O prédio por cima da taberna do Rato era de dois andares, de tijolo
e cimento, pintado a cor branca e janelas forradas
de caixilharia de madeira, uma construção citadina
dos anos 60, suas linhas assim eram consideradas harmoniosas. Não havia elevador e a porta era de alumínio,
vidrada, e dava para uma escada que só terminava
no segundo andar. Havia um andar para alugar no primeiro direito.
Esse andar andou anunciado através
das agências imobiliárias e acabou mais tarde por vir a saber-se
que fora alugado
a uma pessoa, uma mulher do
seus trinta e picos anos, sardenta, cabelos
loiros, e trazia
várias raparigas de aspecto
duvidoso consigo. A versão oficial
do agente da imobiliária foi que essas pessoas eram camareiras mas, segundo uma observação ocular, faziam-se em horas normais
uns «trabalhos por dentro»
com clientes pescados nas casas nocturnas, uma vez que a inquilina, a mulher loira, era especialista de massagens no andar que servia para o
efeito. Os motivos de desconfiança por parte dos vizinhos levou a polícia a inteirar-se a sério da verdadeira actividade dos locatários. E logo meteram mãos à obra. Um «tiro no próprio pé.» foi, no entanto, a decisão
mais correcta.
O chefe da esquadra, Alves, ao inteirar-se da situação em que se encontravam os factos, estabeleceu uma «ligação» entre a brigada
à paisana, as camareiras
e alguns clientes
da taberna do Rato, sendo a
mulher loira a principal culpada
da prática de prostituição. E enviou dois dos seus homens como <isca»
ás massagistas, que logo trataram
de os enviar para o quarto,
sendo recebidos pela mulher
loira que os mandou
pôr à vontade.
267
Era possível que ela
tivesse exagerado um pouco no seu trabalho de
mãos, que era a sua especialidade, embora o seu procedimento se coadunasse com outras intenções,
que não passaram despercebidas aos clientes. No fim do trabalho, -ambos os guardas
depois de devidamente identificados -deram uma busca às instalações e apanharam mais dois casais em exercícios
de massagem completa.
Era também possível
que as outras duas massagistas tivessem
exagerado no trabalho
de mãos. Os clientes, depois
de identificados, foram embora; e o mesmo aconteceu com as camareiras que entraram no carro patrulha
em direcção à esquadra
para averiguações. Que a casa de massagens fôra de origem habilidosa, era um facto consumado. Grandes dores de cabeça na vizinhança
causadas, nas trocas das campainhas das portas, dos telefones e nos enganos
das fechaduras.
l «Essas pessoas não têm responsabilidades para com o próximo e I pouco se ralam se são incómodos ou indesejáveis.» - Declarou a vizinha
do andar esquerdo ao chefe
da esquadra, cansado
de tirar apontamentos.
O andar ficara vazio e mandado limpar, permitindo ao senhorio o direito
de o voltar a alugar com novos
inquilinos.
«Esperemos ter sorte na próxima vez.» - E foi assim que se passou.
1 Mas ainda
não está tudo dito.
Tenho mais
algumas questões, pelo menos -Por exemplo, acerca
de uma frase que serviu de código de entrada para os guardas poderem entrar à vontade
sem serem bombardeados com perguntas curiosas
da praxe. Acerca da senha do código, utilizaram eles uma frase
de entrada nas instalações quando a mulher
sardenta e loira
abriu a porta
exterior: - Vimos do mando de Rato-Ratão -
E, por fim, resta acrescentar que o olho humano não tem grande dificuldade em espreitar através
de uma clarabóia do prédio
em frente. O chefe AIves? Encontra-se no gabinete. Não. Já saiu para o comando
e não tem respostas a dar a ninguém.
E aqui aparece o Sr. Champalinas, com o seu sobretudo de camelo e gola
de pele de borrego, descendo
a Rua Santa Catarina com o seu andar
de burguês, como um fidalgo de primeira categoria.
268
O mesmo Sr. Champalinas que acaba de passar o fim-de-semana na sua
quinta (ninguém, pelo menos, ainda
conseguiu saber onde
ela se situa) a andar de jerico disfarçado de cavalo na companhia de uma jovem daquelas conquistas fáceis -uma vamp da vida nocturna -que aprende a montar, um tanto
desajeitadamente, sem ter o equilíbrio certo. «Olha para os pés do animal!», - disse
Champalinas de lado,
- «são achatados, parece
o Pamplinas a andar.» -
Champalinas já deixara
de ser tão importante. A sua condição
de homem ricaço é demais sabida mas, às vezes, nem sempre tem cacau e deixa
um calote pregado
nos livros do deve-haver
que assusta muitos comerciantes. Ele·praticamente gastou metade
das promissórias bancárias que algum dia sonhou
ter; gozou como um
desalmado, brincando com o
dinheiro a troco do amor fácil. E
fê-lo aproveitando as suas performances de fidalgo
da Casa Mourisca,
ferindo muitas vezes
o seu orgulho de frustração - todos temos o calcanhar de Aquiles. -
Todavia, eis que chega o Sr. Champalinas ao consagrado café Majestic
para tomar o seu café da manhã. Um pensamento enche-lhe o coração de ânimo. Depois de sair
do café, dirige-se
a uma ourivesaria em frente e estaca de repente, diante do empregado, com um relógio na mão. «Por favor, estava interessado em fazer um intercâmbio, trocando
o meu relógio, de marca Acorda, por
um outro de marca Longines
de senhora que está
ali na montra?» -
E o empregado
olha, estupefacto, para o relógio
na mão dele e exclama: «Desculpe, que marca é que disse?»
-
«Não me diga que não conhece
esta marca?», - como o empregado
estava pensativo, ele prosseguiu: - «É uma marca
internacional no mundo da moda;
foi uma criação
do grande estilista Monsieur Pêndulo.
Custou-me 200 contos, enquanto
o que está na montra custa somente
70 contos, mas eu não me importo de arcar com o prejuízo. É para oferecer à minha
namorada.» -
Após dez
minutos de conversa, o empregado
mal dá que está a ser
vigarizado; e olha
fixamente para o relógio.
Depois faz a troca e Champalinas vira as costas e sai para a rua. E vai
directo à loja de perfumaria, ali mesmo no correr
da rua, e fala com uma
jovem dentro do balcão que sorri para ele. «Minha
querida», - diz o romântico Champalinas. - «Trago aqui uma surpresa para si.
Vou provar-lhe
269
de quanto eu gosto de você.» - A cara dela corou.
Ele abre o presente e a jovem
solta um oh! que coisa
linda e um brilho reluzente enfeitiça o seu olhar. Está nopapo, pensa ele.
O coração dela
está a bater, bum,bum. As pancadas saem altas demais. Impossível raciocinar.
«Não quero que fique nervosa», -diz ele meigamente. -
«Sabe
que eu quero vê-la sorrir?»
- E o coração dela recupera mais
rapidamente do que ele pensara. Apertou-lhe a prenda
na mão dela,
fazendo-a corar da ponta
dos cabelos aos pés. Bum,
bum, canta o coração dela
com mais vigor.
Champalinas pisca-lhe
um olho e sai para a rua a trote de uma centena
de ideias na cabeça. Aquela miúda punha-lhe a cabeça numa fona. Ergue os
olhos para as montras e sorri para as empregadas. Sabe, no intimo, que é bem menino de as galar
a todas com a sua irresistível
capacidade
de conquista. Cruza
os braços num gesto de pura lata. A empregada da
l loja dos botões
evita o olhar
dele mas,
ao mesmo tempo,
não consegue disfarçar um sorriso tentador.
Agora é Champalinas a ficar com o coração a
bater, pum, pum. Recua
e respira fundo. Não sabe as horas e volta de novo a olhar para a empregada dos botões. É o homem das Mil Conquistas, e não lhe escapa uma.
Champalinas ganha mais uma ideia.
E o que acontece quando
a conquistar?
Quando a tiveres à mão de semear, o que farás,
então! Possivelmente a deitarás abaixo.
O compromisso é a tentação
dos fracos mas tu és um homem
forte.
«Minha querida», - diz
Champalinas, maneando a cabeça para a empregada. - «Preciso de uns botões em pele
para um casaco de trespasse que trouxe de Londres. Acha que é capaz de os arranjar?» - E a empregada, ao olhar
para os olhos dele, não pode esconder
uma certa simpatia
que o seu olhar sente.
«Eu vo...»,- começa a dizer e engasga-se.
