Saturday, October 13, 2018



                                  (Estamos a ler o livro "Gente de Vícios"- Capítulo 6)

Alguns minutos depois, Padrinho dava entrada no hospital onde ficou hospitalizado nos cuidados intensivos. E recebeu a visita da esposa que era para ele a única companhia que desejava naquele momento. Baixote regressou à taberna e, como de costume, Rato-Ratão veio ter com ele para saber notícias. «Ficou internado.» - Rato-Ratão, muito admirado, perguntou sem pensar: «E era caso para internamento?» _ Baixote responde, depois de molhar a garganta com um pouco de whisky.
«Claro que sim, senão não o tinha deixado ficar.» -
E foi desta maneira que Padrinho, durante uns dias que esteve internado, escapou à alçada fiscal. Na primeira vez que voltou à taberna, ouviu Rato-Ratão a saudá-lo, fazendo menção de bater palmas. «Seja bem-vindo.» - Em seguida, Rato-Ratão sentou-se junto dele numa mesa próxima ao balcão, dado que assim controlava melhor a porta de entrada, e serviu-lhe umas águas, enquanto conversavam um bocado do tempo.
«Tenha  calma!», -disse Rato-Ratão a Padrinho, falando calmamente. - «É preciso é não enervar-se.» -
«Só precisava um pouco da tua calma», -respondeu ele. -«e da tua paciência, também.» -
Rato-Ratão continuou a achar Padrinho perturbado, vendo nele (pela maneira como se comportava) uma sombra de si mesmo que precisava de ser apoiado. Quando tratava de mandar preparar a refeição para o jantar, Rato-Ratão fez questão de convidar Padrinho para comer com ele, convite esse que foi aceite de boa vontade. Instantes depois, sentados à mesa e, quando Rato-Ratão contava coisas da bola, Padrinho ria-se com disposição.
«Tu não vês que o teu clube quanto tempo não perde no seu estádio. É um gigante; e o mínimo que nós podemos fazer é bater-lhe palmas.» - Rato-Ratão, com aumento de furor, viu-se obrigado a jogar na retranca, pensando que ele o estava a gozar. «Não me diga que agora mudou de
cor», -dizia, de olhar trocista e Padrinho respondia:
«Não, mas é uma questão de princípio aplaudir o melhor, isso e nada  mais.»

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Em nome da amizade, Rato-Ratão ofereceu a Padrinho uma sobremesa à parte; nunca se esquecia de seguir a sigla do GAS: - Para um bom doente nada melhor que uma peça de fruta decente. - Ao chegar a companhia, conversaram durante uns bons minutos e, enquanto, Rato­ Ratão ficava no balcão, emborcar bourbon simples. Gostava de oferecer aos clientes amigos da casa sobremesas do género, compatíveis com os gostos de cada um deles e dava uma de fineza quando dizia: «Não se pode olvidar uma obra de arte chamada «mulher». Ela está aqui, não a viram? Então olhem bem, porque temos de lhe dar o melhor que temos dentro das nossas vidas.» - O cliente em frente respondeu em tom desafiador: «Eu já estou preparado, me falta saber se ela também.» - Ao que Rato-Ratão, com a safadeza   mais natural   deste  mundo, retorquiu:
«Você põe-se na bicha porque, com uma «nota» dessas, nem no mercado do Bolhão se arranja!» - E mais ele disse: «O tempo de -galinha gorda por pouco dinheiro - salvo erro, foi no século do D. Afonso Henriques; e esse tempo vai.» -
Apesar da sua capacidade para descontrair os clientes, nem todos eles recebiam de bom agrado os seus recados. Rato-Ratão ficava, no entanto, de certa forma, aliviado por se ver livre dos inoportunos e conseguir assim conciliar os imperativos do amor instantâneo com a amizade.
Certa ocasião, teve uma ideia genial que pôs em prática logo a seguir ao inicio da tarde, e o fez verter lágrimas de riso: uma ideia muito simples, ao lhe ser apresentada uma dama fina de grande envergadura, ele nem esteve com meias medidas e endossou-a ao Grande Pénis Padeiro que, de imediato, a convenceu a partilhar a cama com ele. Ela não lhe disse nada até estarem ambos metidos na cama. Em seguida, Padeiro ajudou-a a descontrair-se mas foi por pouco tempo, dado que, apalpando as partes de baixo, bateu com a sua mão nos guizos da parceira! Deu um pulo tão grande como o raio do palavrão que lançou pela boca fora: «Foda-se, maricas, aqui!...» - E, ao dizer aquilo, amarrotou as suas roupas numa trouxa e fugiu com os demónios da presença do travesti, retirando-se para o andar de cima, onde se vestiu a correr e, logo em seguida, desapareceu de vista.

A Rapariga da Saca Preta e Capitão Guei foram testemunhas do caso policial da prisão de Chicras, acusado de ser ele o fomentador da personagem do Chupador das Vaginas-Carecas. Relativo a este assunto,
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Rato-Ratão foi à cozinha falar com o seu empregado. «É uma história um tanto ou quanto maluca, com falta de provas concretas e apenas baseada em contos insinuados desta e daquela pessoa. Chicras nega que seja ele o violador mas, se elas o deixarem experimentar, ele diz que não se importa. É óbvio que isso é um vício enraizado de dentro, premeditadamente, por alguém de maneira a julgá-lo a ele; agora resta saber até que ponto vão querer enfiar a história ou, se calhar, até conseguem incriminá-lo e mandá-lo capar de maneira a não se atrever, futuramente, a comer nenhum grelo descapotável.» - Rato-Ratão, a seguir, aconselhou-o a ter calma e não se precipitar. Relembrando o chinfrim que ele nessa altura fez na rua, disse: «O pobre coitado -  tem ou não tem? -um vício um bocado pesado em matéria de drogas...» Rato-Ratão coçou o queixo. «No campo dos vícios», - admitiu, - «tanto se droga como se lambe e o gajo, francamente, até à polícia confessou essa merda. Mas isso não invalida que o tipo ande para a sorver essas tipas e crie uma peste doentia de que ninguém se livra.» -
Capitão Guei assistiu ao desenrolar da conversa sem interferir. «Mas a verdade é que isto não é uma questão policial, mas sim uma questão de vícios e, que raio, vícios não se discutem», - insistiu Rato-Ratão, acrescentando, ao preparar-se para vir para a sala, - amanhã você vai ao julgamento; pode entrar mais tarde ao serviço, se lhe apetecer, beba um bagaço antes de ir para lá e não se preocupe com isso, que não é nada de grave.» -
Na manhã seguinte, porém, Capitão Guei e a Rapariga da Saca Preta apresentaram-se ambos no posto policial, ele envergando um casaco azul por cima de uma camisa branca desabotoada e umas calças de ganga.
«Está pronto para falar? Pode começar.» - Disse-lhe o guarda na secretaria, pondo-lhe o documento à frente dele. Durou cerca de cinco minutos o interrogatório. Capitão Guei deixou o documento na mão do guarda e foi ter com a Rapariga da Saca Preta que tinha preenchido o seu auto de testemunho.
«Disseste-me que a polícia ia fazer muitas perguntas, mas olha que não.», - A Rapariga da Saca Preta nem queria crer que o interrogatório tivesse sido assim tão fácil. Começara a ficar mais desinibida e segura de si. «E fizeste o que te competia, isso é o que interessa. Vamos mandá-los dar uma volta ao bilhar grande e bazar daqui.» - Capitão Guei ficou com ar de intelectual. «É isso mesmo», -disse ela tirando o casaco de malha. -
«Tu é que sabes, o resto é conversa de cacha .» -
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Capitão Guei deixou-a passar à frente. «Agora onde é que vais?», - quis saber ela, de gorro enfiado na cabeça e calças de couro e botas com polainas, tipo exército, que revelavam o seu estilo á hippie. «Fui notificado para servir de testemunha, não foi?», - e ela ficou de boca aberta a olhar para ele que voltou a dizer. - «Pois então enquanto espero pelo julgamento, é a minha vez de ir ali à tasca matar o bicho e beber uma jeropiga.» - Foi a vez dela responder: «Vê se tens cuidado e não bebas muito.» -  E ele logo ripostou: «Cuidado tens que ter tu com essas roupas, vai-te lixar, ainda acabas por ser engatada por um juiz!» -

Capitão Guei estava à espera de um julgamento mais rigoroso por parte do magistrado mas, afinal, nada disso aconteceu e tudo se processou pelas vias normais dos factos ocorridos. E, olhando às circunstâncias, segundo parece, o processo queixa-crime acabou ali mesmo, naquela hora, com castigo domiciliário de  Chicras, apresentado pelo juiz, uma punição -que provocou as maiores risotas na sala de audiências. -Mais ainda, pôs uma dúzia de mulheres de semblante aberto e sorrisos de consolação e o pessoal dos arrumadores de carros, os empregados de mesa, clientes e travestis, prostitutas e proxenetas. O bom humor do público presente na sala estava eufórico e reinava a alegria por aceitar que ajustiça tinha sido bem feita. Uma jovem negra, ao de Rato-Ratão, olhou-o de alto a baixo, com ar divertido; ele retribuiu o olhar e ela sorriu: «Vá lá, podia ter sido bem pior.» - A jovem trazia a lista da ementa na mão e pediu: «Queria uma coisa que está aqui escrita na secção de grill», - mostrou-lhe a lista, - que não sei o que é mas gostava de experimentar.» - Ele riu-se e virou-se para a pequena montra atrás do balcão: «Biju seco. Quer dizer: Pão sem nada dentro, entendido?» - Ela não tinha necessidade de saber mais... Ele segredou-lhe ao ouvido: «Pão com água e amendoins é chicha!» - Rato-Ratão continuava a ser uma enciclopédia de sabedoria enganadora.

