Thursday, September 4, 2025

 


     O Marmorista Baril          


     O marmorista Baril dizia mal dos coveiros. Os coveiros não sabiam fazer as covas para os defuntos, e muito menos, medir o diâmetro para cada um deles poder entrar na sua medida certa, era a sua opinião. Só através de uma medição a metro, achava ele, é que os caixões entravam em olho certeiro e não falhavam um milímetro de terra sequer.

     A opinião de Baril, um marmorista que passava o seu tempo no cemitério de Santa Marinha, em Vila Nova de Gaia, a compor lápides para o bom embelezamento das campas, era uma opinião bastante controversa.

     − Medição por comprimento do morto, − disse uma vez o Chefe dos coveiros − deve ser burro quem o diz, porque o morto, depois de morto; dá sempre o último suspiro e aí cresce uns pós acima da tabela.

     Contra o marmorista e o Chefe dos coveiros estava também a família dos Minúsculos, que viu o seu filho-anão de vinte anos morrer com um osso engasgado na garganta e reclamava que tinha direito a um caixão de meio metro, pois assim pagava menos enterro e tinha direito a subsídio para flores, lápida e velas nos dias de fiéis.      

     Para o pai Minúsculo, todos estavam errados uma vez que o anão é descendente do bebé e devia ter os mesmos direitos iguais na hora da partida sem retorno.

     − Que leis estas! − Dissera ele, quando o funeral se pôs em marcha a caminho do cemitério de Santa Marinha. − Tanto aparato para quê? Para os gananciosos das casas funerárias sacarem um balúrdio, os coveiros fazerem um buraco medonho, os marmoristas porem uma pedra de cascalho (dizem que é mármore) fazerem uns sarrabiscos e pedirem uma fortuna e nós os pais, ficamos com um encargo às costas.

O Chefe dos coveiros, quando ouviu esta reclamação, nem lhe deu troco e virou as costas ao funeral.

     − Outro que tal! − Resmungou o chefe a caminho da guarita. − Pensa que o cemitério é a Leitaria Suil, já vem para aqui choramingar.

     À mesma hora, no mesmo local, enquanto o funeral se dirigia para a capela do cemitério, Baril, o marmorista, dava um retoque final na lapida destinada ao recém-

chegado e estava de cócoras, de martelo e pincel junto à cova, quando a presença, ao lado, de uma viúva a enfeitar uma campa lhe despertou a curiosidade.

     − Meu Santíssimo! Mas que coxa gorda! Murmurou ele, chegando para trás e pondo-se deitado sobre o monte de terra que destapava a campa do próximo cliente.     

     − Por aquela febra não me importava nada de ir prós anjin…!

     Ele chegou-se mais para trás e os pés escorregaram na terra húmida, indo estatelar-se no fundo da campa e ficando inconsciente por uns momentos.

     Assim que acordou, agarrou com as mãos a terra como se a quisesse devorar. Os olhos saíam-lhe das órbitas e fazia lembrar um extraterrestre. Sonhara que tinha ido às profundezas de Saturno e assustou-se tanto que até se babava da boca com soluços, dizendo cá para fora tanta asneira que nem sabia o que dizia.

     Era uma espécie de praga, em que o culpado eram as medidas. “Odeio as covas e detesto estas medidas que não dão para um tipo se virar à vontade de um lado para o outro. E digo mais: Detesto estes coveiros que são todos uns cagões de merda.”

     Depois deste lamento inflamado, Baril pegou na sua ferramenta e, nem sequer olhou para a visitante, pôs-se na alheta antes que se fizesse tarde. “Que susto, disse ele, passando o lenço pela testa suada, até me mijei nas cuecas com aquele maldito buraco.”

     E desapareceu pelo cemitério a correr, feito maluquinho, nervoso e queixoso, sem olhar sequer uma única vez para trás.         



Wednesday, September 3, 2025

         


     O Motorista de Táxi

                                                    

     Era uma vez um motorista de táxi, sexagenário e atrevido, empregador de um carro com imensos quilómetros em cidades e vilas, que partira a trabalhar por terras distantes, deixando abandonada e triste a sua mulher e três filhos, que ainda viviam na sua casa, em Gondomar.

     A estrela Norte que o vira abalar, levado no seu sonho de aventura e de dinheiro, começava a ruir — quando uma das suas conquistas amorosas apareceu, com a barriga cheia, grávida do calor ardente e de uma cena tórrida, trazendo a boa nova de um bem abençoado e do nascimento do rebento, alcançado por muito amor à flor da pele, à volta dos pinhais.

     A mulher chorou desoladamente a perda de casa do marido, que era jeitoso e alegre. Mas, sobretudo, chora ansiosamente o pai que assim deixava os filhos desconsolados, no meio de tantos problemas das suas difíceis situações e do futuro que seria incerto, sem uns braços fortes que os defendessem, e os encorajassem para a vida.    

     Desses problemas o mais penoso era a outra, amante jovem do marido, rapariga leviana e fraca, consumida de vícios novos, desejando só a boa vida por causa do seu tesouro, e que havia meses vivia numa casa sobre os pinhais, com um desarranjo de trapos, à maneira de uma loba que, dentro do seu poiso, guarda o tesouro.