O que é que vai ver? Entretanto ela já se tinha afastado e demorou
alguns minutos a voltar.
«Não me disse a quantidade?», -pergunta ela e ele,
depois de sorrir, faz um gesto pensativo. - «E isso
é importante? Só me interessa saber se
tem os botões, porque depois
vou trazer-lhe cá o casaco
para me pregar os
botões, valeu? Estou
a brincar consigo, não leva a mal. Posso
oferecer-lhe uns bombons?» -
270
Agora, nos olhos dela, há poças de chamas a arder. Em breve ele sai da loja e, passado minutos,
volta a entrar com uma saca de bombons
cheios de promessas. Ela vai tratar de pedir os botões , porque não os há na loja. Champalinas tira também um bombom e passa a língua pelos lábios. «Tenho muito prazer em conhecê-la. Chamo-me
Champalinas e não a vou largar, enquanto
não me arranjar os botões.»
As mãos deles cruzaram-se. Mais chamas vibraram
nos olhos dela. Champalinas parece
ter a coisa bem
encaminhada. Repete com um olhar de
galã.
«Na próxima vez, juro-lhe que lhe vou trazer uma caixa de bombons da China, de creme de minhoca, são uma delícia, minha querida.»
-
Será possível que um verdadeiro Don Juan nunca aceitasse
ser derrotado numa conquista, mesmo que ela fosse por mero
acaso?
Pensem o que quiserem mas, no caso deste incorrigível conquistador de mulheres, ele procurou, sempre sem remorsos, seduzir da mais vil das mulheres à mais sã e inocente criatura e servir-se delas, pelo menos, em
parte devido ao desejo de voyeur que tinha.
E, no entanto,
esse conquistador arriscou
o seu poder de sedução, quase de caras, numa temerária tentativa
de amar, até então, mas sem o conseguir.
O que isto quer
dizer?
O amar é u m desejo louco que
prende esta alma e a tentação carnal invade-o num circuito de pensamentos eróticos
que não o largam.
Há coisas mais urgentes a cicatrizar do que essas maluqueiras
de há pouco.
Que escolha fará Champalinas?
E será que, uma vez na vida, saberá por onde escolher?
Champalinas apanha o cigarro que cai ao chão. Coloca-o
na boca. Champalinas que,
para além de não ter
horas também não tem isqueiro, vai pedir lume ao primeiro fumador
que vê passar
por ele. Uma pequena chama acende-lhe o cigarro e ele aspira
para o ar, uma fumaça
de fumo de cor da neve, infiltrando o resto no nariz e passando
aos pulmões. Agora, Champalinas começa a circular pela rua ao encontro
do local onde estacionara o seu carro,
soprando pequenas quantidades de fumo pela boca,
cheirando a bafo de tabaco
que tolhe.
271
E passa
à porta dum café e aproveita para tomar odigestivo
da manhã;_
um whisky
de oito anos
em cálice de balão com um pedra
de gelo. -
iE é assim que, numa manhã em que a cidade
está invadida de gente
ansiosa por fazer
compras e outra gente ansiosa
por vender, assistimos a
uma pequena demonstração dum conquistador à procura do amor fácil.
A MAGIA A FRICANA
VII
Azevedo, o negociante de relógios de ouro e diamantes, tinha o velho hábito, quando se chateava
com os amigos, de chamar
preto fosse a quem fosse, dizendo-lhes que um dia, quando o mundo perdesse
as estribeiras, os pretos ocupariam o lugar na cadeira dos brancos. Os amigos acolhiam estas
ironias com tolerância, sabendo de antemão
que o seu optimismo, sempre bem-humorado, era bem aceite
pela maioria, embora houvesse
quem olhasse para ele de lado, pois sabiam que os
pretos para ele estavam abaixo
de cão.
Chamavam-lhe o Grand
Canyon, lá no Zimbabwe, a cerca de vinte e cinco
quilómetros do Fort
Vitoria, no local
onde se erguia
a antiga capital de Monomotapa. Havia uma aldeia de nome Mazoa,
onde Azevedo vivia confortavelmente numa casa de madeira de oito assoalhadas, lendo calmamente as noticias
que vinham no jornal da região, enterrado numa poltrona forrada a pele
de bilontra, resguardado do mundo por uma
espessa rede metálica - além de quatro cães de raça indiana e de
alguns homens de cor da sua segurança
privada. A criada,
de nome Limpopó, tinha quase sessenta
anos. De aspecto
rechonchuda e andar bamboleante como a avestruz, tratava da cozinha
e passava a vida a assobiar. Por conseguinte, quando
encontrou o patrão
na cadeira com
o jornal na mão,
deixou de assobiar
e foi-lhe buscar
um sumo de coco com
277
laranjada que ele adorava imenso.
Para ser franco consigo próprio,
Azevedo amiúdas
vezes punha-se a matutar o que é que o levava a
deixar a o
ambiente de uma cidade ardente e apaixonada como Lisboa, para viver
metade do tempo ali naquela imensa
terra africana. Embora em boa
verdade se diga, fora ali que ele construíra a sua riqueza
pessoal.
Apesar de não ser uma aldeia
muito grande, Mazoa tomou-se famosa
pelos seus grupos de danças guerreiras que, em dias de manifestações, faziam um chiqueiro pelas
ruas com as trombetas a troar altos
e azougados sons, numa incrível
procissão de gente
carregada de sacos de bagagem. Desciam em direcção
à estrada principal, conduzidas por uma rapariga
de cabelos ao vento, com grande espalhafato, em cima de um cavalo,atraindo os passageiros com a sua trombeta cor de azeitona, numa cara de pura flausina. •
Pouco tempo depois,
Azevedo recebia na sua casa
uma delegação de
guerreiros Kunus, pedindo para ele ajudar
a contribuir com bens materiais
ou económicos para o grande
desfile de danças
que se ia realizar na
cidade. Sabendo que, se nada desse, o mais provável era criar mais
inimigos à perna e só iria aumentar
a sua numerosa lista, já tão negra como a cor deles, Azevedo
concordou. E deu ordem ao criado
negro para ir buscar cinquenta caixas de embalar
sapatos e entregar
à delegação, que agradeceu
com todas as vénias e retiraram-se a papo-seco.
Após a saída deles, o criado negro Mustafá chamou-lhe
a atenção:
«Mas sinhô! As caixas estavam vazias, sem nada!» - Azevedo olhou seriamente para ele
e disse: «Tás a ver como reparaste , meu sacana?
Se calhar estavas
a pensar que ia dar àqueles
gringos (termo que ele dava aos negros) sapatos autênticos.» - E logo disse: «Preto é assim mesmo; burro como
uma porta.» -
E o criado
contrapôs: «Sinhô, nem todo o preto é
fraco do caco.»
-
«Claro, eu entendo-te. Estás-te a valorizar, meu gringo», - e bateu três vezes com os nós dos dedos na nessa. - «Mas tu sabes que aprendeste alguma
coisa aqui à custa do patrão branco. Ainda te lembras quando te mandava comprar um dólar
de energia eléctrica à drogaria e o manduca
do preto, combinado
comigo, dava-te farinha
de porco para tu engordares e vês: ficaste
aí que nem um chouriço!» - Ouviu-se uma gargalhada estrondosa saída
da garganta do criado.
278
1Gaiata.
Os vários grupos de danças
chegaram a Mazoa numa algazarra endiabrada, não deixando ninguém dormir a soneca das três nesse dia. Não faltavam crianças vadias a correr pelas ruas e bebés a chorar eram
aos montes. Azevedo, que veio dar uma vista de olhos, fartou-se
de levar com eles, pondo-se
junto de uma barraca de comes e bebes, junto à estrada, diante da qual se apinhavam negociantes de cobras
que tocavam flauta e elas subiam por uma vergasta
comprida, entretimento esse de
que Azevedo não gostava nem um bocadinho. Enquanto isso, pelas tascas iam servindo
os chocos com óleo de fígado de bacalhau, e castanhas
cruas. Nesse momento, chegou o jipe da polícia de Mazoa. O oficial
estava de pé, ao lado do condutor, berrando
através do megafone para as pessoas
se concentrarem na parada do centro, que o espectáculo iria principiar em breve.
A polícia era a entidade
que organizava o festival de danças
e controlava toda aquela gente para evitar distúrbios e cenas de zaragata.