Quando Capitão Guei começou a lixá-lo primeiro acabar o que tinha para dizer. Queria descrever ao pormenor tudo o que se passara no julgamento, no dia em que Chicras fora formalmente julgado e acusado de assédio sexual à vagina-careca  e revelou-se um orador tão filósofo que pôs todos os presentes espantados a olhar para ele.
«O  Chicras passou-se naquele banco», -disse ele aos presentes que o escutavam em silêncio. - «Meu Deus, podeis crer que ele se passou. O Chicras teve a distinta lata, depois de ouvir o juiz ler as dezenas de processos contra ele, de dizer que metade daquilo não era verdade. Falou olhando de frente para todos, parecia até um papagaio. E disse: "Encontro-me aqui num papel trocado; ou seja, não sou o violador mas antes o violado!.. "Encontro-me aqui porque as mulheres abusaram de mim e tornaram-me num perverso prevaricador."
Ele foi o maior entre os grandes. "E não se iludam; disse ainda, "As coisas hoje em dia mudam-se a qualquer hora. Permitam-me que vos dê um exemplo: gays, homossexuais, lésbicas, prostitutas, proxenetas, arruaceiros, vadios, insurrectos, violadores, somos todos uma família e só não nos aceitam quem é racista ou sofre de miopia. Fomos todos feitos na mesma gamela e da mesma forma de vivermos todos juntos, do mesmo tacho para a mesma panela e seremos nós, para vossa informação, que, num amanhã próximo, desenharemos a sociedade num perfil: - Seremos os profanadores da natureza e os inovadores da nova criação. Tenho dito e mais não digo."
O guarda ajudou-o a descer o estrado entre aplausos e assobios e ele sorria, abanando  a cabeça na direcção  da tribuna  do Magistrado. Seguiram-se discursos menos carismáticos, até chegar à sentença final. Capitão Guei olhou para Rato-Ratão: «Ninguém falou dele em ser um viciado da própria  sociedade.»  - Rato-Ratão  encolheu os ombros:
«Algumas mulheres até o apoiam nessa campanha do pêlo. As picas da Ilha do Linguado, na hora de snifar o de talco, até suspiram por esse momento em que ele se galvaniza e se transforma num lobisomem. Mas isso não é assunto para discutir aqui neste momento. A nós nos interessa saber qual foi a sentença final.»
Noutras circunstâncias, Capitão Guei não estava com tanto sermão nem muito menos com uma entoação académica de alguém bastante instruído; mas notava-se ali a presença da cachaça, isso notava-se, até do bafo à distância, mas isso era o menos, o pior era agora que ele começava a sentir a cabeça à nora e os sentidos a vacilar e começava também a ficar cansado de tanto latim pregar no molhado.
«Preparai-vos então para o melhor. O juiz declarou o  Chicras culpado e castigou-o a satisfazer todas as vaginas-carecas até lhes nascerem os cabelos. Francamente não acham mesmo uma sentença de riso?» -

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Rato-Ratão reconheceu na sentença a mais famosa decisão de que tivera conhecimento.
«A concretização de  um  desejo», - dizia Rato-Ratão, - «SÓ  tem um final: a satisfação.» -
E agora a jovem negra, com o nariz inclinado de mais e uma voz vibrante de cantora de merengue, entoava as primeiras notas de uma canção de Ratazana Pai, Sou um Drogado. Verdade seja dita, a canção era dedicada aos drogados e certos versos faziam até vibrar as cordas da guitarra com que a intérprete se fazia acompanhar.
Rato-Ratão, com as suas traquinices, animou um pouco o ambiente que se verificava naquele instante. Um bocado depois, o empregado chamava-lhe ·a atenção para a presença na sala da Rapariga da Saca Preta. Rato-Ratão, olhando na direcção indicada pelo empregado, vira o rosto esbranquiçado dela e notara, na mesma altura, o olhar gelado e a querer desfalecer.
«Ela está doente ou quê?» - Perguntou Rato-Ratão virado para os restantes, ao mesmo tempo que Capitão Guei lhe sussurrava perto do ouvido que ela tinha vindo muito nervosa depois do julgamento. O mais certo era ainda trazer a cabeça cheia de perguntas e respostas absurdas que se tinham dito na sala do tribunal.
«Ela toma um chá de tília e fica como uma pêra.» - O Capitão Guei prontificou-se ir à cozinha tratar de lhe preparar a bebida.

Agora estava fora do balcão, na companhia de um Baixote muito curioso por saber as notícias, e de uma Madame Rara que tinha regressado da sua terra e dava mostras de alguma ansiedade. «Quem está morta por saber as novidades de sou eu»,-disse ela, exprimindo de uma forma meiga o que já era habitual. «Espera , minha filha, que vais ter muito para ouvir, podes crer». -Baixote retorquiu: «É melhor vires comigo até à minha mesa que eu vou-te pôr ao corrente de tudo.» - E Madame Rara foi com ele. Estava curiosa por saber de tudo. «Aqui está muito abafado»,- disse ele. - «É melhor irmos para a sala de jantar que é mais fresco.» -
dentro da sala do restaurante havia um carrinho de sobremesas e estava precisamente encostado ao portal de madeira. Na vidraça de vidro havia um menu de serviço de jantar, e Madame Rara pegou no cartaz do dia e pediu para lhe ser servida uma sobremesa de quentes.com café e leite. Na parte de cima da lista liam-se sobremesas da tarde.
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Na discoteca Xeque Ao Rei, Baixote, depois de ter deixado Madame Rara comer a sobremesa à vontade, ofereceu-lhe um long-drink e obrigou-a a dançar o sapateado na pista ao som  dos Los Gitanos. Também ela acelerava o passo e dava mostras de estar em forma. Embora ele não a largasse de vista, ainda bem que voltou, aposto que teve saudades minhas, e hoje veio mesmo a calhar. Baixote nem sequer foi capaz de adiantar muito paleio, quantas mais perguntas mais asneiras assim pensou ele, e agora, mais do que nunca, tinha-a ali nos seus braços,' de corpo esbelto e sorriso atraente, mostrando uma parte do seu maillot preto.
«Até que enfim. Já tinha saudades tuas.» - Baixote, sentindo o calor dela, afastou-se um pouco, todo inflamado pela chama ardente.
«A nossa saudade não é de hoje mas de sempre.» - Disse Baixote a Madame Rara, numa pausa de dança. «Uf, que calor!» - Suspirou ela, pestanejando várias vezes o olhar.
O cerco aperta-se ao meu redor. Baixote bamboleava o seu corpo contra o dela, tal como o índio quando se aperta á sua sqanja 1

Quando os corpos colidiram em choque, o ímpeto fê-los resfriar os ânimos e surgiu uma exclamação! -O que é isto? Queres-me deitar ao chão? lá, ainda é cedo.
«Onde é que tu ias?», - exclama Baixote. - «Julguei que estavas a experimentar luta greco-romana. Tás porreira?» -
«Sim. Perfeitamente. Mas preciso de apanhar um pouco de ar,-mais nada.» -
«OK. Vamos nessa. Também preciso de encher os pulmões de oxigénio.»
«Vai pagar a conta que eu espero por ti no bengaleiro.» -
.... E, na rua, caminharam devagar, até apanhar o carro e sair dali em direcção à beira-mar. - Santo Deus! Que frescura. Aqui pureza encanto e magia! -Belos sopros de ar e, juntos à foz marinha, está uma noite de sonhos cor do luar, anunciando o regresso, isso mesmo, do par de namorados, Baixote e Madame Rara. O seu regresso e o inicio da marmelada. Amor, Amor e amor até dizer quanto baste...
.... E, depois do consolo, repousam a cabeça encostados um ao outro. Ele liga o aparelho e escutam um pouco de rádio. Um apaixonado que foi apanhado na marmelada com a sua sósia junto ao mar por um peixe­ piranha que saltou da água e lhe mordeu parte da gaita. Pobre coitado. E agora teve que ser socorrido nas urgências hospitalares, diz ele, para lhe

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1Rapariga.

