O
SONHO ACABADO
VIII
Padrinho teve uma noite de visões.
O lençol branco
escureceu-se de negro
sob o manto fantasioso. Montes de processos e caixotes
antigos cheios de avisos de contrafés apodreciam debaixo das escrivaninhas dos tribunais. A chefe das funcionárias viu,
ao abrir as portas
do gabinete, os primeiros sintomas do caos burocrático
que se instalara ali; os funcionários que fodiam os fora de lei e exigiam: ó Abreu passa para cá o meu, deixando correr o marfim; os escrivães
sentados nas velhas cadeiras pregadas ao solo e que faziam contas de tabuada
escavando até ao último tostão à procura do milhão;
os juízes empobrecidos pela puta da idade avançada
e obrigados a servir a Lei como rege
o Código Penal,
abrindo uma retrete
atrás da sala
do tribunal, reservatório para as pingas
do mijo que às vezes caiam ao chão. Vidas de
uma vida tributável. Um homem em cima de uma bicicleta com uma trouxa na mão dirigindo-se para um campo a
fim de semear agriões e feijão; um homem condenado a esfregar as mãos calejadas
dia após dia na
terra, no arado,
na colheita, no pedaço
de terra poeirenta e suja.
«Será que estas vidas
têm realmente o mesmo
valor e o mesmo sentido que as nossas?», -perguntava a si próprio
Padrinho. - Ou seja, o mesmo
que a minha?
307
«Que a de São Nicolau?
Eles sabem tão pouca coisa, têm tão pouco
com que alimentar o espírito.» - Um homem com uma capa preta por cima dos ombros
e um martelo na mão estava sentado
numa poltrona ao centro de uma sala recheada de quadros nas paredes. Ao lado, um
escrivão empoleirado num banco comprido
com um dos pés debaixo
da outra perna, uma das mãos em cima do teclado
de uma máquina de escrever, a fumar uma cigarrilha preta.
Quando Padrinho passou
por ele, o homem engasgou-se caindo abaixo do banco e fazendo um alarido
tremendo.
O processo progredia
devagar, três horas de investigação durante a parte da manhã passadas ao calor da conversa, outras
três horas da parte
de tarde ao calor do ar condicionado, sempre ao ritmo do
caracol mais lento e com infinitas
demoras de processos e mais processos.
Vinte e dois meses depois da sua primeira fuga para o estrangeiro,
mais propriamente para Espanha, São Nicolau tornou a meter-se num comboio quando
soube da notícia
de que o seu grande amigo Padrinho se encontrava na fase terminal
de uma inflamação da vesícula, um diagnóstico reservado que era «cem por cento
fatal», como o médico do hospital lhe confidenciou, sem sombra de sentimentalismo, quando ele
lhe pedira esclarecimentos. Não houvera
mais nenhum contacto
desde que São Nicolau
se tinha ausentado e, entretanto, passara
uma eternidade. São Nicolau
enviara um breve bilhete a comunicar que tinha fugido ao
Juiz da capa preta, indo para parte incerta do país.
Quando o bilhete chegou às mãos de Padrinho, - não trazia remetente, e o tom era bastante simpático: AMIGO, NESTA HORA
DO INFORTÚNIO - ESCAPA-TE COMO PUDERES. - São
Nicolau descobriu que, no fim de uma vida
inteira de aventuras atribuladas e fugas desnorteadas, se sentia outra
vez capaz de fazer uma mudança de noventa graus à sua vida. A ideia de chegar ao Porto o mais urgente
possível, antes que Padrinho partisse para sempre, apresentava -se-lhe como uma prioridade acima de todas as coisas.
Passou boa parte
do dia a tratar de pôr a sua vida em ordem e ir ao
banco e depois tentar convencer
o funcionário para lhe cambiar
pesetas
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por escudos, mas o funcionário estava cansado de lhe dizer que tinha que apresentar argumentos. Nervosamente, disse que tinha o amigo a morrer e responderam-lhe: "Está a ver? Qualquer
pessoa pode dizer
que tem o pai a morrer,
não é? Para levar as pesetas para o mercado
negro." São Nicolau tentou
acalmar a cólera
e acabou por
dizer. «Acha-me com cara de traficante ou quê?» - O funcionário encolheu os ombros.