Azevedo, um estrangeiro no território, obviamente não era homem para assistir
àquela macacada toda. Todavia,
a coisa impressionou-o. Abriu caminho
por entre a multidão para
ouvir o que a
rapariga derosto gaiato
dizia: «Hoje é o grande
dia das danças guerreiras, de mostrar
a todos os africanos que ninguém
dança tão bem como eles.» -
A voz da rapariga estava insegura e o chefe
exclamou: «Eu quero ver
isso. Quero o melhor espectáculo do mundo. Quero que esta gente saia daqui
com os pés a arder e as mãos a abanar.» - Todo ele era galões e medalhas por toda a farda, barbas
e presunção e sorriu para a rapariga.
«Gosto de te ver a soprar nesse
instrumento. As tuas bochechas
inspiram-me a dar umas cacetadas nestes negros de sanzala.» -
E ambos se afastaram. Os ânimos estavam
a esquentar. Nesse
preciso momento, uma figura
apartou-se da multidão
e estacou de repente.
Azevedo ficou espantado com a presença do sujeito inteiramente vestido de fato tropical, cinto grosso com a marca
da Levis, chapéu
à cow-boy e laço à xerife. «Yooh», -gritou ele. - «Alarriba! » -E logo acrescentou :
«Os meus guerreiros
são os melhores do mundo. Não esqueçam,
Os Kunus. » -
A sua publicidade foi entusiasticamente recebida
em grande folia. Azevedo aproximou-se do chefe da polícia
que o recebeu de peito inchado. E abanou a cabeça para o homenzinho que acabara de falar
com um sotaque texano e exclamou para o chefe.
«De onde é que
veio esta estampa?» - O chefe
pareceu ficar num
instante
279
sem voz, até que respondeu com voz aos tremeliques.
«Desconheço, mas parece-me ser o Soba do grupo.» - E assim Azevedo deu por terminada a visita ao local, regressando a casa.
Horas depois, no
calor da tarde, Azevedo vagueou pelo meio dos
seus campos cultivados de batatas,
cenouras e pencas,
ainda que meio atordoado com os acontecimentos a que assistira. E aproveitou para descansar na primeira sombra que encontrou; debaixo dum embondeiro. Sob o calor tórrido
que se fazia sentir, Azevedo
deixou-se embalar numa sesta.
Os seus sonhos
procuravam constantemente a figura da sua
empregada de limpeza Marcolina, que em Lisboa
tomava conta do seu
apartamento quando ele se ausentava para o Zimbabwe. E via-a agora, na
sombra do seu sonho, no pagode, na companhia do apaixonado vizinho do andar de cima, que estava
estendido no sofá a fazer-lhe
cócegas no
umbigo.
Por
fim, o vizinho pôs-se a acariciar os peitos dela, dizendo
docemente:
«Ó pá! Tu não acreditas
naquele homem, pois não?» -
«Bijuzinho», -diz ela, empoleirando-se mais por cima dele, -nós somos novos
e modernos. Sabemos,
por exemplo, que os velhos
morrem nas viagens longas, que os aviões estão sempre
a cair do céu, e que o stress dá
cabo deles, como o cancro
ninguém o cura.» - O vizinho
voltou a dirigir-lhe palavra.
«Temos de pôr cobro a esta fajardice. Vem para a minha beira. Há muito espaço no meu andar. «Ir para o teu andar fazer o quê?», - Ela sentiu-se impotente, como se o mundo acabasse
ali. - «E a minha
mesada, quem ma paga?» - Azevedo repentinamente deu um salto e acabou
por dar de caras
com a criada Limpopó, que se tinha
esgueirado por detrás da árvore a ouvi-lo
falar sozinho. «Patrão, tá doente?»
«Não», -Azevedo
esticou o físico
para a frente e passou
a mão pela testa suada.
- Sabes, às vezes estou a fazer contas de cabeça com os
olhos fechados e falo alto para não me esquecer.» -
«A saúde é bem mais importante que as contas.» - Disse Limpopó, retirando-se pelo campo. «Tu não percebes
o que dizes», - gritou
Azevedo enquanto ela se afastava. - «Que a riqueza é a deusa
de um bom negociante.» -
Azevedo foi caminhando pelo trilho da picada e perdeu a paciência a falar sozinho. «As deusas, que vão para o diabo que as segure.
A única deusa que conheço é o meu cartão American express, o resto é lábia
de filósofo.» -
280
Azevedo, o vendedor
de ouro e diamantes, contemplava a imensa planície de terra vermelha que se estendia sob o seu olhar de aventureiro.
«Rei sou eu», - disse - «E não disse a ninguém, mas digo-o agora.
A verdadeira arte é uma pedra
chamada diamante e, na terra dos caolhas, quem tiver um olho é rei .» - E, dito isto, desatou aos pulos pela ravina abaixo.
Quando terminou o espectáculo dos guerreiros das danças, Azevedo ficou com as orelhas em alerta
ao ouvir o negro que acompanhou toda a
noite o desfile dos grupos.
Ele explicou a Azevedo que o grupo
guerreiro chamado Kunus tinha sido o primeiro classificado e os seus elementos
tinham dado brado na parada
ao dançar com
os pés embrulhados nas caixas vazias dos sapatos. Azevedo
nem queria acreditar! Emais o criado
disse. Que o sucesso tinha sido tão estrondoso que os guerreiros dormiram com as caixas
enfiadas nos pés, afim de não desperdiçarem o calor pela noite
fora.
«Isto
é absurdo! Só mesmo em África.» - Sussurrou
ele.
Na manhã seguinte, os aldeões de Mazoa viviam
uma praga de paludismo
que afectara muita gente e colocara a população às súplicas de feiticeiros para que conseguissem arranjar
medicamentos destinados a colmatar o vírus
da febre. Ao tomar conhecimento desse mal, muitos
deles refugiaram se nas povoações mais próximas, protegendo-se da febre e do sol. Era
como se o paludismo de Mazoa tivesse
isolado a povoação
de um terramoto. Pois, agora, a maior parte
dos seus habitantes acabara por cavar dali ás de vila-diogo.
Azevedo, quando ·soube da notícia, avançou com a segurança
privada e fez um reconhecimento ao terreno, conduzindo
ojipe até ao muceque
onde reconheceu o soba da tribo eencaminhou-se até ele. Mindungo
Gu decidira não autorizar
o seu povo a sair com medo que se contaminasse.
Ele ea sua filha
Masquecu convidaram-no a beber uma mistela de óleo de macaco e ele não disse que não. Sentaram-se dentro da tenda
e, quando a rapariga estendeu os copos,
ele agarrou-lhe a mão.
«Tens o cabelo tão sujo.» -Disse ele e ela segredou-lhe que, há muito tempo, desde que se habituara a pôr-se nua ao espelho, a vibração
era tanta que partia os espelhos
todos e agora sentia-se uma rapariga infeliz, pois sem espelho não conseguia excitar-se. Historia
curiosa, pensou ele, olhando para a rapariga. Levantou-se, foi ao carro e voltou acompanhado
281
de uma chapa de alumínio
que lhe pôs na mão. «Vai ali para dentro e experimenta com a chapa e vê se ela parte ou arrebenta.» - Quando ela
voltou, era demais
evidente que a chapa tinha
resultado. Filas de gotas
·de água corriam pelo rosto abaixo devido àquela maravilha
de alumínio que a excitara
até pô-la tonta.
O Amor é louco, não
façam pouco desta loucura, escrevera um dia um poeta.
Masquecu apanhou os dois homens distraídos
a conversar e avançou
em direcção à povoação mais próxima. Na estrada, cruzou-se
com outras
,mulheres que fugiam da febre e seguiam rumo a norte, levando
as trouxas
no dorso de burros moribundos, avançando também eles a conta
gotas,
à espera
dum intervalo para descanso. «Não me digas
que não arranjo
um rapaz valente para me coçar o ·pêlo até
à exaustão!» - Gritava Masquecu para dentro dela e
acrescentava : «Há já meses que não sei o
que é masturbar-me três vezes seguidas. Mas, hoje, o primeiro
que
conquistar está bem lixado comigo,
que vou pô-lo a pedir.» -
Masquecu passou as primeiras horas de caminhada até ao rio Zambeze
num estado de agitação permanente, histérica. Numa dessas
horas, avistou um rapaz ao pé de uma carrinha
do tipo station e voltou-se para ele:
«Até que enfim que vou arranjar alguém para brincarmos às casinhas. Vem massajar-me aqui as costas.»
- Mas o rapaz recusou-se, dizendo muito baixinho. «Ó minha querida, eu sou gay e procuro o mesmo que tu.»
- Ela perdeu o controlo e enxotou-o com palavrões, prosseguindo a caminhada rumo a norte.