     Ai! O tesouro agora era aquele bebé, dono da mama, senhor de tantos nadas, e que dormia no seu berço com o seu ursinho de plástico agarrado na mão!

     O menino dormia num berço de verga, filho da modesta e robusta mãe doméstica de dezoito anos que amamentava o seu tesouro. Tinha nascido num dia de Primavera. A mãe antes de adormecer, vinha fazer festas ao menino, que tinha o cabelo preto e fino. Os seus olhos reluziam como pedras brilhantes.

     Naquela terra pequena de Cete, onde o motorista de táxi alugara uma casa, ela tinha a ilusão, a realização dos seus sonhos. Nenhum idílio correra mais depressa do que o seu pelo motorista de táxi à volta dos pinhais. O motorista de táxi, seu amante, estava agora a trabalhar numa outra postura, para lá da cidade, circulando também em aldeias e vilas. O seu carro de trabalho, um Mercedes de 1981, estava ainda aí para as curvas. Os novos clientes, que fosse angariando, prontamente iriam nessas aldeolas voltar a chamá-lo e a ouvir os seus maliciosos ditos. E ela por seu lado, não desejaria mais de que ver a luz a raiar na casa do seu homem, e tomar conta do menino, e ligar a televisão nos seus programas preferidos; era as novelas como os filmes, e ficava feliz na sua servidão. 

     No entanto uma grande confusão reinava na casa, onde agora a despesa aumentara mais do dobro. O amante, o taxista passava de cavalo para burro viera para a aldeia com a sua experiência, e já através de alguns contactos ia vendo uma praça fraca de clientes assíduos e passageiros. Os comboios da vila tinham sido demasiados gulosos com os clientes. Nas posturas andavam menos passageiros. Um táxi não rola sem um passageiro. Toda a postura parecia um stand de carros abandonados. E a rapariga preguiçosa apenas sabia correr a cada momento ao encontro dos seus vizinhos e mostrar a eles a sua fraqueza de mãe solteira. E às vezes, parecia insegura — como se o serviço que estava debaixo da sua alçada fosse tarefas grandiosas que nenhuma coragem pode transpor.

     Ora uma noite, noite de trovão e chuvisco, vindo ele a chegar do trabalho, já exausto, entre os dois houve um chispe, maior que um curto-circuito e de briga, à entrada do quarto de banho. Enraivados um com o outro, atirando cá para fora tudo o que lhes saía pela boca, a relação estourou rotundamente. Depois houve um «vê se te mexes», e cada um foi para o seu lado. Puxou violentamente os cobertores da cama. E, lá no fundo do quarto, o bebé dormia, num sonho que o fazia iluminar, toda a face entre os seus cabelos negros.

     Num relance, a mãe então, sem uma vacilação, tirou o tesouro do seu berço de verga — e embrulhou-o à pressa num xaile negro, entre um esgar de olhos desesperados, abalou velozmente.

     O taxista dormia no seu sono pesado. A cama ficara fria no silêncio e no escuro. Mas sinais de alarme de repente tremeram a sua cabeça. Pela mente trespassou o curto vibrar das pulsações. Os suores ressoavam com o bater do coração. E desgrenhado, quase nu, o taxista invadiu a casa, entre os móveis, gritando pelo seu filho. Ao avistar o berço de verga, sem roupas, vazio, caiu num choro, destroçado.

Depois mais frio, mais calmo, ele compreendeu — a casa vazia, a rapariga doida indo embora, roubar o seu menino! Então, rapidamente, correu à cadeira onde as calças estacionavam, sacou o telemóvel, como se saca uma carteira, e falando com alguém no telemóvel, o taxista partiu à descoberta de seu filho...          

     Também ele sofria pelo menino! Quantas vezes, com o bebé agarrado ao colo, ele pensava na sua fragilidade, no seu longo crescimento, nos anos lentos que seriam antes que ele fosse ao menos do tamanho de chegar com os pés aos pedais, e naquela mãe imatura, de temperamento mais frio que o lavado e coração mais insosso que o temperamento, faminta do repouso, e residente com os pais acima da sua antiga casa uns metros adiante! Pobre bebezinho de sua alma! Com uma ternura grande o imaginava entre os seus braços.

     O taxista lá ia, irrequieto, remexido, devorando quilómetro a quilómetro, num pensamento que o fazia sorrir, lhe molhando todo o rosto, entre os seus cabelos desalinhados. Bruscamente, se acercou da porta da casa da rapariga e recuou, como que adivinhando ir armar grande banzé. Sabia perfeitamente que ia! Então voltou para trás.

     E passados momentos, a rapariga chegou a casa dos pais. Bateu à porta com um alívio, como cai um fardo de cima. Um choro abalou o chão de pedra. Era o bebé a chorar, o seu choro madrugador. Nos seus choros havia, porém, mais sono que fome. O bebé então parara de chorar! Tocado, ao sentir, entre o mimo e a chupeta, embalado, pela mão forte da mãe, acordara, ele e o seu olhar maroto… — quando a mãe da rapariga, deslumbrada, com os olhos bem abertos, olhou o menino que despertara.