fazerem um enxerto de pele tirada dos tomates, afim de encher a parte faltosa. Eu é que não gostava nada que me enfiasse na minha ferramenta um bocado dos meus tomates. Mas o pobre coitado também não tinha muito por onde escolher. Que raio de sorte. dias em que uma pessoa não deve sair de casa.
O locutor da rádio discutia o assunto com os ouvintes radiofónicos na sequência do cruel acontecimento. A história da ferramenta era um assunto muito grave e cauteloso. Não vale a pena estar aqui a explicar tudo ao pormenor, concordou uma pequena parte dos ouvintes. Para que é que deu ao peixe a maldita ideia de vir apanhar ar fora da água, mas as técnicas da medicina remediaram a situação.
«Não vale a pena discutir com os tarados dos ouvintes», -disse ele.
- «Pois não sabem o que dizem nem têm mais que fazer, senão não diziam essas parvoíces todas. E mais à frente. «Já ouvi que chegue. Com licença, meus senhores.» - Exclamou Baixote e a voz do locutor desapareceu da rádio, dando lugar à musica pimba do tema: - Não mulheres para ninguém. -
E o que fez Baixote nessa hora foi dar o pira dali o mais depressa possível, não fosse aparecer algum peixe-piranha por à balda e dar o salto mortífero. No regresso, pela estrada, julgou ver diante de si um bando de piranhas a querer entrar pelos vidros. Fechando às vezes os olhos, recostando-se ao assento da cadeira, carregou no acelerador a fundo.
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VI


    O ROMÂNTlCO CHAlvlPALINAS

O tempo estava quente e, quando a vaga de calor chegou aos quarenta
graus e aí ficou  durante algum tempo, as pessoas sentiram-se confrontadas
por uma atmosfera pesada e sonolenta ao ponto de ebulição.
O Sr. Mister Louis e a sua secretária (agora mais do que isso) Susy Três, recém-
chegados à Metrópole depois de um longo tempo em que estiveram a
·foram"f exercer  funções profissionais em terras de Inglaterra, fizeram  anunciar uma grande farra para comemorar o regresso à vida Os conhecimentos de Louis na capital dos negócios londrina
mundana tinham dado aso que a sua nova ideia fosse devidamente apreciada pelos especialistas na matéria; folheados de corticite embutidos nas solas dos sapatos, afim de favorecer todos aqueles com calos à superfície da pele, que viam assim
reduzidos os seus tormentos para poderem andar mais confortáveis.
Uma ideia genial caso fosse aprovada pelos negociantes, para vender
Calçado de .  estilo chinelo aos habitantes da Índia e dos países árabes, onde os calos são tão abundantes como a população de cada nação.
A criação de um tipo de calçado que desse para todos deveria ser levado em linha de
conta pelos criadores de moda na indústria do calçado.
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«Uma vez que o nosso propósito é proporcionar ás pessoas um andar confortável, neste caso, evitar um mal maior, a degradação dos pés e eliminar dores horríveis, parece-me ser uma ideia excelente.» - Susy Três
que se considerou ser uma secretária e pêras de Louis e uma vítima da' cegueira do amor, ficou incumbida de tratar de toda a documentação e contractos para iniciação do futuro projecto.
Louis e Susy estavam de novo no Porto, celebrando copiosamente a sua prodigiosa ideia na Residência da Xangai. e enviando convites e telefonemas para aquilo que prometia ser uma festa de arromba. Um desses convites foi ter, graças aos bons amigos de Louis, às mãos de Champalinas, que acedeu de semblante risonho, se bem que chegasse um pouco atrasado à festa, mas isso era o menos. (Susy telefonara também a Ave Rara para o convidar, dizendo-lhe com a sua habitual malandrice:
«Não podes faltar à festa. A tua presença é indispensável nas minhas borgas.» - Ao que Ave Rara respondeu, com o seu toque de elegância na voz, tipicamente, com chiquismo, oh minha querida com todo o prazer. Susy conseguiu pô-lo a recordar a ultima cena em que entraram juntos, faz alguns meses a esta parte, e finalizou em tom triunfal: «Conto contigo para animares a festa, Ave. Podes trazer alguém contigo, duas chegam; olha, trás quem quiseres. Vai ser uma festa de muitos brinquinhos.»)

O local da festa constituía um marco na vida de Louis, pois fora lá que protagonizara alguns dos melhores lançamentos de rampa com as suas fãs quando se queria divertir à moda inglesa. A taberna do Rato era uma adaptação ao bom estilo londrino e possuía óptimas instalações que foram postas ao seu dispor, e os convidados iam assim ter oportunidade de conviverem mais de perto com algumas personagens de alto relevo que integram o controverso grupo do GAS. A festa principiou quase com um brilharete musical, o famoso No Banco do Jardim! uma rapsódia popular do conhecido excêntrico músico, o inesquecível Ratazana, que recebeu um aplauso estrondoso, apesar do carácter corriqueiro de algumas das suas quadras. E, a seguir, para variar de espectáculo, a entrada de outro génio na arte de declamar, Sr. Costa Oliveira, numa adaptação do seu ultimo trabalho, O Peido, nome por que a declamação se tornara tão célebre no meio, (devido ao peido que o artista largava na altura da sua representação) que ia  receber a consagração de um filme nacional.
«Os tipos do Secretariado de Turismo e Artes Dramáticas», - disse o declamador, perante alguns dos presentes, - «acham que este peido pode tornar-se mais célebre que o Rei de Portugal.» -
Chegou enfim a noite da festa: uma noite altamente acalorada.

Susy e Louis chegaram nas asas do Roover de Louis, enquanto que Ave Rara e Golias , acompanhados por umas amigas com cara de fome, vieram no seu carro da semana, um Clio, a precisar de um bom chapeiro e de um bom pintor. E mais alguém -o amigo do passado: Champalinas, todo ele, elegantemente vestido, sai do carro bem acompanhado - veio dar o tiro e passeia agora pelo parque com uma fidalga do BataClã. - Louis olha para a cena e sorri estupefacto. Bestial, eis aqui a fina flor do Esmifrado, esses caríssimos amigos ricos de ponto em cruz, escandalosamente encostados à galdéria e no local onde se encontram diversos noctívagos. Mas os convidados estão com vontade de saltar; a ilusão crescia, e muito alterada, a ponto de cortar a respiração. No solo de mármore da sala, ouvem-se os passos rasteiros dos convidados; e ecoam também comentários, picantes, de bom agoiro. Um ar sereno e pacato no espaço invade o cenário completo.
Figuras da cena mundana, bailarinas de copa, estrelas do topless, meia dúzia de cabeças de primeira grandeza do GAS, uns tantos comerciantes e alguma ralé, transpiram e misturam-se pelas salas. Champalinas, que ao ver Louis se apercebe de ter sido apenas para o encontrar que se deslocou até ali, -facto que até esse instante conseguiu esconder de si próprio, -descobre-o entre os convidados cada vez mais animados.
«Já o vi, é ele, Louis! E aquela rafeira que está ao lado dele parece que está apaixonada pela cena dos brincos!» - Murmurou para dentro de si. E aquela ali deve ser a Madame Rara, olha como está tão diferente, parece a Rainha do Picolé! E olha e Baixote à sua esquerda, Toni da Gota à direita da Rapariga da Saca Preta. Ao centro está Padrinho e alguns amigos e, a toda a sua volta, uma dezena de caras que qualquer pessoa da Cochinchina à Malásia seria capaz de reconhecer sem precisar sequer de uma lupa! -Champalinas abre caminho pelo meio da assistência, cada vez mais densa à medida que se aproxima da mesa; - mas está
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decidido. Com o copo de vidro a bater no prato, chama a atenção dele e abraça-o num selo afectuoso de amizade, diante dos presentes. Louis não resiste e comove-se, desequilibrando -se, e recua mas acaba por recuperar e o público em delírio acaba por bater palmas , enquanto um grande alarido, vindo de uma voz cantante de uma senhora peituda com cabelos trançados sobre os ombros, canta a plenos pulmões,

Que tipo de amizade é a nossa
Se não nos dermos todos tão bem
É preferível  vivermos numa choça
E não termos que discutir com alguém.

«Ela é espectacular», -diz atrás dele uma voz de mulher, -«e cada vez canta melhor.» - Toda a gente batia palmas pela animação que ia na sala.
A mulher que acaba de falar olha para Champalinas, é jovem e de pequena estatura, nada feia, está cheia de calor, corada de álcool e manifestamente atiradiça. -    a sala não tem muita «luz», mas ele o brilho do olhar dela -«Temos tempo», diz ele tranquilamente a olhar para a mulher. «Depois disto tudo acabar, vem o nosso espectáculo a seguir!» - E, ao dizer isto, adopta uma atitude de paródia e vai ter com a sua acompanhante.
A seguir, Golias a falar à maneira de Yul Brynner, dirige-se a Louis.
«E o que é que você acha de Londres? Boa ou má?» - «Nem nem boa, é o que eu acho.» - Continua Golias, ainda no                                                                            mesmo tom. «Eu diria que nos ingleses uma combinação com o americano.» - Ele aproximou-se mais de Louis enquanto falava; pegando ao mesmo tempo , no copo cheio de whisky; enquanto Louis, revelando um bom humor britânico, desenha um exercício em círculo com os dedos da mão direita -num acto provocatório - «São todos uns prostitutos .» -
Louis, da ponta do balcão, olha na direcção dele; os olhares de um e de outro cruzam-se e Golias ergue o copo ao ar, e acena, com um gesto de entendido.
No meio da festa, segue-se uma corrida aos bastidores da Xangai! ­ Ou, pelo menos, o eco de uma tentação, entre homens e mulheres não passou despercebido ao mais céptico dos corações.