E, já no fim, no coração
do rio, a passo trôpego e dominada
pelo desalento, Masquecu descobriu
que, na outra margem se aproximava um vulto
que lhe deu a impressão
ser de uma criança. Pôs-se nos bicos dos pés,
olhando com frenesim,
e viu ao longe o seu presente. «Olá! Sou a princesa da tribo Kunu.
E tu?» - O vulto respondeu ao longe. «Sou o Meiokilo, o servo dos mini-trabalhos da sanzala. Não sei se me estás a
topar?» - Aproximaram-se um do outro. A primeira coisa que acorreu a Masquecu foi que
o vulto, conforme se ia aproximando, era de uma pessoa
demasiado baixa. E ela protestou contra
a sua sina. «Era só o que me
faltava agora, um anão!» - Deitou-se a correr ao seu encontro,
com o pensamento atravessado por mil tentações
e, ao fim de cinco minutos, já estava ao pé dele, que abordou Masquecu
com olhar admirado:
«Mas o que é que faz aqui uma princesa Kunu?» - Ela conteve a sua
ansiedade e disse: «Ando à procura de alguém que me tire a virgindade
282
e, nos meus sonhos, aparece-me
a imagem dum anão que só ele tem
poder para me tirar os três. Por isso é que fiz este percurso para te
encontrar.» - O anão deu um passo atrás. «Tirar
os três? -disse. - Essa não contava eu.
Mas como vou
fazer isso se sou tão pequeno em relação
a ti?» - Masquecu, pensando numa solução, deitou-lhe a mão e correu
com ele até próximo de um cemitério de guerreiros. Mas
logo Meio Kilo se opôs:
«Aqui não. Sou supersticioso e temo o bruxedo.» - E ela ordenou:
«Cala-te. Comigo a teu lado nada receies.» - E Masquecu fez uma reza e
apelou aos seus deuses. «É agora ou nunca.» - Pegou no MeioKilo pelas pernas e pendurou-o em cima de uma cruz alta de madeira. Ao mesmo
tempo destapava a tanga de pele de ouriço caixeiro envolta à
cintura e soltou-a, ficando nua,
perante o olhar
arregalado de Meio Kilo que nem queria crer que o que estava
a ver fosse mesmo verdade. «Beija me com furor
e apalpa-me toda!» - Gritou ela cheia de histerismo, mas só atrapalhou Meio Kilo que não sabia por onde começar
com as mãos; se em cima, se em baixo.
O anão entendeu
que não tinha outra chance na vida como aquela e,
no início da primeira investida, deu por si a beijá-la fervorosamente na boca
e, com as mãos, espetou-lhe as unhas no traseiro
para seu regalo, ouvindo-a relinchar que nem uma corça. Quando,
de repente, um trovão
rasgou o céu com violência, o anão logo estremeceu. E, de seguida, uma rajada de chuva infestou
o ar, caindo saraiva da grossa que rapidamente
deixou o chão numa imundice
de terra enlameada, abrindo buracos junto à estrada, onde a água da chuva caía
em abundância. A terra avermelhou-se sob as bátegas da chuva. «Não pares agora, palerma!» - Masquetu agarrou-se desenfreadamente à cruz, mas um novo trovão ecoou no
espaço com tanta força que atirou com a cruz a uma distância de quase
vinte metros. Quando Masquecu chegou perto dele, o anão ainda estava empoleirado com os pés atados à cruz.
Parecia um pássaro
no alto de uma gaiola e, com uma das mãos, sacudia a lama de cima do rosto,
cuspindo pela boca. «Eu bem disse que é pecado»,
- disse ele. - «No cemitério dá galo fazer amor.» - Mas Masquecu
não se atemorizou com a chuva nem com os trovões,
desamarrando o anão da cruz, gritou para ele: «Não penses que te livras de mim, meu anão dum raio!» - E atirou-se para cima dele como uma leoa enfurecida mas MeioKilo, com uma
habilidade felina, desembaraçou-se das suas garras
e deitou a correr como um
desalmado. Só que acabou por tropeçar nas pedras e cair ao rio.
«Socorro! Não sei nadar.»
- Ela ignorou o pedido
do S.0.S. E ao vê-lo
283
debater-se atrapalhadamente nas águas, Masquecu
correu até à margem
para fazer mais uma cena. Estava disposta a deixá-lo morrer afogado
tão facilmente como a chuva teimosamente não parava de·cair.
«Tinhas razão.
É um sinal do teu Deus», -gritou ela.- «Se te safares daí,
podes
contar sempre comigo.» - Meio Kilo parecia agora um gato
assanhado, sem conseguir livrar-se daquelas águas todas à sua volta
e voltou aos pedidos: «Não me deixes aqui», - latiu o anão aos saltos na água do rio Zambeze.» - «Porquê?», -respondeu Masquecu
voltando as costas e iniciando a caminhada de retorno a casa. - «Se foste
a minha desconsolação, que diferença faz uma má recordação?» -
Quando os feiticeiros de Mazoa concordaram que os aldeões
podiam voltar às suas tribos, já se tinham passados
três dias depois daquela· epidemia de paludismo que alastrou sobre
a aldeia. Durante
esse período, ocorreram centenas
de mortos originados pelas altas febres
e os feiticeiros não conseguiram fermentar ervas suficientes que dessem para salvar a todos. A febre
deteve-se. Masquecu, entrevendo uma ultima oportunidade de satisfazer as suas
necessidades fisiológicas, prosseguiu a sua jornada, percorrendo a sua caminhada pela estrada longa
e comprida. Ao fim de três horas, passou
junto às ruínas
de um velho prédio, onde em tempos remotos era uma albergaria que acolhia os grandes guerreiros
Kunus quando ali se preparavam afincadamente para os exercícios de dança que os esperavam. Quando Masquecu viu as ruínas, uma sensação estranha apoderou-se das suas estranhas e resolveu entrar
para repousar um pouco. Deitou-se no meio do entulho com a cabeça apoiada num calhau
grande que encontrou, afazer de almofada. «Vou-me deitar
aqui», - murmurou ela. - «Nem que durma uma hora, já é bem bom.» - O sonho tomou conta
dela. E, enquanto dormia, a visão
apossou-se do seu desejo
e fê-la recuar ao tempo
da albergaria. Viu os grandes
guerreiros a chegar
aos seus quartos
e um deles, Makaku o mais famoso
dançarino do grupo, curtiu-a com o olhar e puxou-a para a piscina de águas fumadas.
Ela se enroscou nele
a valer com um roço
deslumbrante que acabou
por fazer uma cena maluca. Deu tantos gritos
que assustou o guerreiro. Ele, quando
viu os vidros das janelas
voarem pelo ar e partirem-se todos derivado ao êxtase total dela, ficou
com os olhos
arregalados. «Maluca!», -gritou-lhe. -
«Maluca e histérica!» - E fugiu dali a sete pés.
284
Depois do sonho
ela,
acalmou.
Afastou-se durante o fim da tarde e só apareceu passado
dia e meio, numa altura em que o grupo de aldeões limpava
todo o esterqueiro que os feiticeiros haviam feito com os fumeiros
para afastar a epidemia para zonas bem distantes. Ela sempre soubera
como contar uma cena para esconder as suas fraquezas intimas; olhou
e viu o pai Mindungo Gu; então aproximou-se, arrastando os pés na terra cheia
de poeira e, desta vez, trazia o cabelo enlameado e as sobrancelhas igualmente sujas.
Chamou o pai junto
a si e disse-lhe que a febre
do.paludismo já tinha desaparecido da região e que o povo de Mazoa podia
deixar de ter dúvidas que o mal estava combatido. Informou-o que tinha percorrido
as aldeias mais distantes, junto ao rio Zambeze e que os feiticeiros
não fizeram outra coisa
senão diminuir a febre com pensos de caca de javali encharcados em água insossa
e depois acrescentaram batatas oleadas
com sumo de abacaxi. O pai ficou
admirado. «É a primeira vez que ouço falar nisso», -exclamou. - «Temos que dar os parabéns aos feiticeiros.» - Depois daquela
palestra, pai e filha ficaram
em silêncio juntos
um ao outro. «Esta peta já
está enfiada.» - Pensou Masquecu.
