Sunday, August 19, 2018




A TABERNA DO RATO
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Uma vez viciado em bebedor, qual será o pó mágico que me traga de volta à condição de não bebedor? O Sr. Rato-Ratão, dono da taberna do Rato que fica na zona alta da cidade, mentor dos clientes viciados, conselheiro das almas desamparadas, o tipo de homem que já viu e sabe tudo, o menos doutrinário dos Senhores do canudo e o mais malandrim dos fanáticos servidores de copos, ex-músico e compositor, jornalista primário e escritor de histórias de fazer chorar uma ceguinha, aprendiz de uma dúzia de variadas profissões e, por conseguinte, segundo os seus próprios ditos, «mais um amigo que um inimigo» -aludindo à media altura que tinha, não se elevava a mais de um metro e sessenta e sete centímetros do chão, era no entanto um homem de físico equilibrado, de bigode sobre o lábio superior e possuía uma cor morena de rosto. - Ficou a piscar os olhos por dentro do balcão, olhando pela chegada do Baixote a meio da noite que vinha a limpar as lentes dos óculos de míope. Ao aproximar-se do balcão, pediu para lhe servir um copo de whisky, tentando com o lenço apagar por cima da testa um suor trémulo que Baixote, qual quê, parecia ter visto a morte da bezerra ou lá o diabo que é isso.
«Você parece que vem daí de algum sítio de ter tirado os três a alguma virgem», Exclamou Rato-Ratão saindo para fora do balcão e soprando
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uma névoa de hálito cheiroso das suas mãos em concha. «Isso diz você. A si, talvez lhe fizessem algumjeito mas, a mim, não, porque já não tenho idade para isso, além de dar algum trabalho.» -
Baixote estava todo bem arranjado e limpo. Trazia um fato sport com camisa e gravata a condizer e o cabelo bem penteado. Depois de molhar a goela com um malte de oito anos, disse: «Pronto, já bebi, agora 0 segundo passo vai ser fumar um cigarro.» -
As suas palavras foram abafadas pela presença de uma segunda voz, compacta de calor, carnuda e sensual de mulher, que se decidiu dirigir-se até eles. Por detrás de Rato-Ratão, o Baixote esticou um braço ao encontro da mão dela. «Olhai quem vem lá?», -gracejou ele. -«Era só esta que me faltava agora.»
«A sua amiga é muito boa», - disse maliciosamente o empregado, e continuou, voltado para o Baixote. -«Desculpe lá, não foi com intenção.» - O outro pareceu não levar a mal e disse: «Seja como for, vou apresentá-la: eis a minha namorada.» - O empregado retribuiu o gesto. «Muito prazer, o meu nome é Capitão Guei.» -
«A namorada? De quem?», -grítou ela ao ouvir o dito dele. -«Isso queria ele, mas só somos amigos e mais nada.» -

A sala -alcatifa nas paredes e no chão da cor do limão, aos gomos em vários sítios -começava a encher-se de clientes bebedores. Entre os quais se destacavam duas miúdas, uma de cabelos curtos empastado de brilhantina, a outra com madeixas às cores e ambas ansiosas por mostrar as suas qualidades em alternar copos (aprendido com Rato-Ratão) durante os primeiros ensaios na taberna: as chavalas tinham baptismo de guerra, Vento da Ventania (dezoito anos) e Maria-Rapaz, com dezanove anos, que abandonaram o emprego de vendedoras ao domicilio para se integrarem nas percentagens de canecos. Vinham vestidas cada uma à sua maneira; - e deram de caras com Rato-Ratão; e abanaram a cabeça, arregalando os olhos de pura inocência.
«Aquele cliente é esgazeado. -  disse Vento da Ventania em tom reprovador -Pagava-me um copo se eu lhe deixasse dar um beijo nos mamilos.» - E logo a outra assentiu, com um esgar do rosto. «Tiveste mais sorte do que eu. O rabosano 1 que estava comigo só me pagava champanhe se eu não me importasse que ele deitasse a mão nas minhas nádegas.» - Parece que a amiga não interpretou muito bem o que ela disse, porque logo a seguir ripostou: «Nádegas? E porque é que tu não o