«Eu digo-lhe quem sou», - vociferou São Nicolau, a quem o encolher de ombros
do outro o enervara ainda mais, - «eu sou aquele
que se perdeu no desmantelamento das carruagens do combóio que saiu dos carris e não estou para ser insultado por um galego
como você.» - O seu
pedido de cambio acabou-por
ser-lhe satisfeito e, no
fim, pegou num grande maço de notas que meteu numa bolsa de cabedal. Correu em direcção à estação e foi tirar bilhete. O primeiro
comboio partia às sete e trinta e demorava cerca de duas
horas e trinta minutos de viagem: um Expresso do
Norte de nome Entrecerras. São Nicolau desceu por um dos
corredores que liga à gare
e ouviu o seu nome
ser pronunciado nos alto
falantes e sorriu com satisfação. Depois entrou na carruagem e ouviu a empregada do bar de mini saia dar-lhe as boas vindas
com um sotaque puramente minhoto e sentou-se no seu reservado, virado de costas
para o lado sul. Enquanto o comboio
ali esteve parado,
de frente para as
escadas da gare 2, entravam
passageiros nas carruagens e ele, de olhos
sonolentos, apercebia-se que devia querer descansar. Os passageiros
começaram a amontoar-se para embarcar. «Isto nunca mais anda,
deu ele por si a pensar,
o melhor é eu ir de bicicleta
que ainda chego lá
mais depressa. Mas o comboio começou finalmente a rolar sobre os carris.
«A deusa número um da vida
é
indiscutivelmente a riqueza», assegurou São Nicolau
para si mesmo, de whisky na mão, quando o comboio começou
a circular. Cumprira
o prometido, atirando
os braços para o ar enquanto o comboio se lançava a todo o vapor e, a seguir,
encostara-se no assento, sorrindo
modestamente. «Dá sempre certo.» - Viajavam
"os dois" no compartimento 13, reservada aos não-fumadores da primeira classe,
e a bagagem de São Nicolau ocupara
o lugar vazio ao lado dele,
como se fosse um ser humano. «Trate-me por Compincha», - insistiu. - O que é que faz na vida? Ganha muito? Vem muitas vezes ao
estrangeiro? E mulheres, conhece muitas? São Nicolau fechou os olhos e concentrou os pensamentos no seu amigo doente.
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A coisa mais interessante descobriu
então, era não se lembrar
de um dia infeliz
com Padrinho ao longo dos tempos de adulto,
e a coisa que
mais o satisfizera era a revelação de que até o crime compensa, se for
bem sucedido, afinal de contas;
o
mundo é para os espertos, argumentou em silêncio. Aguenta-te, suplicava em silêncio. Eu estou a ir para aí o mais rápido que posso. «Nesta época altamente materialista», - explicava Compincha, - quem
pode chegar ao top sem a riqueza? Na Galiza os jovens empresários dão festas pela noite adiante.
A riqueza preside
à mesa com as mãos abertas e carteiras
bem recheadas ao correr dos dedos,
como se o dinheiro escorregasse das mãos.» - No ecrã de vídeo da carruagem a empregada fazia uma demonstração das diversas medidas de segurança para o caso de uma emergência. Ao fundo do ecrã uma fita
inserida na imagem traduzia as palavras dela nas versões
de espanhol e francês.
Um filme de conto de anedotas e palavras cruzadas,
um pequeno luxo para os tempos actuais. A alta tecnologia ao serviço da segurança
e do relaxe. O problema é que cada vez era mais perigoso
andar nos transportes ferroviários, as linhas estavam
a apodrecer e os apeadeiros a cair de tédio e formigas
e as colisões eram mais assíduas e todos os dias
os comboios faziam
vítimas, ou pelo menos assim parecia, e a
ferrugem aumentava com mais frequência. Por isso, o filme que veio a seguir
O
Expresso do Norte era uma espécie de anedota, pelo simples
facto de ser letra corrida,
como se dissesse: Vejam só que os comboios
do futuro vão andar pelo ar e até vos oferecem uns pára-quedas para, quando caírem com
os focinhos no chão ou forem projectados à distância, não se aleijarem.