Por alturas da lua em fase crescente, a vinda de Marques, comerciante de peles na África do Sul a passar férias
no Zimbabwe, teve um efeito inesperado. De tempos em tempos, ele
gostava de levar a mulher
e o filho a viajar, deixando
o conforto da sua quinta
abastada e atravessar outras terras para alargar
a sua visão sobre o continente africano. E fazia normalmente as viagens, sempre
no seu carro Mercedes-Benz cor azul
do céu, com cara de europeu e em quem
se podia confiar. A Sr.ª Marques acolhia
com agrado estas viagens, sabendo que o seu excelentíssimo esposo era um óptimo companheiro e proporcionava-lhe momentos hilariantes de riso. Por conseguinte, quando
ele lhe comunicou para ela fazer as malas que iam viajar
sem destino, não
foi apanhada inteiramente de surpresa.
Durante a viagem,
nas horas quentes do dia, os Marques
descansavam onde quer que encontrassem alguma albergaria ajeito ou uma sombra confortável. «Ó homem,
tu vê lá, não adormeças!»
- A
Sr.ª Marques, que estava estendida
no banco de trás, sem dormir, não descurava de olhar
para a estrada. Marques dirigiu-se-lhe com a sua
espontaneidade
285
habitual. «Ó mulher, parece que nem me conheces.Desde que não bata
com o carro
contra o cimento,
o resto não interessa; se bater.em alguém
ninguém
sequeixa.» -O vendedor de peles contemplava o seu filho de doze anos que dormia debaixo duma pele de elefante.
«Eu não me importava de ter a idade
dele», disse. E não disse mais,
deixando florir um sorriso de felicidade
entre os lábios. Quando chegaram
à aldeia de Mutare, Marques
estacionou o carro
e
acompanhou a mulher, que pegou o filho pela
mão, e foram
visitar algumas
lojas. Ele voltou-se para
ela e disse que, embora
não quisesse nada para
l ele, ela podia comprar
à vontade, desde
que não fosse
artigo muito caro. r De volta ao carro,
na estrada, cruzaram-se com outros carros que
e seguiam rumo ao sul,
levando famílias entrouxadas umas sobre as outras,
,..
avançando também elas, sedentas de uma boa passeata. Ao fim dos
primeiros dias, a viatura
com ar condicionado proporcionava uma viagem
agradável pela imensa planície arenosa. E,no fim desta correria,
ao centro de uma aldeia indígena,
Marques, suado e cheio de calor, apercebeu-se que estava próximo da fazenda de Azevedo, um velho amigo
de Portugal, com quem mantinha uma franca amizade.
Entretanto, ao chegar
junto de uma marina, de repente, uma casca de coco
atirada por um macaco do cimo de uma árvore ali junto ao rio, quase lhe partia a cabeça, pondo-o
um tanto vacilante,
obrigando-o a parar o carro. «Meu patife! Ainda
estás a olhar?»
- De nada lhe valeram os insultos ao macaco,
que olhava admirado
para ele, senão
passar água sobre a cabeça e resfriar um pouco os sentidos, à sombra da bananeira. Um homenzinho, ligado à travessia do rio, veio falar com ele; se queria atravessar o carro na sua prancha
de madeira.
«Em quatro lanços,
eu passo o carro para o outro
lado.» -
«O que é que lhe deu ?», - respondeu Marq ues com a sua voz enervada.- «Atravessar o meu
Mercedes-Benz?» . -
«Que mal tem?», -contrapôs
a Sr.ª Marques de rosto exausto.
«Ó mulher, queres ir a nadar pelo rio abaixo?», - voltou a falar Marques
de olhar sério.
- «Aquela prancha nem um burro
aguenta, fora mais um rinoceronte destes!» -
«Andor!», - gritou Marques.
- «Vamos mas é daqui
para fora.» -
Afastaram-se rapidamente dali, numa altura
em que o sol não estava
tão quente, e meteram-se à estrada viajando a tarde inteira. Teve então a
286
satisfação de encontrar o velho amigo
Azevedo a avançar
para ele, com o
olhar sorridente, enquanto
os criados andavam à sua volta, dando a
impressão de que lhe estavam
a guardar as costas.
«Oh! Que agradável
surpresa a vossa», -disse Azevedo, estendendo-lhes a mão. - «Era o que me convinha
agora, a visita dos amigos.»
-
«Neste caso, prepare
aí um cabrito à nossa
moda», - respondeu-lhe a Sr.ª Marques. - «E u m tinto
à portuguesa.»
A chegada dos Marques à fazenda de Azevedo foi um divertimento. Os criados não tinham mãos a medir e estavam incansáveis para que nada lhes faltasse. E logo a Sr.ª Marques,
que pesava menos
cinco quilos do que no inicio da viagem, tentou freneticamente limpar
o pó que lhe cobria as roupas e compor o cabelo, dando-lhe um leve arranjo. O filho viu
a mãe a agitar um batom meio derretido e perguntou: «Vais pôr isso,
mamã? Mas não vamos ao baile!» -
A mãe não ligou ao comentário
e olhou pela janela a paisagem
deslumbrante que os seus olhos
viam. Entretanto, na outra sala,
as relações entre os dois amigos tinham aquecido a tal ponto que os dois só riam.
«Todo o homem tem a sua parte feminina, não tem?», - disse-lhe Azevedo, pondo-se
a beber whisky
com água.
«E qual é a tua?», -perguntou Marques.
«A minha, é lésbica.» - Respondeu Azevedo,
soltando uma gargalhada.
«Fizeste-me lembrar aquela do pastor que tinha uma criada bem boa e toda a malta na aldeia andava morta por a assapar.
Um dia, ele estava a dar um sermão no templo
e disse: "Meus irmãos, Cristo
morreu por nós", e ela, atenta
a limpar o pó na parte de cima, esgueirou-se e caiu cá em baixo, ficando presa de cabeça
para o chão pelas garras
de enorme candeeiro ao centro da sala. O pastor, enciumado
ao ver as pernas da criada a descoberto e com tanto mirone a olhar para a cena, gritou: "Meus
irmãos, quem olhar para cima fica cego de uma vez". Nisto, ouve-se uma voz do fundo: "Ó caraças! Já que fico cego fico só de um olho". O esperto tinha a mão a cobrir-lhe
uma vista.» - Azevedo caiu em cima do sofá e desatou a rir como um perdido.
E ainda falaram dos tempos da Metrópole e de quando se encontravam na taberna do Rato, os atiradores do sexo
se transformavam em pistoleiros de cama; contaram
também a história
287
de um guitrrista que, um dia, ao executar um concErtO deu um soluço e deixou escapar um peidÓ cá para :fora•.enganando o parceiro da viola
que parou o instrumento. Depots de contar os contos 'na língua portuguesa
I ." • '
Azevedo Recitou um código
em inglês, para
que os criadqs não
entendessem ·as palavras. «Louise
's/House is in.city of Oporto»,
-iniciou .
,«N,eA,r
famous railwAY:station of Campanhã..T he Prado do Repouso
CEMETERY, deep and wide, is néar its walls on the northern side....»1
O amigo anotou o endereço
num apontamentÓ. A chegada
da Sr.ª Marques e do filho à sala alterou o rumo das conversas. Momentos depois, foi servida a refeição e sentaram-se à mesa. A criada Limpopó sorria de satisfação para as visitas,
perante o olhar sagaz do seu patrãO
desabafando a dizer que não havia pior dor nos pés de que crosta
que se instalava ·na pele. · · · . , .
«Oh; meu Deus, às vezes apetece-me comeR os calos, disse ela.
- .
«DEsculpem lá, estão.a comer.não se FALE disso.» ,- E afastou-se antes de levar um raspanete. . . . '
«Então? Como vai isto por estas banda.s?» - pergunta .a Sr.ª Marques a Azevedo que respondeu; «Com a mesmA SERENIDADE de sempre.
Enquanto houver pedras e material par·a ·levar .para Lisboa, não vou regatear esforços.» · · " ·· · · . · ·· · ' ·
«Então deiXE-SE
estar que es.tá bem. Ao fim e ao cabo, não tem mulher Nem
filhos para o chatear, por conseguinte, aqui está no céu.» - Concluiu a Sr.ª Marques.
Mas Marques mostrou-se pessimista. «Tu como eu», - disse ao amigo, -
«devemos é' preparar o caminho para nos' pirarmos daqui, antes que .
apareça
por cá algum matumbo e nos corra à vassourada,»
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Azevedo, na sua lábia destravada, comenta. com ironia .. «.Tu não sabes o que dizes. O preto é bazola e, na hora
de começar o fogo, caga-se todo que nem sabe onde esconder-se.
A conversa acabou numa risada total.
.