     Foi um espanto, uma alegria, quando a mãe da rapariga ergueu o menino nos braços, manifestando a sua força hilariante, abraçou apaixonadamente o neto abençoado, e o beijou, e lhe chamou netinho do seu coração…. E entre aquela caloria que se soltava ali, veio uma boa, desejada alegria, com promessas de que fosse ajudada, relativamente, a filha regressada para alimentar o seu bebé. Senão como podia ela sustentar um filho? Se não tinha um emprego? Então o velho pai lembrou que ela fosse levada ao tribunal de menores, e dissesse de entre outras coisas, que era uma mãe solteira, desempregada, e que esperava receber todos os subsídios que a lei confere…

     A rapariga tomou o caminho do pai. E sem que o seu rosto de branca perdesse a rigidez, com um andar de defunta, como num sonho, ela foi assim apresentar-se ao tribunal de menores. 

     Pais solteiros, mães solteiras, familiares, rode ganapada, lá estavam entre aquela multidão que se apertava na entrada. As altas portas do tribunal abriram lentamente. E, quando um funcionário, se assumiu à porta, de face vermelha, com montes de papelada, e chamou a rapariga e o motorista de táxi, todos os demais se remeteram ao silêncio durante segundos. Um grande «Ah!» voou da boca do taxista que respondera. Depois houve uma pausa, curta. E no meio da sala, envolta na mudez preciosa, a rapariga não dizia uma…. Apenas os seus olhos, reluzentes e firmes, se tinham erguido para aquele funcionário que, além dos processos em suas mãos, era portador de determinações e decisões.

     Era lá, nesses processos de foro conjugal que estava agora o destino do seu menino!... Então a rapariga sorriu e estendeu a mão a uma caneta. Todos seguiam, sem articular uma palavra, aquele lento movimento da sua mão a assinar o documento. Que assinatura grandiosa, que punhado de papeis, estava ela a assinar?

     O funcionário lia o processo — e a seguir ao ponto final parágrafo, entre uma recolha de testemunhos, revelou a decisão. Era uma decisão assinada pelo juiz a que conferia à mãe a tutela do bebé, a título provisório.

     O motorista de táxi deixara de ouvir o fim da leitura, e com o semblante carregado de revolta, apontou para a parede, onde um quadro de uma velha balança, com dois pratos carregados de vários símbolos, e que simbolizavam os valores da lei, encarou a rapariga, o funcionário, e gritou:

     — Dei-te o meu filho, e agora vou pagar-te o seu sustento e fico sem ele!... 

    E cavou as solas no chão.   


Wednesday, October 23, 2024

 

Fascículo 3 – O Mundo da Noite

Autor – Fernando Abraão

Personagens – Zi, Rosinhas e Cabide

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Storyline

No final de 1979, O Mundo da Noite assistiu ao aparecimento de duas jovens ainda em fase menor que recompensavam o desaparecimento das mais velhas. A encantadora Zi e sua partenaire Gilda, foram na aventura de sair de casa. Deixaram um emprego de vendedoras de cosméticos para se decidirem no mundo da noite e, na devida altura, Zi mostrou a sua destreza de «caça-copos», ao lado da sua partenaire Gilda. A outra imagem de gaiata de Zi valeu-lhe a aparição de

clientes idosos, apaixonados pela sua inquietude. Um seu apaixonado, curtia o ditado, - O amor e uma cabana faz crescer a barriga na cama. Rosinhas era o seu nome, e passeava pelo quarto da pensão.

                        Rosinhas: - É um bom quarto – disse ele. – E tu gostas dele, sabes perfeitamente que não te falto com nada. Três meses… Um ano…. Vou viver assim com a miúda que eu gosto.                                                                                                                                                         

A aventura seguiu de vento em popa. Mais tarde perguntei-lhe:                                                                                                                                                             

                        Patrão do bar – Explica-me como é possível, uma miúda franzina que pesa quarenta quilos consegue deitar-se na cama com um homem que pesa mais de cem quilos!

Ela pôs os braços em redor da anca.

                         Zi: - Eu cá me arranjo – diz Zi – eu nunca deixo o monstro saltar para cima de mim porque, senão parte-me cá os meus cacos todos; quem salta para cima dele sou eu, como faz no filme Emanuelle.

As suas palavras fazem lembrar o provérbio do cliente Roscas: ´Oh rapaz, por cima ou por baixo não interessa, o importante é a pequena não ter cuecas para um homem ficar logo doudo`…

Um ano depois, Zi juntou os trapos com um gerente noturno conhecido pelo Cabide, indo viver para um andar perto da ponte D. Luís I, em Vila Nova de Gaia. A um dia de sexta-feira, depois de um dia de trabalho terem chegado a casa de madrugada alta, houve uma discussão violenta; as vizinhas ouviram-nos atirar com coisas para o chão e gritarem obscenidades um ao outro. Um transeunte juntamente com uma vizinha, observaram de fora do prédio, quando Cabide pegou em Zi, sem etiqueta, elevando-a ao ar para fora da janela e levantando-lhe as pernas para cima da cabeça. Tinha gritado a Zi que desta vez era um aviso, mas para a próxima, que a deixava cair. Pouco tempo depois, as vizinhas juntaram-se e subiram ao andar, e bateram à porta.

