi-te, franciú!” Depois, escondi o Bolinhas no primeiro cruzamento, e uns minutos depois, lá apareceu o Peugeot a todo o gás. E nós adorámos aquele momento.       
Durante a minha louca juventude fazia um rode de coisas que naquele tempo pareciam banais, mas que hoje seriam consideradas completamente loucas. Um amigo meu, por sinal, era meu companheiro do duo, convenceu-se que um dia havia de me comprar o Bolinhas. O carro, porém, não estava mecanicamente em condições. Disse-lhe que não se aventurasse a isso; não queria vê-lo no hospital. Andei meio quarteirão antes que um ruído suspeito aumentasse na parte de frente do carro e a mangadeixa se desintegrasse com um estrondo semelhante à pancada duma marreta. Logo a parte da frente afunilou. Não sei qual foi a minha ideia, mas o que fiz foi concreto: vendi o Bolinhas conforme estava ao sucateiro por 5oo paus.
Hoje nada é igual. Agora é tudo eletrónico, cromado e pinturas brilhantes. No passado um carro era uma coisa tão familiar, tão próxima, tão importuna e querida quanto uma mulher. Hoje nada é igual. Espero que nunca mais seja…


                                                                                                                                                                                                 Abraão, Porto.


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