Monday, October 22, 2018

As minhas desculpas pela deficiência do ficheiro. O autor.


O prédio por cima da taberna do Rato era de dois andares, de tijolo e cimento, pintado a cor branca e janelas forradas de caixilharia de madeira, uma construção citadina dos anos 60, suas linhas assim eram consideradas harmoniosas. Não havia elevador e a porta era de alumínio, vidrada, e dava para uma escada que terminava no segundo andar. Havia um andar para alugar no primeiro direito.
Esse andar andou anunciado através das agências imobiliárias e acabou mais tarde por vir a saber-se que fora alugado a uma pessoa, uma mulher do seus trinta e picos anos, sardenta, cabelos loiros, e trazia várias raparigas de aspecto duvidoso consigo. A versão oficial do agente da imobiliária foi que essas pessoas eram camareiras mas, segundo uma observação ocular, faziam-se em horas normais uns «trabalhos por dentro» com clientes pescados nas casas nocturnas, uma vez que a inquilina, a mulher loira, era especialista de massagens no andar que servia para o efeito. Os motivos de desconfiança por parte dos vizinhos levou a polícia a inteirar-se a sério da verdadeira actividade dos locatários. E logo meteram mãos à obra. Um «tiro no próprio pé.» foi, no entanto, a decisão mais correcta.
O chefe da esquadra, Alves, ao inteirar-se da situação em que se encontravam os factos, estabeleceu uma «ligação» entre a brigada à paisana, as camareiras e alguns clientes da taberna do Rato, sendo a mulher loira a principal culpada da prática de prostituição. E enviou dois dos seus homens como <isca» ás massagistas, que logo trataram de os enviar para o quarto, sendo recebidos pela mulher loira que os mandou pôr à vontade.
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Era possível que ela tivesse exagerado um pouco no seu trabalho de mãos, que era a sua especialidade, embora o seu procedimento se coadunasse com outras intenções, que não passaram despercebidas aos clientes. No fim do trabalho, -ambos os guardas depois de devidamente identificados -deram uma busca às instalações e apanharam mais dois casais em exercícios de massagem completa. Era também possível que as outras duas massagistas tivessem exagerado no trabalho de mãos. Os        clientes, depois de identificados, foram embora; e o mesmo aconteceu com as camareiras que entraram no carro patrulha em direcção à esquadra
para averiguações. Que a casa de massagens fôra de origem habilidosa, era um facto consumado. Grandes dores de cabeça na vizinhança causadas, nas trocas das campainhas das portas, dos telefones e nos enganos das fechaduras.
l                «Essas pessoas não têm responsabilidades para com o próximo e I pouco se ralam se são incómodos ou indesejáveis.» - Declarou a vizinha do andar esquerdo ao chefe da esquadra, cansado de tirar apontamentos.
O andar ficara vazio e mandado limpar, permitindo ao senhorio o direito de o voltar a alugar com novos inquilinos.
«Esperemos ter sorte na próxima vez.» - E foi assim que se passou.
1              Mas ainda não está tudo dito.
Tenho mais algumas questões, pelo menos -Por exemplo, acerca de uma frase que serviu de código de entrada para os guardas poderem entrar à vontade sem serem bombardeados com perguntas curiosas da praxe. Acerca da senha do código, utilizaram eles uma frase de entrada nas instalações quando a mulher sardenta e loira abriu a porta exterior: - Vimos do mando de Rato-Ratão -
E, por fim, resta acrescentar que o olho humano não tem grande dificuldade em espreitar através de uma clarabóia do prédio em frente. O chefe AIves? Encontra-se no gabinete. Não. Já saiu para o comando e não tem respostas a dar a ninguém.
E aqui aparece o Sr. Champalinas, com o seu sobretudo de camelo e gola de pele de borrego, descendo a Rua Santa Catarina com o seu andar de burguês, como um fidalgo de primeira categoria.

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O mesmo Sr. Champalinas que acaba de passar o fim-de-semana na sua quinta (ninguém, pelo menos, ainda conseguiu saber onde ela se situa) a andar de jerico disfarçado de cavalo na companhia de uma jovem daquelas conquistas fáceis -uma vamp da vida nocturna -que aprende a montar, um tanto desajeitadamente, sem ter o equilíbrio certo. «Olha para os pés do animal!», - disse Champalinas de lado, - «são achatados, parece o Pamplinas a andar.» -
Champalinas deixara de ser tão importante. A sua condição de homem ricaço é demais sabida mas, às vezes, nem sempre tem cacau e deixa um calote pregado nos livros do deve-haver que assusta muitos comerciantes. Ele·praticamente gastou metade das promissórias bancárias que algum dia sonhou ter; gozou como um desalmado, brincando com o dinheiro a troco do amor fácil. E fê-lo aproveitando as suas performances de fidalgo da Casa Mourisca, ferindo muitas vezes o seu orgulho de frustração - todos temos o calcanhar de Aquiles. -
Todavia, eis que chega o Sr. Champalinas ao consagrado café Majestic para tomar o seu café da manhã. Um pensamento enche-lhe o coração de ânimo. Depois de sair do café, dirige-se a uma ourivesaria em frente e estaca de repente, diante do empregado, com um relógio na mão. «Por favor, estava interessado em fazer um intercâmbio, trocando o meu relógio, de marca Acorda, por um outro de marca Longines de senhora que está ali na montra?» -
E o empregado olha, estupefacto, para o relógio na mão dele e exclama: «Desculpe, que marca é que disse?» -
«Não me diga que não conhece esta marca?», - como o empregado estava pensativo, ele prosseguiu: - «É uma marca internacional no mundo da moda; foi uma criação do grande estilista  Monsieur Pêndulo. Custou-me 200 contos, enquanto o que está na montra custa somente 70 contos, mas eu não me importo de arcar com o prejuízo. É para oferecer à minha namorada.» -
Após dez minutos de conversa, o empregado mal que está a ser vigarizado; e olha fixamente para o relógio.
Depois faz a troca e Champalinas vira as costas e sai para a rua. E vai directo à loja de perfumaria, ali mesmo no correr da rua, e fala com uma jovem dentro do balcão que sorri para ele. «Minha querida», -     diz o romântico Champalinas. - «Trago aqui uma surpresa para  si. Vou provar-lhe
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de quanto eu gosto de você.» - A cara dela corou. Ele abre o presente e a  jovem solta um oh! que coisa linda e um brilho reluzente enfeitiça o seu olhar. Está nopapo, pensa ele. O coração dela está a bater, bum,bum. As pancadas saem altas demais. Impossível raciocinar.
«Não quero que fique nervosa», -diz ele meigamente. - «Sabe que eu               quero vê-la sorrir?» - E o coração dela recupera mais rapidamente do       que   ele  pensara. Apertou-lhe  a  prenda na mão dela, fazendo-a corar da ponta dos cabelos aos pés. Bum, bum, canta o coração dela com mais vigor.
Champalinas pisca-lhe um olho e sai para a rua a trote de uma centena de ideias na cabeça. Aquela miúda punha-lhe a cabeça numa fona. Ergue os olhos para as montras e sorri para as empregadas. Sabe, no intimo, que é bem menino de as galar a todas com a sua irresistível capacidade
de conquista. Cruza os braços num gesto de pura lata. A empregada da
l           loja dos botões evita o olhar dele   mas, ao mesmo tempo, não consegue disfarçar um sorriso tentador.
Agora é Champalinas a ficar com o coração a bater, pum, pum. Recua e respira fundo. Não sabe as horas e volta de novo a olhar para a empregada dos botões. É o homem das Mil Conquistas, e não lhe escapa uma.
Champalinas ganha mais uma ideia.