                         Vizinha: - Zi, você está bem? - E Zi aparecendo, esbranquiçada e de cabelos eriçados à porta, replicou: - Estou, vizinhas.

A vizinha à frente retorquiu:

                         Vizinha á frente, insinuando para Cabide: - Ó senhor, deixe a rapariga em paz e mande-se daqui, antes que chame a polícia…

Mandaram o Cabide sair da casa completamente arrasado, depois que as vizinhas tentaram confortar Zi. A vizinha à frente, explicou:

                          Vizinha à frente: - Mandamos o seu homem sair, porque queríamos que você ganhe cor.

Dois anos mais tarde, Zi e Cabide separaram-se. Em 1985, decidiu desistir do alterne e meter-se num negócio se sapatos e roupas com uma amiga das lides, gerindo ambas o negócio a meias. Zi vivia para o negócio, embora este já tivesse

suplantado muitas das suas expetativas.

Num sábado Zi, já sem companhia da amiga deu uma festa na abertura da sua loja de sapatos e roupas na zona central da Maia. Mais de cem pessoas foram visitá-la no seu atelier da moda, e não deixaram de lhe dar as maiores felicitações. Concluiu-se que possa lá ter estado os seus queridos amigos até para a cumprimentar e ligações ao negócio. Uma teoria sobre o seu sucesso apontado pelo fofoqueiro Jornal dos Traidores, é que ela foi bafejada pela sorte, que já estava a tirar proveito devido às suas antigas amizades ligadas ao mercado.

Segundo esta teoria, Zi convenceu um amigo a levá-la à feira de Milão e lá estabeleceu contatos para trazer gravatas e vestidos a preços apreciáveis, enquanto por cá, via o seu negócio florir e as vendas a aumentar. A própria Zi nunca fez assomo disso depois do seu crescimento económico e desistiu de outra loja negativa, em 1983.

Quer tenha tido sorte pelo destino, ou por qualquer dom que a levou ao estrelato deixando a sua estrela brilhar, parece restar poucas dúvidas de que Zi foi das poucas mulheres que passaram pelos alternes e saiu triunfante.

A sua loja continua a ser um sucesso.  


Tuesday, September 12, 2023

 

                                                            ATRIZ DE PORNO…

                                                                        ~~~~

 

   Aveirense aparece, trazendo debaixo do braço um anúncio de jornal com imagem que garante ser uma bela oportunidade de se inscrever para fazer um filme porno… uma oportunidade que ela diz ganhar uma pipa de massa. Aveirense está constantemente a arranjar programas de qualquer jeito e feitio para açambarcar uma pipa de massa… e todos eles se parecem com o anúncio que agora apresenta à colega.

   A imagem parece-se como um zoo, nem mais nem menos, mas ela guarda-o rigorosamente na carteira, enquanto conversa sobre o empresário que lhe telefonou há uns dias atrás.

   «Estávamos a fazer um take num estúdio, pá, e eu fui apanhada à má fé… se não te contasse tu nem acreditavas. Comecei a descascar-me detrás de um biombo, mesmo ali com a panca do empresário a pedir-me que derramasse um garrafão de cinco litros de leite pelo meu corpo todo! Porra, tu nem sabes como é que eu fiquei… passado pouquíssimo tempo ele tinha-me feito entrar um jeco (cão) todo latagão que se pôs a

lamber-me por tudo quanto cheirava a leite.... E estávamos assim quando aquele estupor do empresário se havia de massacrar-me ao deixar entrar o bode!»

   «Claro, para te comer? Foi o que ele fez, não?», pergunta a colega.

   «Aí é que foram elas, pá… nem te passa! E o cão … nem se assustou com a presença do bode. Parou rapidamente de lamber-me, enquanto o bode o encabava por trás! Juro-te, pá, estou a dizer-te a verdade. Eu não queria estar para ali deitada a vê-los engatilhados e ao mesmo tempo ver o bicho a levar nele… fez-me impressão. Depois, quando o take terminou ele perguntou-me se eu ia ficar para o resto do take. Digo-te, pá, que aquele estupor é completamente varrido dos cornos.»

   «Bom, e tu quanto ganhaste?»

   «Ganhei uns cobres, não muitos! Que raio de porno era aquele? Minha Santa, se vais ser comida por um ator porno, com certeza que queres que o gajo te coma bem e te console como se tivesses fodido com um regimento… dessa forma quem fez figura de parva fui eu, tás a ver a cena, pá… Talvez o estupor só me esteja a querer experimentar…»

   Enquanto a Aveirense desfia a história, chega o cliente. Uma rapidinha de linguado… acerta tudo com o cliente, um rústico. Visto que não regateou o preço, ela desperta-o para uma rapidinha de sonho. Vai com ele à porta do bar ver o carro que ele tem. O rústico vem mais tarde buscá-la. Tem estado à sua espera. Um telefonema enviado dele informa-a que está a caminho e vai levá-la a um local não especificado. São quase cinco e meia da madrugada quando a Aveirense finalmente mete a chave à porta do seu pequeno apartamento.

