(Estamos a ler o livro "Gente de Vícios"- Capítulo 6)
Alguns minutos depois, Padrinho dava entrada
no hospital onde ficou hospitalizado nos cuidados
intensivos. E recebeu
a visita da esposa que era
para ele a única companhia que desejava naquele
momento. Baixote regressou à taberna e, como de costume, Rato-Ratão veio ter com ele para saber notícias. «Ficou lá internado.» - Rato-Ratão, muito admirado, perguntou sem pensar:
«E era caso para internamento?» _ Baixote
responde, depois de molhar a garganta com um pouco
de whisky.
«Claro que sim, senão não o tinha
deixado lá ficar.»
-
E foi desta
maneira que Padrinho, durante uns dias que esteve internado, escapou à alçada fiscal. Na primeira vez que voltou à taberna,
ouviu Rato-Ratão a saudá-lo, fazendo
menção de bater palmas. «Seja bem-vindo.» - Em seguida,
Rato-Ratão sentou-se junto
dele numa mesa próxima ao balcão, dado que assim
controlava melhor a porta de entrada, e serviu-lhe umas águas, enquanto conversavam um bocado do tempo.
«Tenha calma!», -disse Rato-Ratão a Padrinho, falando
calmamente. - «É preciso é não enervar-se.» -
«Só precisava um pouco da tua calma»,
-respondeu ele. -«e da tua paciência, também.» -
Rato-Ratão continuou a achar Padrinho
perturbado, vendo nele
(pela maneira como se comportava) uma sombra de si mesmo que precisava de ser apoiado. Quando tratava de mandar preparar a refeição para o
jantar, Rato-Ratão fez questão de convidar Padrinho
para comer com ele,
convite esse que foi aceite
de boa vontade. Instantes depois,
sentados à mesa e, quando Rato-Ratão contava coisas da bola, Padrinho ria-se
com disposição.
«Tu não vês que o teu clube há quanto tempo
não perde no seu estádio. É um gigante; e o mínimo
que nós podemos fazer é bater-lhe palmas.» - Rato-Ratão, com aumento de furor, viu-se
obrigado a jogar na retranca, pensando
que ele o estava a gozar. «Não me diga que agora mudou de
cor», -dizia, de olhar trocista
e Padrinho respondia:
«Não, mas é uma questão
de princípio aplaudir
o melhor, só isso e nada
mais.»
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Em nome da amizade, Rato-Ratão ofereceu a Padrinho uma sobremesa
à parte; nunca se esquecia de seguir a sigla do GAS: - Para um bom doente
nada melhor que uma peça de fruta decente. - Ao chegar
a companhia, conversaram durante uns bons minutos e, enquanto, Rato Ratão ficava no balcão,
emborcar bourbon
simples. Gostava de oferecer
aos clientes amigos da casa sobremesas do género, compatíveis com os gostos de cada um deles e dava uma de fineza
quando dizia: «Não se
pode olvidar uma obra de arte chamada
«mulher». Ela está aqui, não a
viram? Então olhem bem, porque
temos de lhe dar o melhor
que temos dentro das nossas vidas.»
- O cliente em frente
respondeu em tom desafiador: «Eu já estou preparado, só me falta saber se ela também.» - Ao que Rato-Ratão, com a safadeza mais natural deste
mundo, retorquiu:
«Você põe-se
na bicha porque,
com uma «nota»
dessas, nem no mercado
do Bolhão se arranja!» - E mais ele disse: «O tempo de -galinha gorda por pouco dinheiro
- salvo erro,
foi no século
do D. Afonso Henriques; e esse
tempo já lá vai.» -
Apesar da sua capacidade para descontrair os clientes, nem todos
eles recebiam de bom agrado os seus recados. Rato-Ratão ficava,
no entanto, de certa forma, aliviado
por se ver livre dos inoportunos e conseguir assim conciliar os imperativos do amor instantâneo com a amizade.
Certa ocasião, teve uma ideia genial que pôs em prática logo a seguir ao
inicio da tarde,
e o fez verter lágrimas
de riso: uma ideia muito simples,
ao lhe ser apresentada uma dama fina de grande envergadura, ele nem
esteve com meias medidas e endossou-a ao Grande Pénis Padeiro
que, de imediato,
a convenceu a partilhar a cama com ele. Ela não lhe disse
nada até estarem ambos metidos
na cama. Em seguida, Padeiro
ajudou-a a descontrair-se mas foi por pouco tempo, dado
que, apalpando as partes de baixo, bateu com a sua mão nos guizos da parceira! Deu um pulo tão
grande como o raio do palavrão que lançou pela boca fora: «Foda-se, maricas,
aqui!...» - E, ao dizer aquilo, amarrotou as suas roupas numa
trouxa e fugiu com os demónios da presença do travesti, retirando-se para o andar de cima, onde se vestiu a correr e, logo
em seguida, desapareceu de vista.
A Rapariga da Saca Preta e Capitão
Guei foram testemunhas do caso policial da prisão de Chicras, acusado
de ser ele o fomentador da personagem do Chupador
das Vaginas-Carecas. Relativo a este assunto,
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Rato-Ratão foi à cozinha falar com o seu empregado. «É uma história um tanto ou quanto maluca, com falta de provas concretas e apenas baseada em contos insinuados desta e daquela
pessoa. Chicras nega
que seja ele o violador mas, se elas o deixarem experimentar, ele diz que não se
importa. É óbvio que isso é um vício enraizado cá de dentro, premeditadamente, por alguém de maneira a julgá-lo a ele; agora
só resta saber até que ponto vão querer enfiar a história
ou, se calhar, até
conseguem incriminá-lo e mandá-lo capar
de maneira a não se atrever, futuramente, a comer nenhum
grelo descapotável.» - Rato-Ratão, a seguir, aconselhou-o a ter calma e não se precipitar. Relembrando o chinfrim
que ele nessa altura fez na rua, disse: «O pobre coitado
- tem ou não tem?
-um vício um bocado
pesado em matéria
de drogas...» Rato-Ratão coçou o queixo.
«No campo dos vícios», - admitiu, - «tanto se droga como se lambe e o gajo, francamente, já até à polícia confessou
essa merda. Mas isso
não invalida que
o tipo ande
para aí a sorver essas tipas
e crie uma peste doentia
de que ninguém
se livra.» -
Capitão Guei assistiu ao desenrolar da conversa sem interferir. «Mas a verdade é que isto não
é uma questão policial, mas sim uma questão de vícios e, que raio, vícios não se discutem», - insistiu Rato-Ratão, acrescentando, ao preparar-se para vir para a sala, - amanhã
você vai ao julgamento; pode entrar mais tarde ao serviço, se lhe apetecer, beba um bagaço antes de ir para lá e não se preocupe com isso, que não é nada
de grave.» -
Na manhã seguinte, porém, Capitão Guei e a Rapariga
da Saca Preta apresentaram-se ambos no posto policial, ele envergando um casaco azul por cima de uma camisa branca
desabotoada e umas calças de ganga.
«Está pronto para falar? Pode começar.» - Disse-lhe o guarda na secretaria, pondo-lhe o documento à frente dele.
Durou cerca de cinco
minutos o interrogatório. Capitão Guei
deixou o documento na mão do guarda e foi ter com a Rapariga da Saca Preta que já tinha preenchido o seu auto de testemunho.
«Disseste-me que a polícia ia fazer muitas
perguntas, mas olha que
não.», - A Rapariga da Saca Preta nem queria crer que o interrogatório tivesse
sido assim tão fácil. Começara a ficar mais
desinibida e segura
de si. «E fizeste
o que te competia, isso é o que interessa. Vamos mandá-los dar uma volta ao bilhar grande
e bazar daqui.»
- Capitão Guei ficou com ar
de intelectual. «É isso mesmo»,
-disse ela tirando
o casaco de malha. -
«Tu é que sabes, o resto é conversa de cacha .» -
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Capitão Guei deixou-a
passar à frente. «Agora onde é que vais?», - quis saber ela, de gorro enfiado na cabeça
e calças de couro e botas
com polainas, tipo exército, que revelavam o seu estilo á
hippie. «Fui notificado para servir de testemunha, não foi?», - e ela ficou de boca
aberta a olhar para ele que voltou
a dizer. - «Pois então enquanto espero
pelo julgamento, é a minha vez
de ir ali à tasca matar o bicho e beber
uma jeropiga.» - Foi a vez dela responder: «Vê se tens cuidado e não bebas muito.»
- E ele logo ripostou: «Cuidado tens que ter tu com essas
roupas, vai-te lá lixar, ainda acabas por ser engatada por um juiz!» -
Capitão Guei estava à espera de um julgamento mais rigoroso por parte do magistrado mas, afinal, nada disso aconteceu e tudo se processou pelas vias normais dos factos
ocorridos. E, olhando
às circunstâncias, segundo parece,
o processo queixa-crime acabou ali mesmo,
naquela hora, com castigo
domiciliário de Chicras, apresentado pelo juiz, uma punição -que provocou as maiores risotas
na sala de audiências. -Mais ainda, pôs uma dúzia de mulheres
de semblante aberto e sorrisos
de consolação e o pessoal dos arrumadores de carros, os empregados de mesa, clientes
e travestis, prostitutas e proxenetas. O bom humor do
público presente na sala estava
eufórico e reinava
a alegria por aceitar
que ajustiça tinha sido bem feita. Uma jovem negra, ao pé de Rato-Ratão, olhou-o de alto a baixo, com ar divertido; ele retribuiu o olhar e ela sorriu:
«Vá lá, podia ter sido bem pior.» - A jovem trazia a lista
da ementa na mão e pediu: «Queria uma coisa que está aqui escrita
na secção de grill», - mostrou-lhe a lista, -só que não sei o que é mas gostava de experimentar.» - Ele riu-se
e virou-se para a pequena montra
atrás do balcão:
«Biju seco. Quer dizer: Pão sem nada dentro, entendido?» - Ela não tinha necessidade de saber mais... Ele segredou-lhe ao ouvido: «Pão com água e amendoins é chicha!» - Rato-Ratão continuava a ser uma enciclopédia de sabedoria
enganadora.