E o que acontece quando a conquistar?
Quando a tiveres à mão de semear, o que farás, então! Possivelmente a deitarás abaixo. O compromisso é a tentação dos fracos mas tu és um  homem forte.
«Minha querida», - diz Champalinas, maneando a cabeça para a empregada. - «Preciso de uns botões em pele para um casaco de trespasse que trouxe de Londres. Acha que é capaz de os arranjar?» - E a empregada, ao olhar para os olhos dele, não pode esconder uma certa simpatia que o seu olhar sente. «Eu vo...»,- começa a dizer e engasga-se. O que é que vai ver? Entretanto ela se tinha afastado e demorou alguns minutos a voltar.
«Não me disse a quantidade?», -pergunta ela e ele, depois de sorrir, faz um gesto pensativo. - «E isso é importante? me interessa saber se tem os botões, porque depois vou trazer-lhe o casaco para me pregar os botões, valeu? Estou a brincar consigo, não leva a mal. Posso oferecer-lhe uns bombons?» -

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Agora, nos olhos dela, poças de chamas a arder. Em breve ele sai da loja e, passado minutos, volta a entrar com uma saca de bombons cheios de promessas. Ela vai tratar de pedir os botões , porque não os há na loja. Champalinas tira também um bombom e passa a língua pelos lábios. «Tenho muito prazer em conhecê-la. Chamo-me Champalinas e não a vou largar, enquanto não me arranjar os botões.»
As mãos deles cruzaram-se. Mais chamas vibraram nos olhos dela. Champalinas parece ter a coisa bem encaminhada. Repete com um olhar de galã.
«Na próxima vez, juro-lhe que lhe vou trazer uma caixa de bombons da China, de creme de minhoca, são uma delícia, minha querida.» -
Será possível que um verdadeiro Don Juan nunca aceitasse ser derrotado numa conquista, mesmo que ela fosse por mero acaso?
Pensem o que quiserem mas, no caso deste incorrigível conquistador de mulheres, ele procurou, sempre sem remorsos, seduzir da mais vil das mulheres à mais e inocente criatura e servir-se delas, pelo menos, em parte devido ao desejo de voyeur que tinha.
E, no entanto, esse conquistador arriscou o seu poder de sedução, quase de caras, numa temerária tentativa de amar, até então, mas sem o conseguir.
O que isto quer dizer?
O amar é u m desejo louco que prende esta alma e a tentação carnal invade-o num circuito de pensamentos eróticos que não o largam.
coisas mais urgentes a cicatrizar do que essas maluqueiras de há pouco.
Que escolha fará Champalinas?
E será que, uma vez na vida, saberá por onde escolher?
Champalinas apanha o cigarro que cai ao chão. Coloca-o na boca. Champalinas que, para além de não ter horas também não tem isqueiro, vai pedir lume ao primeiro fumador que passar por ele. Uma pequena chama acende-lhe o cigarro e ele aspira para o ar, uma fumaça de fumo de cor da neve, infiltrando o resto no nariz e passando aos pulmões. Agora, Champalinas começa a circular pela rua ao encontro do local onde estacionara o seu carro, soprando pequenas quantidades de fumo pela boca, cheirando a bafo de tabaco que tolhe.

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E  passa à porta dum café e aproveita para tomar odigestivo da manhã;_
um whisky de oito anos em cálice de balão com um pedra de gelo. -
iE é assim que, numa manhã em que a cidade está invadida de gente
ansiosa por fazer compras e outra gente ansiosa por vender, assistimos a
uma pequena demonstração dum conquistador à procura do amor fácil.


                             A MAGIA A FRICANA
VII


Azevedo, o negociante de relógios de ouro e diamantes, tinha o velho hábito, quando se chateava com os amigos, de chamar preto fosse a quem fosse, dizendo-lhes que um dia, quando o mundo perdesse as estribeiras, os pretos ocupariam o lugar na cadeira dos brancos. Os amigos acolhiam estas ironias com tolerância, sabendo de antemão que o seu optimismo, sempre bem-humorado, era bem aceite pela maioria, embora houvesse quem olhasse para ele de lado, pois sabiam que os pretos para ele estavam abaixo de cão.
Chamavam-lhe o Grand Canyon, no Zimbabwe, a cerca de vinte e cinco quilómetros do Fort Vitoria, no local onde se erguia a antiga capital de Monomotapa. Havia uma aldeia de nome Mazoa, onde Azevedo vivia confortavelmente numa casa de madeira de oito assoalhadas, lendo calmamente as noticias que vinham no jornal da região, enterrado numa poltrona forrada a pele de bilontra, resguardado do mundo por uma espessa rede metálica -   além de quatro cães de raça indiana  e de alguns homens de cor da sua segurança privada. A criada, de nome Limpopó, tinha quase sessenta anos. De aspecto rechonchuda e andar bamboleante como a avestruz, tratava da cozinha e passava a vida a assobiar. Por conseguinte, quando encontrou o patrão na cadeira com o jornal na mão, deixou de assobiar e foi-lhe buscar um sumo de coco com
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laranjada que ele adorava imenso. Para ser franco consigo próprio,
Azevedo amiúdas vezes punha-se a matutar o que é que o levava a deixar a            o ambiente de uma cidade ardente e apaixonada como Lisboa, para viver
metade do tempo ali naquela imensa terra africana. Embora em boa
verdade se diga, fora ali que ele construíra a sua riqueza pessoal.
Apesar de não ser uma aldeia muito grande, Mazoa tomou-se famosa
                     pelos seus grupos de danças guerreiras que, em dias de manifestações, faziam um chiqueiro pelas ruas com as trombetas a troar altos e azougados sons, numa incrível procissão de gente carregada de sacos de bagagem. Desciam em direcção à estrada principal, conduzidas por uma rapariga de cabelos ao vento, com grande espalhafato, em cima de um cavalo,atraindo os passageiros com a sua trombeta cor de azeitona, numa cara de pura flausina.
Pouco tempo depois, Azevedo recebia na sua casa uma delegação de
guerreiros Kunus, pedindo para ele ajudar a contribuir com bens materiais
ou económicos para o grande desfile de danças que se ia realizar na
               cidade. Sabendo que, se nada desse, o mais provável era criar mais
inimigos à perna e iria aumentar a sua numerosa lista, tão negra como a cor deles, Azevedo concordou. E deu ordem ao criado negro para ir buscar cinquenta caixas de embalar sapatos e entregar à delegação, que agradeceu com todas as vénias e retiraram-se a papo-seco.
Após a saída deles, o criado negro Mustafá chamou-lhe a atenção:
«Mas sinhô! As caixas estavam vazias, sem nada!» - Azevedo olhou seriamente para ele e disse: «Tás a ver como reparaste , meu sacana? Se calhar estavas a pensar que ia dar àqueles gringos (termo que ele dava aos negros) sapatos autênticos.» - E logo disse: «Preto é assim mesmo; burro como uma porta.» -
E o criado contrapôs: «Sinhô, nem todo o preto é fraco do caco.» -
«Claro, eu entendo-te. Estás-te a valorizar, meu gringo», -      e bateu três vezes com os nós dos dedos na nessa. - «Mas tu sabes que aprendeste alguma coisa aqui à custa do patrão branco. Ainda te lembras quando te mandava comprar um dólar de energia eléctrica à drogaria e o manduca do preto, combinado comigo, dava-te farinha de porco para tu engordares e vês: ficaste que nem um chouriço!» - Ouviu-se uma gargalhada estrondosa saída da garganta do criado.

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1Gaiata.