   Na banheira ouve na rádio local uma pequena notícia que quase a põe tesa na água. Marlene da Tatuagem no Cu, etc., etc., uma artista de programas de cama, transformou-se gaja-gajo! A primeira vez que Aveirense a conheceu nos takes viu olhá-la de uma forma bizarra e na noite passada, depois de ter acabado a sua atuação (O cão e o bode, sem dúvida), correra para o hospital e submetera-se a uma operação. Como é que uma mulher-puta TROCA DE SEXO, Santo Meu? Interroga-se. Dias mais tarde, lá estava ele, nos bares e boates a espetar nas gajas… É de rir e chorar por mais…

não que a Aveirense não acredite na estupidez e maluquice de Marlene, mas que foi apanhada de surpresa, isso é um facto. Raio de vida, diz ela, eu não deixaria que agora a gaja-gajo me espetasse, nem por todo o dinheiro do mundo… 

   Ela ainda não saíra da cama… cada hora que passa era um descanso divino. Aveirense, acorda supre mal-humorada do que quando se deitou, está com as rotações aceleradas, tão nervosa como uma barata tonta que atira com a chávena de café à parede e fez um montinho de partículas no chão. Telefona à colega e pergunta-lhe, ao ouvir a sua voz, se ela quer ir tomar um café. Ela aceita e entram num estabelecimento da zona.

   Aveirense nem sabe o que é que deve dizer, mas não se abre sobre os acontecimentos da noite passada. Ri-se quando a colega lhe pergunta pelos seus cromos… faz-lhe lembrar um desses engates chatos e vagarosos que às vezes a procuram… aqueles que sacam das notas e fodem com elas. Aveirense, os seus risos continuam, está tão à-vontade como qualquer outra gaja, a divertir-se um pouco à custa do seu métier. Tem-se metido em programas de mulheres que convive, conta ela, gozando os seus prazeres em simultâneo. Tira os olhos da chávena para olhar de relance para a colega.

   Enquanto a conversa prossegue, a colega tenta extrair de Aveirense alguns comentários que a façam divertir, mas ela muda-lhe a antena. Tudo o que ela lhe diz é que saberá em pouco tempo…

   De súbito o toque duma mensagem dá entrada. Aveirense agarra no telemóvel. Devido à luz do sol não consegue topar a leitura, mas dá à colega para lhe ler o conteúdo.

   «Este gajo», explica a colega enquanto Aveirense a escuta com toda a atenção, «foi em tempos um teu cliente e quer duas miúdas para uma borga com três gajos. Até paga bem. Cento e cinquenta euros a cada uma de nós…»

   Aveirense retira da saca uns trocos para pagar a conta e chama um táxi.

   O táxi vira por um caminho transversal para uma espécie de ruela e aí desemboca num estreito. O taxista para encostado a um muro bastante alto. Quando elas saem não descortinam o mais leve sinal de pessoas à vista. Caminhando atrás de Aveirense, com

as mãos dentro das calças de ganga, a colega depara com um velho portão de madeira embutido no muro. Seguem por um caminho em mau estado de conservação, que as leva a um edifício de pedra de dois andares e, quando entram, reparam que se encontram dentro de uma velha fábrica de enchidos. Até dá a impressão de ter sido usada há pouco tempo.

   «Olá! Somos o grupo das machorras!», fala um dos tipos quando elas entram numa sala mal-iluminada, onde se encontram sentados mais dois tipos falando em voz grossa. Tanto quanto lhe é dado a perceber, a Aveirense não conhece nenhum daqueles rostos, com a exceção, de um deles lhe ser talvez um pouco familiar, mas não se lembra.  

   Não há problemas, é claro.

   Aveirense deixa a colega a entretê-los e depois afasta-se para ir ao quarto de banho. Fecha a porta por dentro e abaixa as cuecas e enfia um dedo pela vagina… ainda tem o período. Quer que o gajo a coma, para sacar aquela nota, diz pra ela, e da mala de mão puxa por um bocado de algodão e empurra-o pela vagina dentro… A um canto a colega está agarrada pelos dois tipos que a gozam, enquanto o terceiro faz sinais para Aveirense se aproximar. Ela chega-se a ele e, faz pé atrás, mas é obvio que um dos motivos porque ele a chamou é para montá-la…. portanto deve ser já… A colega interroga os dois tipos sobre quem primeiro a vai comer. O gajo que está atrás dela fuzila-a com os olhos e pôs-lhe os braços ao pescoço. Há por todo o lado um cheiro que abunda ao choco.

   «Queremos foder os dois», berra-lhe, «queremos que tu nos fodas aos dois…», responde-lhe, aspirando o ar como se gostasse daquele fedor.