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IPatego.
deixaste apalpar as nádegas?» - A outra pôs-se muito espantada a olhar para ela e disse:
«Porra, deixasses tu apalpar as tuas!» - O dono da taberna não as repreendeu por usarem semelhante linguagem; o espírito dele tinha mais coisas com que se preocupar, e ei-lo a dar ordens em tom alto: «Ok. Não há problema. Atrás dum cliente segue outro e a seguir a uma mesa outra espera por nós. Seguindo em frente, estão ali aqueles dois ligrinhas 1 sequiosos de vos pôr a beber uns refrescos à vossa escolha.» -
Não valia a pena Rato-Ratão ensinar muito mais do ofício à miudagem, porque elas davam bem conta do recado. E a prova disso é que, momentos depois,-ouviu-se a voz da mais nova a chamar pelo empregado:
«Sr.Empregado, faz favor: traga-nos duas laranjadas bem frescas.» - O dono sorriu e murmurou para o seus botões: «A mulher é um demónio; quando lhe convém, vira tudo ás avessas que um homem só dá conta quando caiu no logro.» -
«Vou-me embora e venho-me despedir de si - disse Baixote -Vou curtir uma de dança ao Xeque Ao Rei e levo a Madame Rara a fazer de rainha.» - O dono respondeu ao tom irónico dele. «Cuidado, não se perca pelo caminho. Boas noites.»

O mesmo Capitão Guei, agora entrincheirado à porta a controlar as entradas e saídas dos clientes, fora noutros tempos -parece estranho mas é verdade -o mais tímido dos clientes nocturnos, a alma em doçura, a própria encarnação do bom humor. Como um bom erudito que era, e adjunto do mestre-escola Rato Ratão, entregava-se às suas funções de corpo e alma, ajudante competente, trazendo as suas tarefas no mais puro dos controles que alguma vez a casa teve, fazendo por cair nas boas graças dos clientes, rogando pragas contra os outros que não deixavam ficar uma gorjeta na bandeja de barro, chegando ao ponto de ter autorização (concedida a título de  brincadeira) em colocar uma placa na parede em que continha um osso da canela de porco, bem envernizado, em que se lia em baixo os seguintes dizeres: Recordação dum cliente que não deixava ficar a sua gorjeta na bandeja. -
Nesse tempo era admirável a sua abertura de espírito para com alguns crónicos clientes da taberna, aprendendo facilmente a lidar com eles à
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lHomens homossexuais.

boa maneira portuguesa, como daquela ocasião em que o crónico cliente o incomodava ao balcão com perguntas aborrecidas e ele, olhando seriamente, lhe disse: «Conhece a marca do meu alfaiate?», - O cliente ficou espantado a olhar para ele e contrapôs: «Não, porquê?» - Então, ele muito lampeiro, abriu o casaco de par em par e colocou o dedo do meio da mão direita esticado e fez-lhe um manguito, dizendo: «Tá a ver, isto é para não me chatear mais.» - E virou-lhe as costas, indo para a cozinha, antes que o cliente o mandasse àquela parte...
A pouco a pouco a sua adesão ao ambiente transformara-o numa figura castiça e popular, enquanto Rato-Ratão controlava as múltiplas tarefas de organizar o bom funcionamento da taberna. «Enquanto você janta, eu controlo a porta e vice versa.» - Na cozinha, a cozinheira preparava o jantar. À medida que ia pondo os pratos prontos na mesa. chamava três a três ou dois a dois; consoante o movimento que houvesse na casa. O Capitão Guei era um óptimo comedor e, conforme ia devorando os pratos apimentados da cozinheira e os molhos requintados de iogurte de nabo, o seu corpo começava a inchar, pois toda aquela comida tinha de caber em algum lado e, para desinchar, bebia muita água gaseificada. Depois, sem que alguém notasse, descarregava com meia dúzia de farpas em direcção do fogão, afim de apagar os maus cheiros no ar...
 O seu problema de engordar (pesava 120 quilos) foi o inicio de todos os problemas. Quando a cozinheira lhe chamava a atenção: «Não me diga que não gosta dos meus cozinhados.Eu quero que você coma tudo, mas não quero vê-lo feito num balão.» - E ele respondia, erguendo os seus pequenos olhos por cima das grandes lentes: «Eu só quero comer o suficiente para não sentir fome, só isso.» - Que homem aquele: tinha as respostas todas e conseguia enganá-la. Porque, logo a seguir, mal a televisão começava a dar a telenovela, ele virava-se para ela e dizia-lhe bem alto: «Vá ver a telenovela, olhe, como os artistas se beijam fortemente.» - Quando a cozinheira corria para ver a cena romântica, ele dava um salto ao frigorífico e rapava uma mão cheia de fiambre e queijo, que metia para a pança; enquanto o rato espreitava no esgoto, pondo a língua de fora...
O suficiente não era para o Capitão Guei. Fora sempre habituado ao máximo. Mas não tinha que se queixar, uma vez que nem era casado nem tinha mulher, não tinha satisfações a dar a ninguém. E, se tivesse, então talvez ele tivesse desistido de comer tanto, assim não.