Os vários grupos de danças chegaram a Mazoa numa algazarra endiabrada, não deixando ninguém dormir a soneca das três nesse dia. Não faltavam crianças vadias a correr pelas ruas e bebés a chorar eram aos montes. Azevedo, que veio dar uma vista de olhos, fartou-se de levar com eles, pondo-se junto de uma barraca de comes e bebes, junto à estrada, diante da qual se apinhavam negociantes de cobras que tocavam flauta e elas subiam por uma vergasta comprida, entretimento esse de que Azevedo não gostava nem um bocadinho. Enquanto isso, pelas tascas iam servindo os chocos com óleo de fígado de bacalhau, e castanhas cruas. Nesse momento, chegou o jipe da polícia de Mazoa. O oficial estava de pé, ao lado do condutor, berrando através do megafone para as pessoas se concentrarem na parada do centro, que o espectáculo iria principiar em breve. A polícia era a entidade que organizava o festival de danças e controlava toda aquela gente para evitar distúrbios e cenas de zaragata.
Azevedo, um estrangeiro no território, obviamente não era homem para assistir àquela macacada toda. Todavia, a coisa impressionou-o. Abriu caminho por entre a multidão para ouvir o que a  rapariga derosto gaiato dizia: «Hoje é o grande dia das danças guerreiras, de mostrar a todos os africanos que ninguém dança tão bem como eles.» -
A voz da rapariga estava insegura e o chefe exclamou: «Eu quero ver isso. Quero o melhor espectáculo do mundo. Quero que esta gente saia daqui com os pés a arder e as mãos a abanar.» - Todo ele era galões e medalhas por toda a farda, barbas e presunção e sorriu para a rapariga.
«Gosto de te ver a soprar nesse instrumento. As tuas bochechas inspiram-me a dar umas cacetadas nestes negros de sanzala.» -
E ambos se afastaram. Os ânimos estavam a esquentar. Nesse preciso momento, uma figura apartou-se da multidão e estacou de repente. Azevedo ficou espantado com a presença do sujeito inteiramente vestido de fato tropical, cinto grosso com a marca da Levis, chapéu à cow-boy e laço à  xerife. «Yooh», -gritou ele. - «Alarriba! » -E logo acrescentou :
«Os meus guerreiros são os melhores do mundo. Não esqueçam, Os Kunus. »  -
A sua publicidade foi entusiasticamente recebida em grande folia. Azevedo aproximou-se do chefe da polícia que o recebeu de peito inchado. E abanou a cabeça para o homenzinho que acabara de falar com um sotaque texano e exclamou para o chefe.
«De onde é que veio esta estampa?» - O chefe pareceu ficar num instante
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sem voz, até que respondeu com voz aos tremeliques.
«Desconheço, mas parece-me ser o Soba do grupo.» - E assim Azevedo deu por terminada a visita ao local, regressando a casa.
Horas depois, no calor da tarde, Azevedo vagueou pelo meio dos seus campos cultivados de batatas, cenouras e pencas, ainda que meio atordoado com os acontecimentos a que assistira. E aproveitou para descansar na primeira sombra que encontrou; debaixo dum embondeiro. Sob o calor tórrido que se fazia sentir, Azevedo deixou-se embalar numa sesta. Os seus sonhos procuravam constantemente a figura da sua empregada de limpeza Marcolina, que em Lisboa tomava conta do seu apartamento quando ele se ausentava para o Zimbabwe. E via-a agora, na sombra do seu sonho, no pagode, na companhia do apaixonado vizinho do andar de cima, que estava estendido no sofá a fazer-lhe cócegas no
umbigo.
Por fim, o vizinho pôs-se a acariciar os peitos dela, dizendo docemente:
«Ó pá! Tu não acreditas naquele homem, pois não?» -
«Bijuzinho», -diz ela, empoleirando-se mais por cima dele, -nós somos novos e modernos. Sabemos, por exemplo, que os velhos morrem nas viagens longas, que os aviões estão sempre a cair do céu, e que o stress cabo deles, como o cancro ninguém o cura.» - O vizinho voltou a dirigir-lhe palavra.
«Temos de pôr cobro a esta fajardice. Vem para a minha beira. muito espaço no meu andar. «Ir para o teu andar fazer o quê?», - Ela sentiu-se impotente, como se o mundo acabasse ali. - «E a minha mesada, quem ma paga?» - Azevedo repentinamente deu um salto e acabou por dar de caras com a criada Limpopó, que se tinha esgueirado por detrás da árvore a ouvi-lo falar sozinho. «Patrão, doente?»
«Não», -Azevedo esticou o físico para a frente e passou a mão pela testa suada. - Sabes, às vezes estou a fazer contas de cabeça com os olhos fechados e falo alto para não me esquecer.» -
«A saúde é bem mais importante que as contas.» - Disse Limpopó, retirando-se pelo campo. «Tu não percebes o que dizes», - gritou Azevedo enquanto ela se afastava. - «Que a riqueza é a deusa de um bom negociante.» -
Azevedo foi caminhando pelo trilho da picada e perdeu a paciência a falar sozinho. «As deusas, que vão para o diabo que as segure. A única deusa que conheço é o meu cartão American express, o resto é lábia de filósofo.» -

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Azevedo, o vendedor de ouro e diamantes, contemplava a imensa planície de terra vermelha que se estendia sob o seu olhar de aventureiro.
«Rei sou eu», - disse - «E não disse a ninguém, mas digo-o agora. A verdadeira arte é uma pedra chamada diamante e, na terra dos caolhas, quem tiver um olho é rei .» - E, dito isto, desatou aos pulos pela ravina abaixo.
Quando terminou o espectáculo dos guerreiros das danças, Azevedo ficou com as orelhas em alerta ao ouvir o negro que acompanhou toda a noite o desfile dos grupos. Ele explicou a Azevedo que o grupo guerreiro chamado Kunus tinha sido o primeiro classificado e os seus elementos tinham dado brado na parada ao dançar com os pés embrulhados nas caixas vazias dos sapatos. Azevedo nem queria acreditar! Emais o criado disse. Que o sucesso tinha sido tão estrondoso que os guerreiros dormiram com as caixas enfiadas nos pés, afim de não desperdiçarem o calor pela noite fora.
«Isto é absurdo! mesmo em África.» - Sussurrou ele.
Na manhã seguinte, os aldeões de Mazoa viviam uma praga de paludismo que afectara muita gente e colocara a população às súplicas de feiticeiros para que conseguissem arranjar medicamentos destinados a colmatar o vírus da febre. Ao tomar conhecimento desse mal, muitos deles refugiaram­ se nas povoações mais próximas, protegendo-se da febre e do sol. Era como se o paludismo de Mazoa tivesse isolado a povoação de um terramoto. Pois, agora, a maior parte dos seus habitantes acabara por cavar dali ás de vila-diogo.
Azevedo, quando ·soube da notícia, avançou com a segurança privada e fez um reconhecimento ao terreno, conduzindo ojipe até ao muceque onde reconheceu o soba da tribo eencaminhou-se até ele. Mindungo Gu decidira não autorizar o seu povo a sair com medo que se contaminasse. Ele ea sua filha Masquecu convidaram-no a beber uma mistela de óleo de macaco e ele não disse que não. Sentaram-se dentro da tenda e, quando a rapariga estendeu os copos, ele agarrou-lhe a mão.
«Tens o cabelo tão sujo.» -Disse ele e ela segredou-lhe que, muito tempo, desde que se habituara a pôr-se nua ao espelho, a vibração era tanta que partia os espelhos todos e agora sentia-se uma rapariga infeliz, pois sem espelho não conseguia excitar-se. Historia curiosa, pensou ele, olhando para a rapariga. Levantou-se, foi ao carro e voltou acompanhado
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de uma chapa de alumínio que lhe pôs na mão. «Vai ali para dentro e experimenta com a chapa e se ela parte ou arrebenta.» - Quando ela
voltou, era demais evidente que a chapa tinha resultado. Filas de gotas
·de água corriam pelo rosto abaixo devido àquela maravilha de alumínio     que a excitara até pô-la tonta. O Amor é louco, não façam pouco  desta  loucura, escrevera um dia um poeta.
Masquecu apanhou os dois homens distraídos a conversar e avançou em direcção à povoação mais próxima. Na estrada, cruzou-se com outras
,mulheres que fugiam da febre e seguiam rumo a norte, levando as trouxas no dorso de burros moribundos, avançando também eles a conta gotas,
à  espera dum intervalo para descanso. «Não me digas que não arranjo
um rapaz  valente para me coçar o ·pêlo  até à exaustão!»  - Gritava Masquecu para dentro dela e acrescentava : «Há  meses que não sei o
que é masturbar-me três vezes seguidas. Mas, hoje, o primeiro que
conquistar está bem lixado comigo, que vou pô-lo a pedir.» -
Masquecu passou as primeiras horas de caminhada até ao rio Zambeze num estado de agitação permanente, histérica. Numa dessas horas, avistou um rapaz ao de uma carrinha do tipo station e voltou-se para ele:
«Até que enfim que vou arranjar alguém para brincarmos às casinhas. Vem massajar-me aqui as costas.» - Mas o rapaz recusou-se, dizendo muito baixinho. «Ó minha querida, eu sou gay e procuro o mesmo que tu.» - Ela perdeu o controlo e enxotou-o com palavrões, prosseguindo a caminhada rumo a norte.
E, no fim, no coração do rio, a passo trôpego e dominada pelo desalento, Masquecu descobriu que, na outra margem se aproximava um vulto que lhe deu a impressão ser de uma criança. Pôs-se nos bicos dos pés, olhando com frenesim, e viu ao longe o seu presente. «Olá! Sou a princesa da tribo Kunu. E tu?» - O vulto respondeu ao longe. «Sou o Meiokilo, o servo dos mini-trabalhos da sanzala. Não sei se me estás a topar?» - Aproximaram-se um do outro. A primeira coisa que acorreu a Masquecu foi que o vulto, conforme se ia aproximando, era de uma pessoa demasiado baixa. E ela protestou contra a sua sina. «Era o que me faltava agora, um anão!» - Deitou-se a correr ao seu encontro, com o pensamento atravessado por mil tentações e, ao fim de cinco minutos, estava ao dele, que abordou Masquecu com olhar admirado:
«Mas o que é que faz aqui uma princesa Kunu?» - Ela conteve a sua ansiedade e disse: «Ando à procura de alguém que me tire a virgindade