   Enquanto isso, dentro de um quarto minúsculo, o tipo prega cum empurrão na Aveirense que cai na cama com alguma violência e fica a mandar vir com ele durante

largos segundos. A seguir, o tipo começa a despir-se em silêncio… em silêncio também a Aveirense começa a arrancar o vestido do corpo… de repente, o tipo corre para o centro da cama e lança-se sobre ela, nu. Gemendo aos solavancos, a Aveirense fica para ali deitada de pernas esticadas com o corpo flexível, pressionando e dobrando os dedos sobre os lençóis da cama, enquanto o tipo coloca as mãos sobre o seu rabo e

lhe percorre todo o corpo com elas. Mantendo um ritmo infernal, sempre a bombar, baloiçando-se num ritmo trote até que algo se prende à cabeça da sua gaita funcionando como um tampão, e quando tira a ferramenta para fora, cai-lhe os tomates ao chão… e vê na cama um enchumaço de algodão envolto em sangue…

   Antes que ela lhe explique, o tipo atirou-lhe com o enchumaço à cara e gritou qualquer coisa como ininteligível. Enquanto limpa a cabeça da gaita, começa a vestir-se e sai. Termina a borga, e os restantes comparsas fazem constar os seus comentários. É o momento para que eles acertem as contas. Começam a abrir as carteiras, e fazem contas à moda do Porto… um estilo usual que é corrente neles, mas um berro alto, faz-se ouvir…

   O cliente de Aveirense chama a si os colegas da borga e ambos discutem sobre o não pagamento e começam a insurgir-se também contra ela. Finalmente um deles paga à colega… depois o outro cospe num copo de vinho espumoso! E enquanto o terceiro sacode a gaita e atira com o resto do enchumaço do algodão para o meio do chão.

   «Estive a gozar com o algodão», diz-lhes. «A puta que me calhou é uma artista. Comeu-me, mas não vai comer o meu dinheiro.»

   A seguir são conduzidas até à entrada e, como se fossem um lixo, lançadas para fora. Aveirense em primeiro lugar. As raparigas caminham pela ruela como se estivessem drogadas e tropeçam nas pedras baixas e altas. Já não têm disposição para falar, mas conservam ainda um pouco de humor. Puxando pelo telemóvel Aveirense chama um táxi. Atingem o muro, e lá se conseguem orientar até encontrar o caminho para aguardar pelo táxi que as leve de regresso. Ainda não tinham acabado bem de sair quando qualquer coisa se meteu no sapato de Aveirense que se desequilibrou.

   Segue cambaleando enquanto a colega a puxa através do estreito em direção ao muro. A sua mão solta-se da colega quando ela cai, e apoia-se nos joelhos sobre a terra húmida, com ambas as mãos abertas rogando:

   «Oh, pá! Fodam-se estes cabritos!»


Monday, March 29, 2021

 




Dois amantes reencontram-se após alguns anos separados.

Ele: «Eu pensava que eu era bravo. Mas tu és muito mais que eu.»

Ela: «Já não te via há anos.»

Ele: «Tenho andado por aí.»

Ela: «Mentiroso. Quem é a garota que tu andas agora?

Ele: «Que garota?»

Ela: «Não mintas. Eu ouvi dizer que tu andas aí atrelado. Quem é ela?»

Ele: «Uma amiga.»

Ela: «E o que fazia no seu quarto?»

Ele: «Não sejas curiosa, tá bem? Volta para o teu quarto. Tenho serviço a fazer.»

Ela: «Não quero! Esta noite durmo aqui.»

Ele: «O meu preço é alto.

Ela: «Eu pago. Diz quanto queres?

Ele. «Não quero nada.»

Ela: «Trata todas as mulheres assim?

Ele. «Exceto uma.»

Ela: «Quem?»

Ele: «A minha mãe.»

Ela: «Não me importava que andes com outras mulheres. Mas não quero ser tratada como elas. Não me importo se me amas ou não. Eu te amarei de qualquer jeito. Desde que nos separamos nunca mais estive com outro homem. Esperava que também tenhas feito o mesmo. Tu prometes-me?

Ele: «Não.»

Ela: «Por favor, como não pode ser como dantes?

Ele: «Tu lembras-te? Uma vez me perguntaste… se havia alguma coisa que eu não emprestaria a ninguém? Pensei muito nisso. E agora já sei. Há uma coisa… que nunca emprestaria a ninguém.»

E saiu perante um jorro de lágrimas.

                                                                                                      Abraão, Porto.


Tuesday, February 9, 2021

 

                                       Um conto ao estilo de F. Abraão

4

                                                                                                               

PARTE 1

                                    OS INCOMPATÍVEIS

 

   No primeiro dia, Óscar aguardou com impaciência a hora do recreio. Assim que a campainha tocou, dirigiu-se para o pátio das raparigas para falar a Bianca. Um bando de raparigas aos berros não foi suficiente para o afugentar e tornou-se necessária a intervenção de uma professora para que se fosse juntar aos rapazes.

   À hora do almoço, não conseguindo contatar com ela, porque o pai a foi buscar no cabriolé de teto de abrir para a levar para casa. Óscar resolveu esperá-la à porta, quando acabaram as aulas. Bianca saiu, rodeada pelas colegas. Resolvera compor uma atitude e fingiu que não via Óscar. Ela era a aluna mais bonita, mas é pouco provável que Óscar o tivesse notado.

   O pequeno bando pôs-se em marcha. Óscar seguia atrás, a quatro passos de distância e nada embaraçado com as piadas que as miúdas lhe atiravam de vez em quando. O grupo acabou por desfazer-se e Bianca entrou em casa.