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A pesca foi sempre um hobby para o Capitão Guei, que aproveitava as manhãs livres para se deliciar à beira rio, olhando para o horizonte,
\vendo as gaivotas menear-se sobre as águas e, enquanto fumava um cigarro nas calmas, seguia com o olhar pachorrento a trajectória do fio de pesca metido na água e ficava assim absorvido nos mais infinitos pensamentos. Nem a presença dum cão rafeiro lhe estorvava os sentidos.
«Que é que queres de mim? Não te dou nada. Escusas de vir aqui para a minha beira, que eu não tenho nada para te dar.» - E antes, nunca deixava de mandar preparar, na tasca mais próxima, uma boa caldeirada de peixe, que seria bem regado com um jarro de vinho verde e depois, sim, abria as portas do carro,-um Fiat 1500, e punha-se a dormir uma boa soneca com as pernas para  fora...
Não passaria pela cabeça de Capitão Guei arranjar uma mulher mas 0 destino pregou-lhe uma partida. -sempre tinha concluído -que ficaria solteiro toda a vida, era essa a sua opinião sobre o assunto, mas depois que conheceu no café uma mulher que dizia ser ajudante de enfermagem, ele envolveu-se com ela; tinha-lhe despertado um sentimento forte e profundo. O facto de ambos não pretenderem ter filhos foi para ele um peso que lhe saiu das costas, pois só ele sabia os pecados da sua juventude. A ajudante de enfermagem tinha à volta de quarenta anos, trazia rosto ensonado e vestia uma T-shirt com a imagem da Madonna, quando era virgem; voltou-se de caras para ele e disse: «Só posso estar contigo duas a três vezes por semana.» - Ele suspirou com ar de contrafeito. «Bom, é melhor assim que nada, não é? Ejá é muito bom.» - Disse ela e combinaram o próximo encontro.
Depois do novo encontro, ele confessou-lhe que era jornalista dum jornal diário e fazia reportagens de noite. Ela aceitou toda a versão e pediu-lhe que gostava de se despir com o quarto ás escuras e ele fez-lhe a vontade; mas mais tarde Capitão Guei descobriu que ela tinha o corpo todo picado de agulhas eficou em alerta máximo. Um dia depois, Capitão Guei disse a Rato-Ratão o que se estava a passar consigo e recebeu a seguinte resposta: «Quer uma opinião? Fuja desse problema que isso é morte prematura.» - Ele aceitou a sua opinião sem discutir e, no dia seguinte, experimentou fazer algumas averiguações . Quase uma hora depois dele sair, voltou a entrar no quarto às escuras e assistiu àquele rito de sufoco de gargantilha que se ouvia na chiadeira do rosnar a que ela se sujeitava em nome do vício. «Tu pensas, -berrou-lhe ela quando o viu de frente - que faço isto por gozo?»

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Quando ele conseguiu meter na cabeça que tinha que tomar uma,. decisão a sério, acabou-se a brincadeira. Sim senhor, ela era uma mulher viciada até ao couro cabeludo. Não estava ainda enlouquecida pelo sarampo, mas estava com certeza toda tomada pelo fumo envenenado da farinha de pó que os toxicodependentes tomam para sonhar com visões. Ele começou a não aparecer ao convívio do sono escuro. Foi nesse período -ele reparou, acertadamente, que ela frequentava a ralé  e que se meteu com os piores índios das vielas e travessas mal cheirosas; eram ainda piores do que as putas. - Foi através dessa incursão, na ultima noite que ele dormiu com ela, que viu que ela estava inconsciente, deitada de cabeça para baixo e as mãos para cima. Capitão Guei teve de fazer as malas e partir a toda a pressa, antes que a desgraça carregasse sobre ele.
E onde foi ele buscar essa desgraça? Obcecado pelo sexo?
Com a ideia de emagrecer? À erudição dele? Na verdade ele nem sabia dar uma explicação a essa realidade.