Quando Capitão Guei começou a lixá-lo primeiro
acabar o que tinha para dizer. Queria descrever
ao pormenor tudo o que se
passara no julgamento, no dia em que Chicras fora formalmente julgado
e acusado de assédio sexual
à vagina-careca e revelou-se um orador tão filósofo que pôs todos os presentes
espantados a olhar para ele.
«O Chicras passou-se naquele
banco», -disse ele aos presentes que o escutavam em silêncio. - «Meu Deus, podeis crer que ele se passou. O Chicras teve a distinta
lata, depois de ouvir o juiz ler as dezenas
de processos contra ele, de dizer que metade daquilo não era
verdade. Falou olhando de frente para todos, parecia
até um papagaio. E disse: "Encontro-me aqui num papel
trocado; ou seja, não sou o violador
mas antes o violado!.. "Encontro-me aqui porque as mulheres
abusaram de mim e tornaram-me num perverso prevaricador."
Ele foi o maior entre os grandes.
"E não se iludam; disse ainda, "As
coisas hoje em dia mudam-se
a qualquer hora.
Permitam-me que vos dê
um exemplo: gays, homossexuais, lésbicas, prostitutas, proxenetas,
arruaceiros, vadios, insurrectos, violadores, somos todos
uma família e só não nos aceitam quem é racista ou sofre de miopia.
Fomos todos feitos na mesma gamela
e da mesma forma de vivermos todos
juntos, do mesmo tacho
para a mesma
panela e seremos
nós, para vossa
informação, que, num amanhã
próximo, desenharemos a sociedade num só perfil:
- Seremos os profanadores da natureza e os inovadores da nova criação. Tenho dito e mais não digo."
O guarda ajudou-o a descer o estrado entre
aplausos e assobios
e ele sorria, abanando a cabeça na direcção da tribuna
do Magistrado. Seguiram-se discursos
menos carismáticos, até chegar à sentença final. Capitão Guei
olhou para Rato-Ratão: «Ninguém falou dele em ser um
viciado da própria sociedade.» - Rato-Ratão encolheu os ombros:
«Algumas mulheres até o apoiam nessa campanha
do pêlo. As picas da Ilha
do Linguado, na hora de snifar o pó de talco,
até suspiram por esse
momento em que ele se galvaniza e se transforma num lobisomem. Mas isso
não é assunto para discutir
aqui neste momento.
A nós só nos interessa saber qual foi a sentença final.»
Noutras circunstâncias, Capitão
Guei não estava
cá com tanto
sermão nem muito menos com uma entoação académica
de alguém bastante instruído; mas notava-se ali a presença
da cachaça, lá isso notava-se, até do bafo à distância, mas isso era
o menos, o pior era agora que ele
começava a sentir a cabeça à nora e os sentidos a vacilar
e começava também a ficar cansado
de tanto latim pregar no molhado.
«Preparai-vos então para
o melhor. O juiz declarou
o Chicras culpado e castigou-o a satisfazer todas as vaginas-carecas até lhes nascerem
os cabelos. Francamente não acham mesmo
uma sentença de riso?» -
222
Rato-Ratão reconheceu na sentença a mais famosa
decisão de que tivera conhecimento.
«A concretização de um desejo», - dizia Rato-Ratão, - «SÓ tem um final:
a satisfação.» -
E agora a jovem negra, com o nariz inclinado de mais e uma voz vibrante de cantora de merengue, entoava
as primeiras notas de uma canção de Ratazana Pai, Sou um Drogado.
Verdade seja dita, a
canção era dedicada aos drogados
e certos versos faziam até vibrar as cordas da guitarra com que a intérprete se fazia acompanhar.
Rato-Ratão, com as suas traquinices, animou um pouco o ambiente
que se verificava naquele instante.
Um bocado depois, o empregado chamava-lhe ·a atenção
para a presença na sala
da Rapariga da Saca Preta.
Rato-Ratão, olhando na direcção indicada
pelo empregado, vira o rosto esbranquiçado dela e notara, na mesma altura,
o olhar gelado e a querer
desfalecer.
«Ela está doente ou quê?» - Perguntou Rato-Ratão virado para os restantes, ao mesmo tempo que Capitão Guei lhe sussurrava perto do
ouvido que ela tinha vindo muito nervosa
depois do julgamento. O mais certo era ainda trazer a cabeça cheia de perguntas
e respostas absurdas que se tinham dito
na sala do tribunal.
«Ela toma um chá de tília e fica já como uma pêra.» - O Capitão
Guei prontificou-se ir à cozinha tratar
de lhe preparar a bebida.
Agora estava fora
do balcão, na companhia de um Baixote
muito curioso por saber as notícias, e de uma Madame Rara que
já tinha regressado da sua terra e dava mostras de alguma ansiedade.
«Quem está morta por saber as novidades
de cá sou eu»,-disse ela, exprimindo de uma forma meiga o que já era habitual. «Espera
aí, minha filha,
que vais ter muito para
ouvir, podes crer».
-Baixote retorquiu: «É melhor vires comigo
até à minha mesa que eu vou-te pôr ao corrente de tudo.» - E Madame Rara lá foi
com ele. Estava curiosa por saber de
tudo. «Aqui está muito
abafado»,- disse ele. - «É melhor irmos
para a sala de jantar
que é mais fresco.» -
Lá dentro da sala do restaurante havia um carrinho
de sobremesas e estava
precisamente encostado ao portal de madeira. Na vidraça de vidro
havia um menu de serviço
de jantar, e Madame Rara pegou no cartaz do dia e pediu para lhe ser servida uma sobremesa de quentes.com café e
leite. Na parte de cima da lista liam-se sobremesas da tarde.
223
Na discoteca Xeque
Ao Rei, Baixote, depois de ter deixado
Madame Rara comer a sobremesa à vontade, ofereceu-lhe um long-drink e obrigou-a a dançar o sapateado na pista ao som dos Los Gitanos. Também
ela acelerava o passo e dava mostras de estar em forma. Embora
ele não a largasse
de vista, ainda bem que voltou, aposto que teve saudades
minhas, e hoje
veio mesmo a calhar. Baixote nem sequer
foi capaz de adiantar muito paleio, quantas mais perguntas mais asneiras assim pensou ele,
e agora, mais do que nunca, tinha-a
ali nos seus
braços,' de corpo
esbelto e sorriso atraente,
mostrando uma parte do seu maillot preto.
«Até que enfim.
Já tinha saudades tuas.» - Baixote,
sentindo o calor dela, afastou-se um pouco, todo
inflamado pela chama
ardente.
«A nossa saudade não é de hoje mas de sempre.» - Disse
Baixote a Madame Rara, numa pausa de dança. «Uf, que calor!» - Suspirou
ela, pestanejando várias vezes o olhar.
O cerco aperta-se ao meu redor.
Baixote bamboleava
o seu corpo contra o dela, tal como o índio quando
se aperta á sua sqanja
1
Quando os corpos colidiram em choque, o ímpeto fê-los
resfriar os ânimos e
surgiu uma exclamação! -O que é isto? Queres-me deitar ao chão? Vê lá, ainda é cedo.
«Onde é que tu ias?», - exclama
Baixote. - «Julguei
que estavas a experimentar luta greco-romana. Tás porreira?» -
«Sim. Perfeitamente. Mas preciso de apanhar
um pouco de ar,-mais nada.» -
«OK. Vamos nessa. Também preciso
de encher os pulmões de oxigénio.»
«Vai pagar a conta que eu espero
por ti no bengaleiro.» -
.... E, já na rua, caminharam devagar, até apanhar o carro e sair dali
em direcção à beira-mar. - Santo
Deus! Que frescura.
Aqui há pureza encanto e magia! -Belos sopros de ar e, juntos à foz marinha, está uma noite de sonhos
cor do luar, anunciando o regresso, isso mesmo, do par
de namorados, Baixote e Madame
Rara. O seu regresso e o inicio da
marmelada. Amor, Amor e só amor
até dizer quanto baste...
.... E, depois do consolo, repousam
a cabeça encostados um ao outro.
Ele liga o aparelho e escutam um pouco de rádio. Um apaixonado que foi
apanhado na marmelada com a sua sósia junto ao mar por um peixe
piranha que saltou
da água e lhe mordeu
parte da gaita.
Pobre coitado. E agora
teve que ser socorrido nas urgências hospitalares, diz ele, para lhe
224
1Rapariga.
fazerem um enxerto
de pele tirada dos tomates,
afim de encher a parte faltosa. Eu cá é que não gostava nada
que me enfiasse na minha
ferramenta um bocado dos meus tomates.