E turistas estrangeiros em busca do mistério africano,
essa raça de aventureiros que vão à caça dos diamantes
e matam crocodilos, sacando-lhes a pele para vender na Europa a bom
preço. Quando viam a jovem
princesa Masquecu e a forma como ela balanceava as suas ancas, os visitantes ficavam com o credo na boca e muito deles punham-se tesos como barrotes
a olhar para os guerreiros de lanças afiadas
e perdiam o desejo de lhe mandar
uma cantada antes que ficassem sem o pescoço.
Os aldeões passaram
com uma série
de cartazes publicitários onde a beleza indígena
fora pintada em dupla criação, ao lado dos dizeres que proclamavam: As nossaspretas são tão boas
como as brancas,
ou como as inscrições nos cães que expressavam: o melhor
amigo do cão é 0 cadela, que deixa fazer zuca-zuca, e coisas de outro teor. Depois, chegaram-lhes aos ouvidos
que certos grupos
homossexuais tinham feito
declarações denunciando que também eles, para atrair
as atenções do público, iam distribuir panfletos - Masquecu apanhou uma grande quantidade deles na estrada
-em que diziam que o «Sexo é livre», ou comem todos,
ou não come ninguém. E mais: «A tradição já não é o que era.
Nada se esconde e tudo que é dado por amor é mais saudável
e saboroso.
«Não vai haver incompatibilidade entre os sexos»,
- anunciou a radio local,
dando mais força ao prazer.
À medida que o cartaz publicitário de Masquecu se aproximava de Ossada, o subúrbio mais
longínquo da grande
metrópole do rio
Zambeze, por onde a jovem princesa
e o seu cortejo passavam,
a comunicação social, os políticos
e a polícia triplicaram as suas visitas. A princípio, a polícia
limitou-se a ver a moda a passar;
os políticos, por sua vez, consideravam que isso seria benéfico para a propaganda
da mulher africana. E, por último,
os repórteres que andavam entretidos a tirar os bonecos às divas da beleza indígena,
diziam com optimismo. «Isto é o melhor que já se viu.» -
O subúrbio de Ossada devia a sua origem à presença de importantes
armazenamentos de esqueletos humanos
nas suas terras.
Ora acontece que os seus habitantes, homens que passavam a vida a açambarcar ossadas para as suas tumbas - e «apreçavam» esqueletos, poder-se-ia dizer -
estavam loucos com a ideia de que um cortejo desses pudesse
trazer boas ossadas para os armazenistas de esqueletos. Os cartazes dos primeiros grupos a aparecer
tinham deitado água
na fervura dos desejos
290
deles, uma vez que eram crianças de menor idade,
implorando aos matadores a salvação do esqueleto. E, em consequência disso, ao gesto de
imploração dos putos,
uniu-se uma multidão
com bandeiras e cabeças
de esqueletos na mão que reclamavam: O MELHOR BRINQUEDO QUE UM NETO PODE TER É UM AVÔ, PORQUE NÃO GASTA PILHAS TUDOR.
Depois de passar
por Ossada, já de tarde,
Masquecu fez uma nova
demonstração da sua beleza ao dançar no palco, com o conjunto
de músicos, a dança
do merengue. «Animem-se», -berrou com força.
-
«África é só uma.»
- O músico do batuque
murmurou ao ouvido de
Masquecu. «Mais vale sê-lo do que parecê-lo.»
Azevedo, explorador de pedras do Zimbabwe,
proprietário de uma abastada fazenda, cujo dom era a criatividade e a frontalidade com que enfrentava as situações, patrocinou também o cortejo de Masquecu.
Como fiel amigo de seu pai Mindungo Gu, cuja amizade já remontava
aos tempos que, pela primeira
vez, viera para
cá e se instalara na fazenda,
sentia-se capaz de tudo por amor à arte. «Eu sou um homem forte»,
- confessou ele a Masquecu. - «Eu vi-te crescer e ajudei-te nos teus
momentos de fraqueza, mas não sou capaz,
como é que eu hei-de explicar, de ir para a cama com uma preta, vê se me entendes?»
- Masquecu cumprimentou-o com
ar infeliz e Azevedo, ao vê-la afastar-se, com olhar enfadado, procurou
animá-la com um sorriso. «Toma lá isto que mandei vir de Portugal.» - E tirou,
do bolso do casaco de antílope, um vibrador
de alumínio todo espelhado à volta.
Nessa noite, os acompanhantes do cortejo deixaram-se ficar pelas
redondezas, enquanto os fiéis rezavam
as suas orações.
Tinham sido autorizados a ficar nos antigos campos
de raguebi, vigiados pela
polícia militar. Masquecu não conseguia dormir.
Pensava no brinquedo
que Azevedo lhe dera
e numa coisa que ele
dissera: que, sendo
homem branco em carne e osso, em espírito
«sou demasiado sensível
à pele, desculpa lá, mas é verdade. Eu não sou racista mas, nesse ponto, sou. Devia era ter feito uma operação e capar-me antes
de vir para cá e só voltasse a ser um homem normal
quanto estivesse do lado de lá.» -
Também nós, respondeu
a provocante Masquecu
ao negociante de diamantes, sofremos na família
de uma espécie de doença;
a doença de ser
291
estéril e .da necessidade de termos que fazer amor todos os dias. Se
pudéssemos, ao menos, perdermos o tesão durante
a metade do ano, ou,
pelomenos, não
sentirmos comichão, vivíamos mais
felizes dentro do nosso espírito.
Assim, não. Temos enorme dificuldade em lidar com a realidade dos factos.
O que equivalia
a dizer que lhe custava
a aguentar a pressão sempre que estivesse diante de um homem pronto a aquecer a ilusão; mas nem
sempre resultava. Quando a comitiva de Masquecu se preparou para partir pela
manhã bem cedo, as nuvens do céu que as acompanhavam desde Mazoa
dispersaram-se de repente e descobriram um céu que se carregava
de outras nuvens bem cinzentas e até escuras.
E o grupo das criancinhas -o corpo de elite de salvação, por assim dizer
-levantou arraiais, bem antes de começarem a cair os primeiros pingos
de chuva. O fim do cortejo fez renascer a alma de todos os caminheiros; por isso,
apesar de algumas contrariedades, levaram
o caminho todo a cantar,
ao encontro das suas
casas.
A tribo do Sexo é livre tinha organizado um festival de sexo invertido numa zona florestal, cheia de barracas de ambos os lados com comes e bebes, e tinham também
bloqueado as entradas possíveis os estranhos e polícias e fizeram
um dia dedicado -ao orgasmo do Pitéu -e estavam lá grupos de vários
pontos do país e do estrangeiro. As lésbicas também tiveram o seu momento
alto, dançando com a língua
de fora ao som das trombetas e, quando chegou ao acasalamento de grupos, para lá das fantasias eróticas possíveis e imaginárias, dos vibradores às vaginas superficiais, ouviu-se oribombar de um trovão
e caiu do céu tanta
água, que parecia
até um oceano. Assim,
a sessão do sexo ao ar livre
terminava demasiado cedo para satisfazer os prazeres de todos os grupos; posteriormente, muitos daqueles tarados
pensaram que os deuses
tinham estado a estudá-los e enviaram-lhes aquele chuveiro de água apenas
para lhes refrescarem o abaixa-a-tola, deixando-os na terra, porque
ainda não era chegado
o Dia do Juízo Final.
292
A força aterradora
da chuvada enervou
tanto os homossexuais como as lésbicas. Na confusão da retirada, fez-se
ouvir a sirene da polícia.
Era a buzina de uma carrinha
Toyota que o motorista conduzia a grande
velocidade atirando as barracas abaixo e levando
à sua frente tudo o que
apanhava a jeito de semear,
desde cachorros fritos, abóboras
cozidas, bandejas de biscoitos com latas de seven up, bugigangas penduradas
às coberturas das lonas,
até chegar ao local onde estavam as barracas de dormida dos visitantes. Aí o condutor
levou o prego a fundo
e foi um vê se te
avias, com toda a gente a correr
em desalinho, pelas ruas dos cesteiros em todas as direcções.
Quando chegou ao cruzamento, o motorista travou violentamente e a
polícia, de cassetete na mão, saiu
a correr atrás
dos provocadores e prendeu alguns,
puxando-os para dentro do Toyota,
num turbilhão de pernas,
palavrões e cuspo. Pouco tempo depois, a carrinha abandonou
·o local, acelerando, na tentativa de deitar a mão a mais alguns
que se tinham
pirado à má fila.