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E, no fim da festa, Padrinho está isolado; tendo por companhia uma jovem voluntária um pouco ébria e de cabelos despenteados, debate-se sozinho no meio da onda festiva onde alguns parecem ser (e não são) amigos uns dos outros; enquanto do outro lado está Champalinas, rodeado pela miúda que não o larga de olho.
E, em seguida, Louis tira um copo da bandeja do empregado que passa e bebe um gole de vinho e coloca o copo em cima da máquina do tabaco e olha para Susy Três que está ali a dar água sem caneco àqueles mafiosos de uma figa, que estão bem a pôr os cornos uns aos outros. M aldita famelga. no fundo, está o Grande Golias, no preciso instante em que a Raparíga da Saca Preta, mais uma traidora, o põe ali a pestanejar como um cordeirinho. Exclama com ironia: - hoje dou-te a lua se me deres o teu sol; - e pega noutro copo e no fundo do copo uma casca de banana e atira com o líquido para o chão; -filhos de uma curta, são sempre iguais. -E olha para Padrinho, que não o menor valor ao momento que se está a passar] -mas é a pura verdade, o tipo sempre desejou ter um mundo para si. Digna Vida, os boémios  meu caro, são sempre uns fanfarrões. Golias avança para junto dele pelo meio da sala e fala sozinho, enquanto anda; - Ó Meu Deus, como é que este homem se deixou abater? Ainda aqui um bom par de meses atrás, quem é que não queria estar na pele dele? - e assim sucessivamente; Golias queria saber o porquê? Mas
O que é coisa absurda?
Golías, ao olhar para Padrinho na de baixo, pela primeira vez que soubera da má disposição que o obrigara a ficar internado no hospital, lembra outra cena com intensidade, Padrinho na festa do salão levou-lhe a sulista, enquanto ele ficou a chupar no dedo e viu-se sozinho pela noite adiante a contar as estrelas do céu; e agora sente a repulsa desse acto regressar e subir-lhe dos pés à cabeça; isso vai, mas que me lixaste naquela noite, foi verdade, disse ele, que se lixe, eu perdoo-te, meu tratante, se o fosses tu, seria outro.
Da mesma forma que Padrinho foi julgado por Golias, sem direito a atenuantes, tal como Mister Louis e a secretária na Suíça, Sábio Sabichão em Marrocos ou ainda Chicras, que viu a sua condenação ser -culpado e beneficiado -do pecado viciado.
Não podemos deixar passar em claro um pouco deste direito supremo, deste delito injustificável. Ou não haverá aqui algum ressentimento mais

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profundo por parte quer de um quer de outro, ou é no fundo tudo uma fachada? Pois não são estes dois homens iguais num sentido e separados noutro, cada um deles à sua imagem? -Um ambiciona (ou ambicionou?) tornar-se um Messias da parvónia e o outro prefere ser o Lawrence das Malucas! (Mas não o das Arábias.) O primeiro é um infeliz aparentemente a ser condenado, dia menos dia, por fraude às finanças, e o outro, a quem todos chamam sem excepção -o sonhador -é o tipo de condenação amorosa, que uma pessoa tanto conquista que acaba por não conquistar nada.
Podemos dizer que a fronteira que separa os dois homens ultrapassa largamente o sonho de qualquer um deles. Um sonho que fica guardado no espólio das incertezas -do São Nunca.
E porquê não sonhar?
-O que nos faz sonhar é a essência da vida. O sonho comanda-nos até à hora da nossa partida para nos transformarmos em defunto. Sem sonho não invenção; nada existe. E é verdade que tanto Padrinho como Golias - em qualquer das circunstâncias - fazem do sonho o trampolim para as suas sequiosas ambições.
-Claro que sim -Queremos dizer alguma coisa? Deveríamos dizer que estes dois homens têm filosofias diferentes; apesar dos seus nomes serem artísticos e das suas múltiplas facetas e ainda das suas frases bombásticas acerca da ambição e do sonho.
Ora bem .-Enquanto Padrinho é um indivíduo que tem a sua historia ligada ao passado e desabrochando dele -que não escolheu nem a doença quase sinistra nem a queda do seu sonho; que no fundo ainda receia vir a pagar os processos acrescentados em que os seus sonhos predominaram e se infiltraram nos vícios, transformando-o nesse Padrinho que não deseja ser. Golias é o tipo de pessoa que gosta de fazer o que muito bem entende e sai sempre impune. Podemos dizer de Golias que alguma coisa lhe falta nos momentos cruciais quando pretende demonstrar que é um tipo -fora do comum - sendo a sua revolta às vezes tão inflamatória contra o vício que torna possível nele uma falsidade profunda -chamemos-lhe «mal» -  e que  é  a  verdade.
Temos de dizer uma coisa mais dura: que o mal talvez não esteja enterrado tão fundo, tão abaixo das nossas superfícies, como gostamos de pensar que está.
Golias, porém, fica-se numa ordem de sintonia mais simples. «Foi a manobra dele com a sulista, a traição dele, mais nada.» -
Estica as pernas e segue em direcção à porta. De um lado da sala, a miúda vestida às riscas amarelas e verdes, ali mesmo ao lado, grita-lhe: Vamos hoje? Após o que ele, enfurecido e pouco apetitoso, resmunga com o desconcerto das suas palavras: «Nem hoje nem amanhã. Minha sacana, tanto prometes que nunca acabas por dar nada.»

No momento em que Padrinho se aproximou o suficiente da miúda ébria que lhe fazia companhia, ele sentiu um pouco de animosidade para com ela; talvez porque nem a desejasse conhecer e detestava mais ainda que ela estivesse grossa. Deve também dizer-se que a piela pode ser carimbada de um acto feio pelo espectáculo, quando esse espectáculo é horrível de ser visto.
O que aconteceu a seguir foi que Padrinho inventou uma Fífia e transformou-a numa desculpa da sua ficção... apenas uns segundos e nada mais. Sorriu, apertou as mãos, muito prazer em tê-la visto, eu já volto; e pirou-se para outra mesa. Que praga me havia de sair hoje. A miúda ébria nem deu por ele e, se deu, fez de conta que não deu e continuou no seu mutismo. Os dois não deviam ter muito para contar um ao outro, dissera ela antes; e talvez tivesse razão. Padrinho viu-a deitar abaixo mais dois copos de cuba-livre; e, após uma pausa, começar a arrotar com firmeza. Entre aquilo que bebeu e o que ainda faltava beber não sabia onde estava o fim. Padrinho continuava com.o seu olhar distante, e foi ao bolso buscar os medicamentos para tomar, pois ainda se encontrava com vigilância médica. Obrigavam-no a tomar, diariamente, certos comprimidos para combater a crise da sua doença desde que ele tivera a ultima recaída; e que estava decidido a fazer um novo sacrifício desde o não fumar nem ingerir álcool para retomar a sua vida. Padrinho, apesar da sua (meia) ignorância à doença, conseguiu detectar, por mero acaso, uma falha no aparelho digestivo (supostamente algo de grave) epressentiu que um milagre o poderia salvar daquele mal.
Foi com esta pergunta banal que Padrinho abriu a conversa. Limitado pelos sedativos, perguntou com ar vago: «Então e a tua vida, como é que
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corre, meu rapaz?» - Ao que Rato-Ratão, com a língua solta como sempre, respondeu: «Como sempre que está; nem mal nem bem; assim-assim.» - Padrinho sorriu com ar ausente, pôs o braço no ombro de Rato-Ratão.
«És  sempre  o  mesmo. Quanto mais choras  mais  mamas. Mas  está  bem.» - Enquanto Rato-Ratão foi dar uma ajuda à sala, nesse preciso instante, quis o destino que Padrinho um tanto entontecido, estivesse longe de se aperceber do efeito dos seus calmantes. Duas imagens tinham formado uma combinação terrível, sendo a primeira a súbita recordação de São Nicolau, num tapete voador, a preveni-lo do desejo secreto que ele pressentira , para conseguir chegar é preciso saber conquista r, e a segunda uma visão do corpo do instrutor de hóquei em patins em ensaio de união carnal, com a menina da arrecadação dos patins -quis a sorte que a figura de Baixote fosse vista a atravessar o muro da Xangai num estado de nervosismo agitado. -Andava à procura de Elisa Moreno, de quem o separara a mesma pessoa, o marido, que empurrara um escocês para os braços dela, na carrinha do whisky. «Falai do diabo», -disse Padrinho, levantando o dedo. - «Lá vai o estupor.» - Voltou-se então
para Rato-Ratão; mas este tinha ido à cozinha.
O taberneiro reapareceu, olhando espantado para ele: «Está a falar para quem? Estou a ver que não o posso deixar ficar sozinho um segundo, gaita?» -
«Se queres que te diga, nem sei o que disse...» - E Padrinho abanou a cabeça e abriu a boca de sono. «Quando é que acabas de limpar esta bodega e me levas a casa? Estou com sono.» - E o outro respondeu: «É um rápido. Vou chamar um taxi para a miúda das cubas e vamos ao fresco.» -
Em suma, os acontecimentos chegavam ao fim; e quando, minutos mais tarde, o taberneiro, a quem fora confiada a missão de levar Padrinho a casa, tomou o troço da estrada do Sul que ligava à cidade do Monte Corgo, Padrinho aliviava os seus males e repousava a cabeça no banco, deixando-se embalar pelas guitarradas que se faziam ouvir no rádio do carro.

