Um conto ao estilo de F. Abraão
4
PARTE
1
No
primeiro dia, Óscar aguardou com impaciência a hora do recreio. Assim que a
campainha tocou, dirigiu-se para o pátio das raparigas para falar a Bianca. Um
bando de raparigas aos berros não foi suficiente para o afugentar e tornou-se
necessária a intervenção de uma professora para que se fosse juntar aos
rapazes.
À hora do almoço, não conseguindo contatar
com ela, porque o pai a foi buscar no cabriolé de teto de abrir para a levar
para casa. Óscar resolveu esperá-la à porta, quando acabaram as aulas. Bianca
saiu, rodeada pelas colegas. Resolvera compor uma atitude e fingiu que não via Óscar.
Ela era a aluna mais bonita, mas é pouco provável que Óscar o tivesse notado.
O pequeno bando pôs-se em marcha. Óscar
seguia atrás, a quatro passos de distância e nada embaraçado com as piadas que
as miúdas lhe atiravam de vez em quando. O grupo acabou por desfazer-se e Bianca
entrou em casa.
Óscar sentou-se à beira do passeio. Passado
alguns minutos, a porta abriu-se e Bianca surgiu. Atravessou o passeio e
contemplou Óscar.
- Que é que queres?
Óscar ergueu para ela os seus tristes olhos.
- Tu não estás noiva?
- Palerma – disse ela.
Ele fez um esforço para se levantar.
- Ainda teremos de esperar muito tempo para
nos podermos casar – observou ele.
- Quem falou em casamento?
Óscar não respondeu. Talvez não tivesse
ouvido. Puseram-se a andar lado a lado. No outro extremo do terreno, reinava
uma penumbra acolhedora e segura. Bianca sentou-se no chão, com a saia longa
com botões. Depois, cruzou as mãos em cima dos joelhos, como se fosse rezar.
Óscar sentou-se ao lado dela.
- Ainda teremos de esperar muito para nos
podermos casar – repetiu ele.
- Nem tanto como isso – disse Bianca.
- Quem me dera que pudesse ser já.
- Pouco falta. – disse Bianca.
Óscar perguntou:
- Achas que o teu pai dará o consentimento?
Ela nunca tinha pensado nisso. Voltou-se e
olhou para Óscar.
- Talvez não precise de lhe pedir.
- E a tua mãe?
- Deixa lá os pais em sossego – disse ela. –
Achavam logo que não estava bem ou que era esquisito. Tu não és capaz de
guardar um segredo?
- Está visto que sou. Não há como eu para
guardar segredos. Já tenho alguns.
- Então põe este ao pé dos outros.
Óscar quebrou um pauzito e traçou um risco
na terra negra.
- Bianca, sabes como é que nascem os bebés?
- Sei – disse ela. - Quem foi que te
explicou?
- Foi um amigo de meu pai. Ele contou-me
tudo. Acho que teremos de esperar muito para poder ter bebés.
- Não tanto como pensas.
- Um dia, havemos de ter a nossa casa –
disse Óscar. – Entrámos, fechamos a porta e ficamos à nossa vontade. Mas ainda
falta muito tempo.
Bianca estendeu a mão e tocou-lhe no braço.
- Não te preocupes com o tempo. Isto aqui é
como se fosse uma casa. Podemos fazer de conta que vivemos aqui, enquanto
tivermos de esperar. Tu serás o meu marido e poderás tratar-me por «minha
mulher».
Óscar remexeu os lábios e pronunciou em voz
alta:
- Minha mulher?
- Assim sempre nos vamos treinando – disse Bianca.
O braço de Óscar estremeceu sob a mão dela. Bianca
retirou a mão e colocou-a em cima do joelho com a palma virada para cima.
- Enquanto nos vamos treinando, talvez
pudéssemos fazer outra coisa – lembrou Óscar, de repente.
- O quê?
- Talvez tu não gostes disso.
- Mas o que é?
- Podemos fazer de conta que tu és a minha
mãe.
- Isso não custa nada – disse ela. – Queres
começar já?
- Está bem – aprovou Óscar. – Como é que
fazemos?
- Vou mostrar-te.
Bianca começou a falar com voz mimalha:
- Vem, meu amorzinho. Deita a tua cabecinha
nos joelhos da mamã. Anda, meu filhinho, para a mamã te embalar.
Enquanto dizia isto, segurava-lhe na cabeça
e Óscar encostou-lhe a cabeça e Bianca ia-lhe fazendo festinhas na cara e penteava-lhe
os cabelos soltos.
- Meu bebezinho adorado – disse Bianca, - fala-me
da tua namorada?
- Que queres saber dela?
- O que tu pensas. Ela é demasiada fraca
para suportar o que tu possas suportar?
Óscar disse:
- Não é isso, mamã. Ela é boa, de verdade.
Nunca faz mal a ninguém. Nunca diz
mal
seja de quem for. Nunca se queixa e é forte. Ela não é má por natureza. Não
gosta de jogar às casinhas, mas fá-lo sempre que é necessário.
- Tu gostas da tua namorada, não é verdade?
- Gosto sim. E ás vezes faço-lhe mal.
Engano-a, induzo-a em erro. Às vezes até a pico sem motivo.
- E depois sentes-te infeliz?
- Pois é.
- A Bianca nunca se sente infeliz?
- Não sei. Quando pisco os olhos às colegas
no recreio, parece ficar enciumada. E uma vez quando lhe quis pôr uma mão no peito,
ela chegou a dar-me uma bofetada.
Bianca comentou com espanto:
- Porque te bateu a Bianca?