Dentro da carrinha, os corpos amontoados numa confusão
enraivecida.·
A lésbica, de nacionalidade francesa, insultou o polícia
aos gritos:
«Gendarme de la merde
1!» - Ao que o parceiro
ao lado, um alemão, concluiu, sarcástico: «Geistesarmut
2• » - E o americano, enfiando
a cabeça por entre aspernas invertidas de urina chinesa, acrescentou, babando saliva:
«There are
gays bom every minute.3» -
A chuva parou e um sol airoso
iluminou um desbastado cenário.de lixo e de desarrumação total. As ruas estreitas eram agora canais por onde viajavam
destroços de toda a camada de lixo à deriva ao encontro
de bueiros entupidos. A rede de esgOtos da cidade estava
completamente superlotada. E os homens do saneamento, dentro
em pouco tempo, iriam ver-se mergulhados numa maré lamacenta que lhes chegava
aos pés. Um cão passou a nadar pelo cruzamento da barricad'à desfeita e, por aqueles sítios, só se ouvia o ruído húmido da
cheia, cujas águas embatiam nos carros abandonados, enquanto as crianças brincavam e aprendiam a fazer
barcos de papel (atirando-os à água, numa gincana
a ver quem chegava mais depressa.
· ··· · · ·
· '·· · · ··· ' ' ' ' ·
· L•
Depois as pessoas
voltaram.
Do alto da colina, não muito
distante dali, Masquecu
seguia com a sua
comitiva no carro a grande velocidade, depois do tempo ter melhorado
e o sol aparecido. Até que numa estrada cheia de
curvas, depois de descer
uma encosta, resolveu mandar parar o carro junto ao portão da fábrica
das rolhas.
«Ü que vais
fazer?», -resmungou
o motorista, perante
o olhar atrevido de Masquecu que respondeu: - «Espera um instante. Só vou fazer
uma coisa que me compete
a mim e não demoro.» -
E entrou no portão da fábrica. Via-se claramente, através
da entrada da fábrica, que os rolheiros, com medo à chuva, haviam
feito gazeta e não
apareceram ao trabalho.
«Maravilha. Veio mesmo a calhar», - disse excitada
Masquecu. -
«Enquanto aqueles pategos esperam, eu vou ali à retrete dos homens experimentar o vibrador de alumínio. Belíssima ideia. És uma águia.» -
Mas os acompanhantes não só se fartaram de esperar quase uma hora, como
também se puseram
aos berros, gritando
por ela. Foi nesse preciso instante que se deu a ejaculação de Masquecu que, depois de se ter imaginado na cama com
o rei tribal Manduca, perdeu
de repente a imagem
e andou aos papeis de vibrador na mão, durante segundos, à procura de uma ilusão forte, até
que os gritos
dos acompanhantes a assustaram e pensou que ia haver
guerra e logo se realizou. Então Masquecu fechou os olhos
e recitou na voz cantada dos peregrinos:
O amor é dar e receber,·
É uma moeda de duas faces,
Quando não se tem uma,
Que remédio, senão ficar com a outra.
Masquecu apareceu de cara exausta
e suada até à pele, à beira da
estrada, enquanto o carro da comitiva chegou
em grande alarido ao pé dela,
para prosseguirem viagem. O motorista irritado, abanou a cabeça:
«Demoraste tanto tempo para arrear o calhau?»
-
«Depois do comer
e do foder, é a melhor fonte de prazer que temos
de enviar um «telegrama» para a terra.»
- Respondeu Masquecu.
Foi assim que Masquecu acabou
por terminar a sua aventura
excitante
294
e abandonou o carro da sua querida comitiva,
junto à aldeia de Mazoa, e
se juntou à sua gente.
Os varredores, enlameados até às galochas, viam-se gregos para limpar
as ruas daquela imundice e lentamente a água começava
a varrer toda aquela estrumeira. «Custou , mas estava a ver que não nos desenrascávamos daqui para fora»,
-disse o chefe da
limpeza. - «Vá
lá, não morreu ninguém com a cheia.»
- Chegou o rosto ao buraco
do bueiro.
«Que fedor
este!» -
«Olhai 1», -disse um deles.
De todos os ângulos, das pequenas janelas
e montras das lojas, os
raios de sol eram tão fortes que limparam toda a merda
existente ao redor da
pequena cidade. Apesar da potência
do raio quase cegar, os mais
curiosos fizeram um binóculo com os plásticos partidos olhando por
baixo de uma sombra.
Os habitantes observavam o milagre, ficando
todos, mesmo todos, apavorados, pelas janelas e buracos das suas casas,
à medida que a cidade ganhava
mais cor e se reconstituía um autêntico
arco-íris.
«Se eu não visse, não acreditava», -exclamou
o chefe da limpeza. Mas foi verdade.
Todos os habitantes que assistiram, sem excepção,
ficaram com que contar aos seus netos, se um dia
lá chegassem. E não faltou, mais
tarde, quem dissesse coisas mais estranhas; que, quando soou o
primeiro trovão no céu, apareceu
a imagem da deusa do barrote
queimado apregoando: Não viciem
os sexos e não troquem
os buracos do prazer.
Muitos olheiros
disseram que viram escrito o mandamento de Moisés Não cometerás o pecado a esvoaçar à volta deles. Alguns acreditavam mesmo que tinham
visto chegar o Profeta Noé e que
o raio o tinha
apagado da imagem.
«Não sejam estúpidos», -gritou uma
aldeã. -«0 sol limpou-nos; varreu
a merda daqui para fora, por isso não admira que estejamos
todos tão limpos.» - «Ponha uns óculos,
velha aldeã», -disse-lhe o chefe do serviço
da limpeza, num tom azedo,
diante de mais
de cinquenta homens,
mulheres e crianças, ali presentes. - «Por
tu seres mirolha e veres mal, não somos obrigados
a aturar a tua estupidez.»
295
Após umas semanas do cortejo
terminar, a aldeia
de Mazoa rodeava-se de novo da tranquilidade e pacatez do seu povo. Ao longo das sanzalas havia zonas onde os habitantes podiam jogar à pedra, fazendo
pequenas apostas. Reinava na aldeia uma enorme expectativa; todos os dias,
quando os jogadores se punham a jogar, raro era que alguns simpatizantes ou espectadores não levasse uma pedrada na pinha. E as claques mostravam-se hostis e sarcásticas mas, na hora da dor, muitos traziam
e, chã de cogumelos e farinha de burro podre
ejeropiga.
Mindungo Gu, paciente e bondoso,
mergulhara num estado
de profunda vaidade ao saber que sua filha, a princesa
Masquecu, tinha conseguido convencer
as altas figuras da região com a sua capacidade física e beleza africana.
E mais. Tinham-lhe dito os aldeões de Mazoa que as belezas típicas africanas ainda estavam por descobrir. Assim o dizia
um velhote da aldeia,
com bom conhecimento de causa. «Uma
mulata, e coca-cola e um gira-discos, Africa é um mundo!» -
«No meu tempo
não havia essa bebida estrangeira. Era chá preto e
servia muito bem para os intestinos», -respondia
o Soba com um encolher
de ombros.
Chegou o domingo
de manhã e Masquecu deixou-se
adormecer e teve que fazer uma corrida para participar nas orações do dia. Já quase se esquecera de todos as rezas africanas
mas outrora era uma águia para
as decorar. Mal se
lembrava quando devia sentar-se ou ficar de pé, em que
página é que começava a ler o livro,
quando cantar, quando pôr o peito
no chão e não apertar os seios. Acompanhou a cerimónia atabalhoadamente e com um sacrifício que, no fim, quase desmaiava no chão.
Quando os membros da congregação religiosa começaram a sair
da pequena capela de
tijolo vermelho, ouviu-se
um alarido de um canto da sala
das confissões. Uma beata foi investigar.