Estilos de marketing
e imagens não realistas... «Fez-me recordar
o filme do grande Francis
Coppola», - disse Compincha. -«Quando põe as estrelas
do musical no Vietname, dentro de um helicóptero, para ir dar consolo à dor, aos soldados na frente da batalha . Talvez fosse uma acção psicológica.» -
São Nicolau já tinha ouvido dizer que Padrinho não entrara com o pé direito nesta nova fase da sua carreira. A partir daí, as suas idas aos Nocturnos tiveram muitas escapadas e conhecera uma
tal Fífia, a rapariga que representava o papel de camareira, e o desempenho do próprio Padrinho no papel do cliente fora por alguns amigos classificado como malabarista e fantasista. O tempo em que nada lhe saía bem nem dava
310
mostras de melhorar.
O seu segundo encaixe Vendedor de amostras, não resultou e rapidamente se afundou sem deixar rasto.
«Sabe, talvez ele preferisse juntar-se
a pessoas de outra envergadura social, pessoas de outra cultura e nível cívico»,
-lamentou Compincha. - «Ser alguém e subir a escada da fama. Comigo os sonhos resultam
sempre.» -
São Nicolau fechou os olhos e recostou-se no assento. Bebera
o whisky demasiado depressa por causa do medo de viajar de comboio e agora tinha a cabeça a girar à roda. Compincha já se tinha esquecido
demasiado dos laços que no passado o ligavam a Padrinho e ainda bem. Esses laços eram realmente pertença do passado. «Se você não agarrar agora esta oportunidade», - bradou Compincha num tom algo confidencial. - «Vai ter que ir trabalhar na sua terra. Este contacto, acredite, é puro ouro a valer.» - A cabeça de São Nicolau rodopiava em estranhos sentidos. Que tremeliques sentiu,
quando soou através
das palavras aquele na sua terra.
Alguns tempos
antes, ter-lhe-ia dado náuseas. Não se atreveu a abrir a boca. Mas agora o amigo estava a
morrer e as velhas emoções
alertavam os seus sentidos para
o agarrar.
Quase vinte anos antes, quando
jovem se esforçava
para ganhar a vida nas margens da zona industrial, de modo a poder usufruir
uma qualidade de vida superior aos demais, e quando o seu pai se retraía
em tais luxos, adaptando por sua vez a religião e o desporto, nessa época, uma ocasião,
o pai pegara nele e metera-o dentro do carro
e foram dar uma
volta pelas redondezas. Mostrou-lhe uma enorme propriedade e vários terrenos e disse-lhe que um dia tudo aquilo
seria sua pertença. As propriedades eram enormes e os terrenos nem se fala. «Foi a minha
primeira herança desde que me conheço», - escrevia São Nicolau
no seu diário, - «por isso, sinto-me contente
e feliz.»
E, tempos mais tarde, quando
veio a descobrir que as casas e as quintas tinham sido na sua maioria hipotecadas e outras expropriadas e que havia muitos credores à espera da venda dos bens falidos, compreendeu, então, que a herança
se revelou uma pura ilusão.
A reacção imediata de São Nicolau
foi nunca acreditar sem, primeiro, ver para crer, como São Tomé.
O importante era que a vida continuava, e até era bem provável que a herança
fosse também uma autêntica dor administrativa. De todas as formas, escreveu
ao pai a agradecer a generosidade das palavras. A partir desse
momento, a sua terra afastou-se cada vez mais do filho
pródigo.
«Eu nunca esqueço um amigo», -dizia Compincha. - «Você é amigo
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de toda a gente. Reconheci logo isso no instante em que me foi sugerido. Espero bem que nunca nos dêmos mal.» - São Nicolau,
com o nó no coração, abanou a cabeça.
Não, eu também faço votos que assim seja.
São Nicolau, com os olhos piscos, deu sinal a uma funcionária que ia a passar
e pediu-lhe mais um whisky, desta vez com sumo de laranja.
«Que pena aquele flirt do Padrinho e da amiga
dele», -prosseguiu Compincha.
«E que lindo par eles faziam. Pena só ele ser um pouco ciumento
e ela uma rapariga de duas alas. Acabou por não
dar resultado .» - São Nicolau
virou-se para o outro lado. Que praga! Eu estou a tentar esquecer o passado. Vai-te embora daqui.