   Óscar sentou-se à beira do passeio. Passado alguns minutos, a porta abriu-se e Bianca surgiu. Atravessou o passeio e contemplou Óscar.

   - Que é que queres?

   Óscar ergueu para ela os seus tristes olhos.

   - Tu não estás noiva?

   - Palerma – disse ela.

   Ele fez um esforço para se levantar.

   - Ainda teremos de esperar muito tempo para nos podermos casar – observou ele.

   - Quem falou em casamento?

   Óscar não respondeu. Talvez não tivesse ouvido. Puseram-se a andar lado a lado. No outro extremo do terreno, reinava uma penumbra acolhedora e segura. Bianca sentou-se no chão, com a saia longa com botões. Depois, cruzou as mãos em cima dos joelhos, como se fosse rezar.

   Óscar sentou-se ao lado dela.

   - Ainda teremos de esperar muito para nos podermos casar – repetiu ele.

   - Nem tanto como isso – disse Bianca.

   - Quem me dera que pudesse ser já.

   - Pouco falta. – disse Bianca.

   Óscar perguntou:

   - Achas que o teu pai dará o consentimento?

   Ela nunca tinha pensado nisso. Voltou-se e olhou para Óscar.

   - Talvez não precise de lhe pedir.

   - E a tua mãe?

   - Deixa lá os pais em sossego – disse ela. – Achavam logo que não estava bem ou que era esquisito. Tu não és capaz de guardar um segredo?

   - Está visto que sou. Não há como eu para guardar segredos. Já tenho alguns.

   - Então põe este ao pé dos outros.

   Óscar quebrou um pauzito e traçou um risco na terra negra.

   - Bianca, sabes como é que nascem os bebés?

   - Sei – disse ela. - Quem foi que te explicou?

   - Foi um amigo de meu pai. Ele contou-me tudo. Acho que teremos de esperar muito para poder ter bebés.

   - Não tanto como pensas.

   - Um dia, havemos de ter a nossa casa – disse Óscar. – Entrámos, fechamos a porta e ficamos à nossa vontade. Mas ainda falta muito tempo.

   Bianca estendeu a mão e tocou-lhe no braço.

   - Não te preocupes com o tempo. Isto aqui é como se fosse uma casa. Podemos fazer de conta que vivemos aqui, enquanto tivermos de esperar. Tu serás o meu marido e poderás tratar-me por «minha mulher».

   Óscar remexeu os lábios e pronunciou em voz alta:

   - Minha mulher?

   - Assim sempre nos vamos treinando – disse Bianca.

   O braço de Óscar estremeceu sob a mão dela. Bianca retirou a mão e colocou-a em cima do joelho com a palma virada para cima.

   - Enquanto nos vamos treinando, talvez pudéssemos fazer outra coisa – lembrou Óscar, de repente.

   - O quê?

   - Talvez tu não gostes disso.

   - Mas o que é?

   - Podemos fazer de conta que tu és a minha mãe.

   - Isso não custa nada – disse ela. – Queres começar já?

   - Está bem – aprovou Óscar. – Como é que fazemos?

   - Vou mostrar-te.

   Bianca começou a falar com voz mimalha:

   - Vem, meu amorzinho. Deita a tua cabecinha nos joelhos da mamã. Anda, meu filhinho, para a mamã te embalar.

   Enquanto dizia isto, segurava-lhe na cabeça e Óscar encostou-lhe a cabeça e Bianca ia-lhe fazendo festinhas na cara e penteava-lhe os cabelos soltos.

   - Meu bebezinho adorado – disse Bianca, - fala-me da tua namorada?

   - Que queres saber dela?

   - O que tu pensas. Ela é demasiada fraca para suportar o que tu possas suportar?

   Óscar disse:

   - Não é isso, mamã. Ela é boa, de verdade. Nunca faz mal a ninguém. Nunca diz

mal seja de quem for. Nunca se queixa e é forte. Ela não é má por natureza. Não gosta de jogar às casinhas, mas fá-lo sempre que é necessário.  

   - Tu gostas da tua namorada, não é verdade?

   - Gosto sim. E ás vezes faço-lhe mal. Engano-a, induzo-a em erro. Às vezes até a pico sem motivo.

   - E depois sentes-te infeliz?

   - Pois é.

   - A Bianca nunca se sente infeliz?

   - Não sei. Quando pisco os olhos às colegas no recreio, parece ficar enciumada. E uma vez quando lhe quis pôr uma mão no peito, ela chegou a dar-me uma bofetada.

   Bianca comentou com espanto:

   - Porque te bateu a Bianca?                   

   - Não sei se devo dizer.

   - Então, não digas.

   - Não foi nada de importante. Sabes, mamã, eu não quero ir à igreja. Mas a Bianca quer. Eu disse-lhe que nunca me casaria e que talvez me retirasse do mundo.

   - Como um buda? E tu não queres casar na igreja?

   - Não, mamã. Não, mamã. Prometi ao Santo Inocente!

   - E a Bianca não gostou que tu lhe pusesses a mão no peito dela?