 Quando chegou à taberna para executar a sua tarefa, servir copos, andar de um lado para o outro, comportar-se como um criado, apesar de toda a sua aprendizagem, é claro que os clientes apreciavam a maneira dele. Ele tinha sido uma pessoa cativante mas, quando se está ao balcão de uma taberna o que se põe à mesa não é conversa, mas sim serviço. E, no entanto, não se podia contestar que era um figura de proa daquele tempo da taberna do Rata-Ratão, que por fim lhe permitia sustentar as suas despesas pessoais, a manutenção do carro e pagar a renda do apartamento que alugara numa zona central da cidade. Enquanto Rato Ratão continuava a saltitar à volta das miúdas para chamar a atenção dos clientes, o resto parecia extinto, como uma lâmpada com o filamento partido .-Mas porquê? -Porque Rato-Ratão, rodeado de boas catraias, saltitava por ali como um pastor trazendo um bom rebanho e até começava a encher a gaveta de notas, engordando a sua conta bancária como nunca engordara no seu currículo bancário.
O seu lema: "Um amigo tráz outro amigo", dava-lhe o direito de seleccionar a clientela ao seu prazer -muitos e bons - o que importava essencialmente é que a gaveta à noite ficasse abarrotada de dinheiro. E mais: assim não se via forçado a suportar muito zé-ninguém que andava por aí a monte, quando podia gozar os privilégios de possuir uma clientela ao mais alto nível que frequentava aqueles antros do prazer.

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E ainda: tinha vindo a modificar as instalações da casa de modo a proporcionar o melhor aconchego para os seus clientes; e isso era sinal que 0 negócio estava encarreirado no melhor caminho e todos os dias vinham caras novas e ouviam-se histórias de homens emulheres fascinados por fantasias eróticas. -Sim, numa casa de viciados maduros, por assim dizer, o melhor seria nem espreitar sequer à porta, não sentir o cheiro dos seus aromas, ficar ali feito expectador a ver a cena final de cada um e fazer um raciocínio à mentalidade humana. -Motivos para alarme? Quem seria capaz de condenar? Não só eram as mulheres que frequentavam a   taberna, como não podia confiar em toda aquela gente;
_ havia clientes que ele considerava pessoas respeitáveis do jet set, homens a trocarem as mulheres cansadas e velhas pela cama das amantes novas e cheias de truques aprendidos nas casas dopica-pica 1 e raparigas esfomeadas de tudo à procura que aparecesse o seu gigolô e as levasse para os confins do Mundo ao encontro do amor e uma cabana sem tecto. E, o pior de tudo isto, era quando chegava a cegonha e contagiava uma ou outra das meninas e elas não sabiam quem era o pai da criança! E durante várias dias havia zangas, disputas, falatórios e todos passavam por pais, até o guarda nocturno não escapava a essa dúvida. Por esse motivo, é que um letreirojunto à retrete das meninas as avisava do perigo que a cegonha podia trazer. - Usa sempre o preservativo e evita um mal-entendido -Tal era o anúncio que, um dia, a Madame Rara proferiu: as mulheres do meu estilo, se souberem, só terão filhos se quiserem.

O que ele fez na nova mudança: para aumentar o apuro do dia na gaveta, surgiu o fornecimento inesgotável de filmes em video cassetes, como por exemplo: filmes do Cantinflas, Charlot e também de cow-boys, através dos quais (juntamente com as fitas da Bardot e da Sophia Loren) os clientes se mantinham sempre em contacto com o prazer bizarro da carne. E, para dar mais vazão ao apetite da clientela, punha anúncios à entrada da sala, sobre as fitas que iam estrear-se nos dias de cinema.
Os frequentadores da taberna reuniram-se na cozinha para urna improvisada cimeira em grupo, onde não faltava   uma comezaina  de  frango de cabidela. Enquanto a cozinheira lançava os miúdos do frango para dentro da canja  de  galinha,  Rato-Ratão instalou  o  grande  Golias  e  Ave Rara
1 Casas de passe