Na semana seguinte, um telefonema de Fala-Tudo localizara-o via Rato-Ratão, taberna e finalmente Pina-Colada, e que pareceu tê-lo deixado bastante agastado. Padrinho tinha umas contas a ajustar com ele,

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e deu por si em frente da escola de formação à espera que Fala-Tudo chegasse, uma hora depois do tal telefonema, numa camioneta Ford prateada que ele tinha alugado para o efeito. «Eu tinha tentado entrar em contacto contigo algumas vezes», -disse ele. - «Mas estava a ver que não te encontrava. Para te apanhar é como procurar uma agulha no palheiro.» - Fala-Tudo começou a carregar alguns móveis, máquinas e uma quantidade de pares de sapatos sem sola, o que deixou Padrinho um pouco esclarecido mas bastante intrigado.  E agora Fala-Tudo corria para os fundos do armazém e carregava mais caixas para a camioneta.
Padrinho, nas calmas, exclamou:
«Mas para que é que levas os sapatos incompletos?» -
«Sabes que tenho negócios com os índios», -respondeu Fala-Tudo  -
«para eles, isto é maravilha; podem ir para as ilhas com os pés forrados por cima e assim os mosquitos não os mordem.» - E Fala-Tudo empenhou-se logo em ir buscar mais caixas pelo que, quando Padrinho deu por ele, viu a carga toda carregada. E terá dito para si: o raio do homem carregou tudo muito depressa. Até me fez lembrar o Speedy Gonzalez! E agora Fala-Tudo limpa as mãos e puxa de um cigarro e põe-se a fumar.
«Levo aqui esta tralha toda e ficam as contas acertadas.» -
Padrinho tardou a fazer cálculos de débitos, mas concordou que devia estar - ela por ela. -
Por fim, Padrinho fôra levá-lo à estação de gasolina, uma vez que ele, ao ligar a camioneta, verificara que o ponteiro do depósito da gasolina se encontrava na zona vermelha e que começava a noite a cair. Fala-Tudo guiava como se a estrada para o Porto fôsse a pista do aeroporto de Pedras Rubras.
«Eu faço esta viagem com uma perna ao ombro», - explicava ele em tom malandro. - «É carregar no pedal ao fundo e entro à bombeiro; ai daquele que se aproxime; leva uma cocada se não se puser ao largo; passo por cima do gajo, isso é limpinho.» - E mais ele disse: «Ainda aqui há tempos entrei a guiar em sentido proibido e pus um gajo que estava a arrear o calhau nestas retretes ambulantes a comer gelados numa gelataria!» - Padrinho até fechou os olhos para não ver a estrada. O seu coração batia tanto que lhe deu a impressão que ainda ia rebentar de susto. Fingiu-se solidário com as histórias dele e mudou o rumo da conversa.
«E o Baixote, tem-lo visto?» - Fala-Tudo tirou as mãos do volante e
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a  camioneta pôs-se aos ziguezagues pela estrada irregular. «Nem queiras saber o que se passou entre nós. três dias roubei-lhe a sua princesa e ele foi-nos apanhar a sair do choco.» - Soltou uma sonora gargalhada e prosseguiu: «Bem dizem as bruxas que o ciúme possessivo é pior que uma galinha choca; ou abafa-se pelo pescoço ou canta-se como o galo.» - Ele estava tão contente por contar estas coisas que até abrandou o ritmo de velocidade para satisfação de Padrinho que deixou de ter que fechar os olhos. Se ele gostava de falar, era porque Padrinho também não tinha intenção de o interromper. «Ele lixou-me uma vez com uma serigaita que não valia um tostão furado; agora estamos quites, mas quando puder pôr-lhe a antena à frente dos olhos, ai isso menino, é uma coisa que eu não consigo evitar; não sei porquê, mas...», - dizia ele.
«Sinto-me um marreta se não o fizer. Então se eles me pregam a mim os palitos, eu não posso pregar a eles? A minha mãe sempre me disse; meu filho, antes deles, primeiro tu.» -
Fala-Tudo chegou à estação e deu ordem ao funcionário para atestar o depósito de gasolina. «Não sei onde foste buscar todas estas histórias», - exclamou Padrinho enquanto transeuntes de mochila às costas e pessoas corriam para o posto de abastecimento. «Também se pode dizer que tu deves ter mais historias para contar do que eu. Eu não tenho nada a ver com o teu caso, mas por aquilo que ouço dizer, vais ter que te pirar para o Polo Norte ou Polo Sul, de maneira que os gajos não te deitem a luva. Sabes que, nos tempos de crise, querem saber se és culpado à frente ou inocente atrás; ou como viveste a tua vida! A crise chega, a doença mata, e tu limitas-te a sofrer as consequências.» - Fala-Tudo voltara a falar, ao grande estilo de Cantinflas como Padrinho tanto apreciava e também à arte de discursar que dizia melhor com o seu pseudónimo.
«Estou a pensar», -disse Padrinho convicto.- «Acho que vou contigo para cima. Não tenho mais nada que fazer; enquanto vou e venho, entretenho-me.» - Acrescentou ele.
Instantes depois, a camioneta arrancou, encaminhando-se pela estrada, vendo-se algumas tabuletas de publicidade, salientando uma delas com letras todas iluminadas: SORRIA E DIGA BOM DIA!
Na sombra da tarde, a estrada contornava uma colina sem árvores, coberta de mato. Havia algum tempo, noutro país, Fala-Tudo tinha ido viajar e contornara outra colina mas repleta de árvores que nem se

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conseguia sequer ver a lua. Agora, porém, o que o esperava era uma colina sem árvores. Fala-Tudo não se propôs admirá-la, como lhe deu na pinha de querer vandalizá-la. «E se eu pusesse aqui um reclame rneu: Fala-Tudo tanta asneira diz que é burro. «Com esses dizeres não acredito a não ser que as varejas ou os mosquitos lhe façam uma entrevista.» -
«Padrinho, olhe que eu ainda o conheço mal, praticamente dali da taberna», - começou ele a falar, mas parou e tomou uma decisão. -
«Custa-me ter que lhe dizer isto, mas é a verdade», disse. «Procure um bom advogado, quem sabe. Pode ser que ele o safe dessa tramóia.» - Calou-se de repente; o aparecer da noite escondeu-lhe o rosto. O olhar de Padrinho escureceu e mordeu, por engano, os lábios.
A estrada aproximou-se de Grijó, uma pequena terriola onde nem havia um bar e passaram por uma tasca de um taberneiro amigo de Padrinho que fizera fortuna a vender vinho a martelo e morcelas de sangue preto. Fala-Tudo achou o edifício mal cheiroso, apesar das paredes brancas, das lâmpadas indirectas e das retretes em cima dum alçapão onde, por baixo, ficava a cozinha. No jardim estava um cão preso e gania às vezes. Constava que ali parava quem sofria da secura da boa pomada. A tasca era conhecida pelo Olho do Cu e estava um tanto afastada das vinte casas de pedra e tijolo que formavam a comunidade. O taberneiro estava à porta, quando a camioneta estacionou.
«Sejam bem aparecidos», - gritou alto. - «Bem-vindos à  minha casa.» -
Quando os dois se sentaram à mesa de pinho, à luz de altas velas por cima dos caixotes a cheirarem a sabão e azeite, Padrinho entornou a sua chávena de café com leite (fazia grande alarido por ter deixado de beber; Fala-Tudo foi servido com duas generosas doses de whisky da casa); e o taberneiro, a gaguejar, atravessou a cozinha aos tropeções para ir buscar um pano para limpar a mesa. «Nem sabes como me chateio de andar sempre com a merda dos medicamentos nos bolsos para tomar», - confessou. - «E, depois, enervo-me e deixo cair tudo ao chão. Poda-se, pá, garanto-te que estou cheio. Qualquer dia devolvo ao médico os medicamentos que ando a tomar.» -
«Não diga asneiras», - disse Fala-Tudo brandamente. - «Um dia também fiz o mesmo e quase ia parar aos anjinhos. Não faz a menor ideia do que é um indivíduo com o seu problema não ser medicado, não faz, pois não?» -