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e, nos meus sonhos, aparece-me a imagem dum anão que ele tem poder para me tirar os três. Por isso é que fiz este percurso para te encontrar.» - O anão deu um passo atrás. «Tirar os três? -disse. - Essa não contava eu. Mas como vou fazer isso se sou tão pequeno em relação a ti?» - Masquecu, pensando numa solução, deitou-lhe a mão e correu com ele até próximo de um cemitério de guerreiros. Mas logo Meio Kilo se opôs: «Aqui não. Sou supersticioso e temo o bruxedo.» - E ela ordenou:
«Cala-te. Comigo a teu lado nada receies.» - E Masquecu fez uma reza e apelou aos seus deuses. «É agora ou nunca.» - Pegou no MeioKilo pelas pernas e pendurou-o em cima de uma cruz alta de madeira. Ao mesmo tempo destapava a tanga de pele de ouriço caixeiro envolta à cintura e soltou-a, ficando nua, perante o olhar arregalado de Meio Kilo que nem queria crer que o que estava a ver fosse mesmo verdade. «Beija­ me com furor e apalpa-me toda!» - Gritou ela cheia de histerismo, mas atrapalhou Meio Kilo que não sabia por onde começar com as mãos; se em cima, se em baixo.
O anão entendeu que não tinha outra chance na vida como aquela e, no início da primeira investida, deu por si a beijá-la fervorosamente na boca e, com as mãos, espetou-lhe as unhas no traseiro para seu regalo, ouvindo-a relinchar que nem uma corça. Quando, de repente, um trovão rasgou o céu com violência, o anão logo estremeceu. E, de seguida, uma rajada de chuva infestou o ar, caindo saraiva da grossa que rapidamente deixou o chão numa imundice de terra enlameada, abrindo buracos junto à estrada, onde a água da chuva caía em abundância. A terra avermelhou-se sob as bátegas da chuva. «Não pares agora, palerma!» - Masquetu agarrou-se desenfreadamente  à cruz, mas um novo trovão ecoou no espaço com tanta força que atirou com a cruz a uma distância de quase vinte metros. Quando Masquecu chegou perto dele, o anão ainda estava empoleirado com os pés atados à cruz. Parecia um pássaro no alto de uma gaiola e, com uma das mãos, sacudia a lama de cima do rosto, cuspindo pela boca. «Eu bem disse que é pecado», - disse ele. - «No cemitério galo fazer amor.» - Mas Masquecu não se atemorizou com a chuva nem com os trovões, desamarrando o anão da cruz, gritou para ele: «Não penses que te livras de mim, meu anão dum raio!» - E atirou-se para cima dele como uma leoa enfurecida mas MeioKilo, com uma habilidade felina, desembaraçou-se das suas garras e deitou a correr como um desalmado. que acabou por tropeçar nas pedras e cair ao rio.
«Socorro! Não sei nadar.» - Ela ignorou o pedido do S.0.S. E ao vê-lo
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debater-se atrapalhadamente nas águas, Masquecu correu até à margem
para fazer mais uma cena. Estava disposta a deixá-lo morrer afogado
tão facilmente como a chuva teimosamente não parava de·cair.
«Tinhas razão. É um sinal do teu Deus», -gritou ela.- «Se te safares daí,
podes contar sempre comigo.» - Meio Kilo parecia agora um gato
assanhado, sem conseguir livrar-se daquelas águas todas à sua volta e voltou aos pedidos: «Não me deixes aqui», - latiu o anão aos saltos na água do rio Zambeze.» - «Porquê?», -respondeu Masquecu voltando as costas e iniciando a caminhada de retorno a casa. - «Se foste a minha desconsolação, que diferença faz uma recordação?» -

Quando os feiticeiros de Mazoa concordaram que os aldeões podiam voltar às suas tribos, se tinham passados três dias depois daquela· epidemia de paludismo que alastrou sobre a aldeia. Durante esse período, ocorreram centenas de mortos originados pelas altas febres e os feiticeiros não conseguiram fermentar ervas suficientes que dessem para salvar a todos. A febre deteve-se. Masquecu, entrevendo uma ultima oportunidade de satisfazer as suas necessidades fisiológicas, prosseguiu  a sua  jornada, percorrendo a sua caminhada pela estrada longa e comprida. Ao fim de três horas, passou junto às ruínas de um velho prédio, onde em tempos remotos era uma albergaria que acolhia os grandes guerreiros Kunus quando ali se preparavam afincadamente para os exercícios de dança que os esperavam. Quando Masquecu viu as ruínas, uma sensação estranha apoderou-se das suas estranhas e resolveu entrar para repousar um pouco. Deitou-se no meio do entulho com a cabeça apoiada num calhau grande que encontrou, afazer de almofada. «Vou-me deitar aqui», - murmurou ela. - «Nem que durma uma hora, é bem bom - O sonho tomou conta dela. E, enquanto dormia, a visão apossou-se do seu desejo e fê-la recuar ao tempo da albergaria. Viu os grandes guerreiros a chegar aos seus quartos e um deles, Makaku o mais famoso dançarino do grupo, curtiu-a com o olhar e puxou-a para a piscina de águas fumadas. Ela se enroscou nele a valer com um roço deslumbrante que acabou por fazer uma cena maluca. Deu tantos gritos que assustou o guerreiro. Ele, quando viu os vidros das janelas voarem pelo ar e partirem-se todos derivado ao êxtase total dela, ficou com os olhos arregalados. «Maluca!», -gritou-lhe. -
«Maluca e histérica!» - E fugiu dali a sete pés.
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Depois do sonho ela, acalmou.
Afastou-se durante o fim da tarde e apareceu passado dia e meio, numa altura em que o grupo de aldeões limpava todo o esterqueiro que os feiticeiros haviam feito com os fumeiros para afastar a epidemia para zonas bem distantes. Ela sempre soubera como contar uma cena para esconder as suas fraquezas intimas;  olhou e viu o pai  Mindungo Gu; então aproximou-se, arrastando os pés na terra cheia de poeira e, desta vez, trazia o cabelo enlameado e as sobrancelhas igualmente sujas.
Chamou o pai junto a si e disse-lhe que a febre do.paludismo tinha desaparecido da região e que o povo de Mazoa podia deixar de ter dúvidas que o mal estava combatido. Informou-o que tinha percorrido as aldeias mais distantes, junto ao rio Zambeze e que os feiticeiros não fizeram outra coisa senão diminuir a febre com pensos de caca de javali encharcados em água insossa e depois acrescentaram batatas oleadas com sumo de abacaxi. O pai ficou admirado. «É a primeira vez que ouço falar nisso», -exclamou. - «Temos que dar os parabéns aos feiticeiros.» - Depois daquela palestra, pai e filha ficaram em silêncio juntos um ao outro. «Esta peta já está enfiada.» - Pensou Masquecu.