O tempo passa
mais depressa do que aquilo
que nós supomos,
pensou ele atrás das pálpebras
cerradas, enquanto o comboio passava
a zona minhota. Talvez o
infortúnio seja o parente da sorte, no qual
se move o destino de uma pessoa e a satisfação apenas uma série contagiante de pequenos clarões no meio do percurso
humano. Ou, então,
a desgraça seja pelo menos o terror do fracasso... Esta meditação foi interrompida por um sonoro
remexer vindo do assento vizinho.
O Sr. Compincha levantara-se, de copo vazio na mão, e preparava-se para ir meter mais
uma dose no papo.
O fanfarrão tinha caído no goto das funcionárias do bar. Elas rodeavam-no de todas as atenções, servindo-lhe a dose mais acrescentada de malte puro, cobrindo-o de simpatias até dizer chega. São Nicolau
lembrou-se, de repente,
das tias da boa sociedade
da sua terra quando levavam as sobrinhas adolescentes ao baile
e lhes diziam
em relação aos rapazes: «Que giro aquele é? Parece
que tem mesmo cara
de boneco. Olha para o ouro dos dedos
da mão esquerda. Que rico ele deye ser!» -
Na realidade, Compincha
tinha um aspecto de moinante disfarçado de intelectual. Tirara os óculos antes de beber,
e a pêra no queixo
dava-lhe uma aparência
de abade da freguesia. Aos olhos
de São Nicolau, assemelhava-se acima de tudo à interpretação
de Plácido Domingo no papel de O Barbeiro de Sevilha. Por aí se explique a popularidade de que
ele gozava entre o sexo fraço.
Ao pegar nas revistas e jornais que se encontravam ao serviço dos passageiros, São Nicolau deu de caras
com um velho amigo em apuros.
O comentário de Os Sapatos prós Calos, de Mister Louis, fora um tremendo fracasso no Médio
Oriente e África
e as encomendas deram
barraca e foram automaticamente interrompidas. Pior ainda, a sua
secretária Susy Três vendera
para a comunicação social um artigo em
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que dizia que a pele dos sapatos
não passava de solas convertidas em línguas de carneiro
escaldadas. Pobre Mister Louis, derrotado
pelo amor perverso que se propusera dominar. Era difícil
não ter pena de Louis, sem empresa e reduzido
aos seus últimos tostões, abandonado
pela sua querida secretária, que fazia as delícias aos mais famosos
chulos e comerciantes falidos frequentadores da taberna do Rato.
Mas São Nicolau,
voando para ver o amigo internado
no hospital, encontrava-se num estado de tensão emocional
que até os dedos dos pés lhe davam comichões. O que é isto? perguntou lentamente a si próprio,
não me digas que os calos agora vieram
pa- rar para aqui.
No norte de Portugal,
a luta entre um conhecido
empresário das slot
-machines e um juiz local deu bronca nas barras dos tribunais. O Bocas do dia noticiava e São Nicolau
leu a notícia do mais escandaloso caso; «juiz abafa uma milêna de contos».
Na ultima página, nas notícias
mais sensacionalistas, os empresários do jogo ainda exigiam mais liberdade
para a expansão das máquinas
pelas províncias e em locais
ao ar livre.
São Nicolau lembrou-se do amigo de Padrinho,
o industrial de calçado Zé, o intocável, que falava destas
coisas com uma emoção claramente insuspeita.
«Como podemos saber se o lema
do jogo fortuna e azar só funciona mesmo para nos cravar?», - raciocinava ele. «Muitos dos que eu conheço, lá no Porto, fazem a féria à semana no jogo, nos casinos, nas casas
clandestinas, na batota,
mas outros dizem-se
vítimas da extorsão
à carteira, do jogo viciado, do parceiro comprometido. Muito bem. Eu não tenho nem
nunca tive experiência do jogo, por isso não estou muito
à vontade para definir
esse maldito prazer. Em termos
de vício, é evidente que não sou viciado. Portanto, embora muitos jogadores se queixem que são explorados, o certo
é que também eles procuram
ser os exploradores dos outros.» -
«O problema das máquinas
das cartas nos salões para
jovens, a partir da menor idade», -comentara
Zé, - «é que faz grande concorrência às verdadeiras casas de jogo - os casinos - e aí, é que a porca torce o rabo.» -
Rebentava assim um escândalo em tomo
de uma questão de jogo.