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«Felizmente para mim, que o faço, bastante tempo», - disse Padrinho com um sorriso. - «Ás vezes é que exagero por causa dos nervos. A verdade é que, se não fossem os remédios, não conseguiria aguentar estas dores que me absorvem o dia todo.» - .
«Mas pode crer que é isso mesmo», - bradou Fala-Tudo com um rosto alegre. - «E espero que nunca deixe de tomar essa decisão.» -
O interior da tasca Olho do Cu era constituído por dois pisos - a parte de baixo onde se situava a cozinha e o balcão e a outra metade mais requintada com quartos de cama e casas de banho para todo o serviço.
Não sendo capaz, talvez por motivos de medicação, de conciliar o sono, Padrinho vagueou pela tasca cheio de frio (aqui o calor não chegava como no Brasil onde o clima é sempre quente; mas aqui é sempre gelado) e andou de um lado para o outro, enquanto ouvia em baixo Fala­ Tudo, numa das suas muitas sessões de anedotas para o taberneiro, que já estava a começar a ficar bêbado de o ouvir contar tanta burrice!
A euforia deles continuava, contrastando com o mal-estar de Padrinho, que tapava os ouvidos com os dedos, esforçando-se por pensar em coisas bem mais agradáveis mas em o... Até que, por fim, Padrinho deu um estrebuchar de suspiros e fez notar a Fala-Tudo que era tarde. «Vamos embora daqui.» -
E a camioneta meteu-se à estrada, seguindo o caminho traçado até ao destino.

Na manhã seguinte, Padrinho planeou uma visita ao hospital para saber como é que ia o seu organismo e o médico mandou-lhe fazer um Tac. No fim, aconselhou-o a manter-se calmo e evitar excessos de vícios, procurando animá-lo o melhor possível. O motorista que o acompanhou na viagem era um velho conhecido da terra e pelo simples facto de o ver hoje alegre, ficara também radiante de alegria. «Anda daí, pá. Nós, os amantes da boémia, ainda vamos mostrar a essas corujas nocturnas o que é gozar a vida. Raios me partam se não gostava de pregar uma partida àquelas fuinhas que sabem levantar as pernas.» - O pensamento de Padrinho estava longe dali; compreendia agora mais do que nunca, ao vir ao médico fazer um exame rigoroso, que o seu estado de saúde estava debilitado. O que havia ele de fazer?

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Se não lhe apetecia nada? - queria era sentir-se bom de saúde e deixar de andar com os medicamentos no bolso para tomar a horas -
«Julgas que te vais livrar desta  merda  para  já?», - insinuou para si. -
«Estás redondamente equivocado. Tira daí o cavalinho da chuva.» -
Quando chegaram ao meio da viagem ao longo da estrada, estavam envoltos num nevoeiro miudinho. «Vais precisar de usar binóculos», - ironizou Padrinho. - «Vê só: se vais para a direita vamos ao charco, se vais para a esquerda, ao charco vamos!» - E apontou para a frente. «Ü melhor é seguir a trote de jerico cansado.» - O motorista, com o coração aos pulos, colocou a mão na testa a fazer de pala e avançou com o carro a dez à hora pela estrada. Passo a passo, tipo tartaruga, naquele Pico de nada, no meio do nevoeiro! Então Padrinho foi à bolsa dos documentos e tirou de os seus binóculos e deu ao motorista para ver melhor a estrada. Quase não se via ninguém. Longe a longe passava uma viatura, um ou dois homens e meia dúzia de cães e mais nada. Padrinho seguia ao lado, olhando silencioso. «Quer-se dizer que estamos sozinhos», -disse de repente. - «Pois vou aproveitar para te dizer, por causa dela, a tua sopeira, vais arranjar uma carga de lenha que não te livras tão cedo. É que ela é boa como o milho! E os gajos, pá, não a largam, andam atrás dela, até parecem moscas. Juro-te, eu vi. Ela é que é um pastelão de uma parola mas. quando tiver o olho bem aberto, ninguém a segura, nem mesmo a Fidelidade ...» -
Este paleio apanhou o motorista entretido com o nevoeiro, mas deu para entender alguma coisa do que ele dissera. Meu estupor, pensou, agora vejo que estás mesmo doente, não duvida. E, no encalço do pensamento, veio-lhe à cabeça, como por magia, outra frase: andaste lá a cheirar, mas não penses que vou largar aquele presunto nem que tu te ferres  todo.

No trajecto de regresso a casa, Padrinho referiu-se ao despovoamento das terras. «Ninguém quer enterrar o garfo na lavoura. Isto vai ser bonito, vai», - disse Padrinho. -«Daqui por uns anos um tipo quer um nabo, uma cenoura ou uma penca e vai ter que importar, senão, não come.» - O motorista diz que o trabalho é para os doentes, pois quem tem saúde não precisa de vergar a espinha; e quem quiser esfolar o físico que vá para África, não falta que fazer.
«E o teu trabalho, gostas dele?», -perguntou Padrinho. «Não sei fazer mais nada, por isso gosto dele.» - Ele sorria-lhe, acenando com a cabeça como a confirmar as suas palavras.

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«Não sejas tolo», - aconselhou Padrinho - «e pensa mas é em reformar-te, pois tens idade para ir à pesca e levar a patroa a apanhar banhos de sol na ria.» - Foi então que o motorista abrandou o do acelerador tomado por uma ideia.
«Tens razão . A minha patroa também me diz o mesmo.» - Dizia 0 motorista. E, daí por um bocado, voltara a falar.
«Ai Meu Deus, se ela soubesse da outra, mandava-me pôr no fundo da ria atado a um pedregulho», -disse ele, rindo. -Mas, sabes como é, eu gosto da parola: conforma-se com tudo que eu lhe dou e com o que eu lhe digo e, quando se zanga, logo murmura ó amorzinho tu  nem penses deixar-me, atiro-me prá ria. Imagina se eu a abandonasse!»
A viagem chegou ao fim. Padrinho, junto à porta de sua casa, desejou boa sorte ao motorista. «Vou ter de descansar umas três semanas em repouso absoluto» , -disse ele pela janela do carro. -  «Quando estiver porreiro, convido-te para beber um copo.» -
«Telefona quando quiseres», - disse o motorista, acenando com a mão, e o carro desapareceu pela rua.
Que ia ser de Fífia, agora internada numa casa de desintoxicação - pois fora uma boa medida de cura achada pelos familiares para a sua melhor recuperação na sociedade -voltaria a ser a «Fífia» de antigamente? Por quem os seus amigos pudessem apaixonar-se comp naqueles bons tempos? Que exigente gente aquela, reflectiu Fífia com desagrado, que tanto gostava de expor as suas intimidades a terceiros companheiros. Enquanto o guarda da enfermaria (com uma expressão que era quase provocatória) dizia larachas estúpidas e mastigava chicles nos dentes, parecendo um cavalo a moer palha e andando em círculos quadrados, com cuidado para não pisar os objectos de entretenimento das doentes que se encontravam pelo chão, Fífia interrompeu o seu silêncio para declarar, com ar desvairado, que «quando olho para esta gente toda amarelada e os olhos fechados, senhor guarda, vejo mortos à minha frente.» E fungava com fervor pelas narinas, como se quisesse decifrar o cheiro do seu nariz. - Mas voltou logo aos gritinhos que ela gostava de dar, ao seu olhar esgazeado e ás voltinhas pelo interior da sala.

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Era uma rapariga de vício em perigo iminente e a sua energia selvagem rebentava pelas costuras. A enfermeira veio à sala para lhe sugerir que tinha de tomar a dose de medicamentos que trazia nas mãos e verificou o seu estado de excitação febril. Pelo menos, num aspecto, aparentava ser duma grande bebedeira, pois Fífia não se lembrava onde estava nem donde viera e muito menos que remédio havia de tomar.
E os disparates continuavam, a camisa desabotoada pondo os mamilos ao léu. Não gostava que lhe mexessem nas orelhas e adorava fazer cócegas nas plantas dos pés. Fífia falava muitas vezes sozinha e recordava os seus tempos quando era menina e moça. Fífia disse para si que a loucura não passava de uma tontura e que todas aquelas conversas sobre drogas revelavam a fraqueza dessa suposta «inexperiência do vício», - termo que ela mesmo a brincar não gostava de empregar.  - Fífia interrompeu o seu raciocínio turvado para ir à enfermaria tomar a sua medicação. Mas logo voltou e viu-se diante da janela da sala de orações, onde ela aparecia como um anjo voando no espaço, (pois também tinha havido um anjo da guarda depois do incêndio no quarto) com as mãos de um homem a acariciá-la por todo o corpo, levando-a pouco e pouco até ao êxtase; acabou por se identificar com essas mãos, quase sentia o perfume dele, quando lhe ouvia os gemidos. Por fim controlou-se. O seu desejo causava-lhe aflição ao coração. Ela era duma fragilidade extrema. Não gostava de pensar em semelhante tentação. Mas, depois de pensar, ninguém a conseguia parar.
A obsessão sexual de Fífia, disse a enfermeira a ela própria, era um mal menor na sua doença. «É evidente que és uma rapariga atraente e formosa», -murmurou à laia de experiência e recebeu um olhar tenso e tímido. Mas, logo a seguir, a enfermeira deu um sorriso e passou o braço pelos ombros dela e exclamou: «Desculpa lá, eu sou assim e não quero que tu te zangues. quero é que não faças asneiras e não te metas aí nos fumos. Nós estamos aqui para nos ajudarmos uns aos outros. E agora anda; chega de medicamentos. Vamos dar uma volta ao jardim.» -