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a uma mesa e deu inicio à sessão nocturna. «Tenho o grato prazer de registar aqui as teorias do grande Golias sobre o GAS.» - E discursou no seu melhor estilo. Quando Baixote contou a verosímil história da fuga de Ave Rara no restaurante, em que estava acompanhado do Padrinho e de Fífia -estando o protagonista da cena absorvido pela canja de galinha e pela desgraça de falar de si - Rato-Ratão, sorvendo o ar por entre os dentes, referiu-se à conquista dos marinheiros portugueses A conquista de Goa, Damão e Diu. «Na qual até mesmo o governador reconheceu que os portugueses, embora de estatura pequena, são mesmo uns gigantes na hora da merenda.» -
«Credo, Senhor!» - Golias, de olhos voltados para o tecto, mão repousada na careca, interrompeu essas conclusões: «Ó homem, não diga asneiras. Desista. O seu problema é não saber o que diz, e o pouco que diz, transforma-se numa, numa -e concluiu a frase em tom depreciativo
-numa cagada!» -
Ave Rara, levantando os olhos do prato da canja de galinha, exclamou:
«Vocês é que me lixam lá com a história dos marinheiros; se mandassem mas era vir as mulheres para nos distrair um bocado, isso é que vocês acertavam.» - A sua voz pareceu emergir de um abismo profundo de ansiedade e comoveu a Rapariga da Saca Preta, que se precipitou para o local onde ele estava sentado e lhe afagou a face com uma carícia meiga. «Tens toda a razão. Estes homens é que não sabem apreciar uma mulher, como só tu o sabes fazer.» -
Ave Rara desatou na marmelada com ela diante dos outros que deram bronca.
A Madame Rara, entretanto, saíra da casa de banho.e apresentou-se aos catedráticos hóspedes na mó de cima. Trazia cabelo curto e permitia que os seus mamilos sobressaíssem através da camisa fina, que usava sempre provocantemente justa .Levantou os olhos para todos e acenou com a colher da sopa. «À vossa honra, cavalheiros, e à categoria destas filhas duma ...!» -
Fífia, chegada no momento, entrou em cena. «Cheguei a tempo?» -
«Chegaste, na hora certa.» -
«Já disseram tudo o que tinham para dizer ou querem continuar a dizer mais asneiras?» - Perguntou Golias aos outros e virando as costas à polémica Rapariga da Saca Preta. «Mas que espécie de asneiras, ainda temos muito para dizer? Talvez um bacanal, sei lá. E sefossemos todos foder? » - «Na Xangai room 1» - Começou a dizer, mas Baixote já estava

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1Um quarto especial para seis
·cansado de tanto disparate e cortou a conversa. «Eu tenho um lema
:comigo: na carna sou filho único, assim sei que atrás das minhas costas
,1ão existe mais nada!» - Aquilo fez rir toda a gente.
«Logicamente -continuou Baixote, com o seu sorrisinho malandro -
.cada um faz e come daquilo do que gosta. Nem aprovo nem reprovo.
\Alinho no meu grupo, cornojá disse: é único.» - Ouvem-se murmúrios contraditórios, neste ponto, suscitados pelos mais diversos disparates.
«Num passado recente, sucedeu com um atirador credenciado. Levou com ele uma mão cheia de mulheres para um combate de sexo impróprio para consumo- impingidas pelo GAS, - memória que veio acordar os espíritos de cada um dos presentes, perante as insinuações do orador - e, no meio do ringue (cama), se ele não se punha a pau, uma das lutadoras de sexo, de vibrador embutido no corpo, quase que o deitava abaixo, não fosse ele estar de olho alerta!...» -
Todos se puseram a rir. Até mesmo Rato-Ratão; havia certas verdades que sabia bem sempre recordá-las. «Verdade, verdadinha», -acrescentou Baixote. -«Eu não teria tomates de levar tanta mulher para a cama para, no fim, não ter colhões para as satisfazer urna a uma, nem que fosse um chisquinho de nada.» - E com isto, terminou a cimeira do grupo e Baixote pediu a Rato-Ratão que lhe servisse um whisky da sua garrafa. Entretanto, o resto do pessoal deixou-se estar no pagode. O dono da taberna, pela sua parte, deu um arrumo aos copos vazios e ouviu o Baixote a resmungar:
«Agora vejo porque é que omundo enlouqueceu: com estes diabos todos à solta, quem é que os vai pôr na linha?» - Mas disse-o em surdina, e ninguém, a não ser ele, ouviu o que ele disse.
Capitão Guei seguindo o exemplo do seu patrão, foi dando uma ajuda na cozinha e na limpeza dos copos. E aproximou-se do sítio onde Ave Rara, encostado ao ombro da Rapariga da Saca Preta, deitava abaixo mais um chiquetinho 1 do seu copo. «Ouça lá, dizem que você é um perito em termos filosóficos», - inclinou-se Ave Rara e pôs um braço no empregado. -«Diga-me então lá, se eu quisesse enraivecer um preto, o que é que deveria fazer para enervar o gajo?» - O outro demorou uns segundos a dar a resposta. «A melhor maneira é esta. -e foi ao bolso, tirou um bocado de algodão que passou com suavidade no rosto de Ave Rara - O algodão não engana!» -
Ave Rara desatou às gargalhadas até mais não.