Era ou não verdade que os empresários ofereciam por debaixo da mesa quantias indeterminadas, esforçando-se para que o negócio
fosse de vento em popa?
O caso envolvia grandes somas de dinheiro
e a credibilidade do juiz, que procedeu
ao inquérito do jogo clandestino, ficara chamuscada,
313
mas isso passava
ao lado do interesse de São Nicolau.
Olhava fixamente para uma fotografia desfocada numa das páginas
interiores, onde se via
um grupo de indivíduos flutuando
em cima dum barco parado no rio. Numa
pequena província a norte do Porto, houvera
uma rusga a um desses barcos clandestinos na prática
da prostituição e os fomentadores e proxenetas foram conduzidos na carrinha policial,
ficando a aguardar
a intervenção do juiz. Havia
centenas de bocados
de rolos de papel higiénico cheios de ranheta
e mal cheirosos; o fedor parecia emanar da folha
do jornal.
E, em Vila de Gaia o presidente de um grupo muito popular, que «fez um acordo»
com os moradores das ilhas baratas para oferecer volumes de cigarros da marca Três Vinte,
na angariação de sócios, foi alvejado
por uma chuva de varonas 1 de um grupo de pés descalços, enfurecidos com a marca reles do tabaco. A insatisfação entre as comunidades pobres, as tensões altíssimas das suas artérias, eram coisas intoleráveis como se estivessem a toda a hora sempre em guerra
entre uns e outros. Na luta eterna entre o pobre e o rico e as suas crueldades, a crueldade ganhava terreno substancialmente.
A voz de Compincha intrometeu-se nestes pensamentos longínquos. A primeira coisa que
ele vira ao voltar para
o assento fora
a fotografia de uma
camareira de copo
na mão a olhar para ele na mesa de abrir de São
Nicolau. «A verdade», -disse na sua habitual fanfarronice –é que estas mulheres bebem mais que um homem.
Parecem autênticas esponjas. Eu, se bebesse meia
dúzia de taças
de champanhe, ficava
logo grogue, mas elas não. Bebem às dezenas de garrafas e estão sempre
com a cabeça a funcionar nos
cifrões, como um táximetro. Parece
incrível, mas é verdade,
sim senhor.» -
CONHECIDOS PROXENETAS FORAM PRESOS POR FALTA DE PROSTITUTAS, alegava um porta-voz da polícia, mas os «promotores das casas de passe» rejeitavam essa análise. BÓFIAS DA CIDADE, argumentava um representante
da chulice. PRESSUPOSTOS AMANTES
CLANDESTINOS DAS CAMAREIRAS.
Um jornal citadino
publicava um fotografia com cartazes afixados à porta das casas de tia, nas velhas ruas do engate.
O bófia, um rapaz com pinta
de irmão-freire, de olhos azuis,
calça justa na perna e sapato bicudo á italiana, todas as noites podia ser encontrado no seu carro «Cortina GL» -estacionado em frente ao largo da estação à sombra dos candeeiros de luz frouxa
-a contar notas de Santo
António (vinte escudos)
entregues
314
1Pontas de tabaco.
pelas camareiras e a enrolar
uma a uma no porta
notas, de forma a que ficassem
esticadas como peles
de bacalhau esturricado.
«Mas que tempos
tão difíceis esses»,
-continuou Compincha. -Para os desgraçados e também para os
donos das casas do sexo por
aluguer que viam a sua economia
a fraquejar.» - Depois animou-se a ver a empregada do bar que se aproximava. «Sempre adorei o grupo das mulheres bem altas», -disse sorridente de forma a que ela ouvisse»
, - deve ser
um prazer um homem trepar
por aquela escada
acima. E você? Que é que diz a isto?» -
Oh! que maluqueira de ideias é capaz o espírito chanfrado, sussurrou
tristemente São Nicolau.
Não admira que não sejamos
capazes de nos concentrar por muito tempo noutras coisas.