«Donde é que vem esse barulho?», -perguntou, abrindo a porta da d
sala. e
Depois viu Masquecu a ajeitar a saia, muito
corada, deitada na sala. I
E o barulho deixou
de se ouvír.
i
Quando saiu cá para fora, era legítimo que ela dissesse
qualquer coisa a
e não fez a coisa
por menos. Disse,
um pouco hesitante, que o barulho I
que se ouviu era derivado a um pequeno rádio que levava consigo para
ouvir música, e conseguiu convencê-la . Depois, a beata apareceu à porta 1
e a seu lado vinha Masquecu, estéril, cuja fama já se espalhara pela
296
aldeia. Entretanto, os missionários de Mazoa prepararam-se para seguir aos seus
destinos. Masquecu, agora
um pouco branca
como a neve,
estava demasiado enfraquecida para dizer qualquer
coisa. E seu pai, como sempre, fez ouvidos de mercador erecusava-se a discutir. «Se não formos fortes connosco
mesmos e deixarmos que o vício nos domine»,
-disse aos aldeões à
laia de aviso, -
«não
nos admiremos que Deus nos castigue
e, depois, vamo-nos queixar ao Papa!» -
Os missionários estavam perfilados em linha indiana fora da igreja,
pintada do lado de fora a branco e de azul do céu por dentro e, no altar,
uma imagem da Nossa Senhora
dos Remédios. Depois
do aviso de Mindungo Gu, retiratam-se para as suas fainas seguindo
em grupos de três e quatro componentes de cada família.
Masquecu, pressentindo que ia
ser chamada à atenção pelo pai, decidiu
enfrentá-lo primeiro. «Não estás aborrecido comigo, pois não? -disse amavelmente, -bem sabes que me descuidei. Gosto de música e estava no meu programa de discos pedidos pelos ouvintes.
Mindungo Gu bateu
palmas, contente, e desatou a rir com gargalhadas
fortes e ressonantes. «Por favor, não me faças rir», -disse ele. - «Eu sei que és uma coca-bichinhos, mas não me venhas com essa fita americana
para cima de mim.» -
E, um atrás do outro, seguiram
em direcção à aldeia, cochichando pequenas recordações das atribulações da caminhada, durante
o cortejo.
Caiu a noite. Azevedo aproximou-se com o jipe e bateu palmas
chamando a atenção dos aldeões
de Mazoa que estavam reunidos à volta do seu Soba, Mindungo
Gu e falavam sobre as colheitas. Talvez um terço
de colheitas ainda pudesse ser salvo. Azevedo
estava de partida
para a caça nocturna, com um sorriso
a brotar-lhe no canto do lábio esquerdo. E, num recanto afastado
do pátio acizen tado da zona de divertimento infantil e azul celeste
de iluminação fluorescente, o feiticeiro Zambi
estava acocorado a falar
sozinho. A luz de uma lua, a mudar de fase de quarto
minguante para quarto
crescente, acabava de os banhar,
lenta e fria.
«És um homem
de sorte», -disse
Zambi. -«Escolheste bem a hora
de ir à caça.» -
Foi então
que Azevedo fez uma proposta assumida dum compromisso.
297
«Se fizer
uma boa
caçada, está
combinado, metade é vossa.»
Mindungo Gu escutava-o com atenção.
Azevedo prosseguiu: «Por isso, reza aos teus santos para que o teu prenuncio
não saia furado,
senão, nem um osso duma vaca reles vós comeis.»
«As pessoas confiam
em mim e os deuses dão-me sorte»,
- disse Zambi.
«As pessoas não sabem o que
dizem», - respondeu Azevedo. - A verdade é que tu deste a esta gente uma experiência espiritual positiva
profunda, disso não há discussão. Portanto, a minha palavra mantém-se. Assim farás um milagre
em proveito de todos, isto
evidentemente, se eu também não errar os alvos a abater.»
-
Zambi conteve a respiração.
«Disso também eu vou tratar.»
- Disse Zambi.
«Então trata», - encorajou-o Azevedo, muito soberano. Fala lá com o
teu Deus e diz-lhe que, se ele
falhar, é porque
quer que vós passeis
granizo no bucho .»
O feiticeiro Zambi sabia de antemão que quando Azevedo
partisse para a caça eram favas contadas , pois o poder dele errar o alvo era
nulo, e até já o vira tirar uma pata a um sardão com um tiro de uma espingarda Mauser. -Mas ele não vai falhar -Nunca falhou, porque é quer havia
agora de falhar?
«Nestas alturas, falhar
é desumano», -disse ele para consigo.
Parece quejá estou a ver os meninos à volta da lareira a chupar os ossos, e os aldeões
a esfolarem a peça da cabra ou do
cabrito, tanto faz.» -
Zambi, de noite,
foi por entre as sombras
do pátio, deitando-se e pondo-se de barriga
para o ar. Depois, levantou-se, para andar aos saltos de canguru de um lado
para o outro. Havia nele uma crença
acompanhada duma grande incerteza. Depois veio o cansaço e ele pareceu
desaparecer nas sombras da madrugada.
Regressou de manhã cedo.
Depois de rezar
a primeira oração da manhã,
perguntou ao seu espírito se podia
falar-lhe; e ele, hesitantemente, acedeu.
«Na noite passada
fiz um acordo», - disse.
- «Prometi àquele
branco
marado que ele não erraria o alvo, mas ele pôs em dúvida
o meu poder.
298
Agora, se ele errar, o que vai ser de mim?» - O espírito respondeu: «Só urna boa caçada
pode calar essa dúvida.» -
Tinha conseguido captar-lhe plenamente a atenção. A seguir, contou-lhe o que Azevedo sugerira
na noite passada.
«Ele disse para eu rezar ao
meu santo, mas não é preciso», -exclamou.
- «O que é que ele sabe da nossa religião, para estar ali a cagar postas de pescada? Nada. Então
que espere para ver.» -
«Está descansado
porque, quando a caçada começar, vocês terão fartura de carne», -concluiu o espírito, «e reza a tua oração espiritual».
A selva estava
escura quando o jipe de Azevedo subiu
por urna lomba
que ladeava o Morro dos Mamíferos, cujas árvores estavam
cheias de passarada a dormir com as suas crias -quando o motorista do jipe sentiu
o asfalto da terra húmida
e escorregadia ranger
debaixo dos pneus, transformando-os em pasta enlameada. - Quando deram conta,
circulavam sobre um areal de cocos podres e cascas
de banana abandonadas e bostas de burro velho,
andavam sobre terra
avermelhada dominada por altos
morros de troncos
inclinados e por matas em blocos
espessos. E a selva calminha
como o deserto. De vez em quando, ouviam-se chacais uivando ao vento. Os mochos eram os únicos
pássaros que se viam
em cima das árvores.
Ao fim de um bom bocado de terreno percorrido, os dois homens atrás no jipe já estavam cansados
de irem em pé e de tanto erguer o holofote, prá aqui, prá ali, prá acolá. Azevedo
ia sentado ao lado do motorista, de espingarda na mão, e auxiliava-se dos binóculos de longo
alcance para detectar a presa. Teve a impressão
de que tinha visto atrás de uma árvore uma onça a espreitar e disparou um tiro, -e por entre o matagal,
viu um animal de pequeno
tamanho, acocorado, muito quieto,
ou a
fazer trampolim, -e eles contemplaram, pela primeira vez nas suas caçadas, um estranho fenómeno.
Azevedo, acompanhado de um homem da sua segurança, correu
na direcção do animal
e, ao aproximar-se do local, perdeu toda a alegria, pois afinal, não era
urna onça mas, sim, uma seixa (tipo coelho) e a bala fizera ricochete numa pedra e o animal encostara-se, nem dando um ai
de dor. Depois, ficou furioso consigo mesmo por se ter enganado
e regressou ao jipe.
299
O senso comum
de Azevedo dizia-lhe que seria um dia em cheio para a
caça nocturna, já que tinha vindo de tão longe
e estava à vista o seu segundo
objectivo. E a nova certeza enchia-lhe o espírito de forças. Era como se,
pouco a pouco, se transformasse na personagem do Indiana fones, pois
agora, que oimitava
de chapéu à vaqueiro e chicote
na mão, parecia
mesmo um aventureiro, no verdadeiro sentido
da palavra.
Quando avistou um grupo de veados, reparou
num deles, coxo;
trôpego e cheio
de reumático, de olhos verdes. Azevedo gritou
para ·o homem
que segurava o holofote.
«Ilumina-me aquele
cabrão da ponta.»
-
O raio de luz acompanhou o animal, lá no alto de um morro, por cima
das cabeças deles.
«É
agora!», - gritou-lhe o motorista Tokami e Azevedo ·dísparou,
dominado pela ideia quê, desta vez; n.ão se tinha enganado . Ouviu-se o barulho do tiro 'sob os olhares dos homens
que respiraram fundo.
«Vai buscá-lo; antes que ele fujá. Exclamou Azevedo.
E um deles saltou do jipe e trep·ou, com o auxílio do raio de luz, para
cima
de uma tampa de fossa
e apanhou o animal moribundo, deixando atrás de si um rasto de sangue que se perdeu pelo
chão.
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