Mas o pobre coitado também não tinha muito por onde escolher. Que raio de sorte. Há dias em que uma pessoa não deve sair de casa.
O locutor da rádio discutia
o assunto com os ouvintes radiofónicos na sequência do cruel acontecimento. A
história da ferramenta era um assunto muito grave e cauteloso. Não vale a pena estar aqui a explicar
tudo ao pormenor, concordou
uma pequena parte dos ouvintes. Para que é
que deu ao peixe
a maldita ideia de
vir apanhar ar fora da água, mas as técnicas
da medicina remediaram a situação.
«Não vale a pena discutir com os tarados
dos ouvintes», -disse ele.
- «Pois não sabem o que dizem
nem têm mais
que fazer, senão
não diziam essas parvoíces todas.
E mais à frente. «Já ouvi que chegue.
Com licença, meus senhores.» - Exclamou Baixote
e a voz do locutor
desapareceu da rádio, dando lugar à musica pimba
do tema: - Não há mulheres
para ninguém. -
E o que fez Baixote nessa hora foi dar o pira dali o mais depressa possível, não fosse aparecer
algum peixe-piranha por aí à balda e dar o salto mortífero. No regresso, pela estrada, julgou
ver diante de si um bando
de piranhas a querer entrar
pelos vidros. Fechando
às vezes os olhos,
recostando-se ao assento
da cadeira, carregou
no acelerador a fundo.
225
VI
O ROMÂNTlCO CHAlvlPALINAS
O tempo estava
quente e, quando a vaga de calor chegou
aos quarenta
graus e aí ficou durante algum tempo,
as pessoas sentiram-se confrontadas
por uma atmosfera pesada e sonolenta ao ponto de ebulição.
O Sr. Mister Louis
e a sua secretária (agora
mais do que isso) Susy Três, recém-
chegados à Metrópole depois de um longo tempo em que estiveram a
·foram"f exercer funções profissionais em terras de Inglaterra, fizeram
anunciar uma grande farra
para comemorar o regresso à vida Os conhecimentos de Louis na capital dos negócios londrina
mundana tinham dado aso que a sua nova ideia fosse devidamente apreciada pelos especialistas na matéria; folheados
de corticite embutidos
nas solas dos sapatos, afim de
favorecer todos aqueles
com calos à superfície da pele, que viam assim
reduzidos os seus tormentos para poderem andar mais
confortáveis.
Uma ideia genial caso fosse aprovada pelos negociantes, para vender
Calçado de . estilo chinelo aos habitantes da Índia
e dos países
árabes, onde os calos são tão abundantes como a população de cada nação.
A criação de um tipo de calçado
que desse para todos deveria
ser levado em linha de
conta pelos criadores
de moda na indústria do calçado.
229
«Uma vez que o nosso
propósito é proporcionar ás pessoas
um andar confortável, neste caso, evitar
um mal maior, a degradação dos pés e eliminar
dores horríveis, parece-me ser uma ideia
excelente.» - Susy
Três
que se considerou ser uma secretária e pêras de Louis e uma
vítima da' cegueira do amor, ficou incumbida
de tratar de toda a documentação e contractos para iniciação do futuro projecto.
Louis e Susy estavam de novo no Porto, celebrando
copiosamente a sua prodigiosa ideia na Residência
da Xangai. e enviando convites
e telefonemas para aquilo que prometia
ser uma festa de arromba.
Um desses convites foi ter, graças aos bons amigos
de Louis, às mãos de Champalinas, que acedeu de semblante risonho,
se bem que chegasse um pouco atrasado à festa, mas isso era o menos.
(Susy telefonara também a
Ave Rara para o convidar, dizendo-lhe com a sua habitual
malandrice:
«Não podes faltar
à festa. A tua presença
é indispensável nas minhas
borgas.» - Ao que Ave Rara respondeu, com o seu toque de elegância na voz,
tipicamente, com chiquismo, oh minha querida com todo o prazer.
Susy conseguiu pô-lo a recordar a ultima cena em que entraram juntos, faz alguns meses a esta parte,
e finalizou em tom triunfal:
«Conto contigo para animares
a festa, Ave. Podes trazer alguém contigo,
duas chegam; olha, trás quem quiseres.
Vai ser uma festa de muitos brinquinhos.»)
O local da festa constituía um marco na vida de Louis,
pois fora lá que
protagonizara alguns dos melhores lançamentos de rampa com as suas
fãs quando se queria divertir à moda inglesa.
A taberna do Rato era uma
adaptação ao bom estilo londrino e possuía óptimas
instalações que foram postas
ao seu dispor, e os convidados iam assim ter
oportunidade de conviverem mais de perto
com algumas personagens de alto relevo que integram o controverso grupo do GAS. A festa
principiou quase com um
brilharete musical, o famoso No Banco do Jardim! uma rapsódia
popular do conhecido excêntrico músico,
o inesquecível Ratazana, que recebeu um aplauso
estrondoso, apesar do carácter corriqueiro de algumas das suas quadras. E, a seguir, para variar
de espectáculo, a entrada
de outro génio na arte de declamar,
Sr. Costa Oliveira,
numa adaptação do seu
ultimo trabalho, O Peido,
nome por que
a declamação se tornara
tão célebre no meio, (devido
ao peido que o artista
largava na altura da sua representação) que ia receber a consagração de um filme
nacional.
«Os tipos do Secretariado de Turismo e Artes Dramáticas», - disse o declamador,
perante alguns dos presentes, - «acham que este
peido pode tornar-se mais célebre que o Rei de Portugal.» -
Chegou enfim a noite da festa: uma noite altamente
acalorada.
Susy e Louis chegaram nas asas do Roover de Louis, enquanto
que Ave Rara e Golias , acompanhados por umas amigas com cara de fome, vieram no seu carro da semana,
um Clio, a precisar de um bom chapeiro
e de um bom pintor.
E mais alguém -o amigo do passado: Champalinas, todo ele, elegantemente vestido, sai do carro bem acompanhado - veio
dar o
tiro e passeia agora pelo parque com uma fidalga
do BataClã. - Louis olha para a cena e sorri estupefacto. Bestial, eis aqui a fina flor do Esmifrado, esses caríssimos amigos
ricos de ponto em cruz, escandalosamente encostados à galdéria e no local onde se encontram
diversos noctívagos. Mas os convidados estão com vontade de saltar;
a ilusão crescia, e muito alterada,
a ponto de cortar a respiração. No solo
de mármore da sala, ouvem-se
os passos rasteiros dos convidados; e ecoam
também comentários, picantes, de bom agoiro. Um ar sereno e pacato
no espaço invade o
cenário completo.
Figuras da cena mundana, bailarinas de copa, estrelas do topless,
meia dúzia de cabeças
de primeira grandeza
do GAS, uns tantos comerciantes e alguma ralé, transpiram
e misturam-se pelas salas. Champalinas, que ao ver Louis
se apercebe de ter sido apenas para o encontrar
que se deslocou até ali, -facto que até esse instante
conseguiu esconder de si próprio,
-descobre-o entre os convidados cada vez mais animados.
«Já o vi, é ele, Louis! E aquela rafeira que está ao lado dele parece que está apaixonada pela cena dos brincos!» - Murmurou
para dentro de si. E aquela ali deve ser a Madame
Rara, olha como está tão diferente,
parece a Rainha do Picolé!
E olha e vê Baixote
à sua esquerda, Toni da Gota à direita da Rapariga da Saca Preta.
Ao centro está Padrinho e alguns
amigos e, a toda a sua volta, uma dezena de caras que qualquer
pessoa da Cochinchina à Malásia
seria capaz de reconhecer sem precisar
sequer de uma lupa! -Champalinas abre caminho pelo
meio da assistência, cada vez mais densa à medida que se aproxima
da mesa; - mas está
231
decidido. Com o copo de vidro a bater no prato, chama a atenção dele e abraça-o num selo afectuoso de amizade,
diante dos presentes. Louis não resiste
e comove-se, desequilibrando -se, e recua mas acaba por recuperar e o público em delírio acaba por bater
palmas , enquanto um grande
alarido, vindo de uma voz cantante de uma senhora
peituda com cabelos trançados
sobre os ombros, canta a plenos pulmões,
Que tipo de amizade
é a nossa
Se não nos dermos todos tão bem
É preferível vivermos numa choça
E não termos
que discutir com alguém.
«Ela é espectacular», -diz atrás dele uma voz de mulher, -«e cada vez canta
melhor.» - Toda a gente batia
palmas pela animação
que ia na sala.
A mulher que acaba de falar olha para
Champalinas, é jovem
e de pequena estatura, nada feia, está cheia de calor, corada
de álcool e manifestamente atiradiça. - a sala não
tem muita «luz»,
mas ele vê o brilho do olhar
dela -«Temos tempo», diz ele tranquilamente a olhar para a mulher.
«Depois disto tudo acabar,
vem o nosso espectáculo a seguir!» - E, ao dizer isto,
adopta uma atitude de paródia
e vai ter com a sua acompanhante.
A seguir, Golias
a falar à maneira de Yul Brynner,
dirige-se a Louis.