Não admira, pois, que invente programadores de controle à distância para mudar de canal. Assim não
precisamos de ouvir quem quer que seja. Se apontássemos para nós próprios esses
instrumentos, havíamos de fugir para os confins
do mundo, só para nos evitar de nos ouvirmos. São Nicolau sentia
que os pensamentos se extraviavam, por muito que se concentrassem no amigo,
desviando-se para o caso das camareiras. São Nicolau mandara-lhe um bilhete; será que ele o recebeu? Teria ele melhorado no seu diagnóstico? Seria possível que ele ainda estivesse vivo? -
só então pensou nisso
e perturbou-o .a ideia
de não chegar a tempo, que coisa imperdoável! - Hei-de saber,
quando o vir à minha frente, pensou. Olhou para o relógio,
o tempo passava e viu o clarão de fumo que saia do
comboio que continuava a rolar sobre os carris.
O fim da viagem aproximou-se sem acidentes.
Ninguém estava ali à sua espera
na estação.
«Venha daí»,
- chamou Compincha com um aceno de mão. «Chama-se um taxi e vamos já directos ao hospital.» -
Vinte minutos depois,
São Nicolau estava diante do portão do hospital
de São João com a mala de viagem e a gabardina
debaixo do braço,
a olhar para uma vitrina de vidro onde
estava instalado o sistema de controlo
por vídeo das entradas de visitas. Ao lado,
num grande reclame, tinham escrito um slogan de ordem
contra a sida: TODOS OS DESEJOS ACABAM NUMA CAMISINHA I QUANDO O PRAZER É CONSCIENTE I É LEVE E TRANSPARENTE
/ NÃO ESQUEÇA: USE PRESERVATIVO NA HORINHA.
315
Uma vez mais, Padrinho viu o sonho desfazer-se em poeira; homens sem eira nem beira
e saqueadores de faca na mão tinham
tentado apossar-se da cadeira
do poder abandonada, mas o tempo acabara por os
vencer. Nunca mais ninguém o incomodaria ali.
Padrinho deitou-se sobre a cama e fechou os olhos com um crucifixo
a mão. Não lhe interessava a sorte dos outros; tentou
dormir mas em vão.
Ao fim de um tempo
incontável de horas e minutos, ocorreu-lhe que estava a morrer
de um mal incurável. Sentia
que os sonhos lhe fugiam
da mente e não conseguia pensar,
pensar, pensar.
Na ultima noite
da sua vida ouviu um barulho, como que um torpedo,
a estoirar contra uma plataforma de ferro de aço inoxidável e sentiu um cheiro a cera queimada
e percebeu que o coração
estava a dar
as últimas. Levantou-se da cama e quase cambaleava com a fraqueza, mas acabou por aguentar-se nas chuteiras e foi até à janela
para apanhar ar e,
ao mesmo tempo, ver se lá fora chovia.
Realmente as chuvas
varrem pegadas, apagam memórias, purificam a terra
e aproximam-se dele para
o levar; -e o vento
soprava a chuva
na direcção do hospital, de maneira
que, em breve, brevemente, seria a sua vez de partir. Viu a chuva
cair em mil gotas de água e escorrer
pelos cantos, como uma serpente;
depois parou e encaminhou-se muito de mansinho para próximo da janela onde pela primeira vez meditara no sonho.-E agora sentia-se invadido por uma lassidão, por um enorme
peso e voltou de novo
para a cama. Antes de fechar
os olhos, sentiu que alguma
coisa lhe tocara
nos lábios e viu o rosto
da mulher, debatendo-se para lhe dar um beijo. Então o suspiro
derramou-se por cima dele e ele viu-se ao lado da mulher
que olhava carinhosamente. «Beija-me» - dizia ela. -«Beija-me
com fervor.» - Como é que conseguia ouvir a voz dela? -Estava
debaixo da água, nas
ondas do oceano, mas ele ouvi-a claramente bem. «Beija-me», -disse ela. Ele fechou os olhos.
Estava a desaparecer.
Então alguma coisa dentro de si baqueou, fez um último
esforço, no instante em que o coração parou de bater. O seu corpo ficou inerte.