- Não sei se devo dizer.
- Então, não digas.
- Não foi nada de importante. Sabes, mamã, eu
não quero ir à igreja. Mas a Bianca quer. Eu disse-lhe que nunca me casaria e
que talvez me retirasse do mundo.
- Como um buda? E tu não queres casar na
igreja?
- Não, mamã. Não, mamã. Prometi ao Santo
Inocente!
- E a Bianca não gostou que tu lhe pusesses a
mão no peito dela?
- Pois não. Ficou doida varrida. Às vezes
põe-se assim. Pegou nos meus óculos de sol, atirou-os para o chão e desfez-lhos
a pontapés. E depois disse que tinha desperdiçado metade da sua vida por minha
culpa.
Bianca riu-se.
- Podias ter aproveitado a oportunidade para
lhe roubares a virgindade.
Óscar manteve-se calado e Bianca ficou
inquieta.
- O que foi? Perdeste a língua?
Óscar contemplava o pôr do sol. Bianca perguntou,
extremamente embaraçada.
- Ficaste zangada comigo? – (E acrescentou,
para ver a reação): - Meu marido.
- Não, não estou zangado contigo. Estava só
a magicar numa coisa.
- O que é?
- Uma coisa.
Bianca continuou, imperturbável:
- Gostavas de casar?
- Mas que parvoíce – disse Óscar. – Claro
que gostava. Toda a gente gostava. Estarás tu a ver se me magoas? O meu pai já
o tem tentado e, depois, pôs-se a rir.
Bianca desviou o olhar para o sol poente.
- Tu disseste-me que era capaz de guardar um
segredo.
- Pois claro que sou.
- E não terás nenhum no género: «se eu
disser o meu segredo, ao inferno irei ter?»
- Tenho, tenho um.
- Então diz-me o que é, Óscar.
E a palavra de «Óscar» parecia uma carícia.
- Digo-te o quê?
- O maior segredo que tu tiveres.
Óscar recuou, inquieto.
- Não posso – disse ele. – Com que direito
mo pedes? Nunca o direi a ninguém.
- Vamos, meu filhinho, conta tudo á
mamazinha – sussurrou ela.
Os olhos de Óscar mostravam grande exaltação
de fúria.
- Já não tenho a certeza de querer casar
contigo. – disse ele. – Acho que vou
para
casa.
Bianca pôs-lhe a mão no pulso e ali a deixou
ficar. Quando falou, a voz readquirira o tom natural.
- Era para te experimentar. Já vi que sabes
guardar um segredo.
- Porque fizeste isso? Agora fiquei furioso.
Até me dói o coração.
- Tenho a impressão de que te vou confiar um
segredo – disse ela.
- Ora vejam! – escarneceu ele. – Então eu é
que não sabia guardar segredos?
- Eu estava a ver se me resolvia – disse
ela. – Mas acho que te vou dizer porque te faz bem. Há-des ficar contente.
- E quem foi que te pediu para não contares?
- Ninguém. Eu é que tinha resolvido.
- Isso já é outra coisa. Então o que é?
Bianca disse docemente:
- Lembras-te daquele dia em que fomos a tua
casa?
- Aí não, que não me lembro!
- Pois fica sabendo que adormeci no cabriolé
e, depois tornei a acordar, mas os meus pais não deram por nada. Os meus pais
iam a conversar e não viram a tua mão descair pela minha saia e apalpar a minha
perna.
Óscar disse em voz rouca:
- As minhas mãos estavam nos bolsos.
- Isso dizes tu. Pensavas que eu ia a
dormir, mas não…
Bianca continuou:
- Não seria estupendo se pudéssemos reviver
a cena? Supõe que a tua mão ganhou
o
sentido ou qualquer coisa assim. Já li uma história no género. Podia tornar a
acordá-la e fazê-la recuperar o sentido.
Bianca deixara-se empolgar pela maravilhosa
história. Óscar disse, com ironia:
- Hei-de perguntar à mão.
- Óscar – observou ela em tom severo, - o
que eu te contei é segredo.
- Quem disse que era?
- Fui eu. E agora repete comigo: «Se eu
disser o meu segredo, ao inferno irei ter.»
Ele hesitou uns instantes e, depois repetiu:
- Se eu disser o meu segredo, ao inferno
irei ter.
- Agora, cospe na mão… Assim…. Está bom.
Agora, dá-me a tua mão…. Estás a ver? Agora misturamos o nosso cuspo e limpamos
a mão ao cabelo.
Executando o ritual, Bianca disse com a
maior serenidade.
- Conheço uma rapariga que contou um segredo
depois duma jura igual a esta e morreu afogada num poço.
O sol desaparecera, levando a sua luz
brilhante. Bianca disse:
- Eles vão me esfolar viva. Anda,
despacha-te. O meu pai deve estar à minha espera com a trela do cão para me
bater.
Óscar olhou-a, incrédulo.
- Para te bater? Costumam te bater?
- O que é que julgas?
Óscar exclamou apaixonadamente:
- Eu que os apanhe! Se eles te quiserem
bater, diz-lhes que os hei-de matar.
Os arregalados olhos castanhos lançavam
chispas.
- Ninguém tem o direito de bater na minha
mulher.
No meio do escuro que reinava debaixo das
ramagens das árvores, Bianca passou os braços pelo pescoço de Óscar e
beijou-lhe a boca aberta.
- Querido, gosto muito de ti, meu marido –
disse ela.
Depois voltou-se e saltou, levantando as saias acima do joelho e mostrando a renda da combinação que esvoaçou quando largou a correr para casa.
(Fim do 1º ato.)
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