«E o que é que você acha de Londres? Boa ou má?» - «Nem má nem boa, é o que eu acho.» - Continua Golias,
ainda no mesmo tom. «Eu diria que há nos ingleses
uma combinação com o americano.» - Ele aproximou-se mais de Louis enquanto falava; pegando ao mesmo tempo , no copo cheio de whisky;
enquanto Louis, revelando um bom humor britânico, desenha um exercício
em círculo com os dedos da
mão direita -num acto provocatório - «São todos uns prostitutos .» -
Louis, da ponta do balcão, olha na direcção dele; os olhares de um
e de
outro cruzam-se e Golias ergue o copo ao ar, e
acena, com um gesto de entendido.
No meio da festa, segue-se
uma corrida aos bastidores da Xangai! Ou, pelo
menos, o eco de uma tentação, entre
homens e mulheres não passou despercebido ao mais céptico
dos corações.
232
E, no fim da festa, Padrinho está isolado; tendo por companhia
uma jovem voluntária um pouco ébria e de cabelos despenteados, debate-se sozinho no meio da onda festiva onde alguns parecem
ser (e não são) amigos uns dos outros;
enquanto do outro
lado está Champalinas, rodeado pela miúda que não o larga de olho.
E, em seguida, Louis tira um copo da bandeja do empregado que passa
e bebe um gole de vinho e coloca o copo em cima da máquina do tabaco
e olha para Susy Três que está ali a dar água sem caneco àqueles
mafiosos de uma figa,
que só estão bem a pôr os cornos uns aos outros. M aldita famelga. Lá no fundo, está
o Grande Golias,
no preciso instante em que a Raparíga da Saca Preta, mais uma traidora, o põe ali a
pestanejar como um cordeirinho. Exclama
com ironia: - hoje dou-te a lua se me deres o teu sol;
- e pega noutro copo e vê no fundo do copo uma
casca de banana
e atira com o líquido
para o chão; -filhos de uma curta, são sempre iguais.
-E olha para Padrinho, que não dá o menor valor ao momento que se está a passar]
-mas é a pura verdade,
o tipo sempre desejou ter um mundo
para si. Digna Vida, os boémios meu caro,
são sempre uns fanfarrões. Golias
avança para junto
dele pelo meio da
sala e fala sozinho, enquanto
anda; - Ó
Meu Deus, como é que este homem se deixou abater?
Ainda aqui há um bom par de meses atrás, quem é que não queria estar na pele dele? - e assim sucessivamente; Golias só queria saber
o porquê? Mas
O que é coisa absurda?
Golías, ao olhar para Padrinho na mó de baixo, pela primeira vez que
soubera da má disposição que o obrigara
a ficar internado no hospital, lembra outra cena com intensidade, Padrinho
na festa do salão levou-lhe a sulista, enquanto ele ficou a chupar no dedo e viu-se sozinho
pela noite adiante a contar as estrelas do céu; e agora sente a repulsa
desse acto regressar e subir-lhe dos pés à cabeça; isso já lá vai, mas que me lixaste naquela
noite, foi verdade,
disse ele, que se lixe, eu perdoo-te, meu tratante, se não fosses
tu, seria outro.
Da mesma forma que Padrinho
foi julgado por Golias, sem direito a atenuantes, tal como
Mister Louis e a secretária na Suíça, Sábio Sabichão em Marrocos ou ainda Chicras,
que viu a sua condenação ser -culpado e beneficiado -do pecado viciado.
Não podemos deixar
passar em claro
um pouco deste
direito supremo, deste delito
injustificável. Ou não haverá aqui algum ressentimento mais
233
profundo por parte quer de um quer de outro, ou é no fundo tudo uma fachada? Pois não são estes dois homens
iguais num sentido
e separados noutro, cada um deles à sua imagem?
-Um ambiciona (ou ambicionou?) tornar-se um Messias lá da parvónia
e o outro prefere ser o Lawrence
das Malucas! (Mas não o das Arábias.)
O primeiro é um infeliz aparentemente a ser condenado, dia menos dia, por fraude
às finanças, e o outro, a quem todos chamam sem excepção -o sonhador -é o tipo de condenação amorosa, que uma pessoa tanto conquista que acaba por não
conquistar nada.
Podemos dizer que a fronteira que separa os dois homens
ultrapassa largamente o sonho
de qualquer um deles. Um sonho que fica guardado no espólio das incertezas -do São Nunca.
E porquê não sonhar?
-O que nos faz sonhar
é a essência da vida. O sonho comanda-nos até à hora da nossa partida
para nos transformarmos em defunto. Sem sonho não há invenção; nada existe. E é verdade
que tanto Padrinho como Golias - em qualquer das circunstâncias - fazem do sonho o trampolim para as suas sequiosas ambições.
-Claro que sim -Queremos dizer alguma coisa? Deveríamos dizer que estes
dois homens têm
filosofias diferentes; apesar
dos seus nomes serem artísticos e das suas múltiplas
facetas e ainda das suas frases
bombásticas acerca da ambição e do sonho.
Ora bem .-Enquanto Padrinho é um indivíduo que tem a sua historia ligada ao passado e desabrochando dele -que não escolheu nem a doença
quase sinistra nem a queda do seu sonho; que no fundo ainda receia vir a pagar os processos acrescentados em que os seus
sonhos predominaram e se infiltraram nos
vícios, transformando-o nesse
Padrinho que não
deseja ser. Golias é o tipo de pessoa que gosta de fazer o que muito
bem entende e sai sempre impune.
Podemos dizer de Golias que alguma coisa lhe falta
nos momentos cruciais quando pretende demonstrar que é um tipo -fora do comum - sendo a sua revolta às vezes tão inflamatória contra o
vício que torna possível nele uma falsidade profunda -chamemos-lhe «mal» -
e que é a verdade.
Temos de dizer uma coisa mais dura: que o mal talvez não esteja enterrado tão fundo, tão abaixo das nossas superfícies, como gostamos de pensar que está.
Golias, porém, fica-se
numa ordem de sintonia mais simples. «Foi a manobra dele com a sulista, a traição dele,
mais nada.» -
Estica as pernas e segue em direcção
à porta. De um lado da sala, a
miúda vestida às riscas amarelas
e verdes, ali mesmo ao lado, grita-lhe: Vamos lá hoje?
Após o que ele, enfurecido e pouco apetitoso, resmunga com o desconcerto das suas palavras: «Nem hoje nem amanhã. Minha sacana, tanto prometes que nunca acabas
por dar nada.»
No momento em que Padrinho se aproximou o suficiente da miúda
ébria que lhe fazia companhia, ele sentiu um pouco de animosidade para com
ela; talvez porque
nem a desejasse conhecer e detestava mais ainda
que ela estivesse grossa. Deve também
dizer-se que a piela
pode ser carimbada de um acto
feio pelo espectáculo, quando esse espectáculo é horrível de ser visto.
O que aconteceu
a seguir foi que Padrinho
inventou uma Fífia e
transformou-a numa desculpa
da sua ficção... apenas uns segundos e nada mais. Sorriu,
apertou as mãos, muito prazer em tê-la visto, eu já
volto; e pirou-se para outra mesa. Que praga
me havia de sair hoje. A
miúda ébria nem deu por ele e, se deu, fez de conta que não deu e
continuou no seu mutismo. Os dois não deviam ter muito para contar um ao outro, dissera
ela antes; e talvez tivesse
razão. Padrinho viu-a deitar
abaixo mais dois copos de cuba-livre; e, após uma pausa, começar a arrotar
com firmeza. Entre
aquilo que bebeu
e o que ainda faltava
beber não sabia onde estava o fim. Padrinho continuava
com.o seu olhar distante, e foi ao bolso
buscar os medicamentos para tomar, pois ainda se encontrava com vigilância
médica. Obrigavam-no a tomar, diariamente, certos comprimidos para combater a crise da sua doença
desde que ele tivera a ultima recaída;
e que estava decidido
a fazer um novo sacrifício desde o não fumar nem ingerir álcool para retomar a sua vida. Padrinho, apesar da sua (meia)
ignorância à doença, conseguiu detectar,
por mero acaso,
uma falha no aparelho digestivo (supostamente algo de grave)
epressentiu que só um milagre o poderia salvar
daquele mal.
Foi com esta pergunta
banal que Padrinho
abriu a conversa. Limitado pelos sedativos, perguntou
com ar vago: «Então e a tua vida, como é que
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corre, meu rapaz?»
- Ao que Rato-Ratão, com a língua
solta como sempre, respondeu: «Como sempre que está; nem mal nem bem; assim-assim.» - Padrinho sorriu com ar ausente,
pôs o braço no ombro
de Rato-Ratão.
«És sempre
o
mesmo. Quanto
mais choras mais
mamas. Mas está bem.»
- Enquanto Rato-Ratão foi dar uma ajuda à sala, nesse
preciso instante, quis o destino que Padrinho já um tanto
entontecido, estivesse longe
de se aperceber do efeito
dos seus calmantes. Duas imagens tinham formado
uma combinação terrível,
sendo a primeira
a súbita recordação de São Nicolau, num tapete voador,
a preveni-lo do desejo secreto
que ele pressentira , para conseguir lá chegar é preciso
saber conquista r, e a segunda
uma visão do corpo do instrutor de hóquei em patins em ensaio
de união carnal, com a menina da arrecadação dos patins
-quis a sorte que a figura
de Baixote fosse
vista a atravessar o muro da Xangai
num estado de nervosismo agitado. -Andava à procura de Elisa Moreno,
de quem o separara a mesma pessoa,
o marido, que empurrara um escocês
para os braços dela, na carrinha do whisky. «Falai do diabo», -disse
Padrinho, levantando o dedo. - «Lá vai o estupor.»