316
No jardim abandalhado e cheio de ramos abatidos,
o mau trato atraiu o seu olhar desvanecido. O pai sempre tivera o bom hábito de cuidar
do jardim a rigor. Provavelmente usavam-no
agora como mesa de pingue-pongue, pensou amargamente. A madrasta saiu da vivenda
para vir receber São Nicolau, com grande consternação. «Meu Nicolauzinho. Já tinha tantas saudades tuas. A tua vinda é uma surpresa para mim.» -
Ela era talvez uns dez anos mais nova
que o pai de São
Nicolau que morrera havia
quase três anos,
de velhice, em pleno sono.
«Quanto tempo vais ficar por cá?», -perguntou ela, mas São Nicolau estava tão abatido que nem lhe prestou atenção. «Vou já hoje embora.»
- E São Nicolau começou
a aperceber-se da ansiedade da velha senhora
em querer conversar. «Nunca mais tive noticias tuas. Sabes como
é. Ainda nos ligam alguns
laços sentimentais...» -Calou-se, pois
já não conseguia dominar a voz e a lembrança do marido continuava a ser uma grande perda
para a sua vida. Também ele a compreendeu. Ela disse calorosamente. «Eu por mim», -soluçava ela,"- «não paro de rezar
todos os dias
uma oração para que nada de ruim te
aconteça.» -
São Nicolau abraçou
a madrasta e deu-lhe um beijo na face. Era bem
possível que ficasse por ali umas horas antes de poder seguir viagem.
Mas não. Olhou para a mala de viagem junto ao alpendre de casa e
sentiu que não tinha condições
de ficar ali por
muito mais tempo e fez questão de pedir à madrasta
que mandasse chamar u m taxi para se ir embora. Agora que São Nicolau estava silenciosamente no quarto a meditar,
por uns momentos, não descurou
a ideia de que chegara demasiado tarde; que Padrinho tinha morrido enquanto
ele tagarelava no
317
comboio. Então sentiu-se triste e oprimido, com acessos de tosse, virou
a cabeça e pensou num provérbio que alguém escrevera um dia.
O
mundo é o lugar que,
morrendo nele, provamos ser pertença dele. A seguir, saiu para o taxi que esperava por ele lá fora. São Nicolau aproximou-se da madrasta e disse-lhe adeus.
Na manhã do regresso de São Nicolau, a madrasta pediu-lhe para ele cortar a pêra que lhe dava um aspecto
mais velhote e ele prometeu-lhe
que, na próxima vez que fosse ao barbeiro,
far-lhe-ia a vontade.
Uma hora depois, o comboio começou
a sua caminhada. Desta vez, São Nicolau
não bebeu sequer um whisky. E não comeu nada. Estava demasiado
desiludido consigo próprio
enão lhe apetecia
sentar-se no assento. Preferiu ir de pé à janela, olhando a paisagem. Oprincipio da tarde estava
solarenga; o brilho
azul do céu estendia-se desde as águas do rio Douro até ao
horizonte longínquo. Nos seus pensamentos vagueava a ilusão
de ver uma estrada prateada sobre uma risca no cabelo brilhando nas águas. Abanou a cabeça; já não conseguia acreditar em sonhos de adultos. O tempo do sonho terminara e o panorama que avistava da janela não passava de uma paisagem
com antigo valor
sentimental. Arre, diabos
os levem! Volta para
os galegos!
«Anda daí», - disse a voz de Compincha atrás de si. - «Se tu te recusasses a ver o teu amigo morrer, não terias viajado
de novo.» -
Estava mais que provado que a boa sorte
de um
indivíduo' não tem explicação.
«Já vou», -respondeu ele e virou as costas
à paisagem indo deitar-se no assento.
318
__________________________/////////__________________________________
Fernando Abraão passou
parte da sua vida nos meandros
da vida noctuma. Primeiro
como músico e depois
corno empregado de mesa
até chegar a boss da noite. É compositor e já editou vários CD
e autor de vários livros para teatro e revista
A História do Morto-Vivo (Ano de 1999) e Tripeiro
de Gema (2000). É ainda autor dos romances
O Bando das Periquitas (1999).
E do romance editado
recentemente Escritos Traidores (2002). Toda a sua obra disponível se encontra às vendas
nas tabacarias da zona
de Antero Quental e Costa Cabral, que lançarão em breve a sua
última obra: A Música Que Eu Dou.
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