1 Whisky

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Na residência da Xangai foi posto à disposição de Golias e Ave Rara, um quarto para quatro, que estava destinado para o bacanal. O primeiro. a chegar foi Golias que se embrulhou numa manta e pôs-se a sorver líquidos gaseificados. A seguir, entrou Ave Rara de copo cheio de whisky na mão e pôs a mão sobre o ombro de Golias que tremia de frio.
 «Quem não gosta de entrar numa farra destas é como se comesse um
bife sem sal», -disse como se falasse a uma plateia de bêbados. -«Uma confusão com o putedo é como entrar. num carrossel; escolher 0 brinquedo e, depois, deixar-se andar, até perder o medo.» -
Só quando o grande Golias recobrou as forças e sentiu o calor penetrar-lhe nas veias é que reagiu e respondeu à frase de Ave Rara.
«Vocês são a minha gente, o meu povo. Passei metade da minha vida junto dos amigos.»

E o espectáculo começou. As luzes apagaram-se em breves momentos, ouvindo-se o espernear de alguém. Os corpos tomaram formas diabólicas pelas complexas improvisações do tablado. Atravessados, numa cama rectangular, as almofadas enchiam e desenchiam num constante vai e vem, o colchão suportou o começo daquela excentricidade completa de fascinação. De olhar fixo nas sombras que desnudavam as suas formas sensuais e  eróticas, Golias deu um suspiro. «Ficava bem aqui uma lâmpada vermelha para dar mais realismo ao acto.» - Respondeu Ave Rara ao comentário dele. «Deixa-te aí disso. Daqui a um bocado estás-me a pedir que vá desenterrar o Gardel para ele vir cá cantar o Silenzo enla noche.» - Soltaram risos.
O pior foi o coração de Golias que começou a portar-se mal, e a tropeçar como se também ele quisesse tomar uma forma diabólica; depois de tudo o mais, porquê, logo agora? Bumbum, fazia o coração, e o seu peito sobressaltava-se. Toma cautela, senão vais desta para o maneta. Bumbum, Bumbum. Sim, estava mesmo um cangalho.
Por artes mágicas, o coração acalmou um pouco. O chelique tinha passado ao lado, pensou ele. Ainda assim, ouviu Ave Rara, em trabalho duplo, exclamar: «Então, como é? Chega-te para o nosso lado, estou aqui  há  um quarto de hora a aquecê-las; assim não tens trabalho nenhum.» - Ao que Golias, respondeu: «Ó meu caro, eu prefiro a mulher em temperatura fria, assim dá-me mais gozo aquecê-la à minha rotação, não sei se me faço entender» -