- Voltou-se então
para Rato-Ratão; mas este tinha ido à cozinha.
O taberneiro reapareceu, olhando espantado para ele: «Está a falar para quem? Estou a ver que não o posso deixar
ficar sozinho um segundo,
gaita?» -
«Se queres que te diga, nem sei o que disse...» - E Padrinho abanou a cabeça
e abriu a boca de sono. «Quando
é que acabas de limpar esta bodega e me levas a casa? Estou com sono.» - E o outro
respondeu: «É um rápido. Vou chamar um taxi para a miúda das cubas e vamos já ao fresco.» -
Em suma, os acontecimentos chegavam
ao fim; e quando, minutos
mais tarde, o taberneiro, a quem fora confiada a missão de levar
Padrinho a casa, tomou o troço da estrada
do Sul que ligava à cidade do Monte Corgo,
Padrinho aliviava os seus males e repousava a cabeça no banco,
deixando-se embalar pelas guitarradas que se faziam ouvir no rádio do
carro.
Na semana seguinte, um telefonema de Fala-Tudo localizara-o via Rato-Ratão, taberna
e finalmente Pina-Colada, e que pareceu
tê-lo deixado bastante agastado.
Padrinho tinha umas contas a ajustar com ele,
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e deu por si em frente da escola de formação à espera que Fala-Tudo chegasse, uma hora depois do tal telefonema, numa camioneta Ford prateada que ele tinha alugado para o efeito.
«Eu já tinha
tentado entrar em contacto
contigo algumas vezes»,
-disse ele. - «Mas estava a ver que não te encontrava. Para te apanhar
é como procurar
uma agulha no palheiro.» - Fala-Tudo começou
a carregar alguns
móveis, máquinas e uma quantidade de pares de sapatos sem sola, o que deixou Padrinho
um pouco esclarecido mas bastante intrigado. E agora Fala-Tudo corria para os fundos
do armazém e carregava mais caixas para a camioneta.
Padrinho, nas calmas, exclamou:
«Mas para que é que levas os sapatos incompletos?» -
«Sabes que tenho
negócios com os índios», -respondeu Fala-Tudo -
«para eles, isto é maravilha; podem ir para as ilhas com os pés forrados por cima e assim os mosquitos
não os mordem.» - E Fala-Tudo empenhou-se logo em ir buscar mais caixas pelo que,
quando Padrinho deu por
ele, viu a carga toda carregada. E terá dito para
si: o raio do homem já carregou tudo muito depressa. Até me fez lembrar o Speedy Gonzalez!
E agora Fala-Tudo
limpa as mãos e puxa de um cigarro e põe-se
a fumar.
«Levo aqui esta tralha toda e ficam as contas acertadas.» -
Padrinho tardou a fazer cálculos de débitos, mas concordou que devia
estar - ela por ela. -
Por fim, Padrinho fôra levá-lo
à estação de gasolina, uma vez que ele, ao ligar a camioneta, verificara
que o ponteiro do depósito da gasolina se encontrava na zona vermelha
e que começava a noite a cair. Fala-Tudo
guiava como se a estrada
para o Porto fôsse a pista do aeroporto de Pedras Rubras.
«Eu faço esta viagem com uma perna ao ombro»,
- explicava ele em tom malandro. - «É só carregar no pedal ao fundo e entro à bombeiro; ai daquele que se aproxime;
leva uma cocada se não se puser
ao largo; passo por cima do gajo, isso é limpinho.» - E mais ele disse: «Ainda aqui há tempos entrei a guiar em
sentido proibido e pus um gajo que estava a arrear
o calhau nestas retretes ambulantes a comer gelados numa gelataria!» - Padrinho até fechou os olhos para não ver a estrada. O seu
coração batia tanto que lhe deu a impressão que ainda ia rebentar de susto.
Fingiu-se solidário com as histórias
dele e mudou o rumo da
conversa.
«E o Baixote,
tem-lo visto?» - Fala-Tudo tirou as mãos do volante e
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a camioneta pôs-se
aos ziguezagues pela
estrada irregular. «Nem
queiras saber o que se passou
entre nós. Há três dias
roubei-lhe a sua princesa e ele
foi-nos apanhar a sair do choco.» - Soltou uma sonora gargalhada e prosseguiu: «Bem dizem as bruxas que o ciúme possessivo é pior que uma
galinha choca; ou abafa-se pelo
pescoço ou canta-se
como o galo.»
- Ele estava tão contente por contar estas coisas que até abrandou
o ritmo de velocidade para satisfação de Padrinho que deixou de ter
que fechar os olhos. Se ele gostava de falar, era porque Padrinho
também não tinha intenção de o interromper. «Ele lixou-me uma vez com uma
serigaita que não valia um tostão furado; agora estamos
quites, mas quando puder pôr-lhe a antena à frente dos olhos,
ai isso menino,
é uma coisa que eu não consigo evitar;
não sei porquê, mas...», - dizia ele.
«Sinto-me um marreta
se não o fizer. Então se eles me pregam a mim os
palitos, eu não posso pregar a eles? A minha mãe sempre me
disse; meu filho, antes deles, primeiro
tu.» -
Fala-Tudo chegou à estação e deu ordem
ao funcionário para atestar
o depósito de gasolina. «Não sei onde
foste buscar todas
estas histórias», - exclamou Padrinho enquanto transeuntes de mochila às costas e pessoas
corriam para o posto de abastecimento. «Também se pode dizer
que tu deves ter mais historias
para contar do que eu. Eu não tenho nada a ver
com o teu caso, mas por aquilo
que ouço dizer, vais ter que te pirar para o
Polo Norte ou Polo Sul, de maneira
que os gajos não te deitem a luva.
Sabes que, nos tempos de crise, querem lá saber se és culpado à frente
ou inocente atrás; ou como viveste a tua
vida! A crise chega, a doença
mata, e tu limitas-te a sofrer as consequências.» - Fala-Tudo voltara a falar, ao grande estilo de Cantinflas como Padrinho
tanto apreciava e também à arte de discursar que dizia melhor
com o seu pseudónimo.
«Estou a pensar»,
-disse Padrinho convicto.-
«Acho que vou contigo para cima. Não tenho
mais nada que fazer; enquanto
vou e venho, entretenho-me.» - Acrescentou ele.
Instantes depois, a camioneta arrancou,
encaminhando-se pela estrada, vendo-se algumas tabuletas de publicidade, salientando uma delas com letras
todas iluminadas: SORRIA
E DIGA BOM DIA!
Na sombra da tarde, a estrada contornava uma colina sem árvores, coberta de mato. Havia algum tempo, noutro
país, Fala-Tudo tinha ido
viajar e contornara outra colina
mas repleta de árvores que nem se
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conseguia sequer ver a lua. Agora, porém,
o que o esperava era uma
colina sem árvores. Fala-Tudo não só se propôs admirá-la, como lhe deu na pinha de querer vandalizá-la. «E se eu pusesse aqui um reclame rneu: Fala-Tudo tanta asneira diz que é burro. «Com esses dizeres não acredito a não ser que as varejas ou os mosquitos lhe façam uma entrevista.» -
«Padrinho, olhe que
eu ainda o conheço mal, praticamente só dali da taberna», - começou ele a falar,
mas parou e tomou uma decisão. -
«Custa-me ter que lhe dizer
isto, mas é a verdade», disse. «Procure um bom advogado,
quem sabe. Pode ser que ele o safe dessa tramóia.» - Calou-se de repente; o aparecer
da noite escondeu-lhe o rosto. O olhar de
Padrinho escureceu e mordeu, por engano, os lábios.
A estrada aproximou-se de Grijó, uma pequena terriola
onde nem havia um bar e passaram
por uma tasca de um taberneiro amigo de
Padrinho que fizera fortuna a vender vinho a martelo
e morcelas de sangue
preto. Fala-Tudo achou o edifício
mal cheiroso, apesar das paredes brancas, das lâmpadas indirectas e das retretes
em cima dum alçapão onde, por baixo, ficava a cozinha. No jardim estava
um cão preso e gania às vezes. Constava que ali só parava quem sofria da secura da boa
pomada.
A tasca era conhecida pelo Olho do Cu e estava um tanto
afastada das vinte casas de pedra e tijolo que formavam a comunidade.
O taberneiro estava à porta,
quando a camioneta estacionou.
«Sejam bem aparecidos», - gritou alto.
- «Bem-vindos à minha casa.» -
Quando os dois se sentaram
à mesa de pinho, à luz de altas velas
por cima dos caixotes
a cheirarem a sabão e azeite, Padrinho entornou a sua chávena de café com leite (fazia
grande alarido por ter deixado
de beber; Fala-Tudo foi servido com duas generosas doses de whisky
da casa); e o taberneiro, a gaguejar, atravessou a cozinha aos tropeções para
ir buscar um pano para limpar a mesa. «Nem sabes como me chateio de andar sempre com a merda dos medicamentos nos bolsos para tomar», - confessou. - «E, depois,
enervo-me e deixo cair tudo ao chão.
Poda-se, pá, garanto-te que já estou cheio. Qualquer
dia devolvo ao médico os medicamentos que ando a tomar.»