Por alturas da lua em fase crescente, a vinda de Marques, comerciante de peles na África do Sul a passar férias no Zimbabwe, teve um efeito inesperado. De tempos em tempos, ele gostava de levar a mulher e o filho a viajar, deixando o conforto da sua quinta abastada e atravessar outras terras para alargar a sua visão sobre o continente africano. E fazia normalmente as viagens, sempre no seu carro Mercedes-Benz cor azul do céu, com cara de europeu e em quem se podia confiar. A Sr.ª Marques acolhia com agrado estas viagens, sabendo que o seu excelentíssimo esposo era um óptimo companheiro e proporcionava-lhe momentos hilariantes de riso. Por conseguinte, quando ele lhe comunicou para ela fazer as malas que iam viajar sem destino, não foi apanhada inteiramente de surpresa.
Durante a viagem, nas horas quentes do dia, os Marques descansavam onde quer que encontrassem alguma albergaria ajeito ou uma sombra confortável. «Ó homem, tu lá, não adormeças!» - A Sr.ª Marques, que estava estendida no banco de trás, sem dormir, não descurava de olhar para a estrada. Marques dirigiu-se-lhe com a sua espontaneidade
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habitual. «Ó mulher, parece que nem me conheces.Desde que não bata
com o carro contra o cimento, o resto não interessa; se bater.em alguém
ninguém sequeixa.» -O vendedor de peles contemplava o seu filho de doze anos que dormia debaixo duma pele de elefante. «Eu não me importava de ter a idade
dele», disse. E não disse mais, deixando florir um sorriso de felicidade
entre os lábios. Quando chegaram à aldeia de Mutare, Marques estacionou o carro e
acompanhou a mulher, que pegou o filho pela mão, e foram visitar algumas
lojas. Ele voltou-se para ela e disse que, embora não quisesse nada para
l               ele, ela podia comprar à vontade, desde que não fosse artigo muito caro. r                De volta ao carro, na estrada, cruzaram-se com outros carros que e seguiam rumo ao sul, levando famílias entrouxadas umas sobre as outras,

,..
avançando também elas, sedentas de uma boa passeata. Ao fim dos

primeiros dias, a viatura com ar condicionado proporcionava uma viagem
agradável pela imensa planície arenosa. E,no fim desta correria, ao centro de uma aldeia indígena, Marques, suado e cheio de calor, apercebeu-se que estava próximo da fazenda de Azevedo, um velho amigo de Portugal, com quem mantinha uma franca amizade.
Entretanto, ao chegar junto de uma marina, de repente, uma casca de coco atirada por um macaco do cimo de uma árvore ali junto ao rio, quase lhe partia a cabeça, pondo-o um tanto vacilante, obrigando-o a parar o carro. «Meu patife! Ainda estás a olhar?» - De nada lhe valeram os insultos ao macaco, que olhava admirado para ele, senão passar água sobre a cabeça e resfriar um pouco os sentidos, à sombra da bananeira. Um homenzinho, ligado à travessia do rio, veio falar com ele; se queria atravessar o carro na sua prancha de madeira.
«Em quatro lanços, eu passo o carro para o outro lado.» -
«O que é que lhe deu ?», - respondeu Marq ues com a sua voz enervada.- «Atravessar o  meu  Mercedes-Benz?» . -
«Que mal tem?», -contrapôs a Sr.ª Marques de rosto exausto.
«Ó mulher, queres ir a nadar pelo rio abaixo?», - voltou a falar Marques de olhar sério. - «Aquela  prancha nem um burro aguenta, fora mais um rinoceronte destes!» -
«Andor!», - gritou Marques. - «Vamos mas é daqui para fora.» -
Afastaram-se rapidamente dali, numa altura em que o sol não estava tão quente, e meteram-se à estrada viajando a tarde inteira. Teve então a

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satisfação de encontrar o velho amigo Azevedo a avançar para ele, com o olhar sorridente, enquanto os criados andavam à sua volta, dando a impressão de que lhe estavam a guardar as costas.
«Oh! Que agradável surpresa a vossa», -disse Azevedo, estendendo-lhes a mão. - «Era o que me convinha agora, a visita dos amigos.» -
«Neste caso, prepare um cabrito à nossa moda», - respondeu-lhe a Sr.ª Marques. -  «E u m tinto à  portuguesa.»

A chegada dos Marques à fazenda de Azevedo foi um divertimento. Os criados não tinham mãos a medir e estavam incansáveis para que nada lhes faltasse. E logo a Sr.ª Marques, que pesava menos cinco quilos do que no inicio da viagem, tentou freneticamente limpar o que lhe cobria as roupas e compor o cabelo, dando-lhe um leve arranjo. O filho viu a mãe a agitar um batom meio derretido e perguntou: «Vais pôr isso, mamã? Mas não vamos ao baile!» -
A mãe não ligou ao comentário e olhou pela janela a paisagem deslumbrante que os seus olhos viam. Entretanto, na outra sala, as relações entre os dois amigos tinham aquecido a tal ponto que os dois riam.
«Todo o homem tem a sua parte feminina, não tem?», - disse-lhe Azevedo, pondo-se a beber whisky com água.
«E qual é a tua?», -perguntou Marques.
«A minha, é lésbica.» - Respondeu Azevedo, soltando uma gargalhada.
«Fizeste-me lembrar aquela do pastor que tinha uma criada bem boa e toda a malta na aldeia andava morta por a assapar. Um dia, ele estava a dar um sermão no templo e disse: "Meus irmãos, Cristo morreu por nós", e ela, atenta a limpar o na parte de cima, esgueirou-se e caiu em baixo, ficando presa de cabeça para o chão pelas garras de enorme candeeiro ao centro da sala. O pastor, enciumado ao ver as pernas da criada a descoberto e com tanto mirone a olhar para a cena, gritou: "Meus irmãos, quem olhar para cima fica cego de uma vez". Nisto, ouve-se uma voz do fundo: "Ó caraças! que fico cego fico de um olho". O esperto tinha a mão a cobrir-lhe uma vista.» - Azevedo caiu em cima do sofá e desatou a rir como um perdido. E ainda falaram dos tempos da Metrópole e de quando se encontravam na taberna do Rato, os atiradores do sexo se transformavam em pistoleiros de cama; contaram também a história
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de um guitrrista que, um dia, ao executar um concErtO deu um soluço e deixou escapar um peidÓ para :fora.enganando o parceiro da viola
que parou o instrumento. Depots de contar os contos 'na língua portuguesa
I  ."                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         '
Azevedo  Recitou  um  código  em  inglês,  para  que os  criadqs não
entendessem ·as palavras. «Louise 's/House is in.city of Oporto», -iniciou .
,«N,eA,r famous  railwAY:station of Campanhã..T he Prado do Repouso
CEMETERY, deep and wide, is néar its walls on the northern side....»1
O amigo anotou o endereço num apontamentÓ. A chegada da Sr.ª Marques e do filho à sala alterou o rumo das conversas. Momentos depois, foi servida a refeição e sentaram-se à mesa. A criada Limpopó sorria de satisfação para as visitas, perante o olhar sagaz do seu patrãO desabafando a dizer que não havia pior dor nos pés de que crosta que se instalava ·na pele. · ·   ·           . ,         .
«Oh; meu Deus, às vezes apetece-me comeR os calos, disse ela. -       .
«DEsculpem lá, estão.a comer.não se FALE disso.» ,- E afastou-se antes de levar um raspanete. . .                                                 .                                                                                                                                                              '

«Então? Como vai isto por estas banda.s?» - pergunta .a Sr.ª Marques a Azevedo que respondeu; «Com a mesmA SERENIDADE  de sempre.
Enquanto houver pedras e material par·a ·levar .para Lisboa, não vou regatear  esforços.»            ·           ·   "            ··          · ·         .           ·           ··  · '    ·
«Então deiXE-SE estar que es. bem. Ao fim e ao cabo, não tem mulher Nem filhos para o chatear, por conseguinte, aqui está no céu.» - Concluiu a  Sr.ª Marques.          
Mas Marques mostrou-se pessimista. «Tu como eu», - disse ao amigo, -
«devemos é' preparar o caminho para nos' pirarmos daqui, antes que            .
apareça por algum matumbo e nos corra à vassourada,»
h .,· ....'    :. ,. '                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            '                  ··  ·."      l;. ' '
Azevedo, na sua lábia destravada, comenta. com ironia .. «.Tu não sabes o que dizes. O preto é bazola e, na hora de começar o fogo, caga-se todo que nem sabe onde esconder-se.
A conversa acabou numa risada total.