Toni da Gota, ao volante de um BMW, virou a cabeça para trás e fez sinal para a direita com o pisca e viu uma moça airosa que passava por ele com ligeireza no andar por uma alameda de árvores cheia de ramos, onde o sol passava por aqui e ali. O barulho da buzina do carro não atraiu a moça que prosseguiu a sua rota e deixou-lhe um sabor amargo na boca;
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o sabor amargo de uma conquista que podia-ter-sido-melhor. Toni da Gota seguiu para o centro da cidade.
Ele estava de bom humor nesse dia, apreciando o Porto e os tripeiros quase com a mesma vivacidade de outros tempos. Onde antigamente ele via uma beleza sedutora, hoje via um camafeu, qualquer coisa que andasse em cima de uns tocos de duas pernas e tivesse saias, tanto melhor assim. Às sextas-feiras era o dia dos «amadores» irem à pesca, mas hoje ele quis manter as aparências e atirou-se às leoas esfomeadas de coroas, berrando: «Ah! caraças, hoje vou-vos depenar. Vai mesmo com penas ou sem penas. Vou levar para o meu apartamento uma gordinha que aguente um fim-de-semana abrasador.» -
Mais adiante, nas Taipas, ao descrever uma curva junto ao velho mercado das frutas e legumes, viu algumas raparigas ao engate. Entravam e saiam dos carros, algumas delas desesperadas à procura de notas, mas todas elas tinham cara de fome e eram magras, seguindo em rusga pelo passeio. Toni da Gota soltou uma gargalhada. «Até as sacanas destes cabides de fome não engordam.» - E depois de ganhar fôlego: «Do que vocês precisam é de um cozinheiro que vos ponha a comer tripas à moda do Porto, não acham?» - Levou logo roda de tudo, mas a palavra da ordem era: «Vai levar no cu!» -
Quando não estava a insultar as prostitutas nem a contar a maneira como comia as suas amantes «dei três enquanto ela nem uma deu» «virei­
ª por baixo e ela vomitou», parecia morto por fazer mais vítimas; quais eram as dez melhores quecas do seu livro de fodas; as melhores amantes de cama, os pratos preferidos. Toni da Gota confessava tudo aos amigos sem preconceitos de espécie alguma. O seu livro de quecas incluía A Noite do Esfola Sete, O Traseiro da Chorona, A Velha do Vovô, 5 Nunca é Demais, TG, o Terror do Pincel. «Essas gajas sugaram-te todo», -zombou um deles. - «Só te vêm à cabeça essas maluqueiras.» - A sua lista era demais, fosse qual fosse a matéria, não havia «pai» para ele. E seleccionou as «suas mais» preferidas «lá da zona» e espampanantes até dizer basta. Miss Corcunda, Olívia do Palito Grosso, A Histérica dos Canibais, Miss Bacalhau. «Deves ter uma cabeça de martelo, nem sei corno te lembras de tudo isso.»
A sua excitação era tanta, como o seu empenho tagarela em transformar as narrações num amontoando de top-parades, os maiores entre os melhores. De carro, Toni da Gota chegou à taberna.

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Madame Rara não estava.
E, pelos vistos, a Rapariga da Saca Preta tinha feito as pazes com os pais. Na mesa do póker, Champalinas estava acompanhado de uma amiga com boca gulosa e uma venezuelana fazia os olhinhos a uns tantos clientes carentes de sedução. Apareceu Rato-Ratão e mostrou-se no seu estilo habitual, sorridente e cheio de malandrice: «Até que enfim que o apanho, vou apresentar-lhe uma beldade de Pernambuco que você não vai resistir aos seus encantos.» -
A taberna do Rato estava meio ambientada de freguesia e logo a presença de Toni da Gota suscitou algum burburinho. Rato-Ratão andava no balcão de dentro para fora, numa bolina impressionante. Depois entrou um trio de clientes, com Ave Rara à frente de Fala-Tudo e o Alentejano, e instalaram-se na mesa do meio, cheios de vontade de beber.
O jovem empregado (que Rato-Ratão se vira obrigado a contratar para ajudar o obeso e pesado Capitão Guei) aproximou-se da mesa e tomou nota do serviço -uma garrafa de whisky novo, águas, amendoins e  línguas  de gato - sem deixar de corresponder com toda a delicadeza de um principiante à arte de bem-servir. O empregado Monteiro estava tão entusiasmado com o porte dos clientes como Rato-Ratão estava concentrado a fazer números na sua cabeça. «Trate-os bem», - disse Rato-Ratão para Monteiro. - «Do que eles gostam é de finesses e etiqueta, percebeu?» «Para mim não problema nisso», -contrapôs Monteiro. - «É o meu estilo preferido.» -
Os clientes foram servidos com rigor e com arte. Quando começaram a beber demais, a atmosfera da sala também se tornou mais pesada. Por fim, levantaram-se os três e vieram para o balcão. Comentou Ave Rara:
«Hoje fiz um negócio da China. Vendi um pré  fabricado a dois gajos ao mesmo tempo. É obra não acham?», intrometeu-se Fala-Tudo, um tipo de estatura normal, cabelo castanho, rosto magro e pálido e de cigarro na mão. «Isso é merda, pá. Melhor fiz eu. Vendi um carro meu a vinte gajos.» Alentejano, de bigode sobre o lábio, rosto moreno e sorriso aberto, entrou na conversa: «Vocês, à minha beira, são ainda aprendizes. Nos meus tempos, punha as galinhas a cantar!» - Os outros dois riram-se e praguejaram, até Ave Rara sentir curiosidade e perguntar: «Então, explica isso.» - Alentejano assume uma expressão risonha, dizendo alto e bom som: «Simplíssimo, pá. Fazia apostas com os meus conterrâneos e, na altura própria, punha as galinhas em cima de uma chapa falsa ligada à

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electricidade. Mal carregava no botão, uns segundos depois, as galinhas faziam uma chiadeira que ninguém as conseguia mais calar.» - Ave Rara deixou-se ficar para trás. «Conclusões; vi que fodeste os teus patrícios.» - Mais risos. Fala-Tudo, depois de ter acabado de fumar, aproximou-se mais deles.
«Esperai aí! Ainda não vos disse como vendi o meu carro a vinte gajos!», e acrescentou de seguida. - «Vendi-o em vinte partes, estais a ver?» - E Ave Rara, talvez irritado por Fala-Tudo não lhe ter dado o devido valor à sua manobra comercial, atacou-o com estas palavras: «Ora vai-te quilhar com essa. É caso para dizer, passaste a sucateiro de chapa barata.» - Fala-Tudo, bebendo um whisky de chimpam, fez uma brincadeira surpreendente. Pegou numa pedra de gelo e deitou-a por trás da camisa de Ave Rara que reagiu furiosamente: «Merda para isto! Acaba com essas brincadeiras estúpidas.» - Mas não houve resposta. Fala-Tudo virou-se para a mesa onde se encontrava Toni da Gota na conversa com a venezuelana.
«Então, estás a gostar da mulher?» - E Toni da Gota respondeu: «É tão meiguinha. provaste alguma vez carne da Venezuela?» - E Fala­
-Tudo concentrou o seu olhar na mulher antes de responder: «Não. Mas deve ter tudo onde as outras têm.» - Toni da Gota acabou por dizer:
«Isso não ·sei. Estou a tentar ver se ela vai no embrulho e depois conto­
-te como foi.» - O outro, balanceando o corpo, digeriu a resposta com um enrugar de nariz; depois inclinou-se para trás e gritou para os outros:
«Como é? Vamos ali ao lado ou não?» -
«Vamos lá.» - Respondeu Alentejano acabando de beber o seu whisky.
Os três homens saíram e abandonaram a taberna.
«Aquele gajo está a ver se convence a venezuelana· a ir fazer um suadouro de quatro joelhos», -disse Fala-Tudo à saída do bar. -«E diz que é a décima foda que vai carimbar numa semana.» -
«Deve ter um escalope que nem uma girafa.» - Respondeu Ave Rara.
«Sabeis lá?», -Rematou Alentejano puxando por um cigarro. -«Ü tipo pode tomar qualquer droga dessas modernas que por à venda nas farmácias; dizem eles que põe o pau direito várias horas ao dia.»
«Não fales nisso», -disse Fala-Tudo, olhando com sofisma. -«Falaste pá, estou com o pau firme.» -
«Não se pode estar ao de vós.» - A excitação crescente deles dera a entender a Ave Rara que teria que pôr o juízo a pensar noutra coisa,