-
«Não diga asneiras», - disse
Fala-Tudo brandamente. - «Um dia também fiz o mesmo e quase
ia parar aos anjinhos. Não faz a menor
ideia do que é um indivíduo com o seu problema não ser medicado, não faz,
pois não?» -
239
«Felizmente para mim, que o faço, já há bastante
tempo», - disse Padrinho com um sorriso.
- «Ás vezes é que exagero por causa dos nervos. A verdade é que, se não fossem
os remédios, não conseguiria
aguentar estas dores
que me absorvem o dia todo.» - .
«Mas pode crer
que é isso mesmo», - bradou Fala-Tudo
com um rosto alegre.
- «E espero que nunca
deixe de tomar
essa decisão.» -
O interior da tasca Olho do Cu era constituído por dois pisos - a parte
de baixo onde se situava a cozinha e o balcão
e a outra metade mais requintada com quartos de cama e casas
de banho para todo o serviço.
Não sendo capaz, talvez por motivos de medicação, de conciliar o sono,
Padrinho vagueou pela tasca cheio
de frio (aqui
o calor não chegava
como no Brasil onde o clima é sempre quente;
mas aqui é sempre gelado) e
andou de um lado para o outro,
enquanto ouvia cá em baixo
Fala Tudo, numa das suas muitas
sessões de anedotas para o taberneiro, que já estava a começar a ficar bêbado de o ouvir contar tanta burrice!
A euforia deles
continuava, contrastando com o mal-estar de Padrinho, que tapava os ouvidos
com os dedos, esforçando-se por pensar em coisas
bem mais agradáveis mas em vão... Até que, por fim, Padrinho
deu um estrebuchar de suspiros e fez notar a Fala-Tudo que já era tarde. «Vamos embora daqui.» -
E a camioneta meteu-se à estrada,
seguindo o caminho traçado até ao
destino.
Na manhã seguinte,
Padrinho planeou uma visita ao hospital para saber
como é que ia o seu organismo e o médico
mandou-lhe fazer um Tac. No fim, aconselhou-o a manter-se calmo e evitar
excessos de vícios, procurando animá-lo o melhor
possível. O motorista que o acompanhou na viagem era um velho conhecido
da terra e só pelo simples facto
de o ver hoje alegre, ficara
também radiante de alegria. «Anda
daí, pá. Nós, os
amantes da boémia,
ainda vamos mostrar
a essas corujas nocturnas o que é gozar a vida. Raios
me partam se não gostava
de pregar uma partida
àquelas fuinhas que só sabem levantar as pernas.» - O pensamento de Padrinho estava
longe dali; compreendia agora mais do que nunca, ao
vir ao médico fazer um exame rigoroso, que o seu estado de saúde estava debilitado. O que havia ele de fazer?
240
Se não lhe apetecia nada?
- Só queria era sentir-se bom de saúde
e deixar de andar
com os medicamentos no bolso
para tomar a horas -
«Julgas que te vais livrar
desta merda
para já?», - insinuou para
si. -
«Estás redondamente equivocado. Tira daí o cavalinho da chuva.» -
Quando chegaram ao meio da viagem ao longo da estrada, estavam envoltos num nevoeiro miudinho.
«Vais precisar de usar binóculos», - ironizou Padrinho. - «Vê só: se vais para a direita
vamos ao charco, se vais para a esquerda,
ao charco vamos!» - E apontou para a frente. «Ü melhor é seguir a trote de jerico cansado.» - O motorista, com o coração
aos pulos, colocou
a mão na testa a fazer de pala e avançou com o carro a
dez à hora pela estrada.
Passo a passo,
tipo tartaruga, naquele
Pico de nada, no meio do nevoeiro! Então Padrinho foi à bolsa
dos documentos e tirou de lá os seus binóculos e deu ao motorista para ver melhor a
estrada. Quase não se via ninguém. Longe
a longe passava
uma viatura, um ou dois homens
e meia dúzia
de cães e mais nada.
Padrinho seguia ao lado,
olhando silencioso. «Quer-se
dizer que estamos
sozinhos», -disse de repente. - «Pois vou aproveitar para te dizer, por causa dela, a tua
sopeira, vais arranjar uma carga de lenha que não te livras tão cedo. É que ela é boa como o milho! E os gajos,
pá, não a largam, andam atrás
dela, até parecem moscas. Juro-te,
eu vi. Ela é que é um pastelão de uma
parola mas. quando
tiver o olho
bem aberto, ninguém
a segura, nem mesmo a Fidelidade ...» -
Este paleio apanhou
o motorista entretido
com o nevoeiro, mas deu para
entender alguma coisa do que ele dissera.
Meu estupor, pensou, agora vejo que estás mesmo doente,
não há duvida. E, no encalço do pensamento, veio-lhe à cabeça, como por magia, outra frase: Já andaste lá a cheirar, mas não penses que vou largar aquele
presunto nem que tu te ferres
todo.
No trajecto de regresso a casa, Padrinho
referiu-se ao despovoamento das terras. «Ninguém quer enterrar o garfo na lavoura. Isto vai ser bonito, vai»,
- disse Padrinho.
-«Daqui por uns anos um tipo quer um nabo, uma cenoura ou uma penca e vai ter que importar, senão, não come.» -
O motorista diz que o trabalho é para os doentes, pois quem tem saúde
não precisa de vergar a espinha; e quem quiser esfolar o físico que vá
para África, lá não falta que fazer.
«E o teu trabalho, gostas dele?», -perguntou Padrinho. «Não sei fazer
mais nada, por isso gosto dele.» - Ele sorria-lhe, acenando com a cabeça como a confirmar as suas palavras.
241
«Não sejas tolo», - aconselhou Padrinho - «e pensa mas é em reformar-te, pois já tens
idade para ir à pesca e levar
a patroa a apanhar
banhos de sol na ria.» - Foi então que o motorista abrandou o pé do
acelerador tomado por uma ideia.
«Tens razão
. A minha patroa também me diz o mesmo.» - Dizia 0 motorista. E, daí por um bocado, voltara
a falar.
«Ai Meu Deus, se ela
soubesse da outra, mandava-me pôr no fundo
da ria atado a um pedregulho», -disse ele, rindo.
-Mas, sabes como é, eu gosto da parola: conforma-se com tudo que eu lhe dou
e com o que eu lhe digo e, quando se zanga, logo
murmura ó amorzinho tu nem penses deixar-me, atiro-me já prá ria. Imagina se eu a abandonasse!»
A viagem chegou
ao fim. Padrinho, junto à porta
de sua casa, desejou boa sorte ao motorista.
«Vou ter de descansar umas três semanas em repouso
absoluto» , -disse ele pela janela do carro. - «Quando estiver porreiro, convido-te
para beber um copo.» -
«Telefona quando
quiseres», - disse
o motorista, acenando
com a mão, e o carro
desapareceu pela rua.
Que ia ser de Fífia, agora internada
numa casa de desintoxicação - pois fora uma boa medida de cura achada pelos familiares
para a sua melhor recuperação na sociedade -voltaria a ser a «Fífia» de antigamente? Por quem os seus amigos
pudessem apaixonar-se comp naqueles bons tempos? Que exigente gente
aquela, reflectiu Fífia
com desagrado, que tanto
gostava de expor
as suas intimidades a terceiros companheiros. Enquanto o guarda da enfermaria (com uma expressão
que era quase provocatória) dizia larachas
estúpidas e mastigava chicles nos dentes, parecendo um cavalo a moer
palha e andando em círculos quadrados, com cuidado para não pisar
os objectos de entretenimento das doentes
que se encontravam pelo chão, Fífia interrompeu o seu silêncio
para declarar, com ar desvairado, que «quando olho para esta gente toda amarelada e os olhos fechados, senhor
guarda, vejo mortos à minha frente.» E fungava
com fervor pelas
narinas, como se quisesse decifrar o cheiro do seu nariz. - Mas voltou logo aos gritinhos que ela gostava
de dar, ao seu olhar esgazeado e ás voltinhas pelo interior da sala.
242
Era uma rapariga
de vício em perigo iminente e a sua energia selvagem rebentava pelas costuras. A enfermeira veio à sala para lhe sugerir que tinha
de tomar a dose de medicamentos que trazia nas mãos e verificou o seu estado de excitação febril.
Pelo menos, num aspecto, aparentava
ser duma grande bebedeira,
pois Fífia já não se lembrava onde estava nem donde
viera e muito menos que remédio havia de tomar.
E os disparates continuavam, a camisa desabotoada pondo os mamilos ao léu. Não gostava
que lhe mexessem
nas orelhas e adorava fazer cócegas nas plantas dos pés. Fífia
falava muitas vezes sozinha e recordava os seus tempos
quando era menina e moça.
Fífia disse para si que a
loucura não passava de uma tontura e que todas aquelas conversas sobre drogas revelavam
a fraqueza dessa suposta «inexperiência do vício», - termo que ela mesmo a brincar
não gostava de empregar. - Fífia
interrompeu o seu raciocínio turvado para ir à enfermaria
tomar a sua medicação. Mas logo voltou e viu-se diante
da janela da sala de orações,
onde ela aparecia
como um anjo voando no espaço, (pois também tinha havido um anjo da guarda depois do incêndio no quarto) com as mãos de um homem a acariciá-la por todo o corpo, levando-a
pouco e pouco até ao êxtase;
acabou por se identificar com essas mãos, quase sentia o
perfume dele, quando lhe ouvia os gemidos. Por fim controlou-se. O seu desejo causava-lhe aflição ao coração.