.

E turistas estrangeiros em busca do mistério africano, essa raça de aventureiros que vão à caça dos diamantes e matam crocodilos, sacando-lhes a pele para vender na Europa a bom preço. Quando viam a jovem princesa Masquecu e a forma como ela balanceava as suas ancas, os visitantes ficavam com o credo na boca e muito deles punham-se tesos como barrotes a olhar para os guerreiros de lanças afiadas e perdiam o desejo de lhe mandar uma cantada antes que ficassem sem o pescoço.
Os aldeões passaram com uma série de cartazes publicitários onde a beleza indígena fora pintada em dupla criação, ao lado dos dizeres que proclamavam: As nossaspretas são tão boas como as brancas, ou como as inscrições nos cães que expressavam: o melhor amigo do cão é 0 cadela, que deixa fazer zuca-zuca, e coisas de outro teor. Depois, chegaram-lhes aos ouvidos que certos grupos homossexuais tinham feito declarações denunciando que também eles, para atrair as atenções do público, iam distribuir panfletos -  Masquecu apanhou uma grande quantidade deles na estrada -em que diziam que o «Sexo é livre», ou comem todos, ou não come ninguém. E mais: «A tradição não é o que era. Nada se esconde e tudo que é dado por amor é mais saudável e saboroso.
«Não vai haver incompatibilidade entre os sexos», - anunciou a radio local, dando mais força ao prazer.

À medida que o cartaz publicitário de Masquecu se aproximava de Ossada, o subúrbio mais longínquo da grande metrópole do rio Zambeze, por onde a jovem princesa e o seu cortejo passavam, a comunicação social, os políticos e a polícia triplicaram as suas visitas. A princípio, a polícia limitou-se a ver a moda a passar; os políticos, por sua vez, consideravam que isso seria benéfico para a propaganda da mulher africana. E, por último, os repórteres que andavam entretidos a tirar os bonecos às divas da beleza indígena, diziam com optimismo. «Isto é o melhor que se viu.» -
O subúrbio de Ossada devia a sua origem à presença de importantes armazenamentos de esqueletos humanos nas suas terras. Ora acontece que os seus habitantes, homens que passavam a vida a açambarcar ossadas para as suas tumbas - e «apreçavam» esqueletos, poder-se-ia dizer - estavam loucos com a ideia de que um cortejo desses pudesse trazer boas ossadas para os armazenistas de esqueletos. Os cartazes dos primeiros grupos a aparecer tinham deitado água na fervura dos desejos

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deles, uma vez que eram crianças de menor idade, implorando aos matadores a salvação do esqueleto. E, em consequência disso, ao gesto de imploração dos putos, uniu-se uma multidão com bandeiras e cabeças de esqueletos na mão que reclamavam: O MELHOR BRINQUEDO QUE UM NETO PODE TER É UM AVÔ, PORQUE NÃO GASTA PILHAS TUDOR.
Depois de passar por Ossada, de tarde, Masquecu fez uma nova demonstração da sua beleza ao dançar no palco, com o conjunto de músicos, a dança do merengue. «Animem-se», -berrou com força. -
«África é só uma.» - O músico do batuque murmurou ao ouvido de Masquecu. «Mais vale sê-lo do que parecê-lo.»

Azevedo, explorador de pedras do Zimbabwe, proprietário de uma abastada fazenda, cujo dom era a criatividade e a frontalidade com que enfrentava as situações, patrocinou também o cortejo de Masquecu. Como fiel amigo de seu pai Mindungo Gu, cuja amizade remontava aos tempos que, pela primeira vez, viera para e se instalara na fazenda, sentia-se capaz de tudo por amor à arte. «Eu sou um homem forte», - confessou ele a Masquecu. - «Eu vi-te crescer e ajudei-te nos teus momentos de fraqueza, mas não sou capaz, como é que eu  hei-de explicar, de ir para a cama com uma preta, se me entendes?» - Masquecu cumprimentou-o com ar infeliz e Azevedo, ao vê-la afastar-se, com olhar enfadado, procurou animá-la com um sorriso. «Toma isto que mandei vir de Portugal.» - E tirou, do bolso do casaco de antílope, um vibrador de alumínio todo espelhado à volta.
Nessa noite, os acompanhantes do cortejo deixaram-se ficar pelas redondezas, enquanto os fiéis rezavam as suas orações. Tinham sido autorizados a ficar nos antigos campos de raguebi, vigiados pela polícia militar. Masquecu não conseguia dormir. Pensava no brinquedo que Azevedo lhe dera e numa coisa que ele dissera: que, sendo homem branco em carne e osso, em espírito «sou demasiado sensível à pele, desculpa lá, mas é verdade. Eu não sou racista mas, nesse ponto, sou. Devia era ter feito uma operação e capar-me antes de vir para cá e voltasse a ser um homem normal quanto estivesse do lado de lá -
Também nós, respondeu a provocante Masquecu ao negociante de diamantes, sofremos na família de uma espécie de doença; a doença de ser
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estéril e .da necessidade  de termos que fazer amor todos os dias. Se
pudéssemos, ao menos, perdermos o tesão durante a metade do ano, ou,
pelomenos, não sentirmos comichão, vivíamos mais felizes dentro do nosso espírito. Assim, não. Temos enorme dificuldade em lidar com a realidade dos factos.
O que equivalia a dizer que lhe custava a aguentar a pressão sempre que estivesse diante de um homem pronto a aquecer a ilusão; mas nem sempre resultava. Quando a comitiva de Masquecu se preparou para partir pela manhã bem cedo, as nuvens do céu que as acompanhavam desde Mazoa dispersaram-se de repente e descobriram um céu que se carregava de outras nuvens bem cinzentas e até escuras. E o grupo das criancinhas -o corpo de elite de salvação, por assim dizer -levantou arraiais, bem antes de começarem a cair os primeiros pingos de chuva. O fim do cortejo fez renascer a alma de todos os caminheiros; por isso, apesar de algumas contrariedades, levaram o caminho todo a cantar, ao encontro das suas casas.

A tribo do Sexo é livre tinha organizado um festival de sexo invertido numa zona florestal, cheia de barracas de ambos os lados com comes e bebes, e tinham também bloqueado as entradas possíveis os estranhos e polícias e fizeram um dia dedicado -ao orgasmo do Pitéu -e estavam grupos de vários pontos do país e do estrangeiro. As lésbicas também tiveram o seu momento alto, dançando com a língua de fora ao som das trombetas e, quando chegou ao acasalamento de grupos, para das fantasias eróticas possíveis e imaginárias, dos vibradores às vaginas superficiais, ouviu-se oribombar de um trovão e caiu do céu tanta água, que parecia até um oceano. Assim, a sessão do sexo ao ar livre terminava demasiado cedo para satisfazer os prazeres de todos os grupos; posteriormente, muitos daqueles tarados pensaram que os deuses tinham estado a estudá-los e enviaram-lhes aquele chuveiro de água apenas para lhes refrescarem o abaixa-a-tola, deixando-os na terra, porque ainda não era chegado o Dia do Juízo Final.