   - Pois não. Ficou doida varrida. Às vezes põe-se assim. Pegou nos meus óculos de sol, atirou-os para o chão e desfez-lhos a pontapés. E depois disse que tinha desperdiçado metade da sua vida por minha culpa.

   Bianca riu-se. 

   - Podias ter aproveitado a oportunidade para lhe roubares a virgindade.

   Óscar manteve-se calado e Bianca ficou inquieta.

   - O que foi? Perdeste a língua?

  Óscar contemplava o pôr do sol. Bianca perguntou, extremamente embaraçada. 

   - Ficaste zangada comigo? – (E acrescentou, para ver a reação): - Meu marido.

   - Não, não estou zangado contigo. Estava só a magicar numa coisa.

   - O que é?

   - Uma coisa.

   Bianca continuou, imperturbável:

   - Gostavas de casar?

   - Mas que parvoíce – disse Óscar. – Claro que gostava. Toda a gente gostava. Estarás tu a ver se me magoas? O meu pai já o tem tentado e, depois, pôs-se a rir.

   Bianca desviou o olhar para o sol poente.

   - Tu disseste-me que era capaz de guardar um segredo.

   - Pois claro que sou.

   - E não terás nenhum no género: «se eu disser o meu segredo, ao inferno irei ter?»

   - Tenho, tenho um.             

   - Então diz-me o que é, Óscar.

   E a palavra de «Óscar» parecia uma carícia.

   - Digo-te o quê?

   - O maior segredo que tu tiveres.

   Óscar recuou, inquieto.

   - Não posso – disse ele. – Com que direito mo pedes? Nunca o direi a ninguém.

   - Vamos, meu filhinho, conta tudo á mamazinha – sussurrou ela.

   Os olhos de Óscar mostravam grande exaltação de fúria.

   - Já não tenho a certeza de querer casar contigo. – disse ele. – Acho que vou

para casa.

   Bianca pôs-lhe a mão no pulso e ali a deixou ficar. Quando falou, a voz readquirira o tom natural.

   - Era para te experimentar. Já vi que sabes guardar um segredo.

   - Porque fizeste isso? Agora fiquei furioso. Até me dói o coração.

   - Tenho a impressão de que te vou confiar um segredo – disse ela.

   - Ora vejam! – escarneceu ele. – Então eu é que não sabia guardar segredos? 

   - Eu estava a ver se me resolvia – disse ela. – Mas acho que te vou dizer porque te faz bem. Há-des ficar contente.

   - E quem foi que te pediu para não contares?

   - Ninguém. Eu é que tinha resolvido.

   - Isso já é outra coisa. Então o que é?

   Bianca disse docemente:

   - Lembras-te daquele dia em que fomos a tua casa?

   - Aí não, que não me lembro!

   - Pois fica sabendo que adormeci no cabriolé e, depois tornei a acordar, mas os meus pais não deram por nada. Os meus pais iam a conversar e não viram a tua mão descair pela minha saia e apalpar a minha perna.

   Óscar disse em voz rouca:

   - As minhas mãos estavam nos bolsos.

   - Isso dizes tu. Pensavas que eu ia a dormir, mas não…

   Bianca continuou:

   - Não seria estupendo se pudéssemos reviver a cena? Supõe que a tua mão ganhou

o sentido ou qualquer coisa assim. Já li uma história no género. Podia tornar a acordá-la e fazê-la recuperar o sentido.

   Bianca deixara-se empolgar pela maravilhosa história. Óscar disse, com ironia:

   - Hei-de perguntar à mão.

   - Óscar – observou ela em tom severo, - o que eu te contei é segredo.

   - Quem disse que era?

   - Fui eu. E agora repete comigo: «Se eu disser o meu segredo, ao inferno irei ter.»

   Ele hesitou uns instantes e, depois repetiu:

   - Se eu disser o meu segredo, ao inferno irei ter.

   - Agora, cospe na mão… Assim…. Está bom. Agora, dá-me a tua mão…. Estás a ver? Agora misturamos o nosso cuspo e limpamos a mão ao cabelo.

   Executando o ritual, Bianca disse com a maior serenidade.

   - Conheço uma rapariga que contou um segredo depois duma jura igual a esta e morreu afogada num poço.

   O sol desaparecera, levando a sua luz brilhante. Bianca disse:

   - Eles vão me esfolar viva. Anda, despacha-te. O meu pai deve estar à minha espera com a trela do cão para me bater.

   Óscar olhou-a, incrédulo.

   - Para te bater? Costumam te bater?

   - O que é que julgas?

   Óscar exclamou apaixonadamente:

   - Eu que os apanhe! Se eles te quiserem bater, diz-lhes que os hei-de matar.

   Os arregalados olhos castanhos lançavam chispas.

   - Ninguém tem o direito de bater na minha mulher.

   No meio do escuro que reinava debaixo das ramagens das árvores, Bianca passou os braços pelo pescoço de Óscar e beijou-lhe a boca aberta.  

   - Querido, gosto muito de ti, meu marido – disse ela.

   Depois voltou-se e saltou, levantando as saias acima do joelho e mostrando a renda da combinação que esvoaçou quando largou a correr para casa.


(Fim do 1º ato.)