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Ficaram mudos durante um bocado, sem fazer perguntas um ao outro. Lá fora, o frio começava a querer desaparecer, dando às pessoas outra aparência mais confortável. Os fumos dos canos de escape dos carros no seu circuito sulcavam o ar espesso e frio.
O amor crescia, desembrulhado como um presente, o desejo fluía a ilusão num apetite diferente . Lá dentro do quarto, eles não davam descanso algum aos seus corpos, antes rodopiavam em malabarismos de artista tocando posições ortodoxas num guisado rocambolesco. À medida que a emoção crescia, o rosto e corpo de Golias modificavam-se mais. Sentiu as peles alargarem-se mais e viu, pela claridade que espreitava da janela, a sua pele ficar mais branca e os dentes mais pretos. E a careca pingava água que parecia a fonte das sete bicas. Ao mesmo tempo, já nem sabia quem era a catraia que lhe lançava olhares duma lascívia cada vez mais explícita, e lhe agarrava a mão com tanta firmeza que quase lhe partia os dedos... Sentiu nos lábios dela o odor da cachaça e ficou cheio de repulsa. Como é que conseguira beijá-la, desejá-la até, chegar mesmo ao ponto de estar ali armado em urso, quando ela estava toda entornada de álcool!.. A claridade tornou-se mais clara à volta deles como uma nuvem de algodão. «Tens uma cara tão mimosa .» -Segredou-lhe ele. E ela fez questão de rectificar . «Não me chames esse nome. Isso é nome de vaca!» - Lá dentro, ouviram-se risos. Ave Rara e o seu par interromperam as suas fantasias e começaram ás gargalhadas. Era agora patente que eles começavam a dar mostras dum certo cansaço. «Essa foi a melhor da noite.» - Disse Ave Rara puxando dum cigarro e pondo-se a fumar.
Cada fantasia apresenta o amor à sua maneira; mas Golias, desperto nesse instante, reconheceu que o seu coração teve um acesso de euforia com as risadas e resolveu animar o serão. «Há dias estive com o meu neto e disse-lhe: 6 rapaz, quando é que pensas arranjar uma profissão? - e o safado respondeu-me: - já tenho, avô, profissão: esperador, só preciso de estar à espera que os meus velhos batam a bota!» -
Eles desataram todos a rir.
Quando Golias se levantou, a recordação daqueles momentos encheu-o de consolo e satisfação. Onde é que se meteu aquele safado do Ave Rara? Deu por si a pensar e foi espreitar: o malandro tinha ido para a casa de banho mais as duas parceiras! O sacana: aposto que se safou o melhor possível. - Era uma ideia para repetir e para voltar. -Mas, por agora, tinha mais com que se preocupar.

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 A Rapariga da Saca Preta e Fífia abreviaram um mini pequeno almoço no quarto, composto de bolachas de água e sal e champanhe Gancia, com que se tinham munido da taberna, e os seus rostos transpiravam ainda excitação por todos os poros. Golias devorou as bolachas e Ave Rara atirou-se à bebida, enquanto as raparigas, ao fim de alguns instantes de brincadeira, desataram a palrar, em simultâneo, que ninguém as conseguiu fazer calar. «Quando acabares um serviço, tens que tomar sempre banho, senão, cheiras a porco, percebes?» - «E tu cheiras a galinha choca, sua mula, bem diz o Baixote que tens um mau hálito, por isso é que um homem, quando vai para a cama contigo, perde logo a inclinação de endireitar a forqueta!» - E enquanto uma das raparigas perdia a fala, Ave Rara cuspiu o champanhe para o chão e berrou furioso: «Ó carago! Calai-vos  lá, senão, corro-vos fora do quarto.» -
«Estamos a brincar, -disse Fífia com meiguice no olhar -Nós até somos amigas, não somos, pá? -concluiu rapidamente ao ver a Rapariga da Saca Preta com uma cara do caraças - Bom, o que a gente disse, - começou ela a gaguejar -bom, quer dizer, foi a brincar, vocês não levem a mal.» -
«Foi uma noite do caraças -disse Fífia fumando um cigarro.
«O que a gente passou aqui - acrescentou Golias - não se conta nada a ninguém, por causa do falatório lá na taberna, perceberam?» - E uma delas terminou a frase: «Também não quero que ninguém saiba disto.» -
«OK, estamos conversados. - Agora foi Ave Rara que falou com convicção. - Mas não se esqueçam  que prometeram voltarmos  cá novamente para a segunda parte.» - E recuando em direcção à porta, disse ainda: «Sois um encanto. Até logo.» - A Rapariga da Saca Preta, antes de sair, tirou um frasquinho dentro da carteira cheio de líquido azul e pôs umas gotas no meio das mamas e das orelhas e deu o seguinte remate na hora da despedida: «Olhai, o primeiro gajo que se chegar ao pé de mim, vai-me querer lamber toda...» - E desatou a rir pelo corredor adiante.


O facto de Fífia e da Rapariga da Saca Preta se perfilharem a fazer duplos em programas de erotismo revestia-se essencialmente por causa do pilem que caía na suas carteiras e convenciam «toda a gente» que eram, acima de tudo, especialistas no assunto.«Agora aquele velho marado