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senão teria que ir também molhar  opincel.  Que  raio de gajos  estes, não sabem falar doutra coisa que não seja o stike.
«Ido-vos quilhar. estou com traça.» - Anunciou Ave Rara, faminto.
Estavam quase a chegar ao nigth club J .S. que ficava no centro da rua com vista para o jardim do Marquês de Pombal.
«Ó dono da taberna do Rato», -disse Ave Rara com olhar distraído, como se seguisse uma cena profunda do seu pensamento, - «nos princípios da sua carreira, depois de ter vários fracassos com mulheres do sistema, seduziu uma jovem atraente e boa camareira de dezanove anos chamada Duvália. No nigth club ela representava maravilhosamente o papel de menina virgem saída do colégio das freiras. Rato-Ratão também molhou a pena em cima dela e deu-lhe o papel: A amante do barman. Uma 'brasa de arrasar.' Os clientes andavam todos mortos por também poderem molhar a pena, e Rato-Ratão, claro, começou a ter enormes ciúmes dela que ia ficando xarope da mona. Trancou-a num quarto durante uns dias e levava-lhe de comer numa marmita, longe das vistas de outros homens. Ela queria sair; ele levava-lhe revistas e livros para entretê-la. Era como aquela velha canção do Ratazana: Quando um homem ama uma mulher Ie vê-la sorrir para um qualquer I um homem fica danado I apetece dar um banano / na cara daquele estupor.» -
Alentejano acenou que sim com a cabeça pesada, sinal que a história o tocara de perto. Tinha mergulhado numa espécie de sonho acordado.
«E o que é que aconteceu depois?» - Perguntou quando chegaram ao local marcado.
«Ela pirou-se e deixou-lhe um bilhete a dizer», -declarou Ave Rara, todo comovido. -«Vai bugiar mulas pró Monte Aventino.» -

A Rapariga da Saca Preta, ao sair do autocarro para casa, levava um embrulho na mão para oferecer á mãe e uma carta que ela própria escrevera em letras gordas e torcidas.
«Se a felicidade é transmissível - releu algumas palavras - podes crer, mãe, que acertastes em cheio. Eu, por mim, encontrei o meu caminho e, como tu sabes, esta vida é um pandemónio de loucuras, com a mesma faceta da desgraça e da desventura. O contentamento, mãe, que tenho

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em vir de novo viver para o vosso lado é bem melhor que a excitação. Juro que estou a ser sincera para contigo.» - Quando ergueu os olhos, uma lágrima derramou e julgou ver a imagem do pai encostado à velha cancela, com o seu tradicional -casaco de flanela às riscas, chapéu de palhinha, camisola grossa de e calças de bombazina -transmitindo um ar confortável e sorrindo como nunca ela o vira sorrir. «Agora tenho todo o tempo do mundo para ti», - disse-lhe ele e ela abriu os lábios e sorriu - «Também eu.» - Ela sentia outra vez o amor do pai dentro dela. Cerrou os dentes e continuou a andar.
Os pais esperavam atrás da cancela velha, da mesma cor esbranquiçada da pintura do resto da casa, e observavam a caminhada da filha. A mãe saiu de rompante da companhia do marido e foi ao encontro dela, de olhos chorosos e a expressão emotiva. O poder do amor maternal estava sobre os seus ombros, e ela entoava nos choros a velha cantiga de sempre, o tempo que eu esperei nem sabes o quanto sofri agora vais ser feliz. Dir-se-ia que o destino tinha conseguido salvar o que o vicio não lograra acabar.
O pai, empoleirado agora num banco de madeira , acenou com o dedo polegar da mão direita para cima e afastou-se dali, descendo a alameda de árvores floridas e cheias de folhas.

Os telefonemas que começaram a chegar, primeiro à morada de Londres e depois com o endereço da Residência da Xanai e escritório no Porto, atendidos umas vezes pela secretária Susy Três e outras por Mister Louis, não eram muito frequentes mas, apesar disso, continuavam a molestar a paciência dele que não tinha resoluções à vista para o tal projecto do sapato de combate aos calos dos pés. As chamadas eram breves, ao contrário daquelas que ele fazia e que abusava da rede telefónica. E todo este desagradável episódio, afinal de contas, não durou mais de uma semana e meia. Por fim, o projectista do lançamento do sapato para o calo tinha concluído a forma ideal do projecto; mas talvez valha a pena dizer que a experiência com os sapatos fora um sucesso, ou seja, os modelistas levaram Mister Louis a enviar telegramas para Londres antes que se fizesse tarde -que o sapato para os calos era real.

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Devemos dizer que ninguém, nem .Susy Três, nem sequer os promotores do negócio a quem eles enviaram catálogos do projecto, lograram chamar a atenção para um pormenor importante. Até que ponto um indivíduo em cima dum sapato, com um patamar duplo, consegue sobrepor o peso do seu próprio corpo no e andar bem? Mas para Mister Louis, outrora conhecido (apenas em circuitos comerciais) como o lançador das calças Quemerda, não havia obstáculo nenhum e a tarefa até era simples, sem muito risco a correr. Ao fim, teve que dar ordem para executar o catálogo de apresentação de mil pares de sapatos.
Quando Susy Três fez os contactos e enviou as amostras para fornecer o mercado internacional, chegaram-lhe aos ouvidos os rumores de que a ideia era fantástica e os países do Terceiro Mundo estavam interessados em conhecer o sapato. Apresentaram uma proposta algo desconcertante, de milhões de pares de vários números; desde o número 6 aos números sessenta; e, quanto à forma de pagamento, a surpresa tornou-se ainda maior, pois queriam pagar através do sistema de permuta -sola e cabedal por fruta seca e pinheiros para o Natal. - A secretária teve que enviar respostas, via e-mail (era mais barato) acabando por ficar com as faces coradas e arrepios na espinha com semelhantes propostas, esforçando-se até para não se rir às gargalhadas.
Mister Louis também teve os seus casos nos contactos telefónicos. Pequenas multinacionais de países árabes deixaram-se conquistar pelo - Sapato Prós Calos -sendo os maiores consumidores miúdos de turbantes nas ruas à conquista de turista para o golpe do trombadinha. Um sapato desses dava-lhes um certo jeitão, pois assim podiam correr à vontade com o produto gamado e sem que os calos os afligissem.
Uma das primeiras coisas que Mister Louis pensou e executou foi chamar o idealista para lhe fornecer versos fadistas tão originais como a ideia dos sapatos o era, para não dizer soberba e, contrastando com a maioria das outras vozes discordantes, Mister Louis, que ao fim de pouco tempo catalogou no seu desconhecimento. E surgiu do idealista o primeiro verso fadista; uma quadra que falava exclusivamente em gamar.
Que alívio, Senhor,
Tenho os pés num voador E as mãos na algibeira.
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É uma sextilha, disse o idealista de versos fadistas na voz baixinha e. concluiu os versos:

Para dar o mico é melhor Corre-se mais que o andor É sacar a carteira.

Ao fim-de-semana ponha este verso que me inspira mais. Havia uma maior emoção no verso publicitário e o certo é que, por detrás desta lengalenga, esperava-se o maior sucesso.

Quem sof re de calos é o desajeitado Que não soube calçar-se à vontade M as agora que ouviu falar dofado Pode livrar-se da calosidade.

Oh! Que alívio. Como foi tão fácil a penetração da publicidade. Para combater o mal dos pés naqueles enormes sapatões de um patamar de aglomerado de cortiça, maleáveis e tão flexíveis que qualquer malabarista fazia com ligeireza o triplo salto mortal no trapézio; ou então com que segurança se equilibravam nos altos postes de alta tensão os funcionários da electricidade!  Ele estava tão certo do seu sucesso como um homem com pouco cabelo ir a um cabeleireiro fazer um penteado e sair de lá com o cabelo tão volumoso como a Lady Godivà. Assim também Mister Louis se apercebera do poder especial dos versos fadfstas. E mandou gravar algumas cassetes contendo vozes fadistas, umas lentas e outras rápidas, vozes tristes e outras alegres, agressivas e tímidas.
Um a um iam chegando aos locais de apresentação do modelo do sapato engrandecendo a sua ligação ao mundo árabe, atendendo pouco a pouco a rede de negociantes interessados em encomendar o artigo, embora considerassem o preço demasiado alto para aquelas paragens. O preço oscilava - mil escudos por par - mas, apesar dos muitos interessados, a verdade é que ele achou melhor distanciar-se daquelas zonas; e chegaram os primeiros problemas que tanto o inquietavam.
Passo adiante. O seu faro de vendedor voltou a questioná-lo, despertando nele um torvelinho de contradições. Depois de as primeiras

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