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A força aterradora da chuvada enervou tanto os homossexuais como as lésbicas. Na confusão da retirada, fez-se ouvir a sirene da polícia. Era a buzina de uma carrinha Toyota que o motorista conduzia a grande velocidade atirando as barracas abaixo e levando à sua frente tudo o que apanhava a jeito de semear, desde cachorros fritos, abóboras cozidas, bandejas de biscoitos com latas de seven up, bugigangas penduradas às coberturas das lonas, até chegar ao local onde estavam as barracas de dormida dos visitantes. o condutor levou o prego a fundo e foi um se te avias, com toda a gente a correr em desalinho, pelas ruas dos cesteiros em todas as direcções.
Quando chegou ao cruzamento, o motorista travou violentamente e a polícia, de cassetete na mão, saiu a correr atrás dos  provocadores e prendeu alguns, puxando-os para dentro do Toyota, num turbilhão de pernas, palavrões e cuspo. Pouco tempo depois, a carrinha abandonou ·o local, acelerando, na tentativa de deitar a mão a mais alguns que se tinham pirado à má fila.
Dentro da carrinha, os corpos amontoados numa confusão enraivecida.·
A lésbica, de nacionalidade francesa, insultou o polícia aos gritos:
«Gendarme de la merde 1 - Ao que o parceiro ao lado, um alemão, concluiu, sarcástico: «Geistesarmut 2• » - E o americano, enfiando a cabeça por entre aspernas invertidas de urina chinesa, acrescentou, babando saliva:
«There are gays bom every minute.3» -
A chuva parou e um sol airoso iluminou um desbastado cenário.de lixo e de desarrumação total. As ruas estreitas eram agora canais por onde viajavam destroços de toda a camada de lixo à deriva ao encontro de bueiros entupidos. A rede de esgOtos da cidade estava completamente superlotada. E os homens do saneamento, dentro em pouco tempo, iriam ver-se mergulhados numa maré lamacenta que lhes chegava aos pés. Um cão passou a nadar pelo cruzamento da barricad'à desfeita e, por aqueles sítios, se ouvia o ruído húmido da cheia, cujas águas embatiam nos carros abandonados, enquanto as crianças brincavam e aprendiam a fazer barcos de papel (atirando-os à água, numa gincana a ver quem chegava mais depressa. ·          ··· ·   ·   ·     · '··   ·  ·  ···      '  '    '         '         ·   ·                L•
Depois as pessoas voltaram.

Do alto da colina, não muito distante dali, Masquecu seguia com a sua comitiva no carro a grande velocidade, depois do tempo ter melhorado e o sol aparecido. Até que numa estrada cheia de curvas, depois de descer uma encosta, resolveu mandar parar o carro junto ao portão da fábrica das rolhas.
«Ü que vais fazer?», -resmungou o motorista, perante o olhar atrevido de Masquecu que respondeu: - «Espera um instante. vou fazer uma coisa que me compete a mim e não demoro.» -
E entrou no portão da fábrica. Via-se claramente, através da entrada da fábrica, que os rolheiros, com medo à chuva, haviam feito gazeta e não apareceram ao trabalho.
«Maravilha. Veio mesmo a calhar», - disse excitada Masquecu. -
«Enquanto aqueles pategos esperam, eu vou ali à retrete dos homens experimentar o vibrador de alumínio. Belíssima ideia. És uma águia.» -
Mas os acompanhantes não se fartaram de esperar quase uma hora, como também se puseram aos berros, gritando por ela. Foi nesse preciso instante que se deu a ejaculação de Masquecu que, depois de se ter imaginado na cama com o rei tribal Manduca, perdeu de repente a imagem e andou aos papeis de vibrador na mão, durante segundos, à procura de uma ilusão forte, até que os gritos dos acompanhantes a assustaram e pensou que ia haver guerra e logo se realizou. Então Masquecu fechou os olhos e recitou na voz cantada dos peregrinos:

O amor é dar e receber,·
É uma moeda de duas faces, Quando não se tem uma,
Que remédio, senão ficar com a outra.

Masquecu apareceu de cara exausta e suada até à pele, à beira da estrada, enquanto o carro da comitiva chegou em grande alarido ao pé dela, para prosseguirem viagem. O motorista irritado, abanou a cabeça:
«Demoraste tanto tempo para arrear o calhau?» -
«Depois do comer e do foder, é a melhor fonte de prazer que temos de enviar um «telegrama» para a terra.» - Respondeu Masquecu.
Foi assim que Masquecu acabou por terminar a sua aventura excitante

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e abandonou o carro da sua querida comitiva, junto à aldeia de Mazoa, e se juntou  à sua gente.

Os varredores, enlameados até às galochas, viam-se gregos para limpar as ruas daquela imundice e lentamente a água começava a varrer toda aquela estrumeira. «Custou , mas estava a ver que não nos desenrascávamos daqui para fora», -disse o chefe da limpeza. - «Vá lá, não morreu ninguém com a cheia.» - Chegou o rosto ao buraco do bueiro.
«Que fedor este!» -
«Olhai 1», -disse um deles.
De todos os ângulos, das pequenas janelas e montras das lojas, os raios de sol eram tão fortes que limparam toda a merda existente ao redor da pequena cidade. Apesar da potência do raio quase cegar, os mais curiosos fizeram um binóculo com os plásticos partidos olhando por baixo de uma sombra. Os habitantes observavam o milagre, ficando todos, mesmo todos, apavorados, pelas janelas e buracos das suas casas, à medida que a cidade ganhava mais cor e se reconstituía um autêntico arco-íris.
«Se eu não visse, não acreditava», -exclamou o chefe da limpeza. Mas foi verdade. Todos os habitantes que assistiram, sem excepção,
ficaram com que contar aos seus netos, se um dia lá chegassem. E não faltou, mais tarde, quem dissesse coisas mais estranhas; que, quando soou o primeiro trovão no céu, apareceu a imagem da deusa do barrote queimado apregoando: Não viciem os sexos e não troquem os buracos do prazer. Muitos olheiros disseram que viram escrito o mandamento de Moisés Não cometerás o pecado a esvoaçar à volta deles. Alguns acreditavam mesmo que tinham visto chegar o Profeta Noé e que o raio o tinha apagado da imagem.
«Não sejam estúpidos», -gritou uma aldeã. -«0 sol limpou-nos; varreu a merda daqui para fora, por isso não admira que estejamos todos tão limpos.» - «Ponha uns óculos, velha aldeã», -disse-lhe o chefe do serviço da limpeza, num tom azedo, diante de mais de cinquenta homens, mulheres e crianças, ali presentes. - «Por tu seres mirolha e veres mal, não somos obrigados a aturar a tua estupidez.»
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Após umas semanas do cortejo terminar, a aldeia de Mazoa rodeava-se de novo da tranquilidade e pacatez do seu povo. Ao longo das sanzalas havia zonas onde os habitantes podiam jogar à pedra, fazendo pequenas apostas. Reinava na aldeia uma enorme expectativa; todos os dias, quando os jogadores se punham a jogar, raro era que alguns simpatizantes ou espectadores não levasse uma pedrada na pinha. E as claques mostravam-se hostis e sarcásticas mas, na hora da dor, muitos traziam   e, chã de cogumelos e farinha de burro podre ejeropiga.
Mindungo Gu, paciente e bondoso, mergulhara num estado de profunda vaidade ao saber que sua filha, a princesa Masquecu, tinha  conseguido convencer as altas figuras da região com a sua capacidade física e beleza africana. E mais. Tinham-lhe dito os aldeões de Mazoa que as belezas típicas africanas ainda estavam por descobrir. Assim o   dizia um velhote da aldeia, com bom conhecimento de causa. «Uma mulata, e coca-cola e um gira-discos, Africa é um mundo!» -
«No meu tempo não havia essa bebida estrangeira. Era chá preto e servia muito bem para os intestinos», -respondia o Soba com um encolher de ombros.
Chegou o domingo de manhã e Masquecu deixou-se adormecer e teve que fazer uma corrida para participar nas orações do dia. quase se esquecera de todos as rezas africanas mas outrora era uma águia para as decorar. Mal se lembrava quando devia sentar-se ou ficar de pé, em que página é que começava a ler o livro, quando cantar, quando pôr o peito no chão e não apertar os seios. Acompanhou a cerimónia atabalhoadamente e com um sacrifício que, no fim, quase desmaiava no chão.
Quando os membros da congregação religiosa começaram a sair da pequena capela de tijolo vermelho, ouviu-se um alarido de um canto da sala         das          confissões.          Uma beata foi investigar.
«Donde é que vem esse barulho?», -perguntou, abrindo a porta da                    d
sala.                                                                                                                          e
Depois viu Masquecu a ajeitar a saia, muito corada, deitada na sala.                           I
E o barulho deixou de se ouvír.                                                                                   i
Quando saiu para fora, era legítimo que ela dissesse qualquer coisa                      a
e não fez a coisa por menos. Disse, um pouco hesitante, que o barulho                                     I
que se ouviu era derivado a um pequeno rádio que levava consigo para
ouvir música, e conseguiu convencê-la . Depois, a beata apareceu à porta                       1
e a seu lado vinha Masquecu, estéril, cuja fama se espalhara pela
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aldeia. Entretanto, os missionários de Mazoa prepararam-se para seguir aos seus destinos. Masquecu, agora um pouco branca como a neve, estava demasiado enfraquecida para dizer qualquer coisa. E seu pai, como sempre, fez ouvidos de mercador erecusava-se a discutir. «Se não formos fortes connosco mesmos e deixarmos que o vício nos domine», -disse aos aldeões à laia de aviso, - «não nos admiremos que Deus nos castigue e, depois, vamo-nos queixar ao Papa!» -
Os missionários estavam perfilados em linha indiana fora da igreja, pintada do lado de fora a branco e de azul do céu por dentro e, no altar, uma imagem da Nossa Senhora dos  Remédios. Depois do aviso de Mindungo Gu, retiratam-se para as suas fainas seguindo em grupos de três e quatro componentes de cada família. Masquecu, pressentindo que ia ser chamada à atenção pelo pai, decidiu enfrentá-lo primeiro. «Não estás aborrecido comigo, pois não? -disse amavelmente, -bem sabes que me descuidei. Gosto de música e estava no meu programa de discos pedidos pelos ouvintes.
Mindungo Gu bateu palmas, contente, e desatou a rir com gargalhadas fortes e ressonantes. «Por favor, não me faças rir», -disse ele. - «Eu sei que és uma coca-bichinhos, mas não me venhas com essa fita americana para cima de mim.» -
E, um atrás do outro, seguiram em direcção à aldeia, cochichando pequenas recordações das atribulações da caminhada, durante o cortejo.
Caiu a noite. Azevedo aproximou-se com o jipe e bateu palmas chamando a atenção dos aldeões de Mazoa que estavam reunidos à volta do seu Soba, Mindungo Gu e falavam sobre as colheitas. Talvez um terço de colheitas ainda pudesse ser salvo. Azevedo estava de partida para a caça nocturna, com um sorriso a brotar-lhe no canto do lábio esquerdo. E, num recanto afastado do pátio acizen tado da zona de divertimento infantil e azul celeste de iluminação fluorescente, o feiticeiro Zambi estava acocorado a falar sozinho. A luz de uma lua, a mudar de fase de quarto minguante para quarto crescente, acabava de os banhar, lenta e fria.
«És um homem de sorte», -disse Zambi. -«Escolheste bem a hora de ir à caça.» -
Foi então que Azevedo fez uma proposta assumida dum compromisso.