Ela era duma fragilidade extrema. Não gostava de pensar
em semelhante tentação.
Mas, depois de pensar,
ninguém a conseguia parar.
A obsessão sexual
de Fífia, disse a enfermeira a ela própria, era um
mal menor na sua doença. «É evidente que és uma rapariga
atraente e formosa», -murmurou à laia de experiência e recebeu um olhar tenso e tímido.
Mas, logo a seguir, a enfermeira deu um sorriso
e passou o braço
pelos ombros dela e exclamou:
«Desculpa lá, eu sou assim e não quero
que tu te zangues. Só quero é que
não faças asneiras e não te metas aí
nos fumos. Nós estamos aqui para nos ajudarmos uns aos outros.
E agora anda; já chega de medicamentos. Vamos dar
uma volta ao jardim.» -
Toni da Gota, ao volante de um BMW, virou a cabeça para trás e fez sinal para a direita com o pisca e viu uma moça airosa que passava por ele
com ligeireza no andar por uma alameda
de árvores cheia de ramos,
onde o sol passava por aqui e ali. O barulho da buzina do carro não atraiu a moça que prosseguiu a sua rota
e deixou-lhe um sabor amargo
na boca;
243
o sabor amargo
de uma má conquista que podia-ter-sido-melhor. Toni da Gota seguiu
para o centro da cidade.
Ele estava de bom humor nesse
dia, apreciando o Porto e os tripeiros quase com a mesma vivacidade de outros tempos.
Onde antigamente ele via
uma beleza sedutora,
hoje via um camafeu, qualquer
coisa que andasse em cima de uns tocos de duas pernas e tivesse saias, tanto
melhor assim. Às sextas-feiras era o dia dos «amadores» irem à pesca, mas hoje ele
quis manter as aparências e atirou-se às leoas esfomeadas de coroas, berrando: «Ah! caraças, hoje vou-vos depenar.
Vai mesmo com penas
ou sem penas. Vou levar para o meu apartamento uma gordinha que aguente um fim-de-semana abrasador.» -
Mais adiante, nas Taipas, ao descrever uma curva junto ao velho mercado das frutas e legumes, viu algumas raparigas
ao engate. Entravam e saiam dos carros, algumas delas desesperadas à procura de notas, mas todas elas tinham cara de fome e eram magras, seguindo
em rusga pelo passeio. Toni da Gota soltou uma gargalhada. «Até as sacanas
destes cabides de fome não engordam.»
- E depois de ganhar fôlego: «Do que
vocês precisam é de um cozinheiro que vos ponha a comer
tripas à moda do Porto, não acham?» - Levou logo roda de tudo, mas a palavra da
ordem era: «Vai levar no cu!» -
Quando não estava
a insultar as prostitutas nem a contar a maneira como comia as suas amantes «dei três enquanto
ela nem uma deu» «virei
ª
por baixo e ela vomitou», parecia
morto por fazer mais vítimas; quais eram as dez melhores quecas do seu livro de fodas; as melhores amantes de cama, os pratos preferidos. Toni da Gota confessava
tudo aos amigos sem preconceitos de espécie alguma.
O seu livro de quecas incluía
A Noite do Esfola Sete, O Traseiro da Chorona, A Velha do Vovô, 5
Nunca é Demais,
TG, o Terror do Pincel. «Essas gajas sugaram-te todo», -zombou um deles. - «Só te vêm à cabeça essas maluqueiras.» - A
sua lista era demais, fosse qual fosse a matéria,
não havia «pai» para
ele. E seleccionou as «suas mais» preferidas «lá da zona»
e espampanantes até dizer basta. Miss Corcunda, Olívia do Palito Grosso, A Histérica
dos Canibais, Miss Bacalhau. «Deves ter cá uma cabeça de martelo, nem sei corno te lembras
de tudo isso.»
A sua excitação
era tanta, como o seu empenho tagarela
em transformar as narrações num amontoando de top-parades, os maiores entre os melhores. De carro, Toni da Gota chegou à taberna.
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Madame Rara não estava.
E, pelos vistos,
a Rapariga da Saca Preta
já tinha feito as pazes com
os pais. Na mesa do póker, Champalinas estava acompanhado de uma
amiga com boca gulosa e uma venezuelana fazia os olhinhos
a uns tantos clientes carentes de sedução. Apareceu Rato-Ratão e mostrou-se no seu estilo habitual, sorridente e cheio
de malandrice: «Até que enfim
que o apanho, vou apresentar-lhe uma beldade de Pernambuco que você não vai
resistir aos seus encantos.» -
A taberna do Rato estava
meio ambientada de freguesia e logo a presença de Toni da Gota suscitou algum burburinho. Rato-Ratão
andava no balcão
de dentro para fora, numa
bolina impressionante. Depois
entrou um trio de clientes, com Ave Rara à frente
de Fala-Tudo e o Alentejano, e instalaram-se na mesa do meio, cheios de vontade de beber.
O jovem empregado
(que Rato-Ratão se vira obrigado
a contratar para ajudar
o obeso e pesado Capitão
Guei) aproximou-se da mesa e tomou
nota do serviço
-uma garrafa de whisky novo, águas, amendoins e línguas de gato
- sem deixar de corresponder com toda a delicadeza
de um principiante à arte de bem-servir. O empregado Monteiro estava tão entusiasmado com o porte
dos clientes como Rato-Ratão estava concentrado a fazer números
na sua cabeça.
«Trate-os bem», - disse Rato-Ratão para Monteiro.
- «Do que eles gostam é de finesses e etiqueta, percebeu?» «Para mim não há problema nisso»,
-contrapôs Monteiro.
- «É o meu estilo
preferido.» -
Os clientes foram
servidos com rigor
e com arte. Quando começaram a beber demais, a atmosfera da sala também
se tornou mais pesada. Por fim,
levantaram-se os três
e vieram para
o balcão. Comentou Ave Rara:
«Hoje fiz um negócio
da China. Vendi um pré
fabricado a dois gajos
ao mesmo tempo. É obra não acham?»,
intrometeu-se Fala-Tudo, um tipo
de estatura normal, cabelo
castanho, rosto magro e pálido e de cigarro
na mão. «Isso é merda,
pá. Melhor fiz eu. Vendi um carro meu a vinte gajos.» Alentejano, de bigode sobre o
lábio, rosto moreno e sorriso aberto, entrou na conversa: «Vocês,
à minha
beira, são ainda
aprendizes. Nos meus tempos,
punha as galinhas a cantar!» - Os outros
dois riram-se e praguejaram, até Ave Rara sentir curiosidade e perguntar: «Então,
explica lá isso.»
- Alentejano assume
uma expressão risonha,
dizendo alto e bom
som: «Simplíssimo, pá. Fazia
apostas com os meus conterrâneos e, na altura própria,
punha as galinhas em cima de uma chapa falsa ligada à
245
electricidade. Mal carregava no botão, uns segundos depois,
as galinhas faziam cá uma chiadeira
que ninguém as conseguia mais calar.» - Ave
Rara deixou-se ficar para trás.
«Conclusões; já vi que fodeste os teus patrícios.» - Mais risos.
Fala-Tudo, depois de ter acabado
de fumar, aproximou-se mais deles.
«Esperai aí! Ainda não vos disse como vendi o meu carro a vinte
gajos!», e acrescentou de seguida.
- «Vendi-o em vinte partes, estais a ver?» - E Ave Rara, talvez irritado por Fala-Tudo não lhe ter dado o devido
valor à sua manobra comercial, atacou-o com estas
palavras: «Ora vai-te lá quilhar com essa. É caso para dizer, passaste a sucateiro de chapa
barata.» - Fala-Tudo, bebendo um whisky de chimpam,
fez uma brincadeira surpreendente. Pegou numa pedra
de gelo e deitou-a por trás
da camisa de Ave Rara que reagiu furiosamente: «Merda para isto! Acaba lá com essas brincadeiras estúpidas.» - Mas não houve resposta. Fala-Tudo virou-se para a mesa onde se encontrava Toni da Gota na conversa com a venezuelana.
«Então, estás a gostar
da mulher?» - E Toni da Gota respondeu:
«É tão meiguinha. Já provaste alguma vez carne
da Venezuela?» - E Fala
-Tudo concentrou o seu olhar na mulher antes de responder: «Não. Mas deve ter tudo onde as outras têm.» - Toni da Gota acabou por dizer:
«Isso não ·sei. Estou a tentar ver se ela vai no embrulho e depois conto
-te como foi.» - O outro, balanceando o corpo, digeriu
a resposta com um
enrugar de nariz;
depois inclinou-se para trás
e gritou para os outros:
«Como
é? Vamos ali ao lado
ou não?» -
«Vamos lá.» - Respondeu Alentejano acabando de beber
o seu whisky.
Os três homens saíram e abandonaram a taberna.
«Aquele gajo está a ver se convence a venezuelana· a ir fazer
um suadouro de quatro
joelhos», -disse Fala-Tudo à saída do bar. -«E diz que é a décima foda que vai carimbar
numa semana.» -
«Deve ter cá um escalope que nem uma girafa.» - Respondeu Ave Rara.
«Sabeis lá?», -Rematou Alentejano puxando por um cigarro. -«Ü tipo pode tomar qualquer
droga dessas modernas
que há por aí à venda
nas farmácias; dizem eles que põe o pau direito
várias horas ao dia.»