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«Se fizer uma  boa caçada,  está combinado,  metade é vossa.» Mindungo Gu escutava-o com atenção. Azevedo prosseguiu: «Por isso, reza aos teus santos para que o teu prenuncio não saia furado, senão, nem um osso duma vaca reles vós comeis.»
«As pessoas confiam em mim e os deuses dão-me sorte», - disse Zambi.
«As pessoas não sabem o que dizem», - respondeu Azevedo. - A verdade é que tu deste a esta gente uma experiência espiritual positiva profunda, disso não discussão. Portanto, a minha palavra mantém-se. Assim farás um milagre em proveito de todos, isto evidentemente, se eu também não errar os alvos a abater.» -
Zambi conteve a respiração.
«Disso também eu vou tratar.» - Disse Zambi.
«Então trata», - encorajou-o Azevedo, muito soberano. Fala com o teu Deus e diz-lhe que, se ele falhar, é porque quer que vós passeis granizo no bucho .»


O feiticeiro Zambi sabia de antemão que quando Azevedo partisse para a caça eram favas contadas , pois o poder dele errar o alvo era nulo, e até o vira tirar uma pata a um sardão com um tiro de uma espingarda Mauser. -Mas ele não vai falhar -Nunca falhou, porque é quer havia agora de falhar? «Nestas alturas, falhar é desumano», -disse ele para consigo. Parece quejá estou a ver os meninos à volta da lareira a chupar os ossos, e os aldeões a esfolarem a peça da cabra ou do cabrito, tanto faz.» -

Zambi, de noite, foi por entre as sombras do pátio, deitando-se e pondo-se de barriga para o ar. Depois, levantou-se, para andar aos saltos de canguru de um lado para o outro. Havia nele uma crença acompanhada duma grande incerteza. Depois veio o cansaço e ele pareceu desaparecer nas sombras da madrugada.
Regressou de manhã cedo.
Depois de rezar a primeira oração da manhã, perguntou ao seu espírito se podia falar-lhe; e ele, hesitantemente, acedeu.
«Na noite passada fiz um acordo», - disse. - «Prometi àquele branco
marado que ele não erraria o alvo, mas ele pôs em dúvida o meu poder.

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Agora, se ele errar, o que vai ser de mim?» - O espírito respondeu: «Só urna boa caçada pode calar essa dúvida.» -
Tinha conseguido captar-lhe plenamente a atenção. A seguir, contou-lhe o que Azevedo sugerira na noite passada. «Ele disse para eu rezar ao meu santo, mas não é preciso», -exclamou. - «O que é que ele sabe da nossa religião, para estar ali a cagar postas de pescada? Nada. Então que espere para ver.» -
«Está descansado porque, quando a caçada começar, vocês terão fartura de carne», -concluiu o espírito, «e reza a tua oração espiritual».

A selva estava escura quando o jipe de Azevedo subiu por urna lomba que ladeava o Morro dos Mamíferos, cujas árvores estavam cheias de passarada a dormir com as suas crias -quando o motorista do jipe sentiu o asfalto da terra húmida e escorregadia ranger debaixo dos pneus, transformando-os em pasta enlameada. - Quando deram conta, circulavam sobre um areal de cocos podres e cascas de banana abandonadas e bostas de burro velho, andavam sobre terra avermelhada dominada por altos morros de troncos inclinados e por matas em blocos espessos. E a selva calminha como o deserto. De vez em quando, ouviam-se  chacais  uivando ao vento. Os mochos eram os únicos pássaros que se viam em cima das árvores.
Ao fim de um bom bocado de terreno percorrido, os dois homens atrás no jipe estavam cansados de irem em e de tanto erguer o holofote, prá aqui, prá ali, prá acolá. Azevedo ia sentado ao lado do motorista, de espingarda na mão, e auxiliava-se dos binóculos de longo alcance para detectar a presa. Teve a impressão de que tinha visto atrás de uma árvore uma onça a espreitar e disparou um tiro, -e por entre o matagal, viu um animal de pequeno tamanho, acocorado, muito quieto, ou a fazer trampolim, -e eles contemplaram, pela primeira vez nas suas caçadas, um estranho fenómeno.
Azevedo, acompanhado de um homem da sua segurança, correu na direcção do animal e, ao aproximar-se do local, perdeu toda a alegria, pois afinal, não era urna onça mas, sim, uma seixa (tipo coelho) e a bala fizera ricochete numa pedra e o animal encostara-se, nem dando um ai de dor. Depois, ficou furioso consigo mesmo por se ter enganado e regressou ao jipe.
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O senso comum de Azevedo dizia-lhe que seria um dia em cheio para a
caça nocturna, que tinha vindo de tão longe e estava à vista o seu segundo
objectivo. E a nova certeza enchia-lhe o espírito de forças. Era como se,

pouco a pouco, se transformasse na personagem do Indiana fones, pois

agora, que oimitava de chapéu à vaqueiro e chicote na mão, parecia mesmo um aventureiro, no verdadeiro sentido da palavra.
Quando avistou um grupo de veados, reparou num deles, coxo; trôpego e cheio de reumático, de olhos verdes. Azevedo gritou para ·o homem que segurava o holofote.
«Ilumina-me aquele cabrão da ponta.» -
O raio de luz acompanhou o animal, no alto de um morro, por cima das cabeças  deles.
«É agora!», - gritou-lhe o motorista Tokami e Azevedo ·dísparou,
dominado pela ideia quê, desta vez; n.ão se tinha enganado . Ouviu-se o barulho do tiro 'sob os olhares dos homens que respiraram fundo.
«Vai buscá-lo; antes que ele fujá. Exclamou Azevedo.
E um deles saltou do jipe e trep·ou, com o auxílio do raio de luz, para
cima de uma tampa de fossa e apanhou o animal moribundo, deixando atrás de si um rasto de sangue que se perdeu pelo chão.

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