«Não fales nisso», -disse Fala-Tudo, olhando
com sofisma. -«Falaste pá, já estou com o pau firme.»
-
«Não se pode estar ao pé de vós.» - A excitação
crescente deles dera a entender a Ave Rara que teria que pôr o juízo a pensar noutra coisa,
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senão teria que
ir também molhar
opincel. Que raio de gajos estes,
não sabem falar doutra coisa que não seja o stike.
«Ido-vos quilhar. Já estou com traça.»
- Anunciou Ave Rara, faminto.
Estavam quase a chegar ao nigth club J .S. que ficava
no centro da rua com vista para
o jardim do Marquês de Pombal.
«Ó dono da taberna
do Rato», -disse Ave Rara com olhar distraído, como se seguisse uma cena profunda do seu pensamento, - «nos princípios da sua carreira,
depois de ter vários fracassos
com mulheres do sistema,
seduziu uma jovem atraente e boa camareira
de dezanove anos chamada
Duvália. No nigth
club ela representava maravilhosamente o papel de menina
virgem saída do colégio das freiras. Rato-Ratão também molhou a pena em cima dela e deu-lhe o papel: A amante
do barman. Uma 'brasa de arrasar.' Os clientes andavam todos mortos por
também poderem molhar
a pena, e Rato-Ratão, claro, começou a ter
enormes ciúmes dela que ia ficando xarope da mona. Trancou-a num quarto durante uns dias e levava-lhe de comer numa marmita,
longe das vistas de outros homens.
Ela queria sair; ele levava-lhe revistas e
livros para entretê-la. Era como aquela velha canção do Ratazana: Quando um
homem ama uma mulher Ie vê-la sorrir
para um qualquer I
um homem fica danado
I apetece
dar um banano / na cara daquele
estupor.» -
Alentejano acenou que sim com a cabeça
pesada, sinal que a história
o tocara de perto.
Tinha mergulhado numa espécie de sonho acordado.
«E o que é que aconteceu
depois?» - Perguntou quando
chegaram ao local marcado.
«Ela pirou-se e deixou-lhe um bilhete
a dizer», -declarou Ave Rara, todo comovido. -«Vai bugiar mulas pró Monte
Aventino.» -
A Rapariga da Saca Preta,
ao sair do autocarro para casa, levava
um embrulho na mão para oferecer
á mãe e uma carta que ela própria escrevera em letras gordas e torcidas.
«Se a felicidade é transmissível - releu algumas palavras - podes
crer, mãe, que acertastes em cheio. Eu, por mim,
encontrei o meu caminho
e, como tu sabes, esta
vida é um pandemónio de loucuras, com a mesma faceta da desgraça e da desventura. O contentamento, mãe, que tenho
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em vir de novo viver
para o vosso lado é bem melhor
que a excitação. Juro que estou a ser sincera para contigo.» - Quando ergueu os olhos, uma lágrima derramou
e julgou ver a imagem
do pai encostado à velha cancela, com o seu tradicional -casaco de flanela
às riscas, chapéu
de palhinha, camisola grossa de lã e calças
de bombazina -transmitindo um ar confortável e sorrindo como nunca ela o vira sorrir. «Agora tenho todo o tempo do mundo para ti», - disse-lhe ele e ela abriu os lábios e sorriu
- «Também eu.» - Ela sentia outra
vez o amor do pai dentro dela. Cerrou os dentes e continuou a andar.
Os pais esperavam atrás da cancela velha, da mesma cor
esbranquiçada da pintura
do resto da casa, e observavam a caminhada da filha.
A mãe saiu de rompante
da companhia do marido e foi ao encontro dela, de olhos chorosos e a expressão
emotiva. O poder do
amor maternal estava sobre os seus ombros,
e ela entoava nos choros a velha
cantiga de sempre,
o tempo que eu esperei nem sabes o quanto sofri agora vais ser feliz. Dir-se-ia que o destino tinha conseguido
salvar o que o vicio não lograra acabar.
O pai, empoleirado agora num banco de madeira
, acenou com o dedo polegar da mão direita
para cima e afastou-se dali, descendo a alameda de árvores floridas
e cheias de folhas.
Os telefonemas que começaram a chegar, primeiro
à morada de Londres e depois com o endereço
da Residência da Xanai e escritório no Porto, atendidos umas vezes pela
secretária Susy Três e outras
por Mister Louis,
não eram muito
frequentes mas, apesar
disso, continuavam a molestar
a paciência dele que não tinha resoluções à
vista para o
tal projecto do sapato de combate
aos calos dos pés. As chamadas eram breves, ao contrário daquelas
que ele fazia e que abusava da rede
telefónica. E todo este desagradável episódio, afinal de contas, não durou mais de
uma semana e meia. Por fim,
o projectista do lançamento do sapato para o calo
tinha concluído a forma ideal do projecto; mas talvez valha a
pena dizer que a experiência com os sapatos fora um sucesso, ou seja,
os modelistas levaram Mister Louis a enviar telegramas para Londres
antes que se fizesse tarde
-que o sapato para os calos era real.
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Devemos dizer que ninguém, nem .Susy Três, nem sequer os promotores do negócio a quem eles enviaram catálogos
do projecto, lograram chamar
a atenção para um pormenor
importante. Até que ponto
um indivíduo em cima dum sapato, com um patamar
duplo, consegue sobrepor o peso do seu próprio
corpo no pé e andar bem? Mas para
Mister Louis, outrora conhecido (apenas
em circuitos comerciais) como o lançador das calças Quemerda, não havia obstáculo nenhum e
a tarefa até era simples, sem muito risco a correr.
Ao fim, só teve que dar ordem
para executar o catálogo de apresentação de mil pares de sapatos.
Quando Susy Três fez os contactos e enviou as amostras para fornecer o mercado internacional, chegaram-lhe aos ouvidos os rumores
de que a ideia era fantástica e os países
do Terceiro Mundo estavam
interessados em conhecer o sapato. Apresentaram uma proposta algo desconcertante,
de milhões de pares de vários números;
desde o número 6 aos números sessenta; e, quanto à forma de pagamento, a surpresa tornou-se ainda maior, pois queriam
pagar através do sistema de permuta -sola e cabedal por fruta seca e pinheiros para o Natal. - A secretária teve que enviar respostas, via e-mail (era mais barato)
acabando por ficar com
as faces coradas e arrepios na espinha com semelhantes propostas, esforçando-se até para não se rir às gargalhadas.
Mister Louis também
teve os seus casos nos contactos telefónicos. Pequenas multinacionais de países árabes deixaram-se conquistar pelo - Sapato Prós Calos -sendo os maiores consumidores miúdos de turbantes nas ruas à conquista de turista para o golpe do trombadinha. Um sapato desses dava-lhes um certo jeitão,
pois assim podiam
correr à vontade com o produto gamado e sem que os calos os afligissem.
Uma das primeiras
coisas que Mister Louis pensou
e executou foi chamar o idealista para lhe fornecer
versos fadistas tão originais como a
ideia dos sapatos o era, para não dizer soberba
e, contrastando com a
maioria das outras vozes discordantes, Mister Louis, que ao fim de pouco tempo catalogou no seu desconhecimento. E surgiu do idealista o primeiro
verso fadista; uma quadra que falava exclusivamente em gamar.
Que alívio, Senhor,
Tenho os pés num voador
E as
mãos na algibeira.
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É
uma sextilha, disse o idealista de versos
fadistas na voz baixinha e. concluiu os versos:
Para dar o mico é melhor
Corre-se mais que o andor
É só
sacar a carteira.
Ao fim-de-semana ponha este verso que me inspira mais.
Havia uma maior
emoção no verso
publicitário e o certo é que, por detrás desta lengalenga, esperava-se o maior
sucesso.
Quem sof re de
calos é o desajeitado
Que não soube calçar-se à vontade M as agora que ouviu falar
dofado Pode livrar-se da calosidade.
Oh! Que alívio. Como foi tão fácil a penetração da publicidade. Para combater o mal dos pés naqueles
enormes sapatões de um patamar
de aglomerado de cortiça,
maleáveis e tão
flexíveis que qualquer
malabarista fazia com ligeireza o triplo salto mortal no trapézio; ou então com que
segurança se equilibravam nos altos
postes de alta
tensão os funcionários da electricidade! Ele
estava tão certo do seu sucesso como um homem com pouco cabelo ir a um cabeleireiro fazer um penteado
e sair de lá com o cabelo tão volumoso como
a Lady Godivà. Assim também
Mister Louis se apercebera do poder especial
dos versos fadfstas. E mandou
gravar algumas cassetes
contendo vozes fadistas,
umas lentas e outras
rápidas, vozes tristes
e outras alegres, agressivas e tímidas.
Um a um iam chegando aos locais de apresentação do modelo do sapato
engrandecendo a sua ligação ao mundo árabe,
atendendo pouco a pouco a rede de negociantes interessados em encomendar o artigo, embora considerassem o preço demasiado alto para aquelas
paragens. O preço oscilava
- mil escudos por par - mas, apesar dos muitos
interessados, a verdade é que ele achou melhor distanciar-se daquelas zonas; e chegaram
os primeiros problemas que tanto o inquietavam.
Passo adiante. O seu faro de vendedor
voltou a questioná-lo, despertando nele um torvelinho de contradições. Depois
de as primeiras
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