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quer-me convencer a ir com eleparaacama elevar urna cassete de vídeo com cenas de coelhos  a fazerem  amor!» -
«Eu acho isso um nojo», -concordou Fífia. -«Esse tipo fez-me lembrar
a história que eu tive há tempos com um coxo que tinha a mania de fazer amor em cima da cadeira e punha a perna de pau a fazer de trave para o segurar; às tantas, entusiasmou-se tanto que acabou por cair e bater com a cabeça no chão e teve que ir receber tratamento ao hospital.» - Mas elas não eram lésbicas, não o eram de forma alguma; apenas faziam uns trabalhinhos encomendados por causa do pataco e, no entanto, não lhes faltavam clientes que não as quisessem. «Onde está o velho maluco da cena do coelhô?», --Perguntou Fífia. -«Apresenta-mo, hoje estou com vontade de fazer de coelha.» -
Estava ao fundo da sala. A Rapariga da Saca Preta foi ter com ele e apresentou-lhe a amiga. Com uma mão a tapar uma parte do rosto, o corpo esguio e esquelético escondido numas calças largonas a cheirar a unto de porco, e num par de sapatos medida 50, o velho marcou o encontro logo a seguir à apresentação. Depois, aconteceu o seguinte. A meio da sessão do vídeo na cena do coelho se atirar à coelha, Fífia começara a vomitar e, sem dar conta, perdera a cremalheira dos dentes.
De repente, quis falar com destreza como era seu hábito e deu conta que sentia dificuldade em mover o maxilar.
«Que motivo será?» - Disse ela, indo fazer um chichi. «Qual é a tua entrada em cena?» - Perguntou o velho quando os coelhos começaram aos saltos. «Eu já te digo.» - Mas passaram mais de cinco minutos antes que o fizesse. Entretanto, na cena do vídeo, os coelhos continuavam à procura das coelhas saindo Fífia da retrete, abriu os olhos e viu a sacana da cremalheira dos dentes, mesmo ali à sua frente, espetada nas costas do velho.
A primeira coisa que pensou foi aproximar-se dele, fazer-lhe uma festa na cabeça e zás, colocar de novo os dentes na boca. «Ü que é isto?» - Berrou o velho pondo a mão nas costas mas ela acalmou-o com uma cena de coelha dócil.
Bem, depois, arranjou uma cena em que não fosse preciso mexer muito com os dentes e, durante a parte final, os coelhos puseram-se a comer as coelhas de pé e a falarem com pronúncia de habitantes do Leste.
Entretanto, despediram-se dos intervenientes.
Até à próxima. E já agora, muito boa noite.

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Afinal de contas, São Nicolau (veio a saber-se mais tarde) perdera também a casa. Como sejá não bastasse ter perdido a mulher, o trabalho e o controlo da sua vida.«A merda do sensacionalismo quando dá para avancar 1 é sensacional mas, se dá para o torto, mete um medo do carago.» - E não lhe saia da cabeça que, um dia destes, ainda voltava a colocar-se frente a frente com o homem vestido de negro e de martelinho na mão a bater na secretária e a dizer constantemente: «silêncio». Uma pessoa, quando nasce para apanhar tareias e se calha de ficar moído, só a urna o salva de apanhar mais porradas. Seja como for, São Nicolau já tinha feito a sua previsão relativa ao futuro. Mesmo com o estouro do famigerado negócio das transferências de defuntos, mesmo que não vergue mais a mola e caso não tenha direito à reforma da Segurança Social, hei-de morrer à sombra de uma bananeira e, confortavelmente, num caixão minimamente decente.
Estava a descer pela zona secundária da cidade, junto a um declive de águas sujas a vir trazer-lhe o cheiro. Porque seria que a sua vida se assemelhava tanto, no seu caso, a Padrinho? Pusera a consciência a trabalhar e vinham-lhe à mente coisas-nunca-iguais, do estilo não
-voltar-atrás, e enchia-o de medo. Sabias que agora eu ando com Mister Louis? E como é que tu havias de saber se eu nunca te disse? Foi assim, quando andei por aí a vegetar que eu o conheci. Quando uma pessoa esquece opassado fica distante de sipróprio, corno diz oprofeta Abraão. Se conseguires aguentar-te, livra-te da incúria e foge da penúria, disse para consigo.
Mister Louis: um turbilhão ao Deus-dará, um sujeito que deixou de valer um tostão. Playboy inglês, tinha transformado uma banalíssima agência de trapos - M ister English - numa loja de marmelada. Sobejamente um paranóico, famoso pelas suas aventuras com estrelas de cabaret e algumas rainhas das casas de massagens e, segundo as más línguas, pela sua apetência às mulheres de mamas grandes e traseiros bem arredondados, a quem «comia pelos olhos», norma utilizada no seu caso que «recompensava generosamente». Para que é que a Maria-Rapaz se tinha ido meter com aquele aventureiro do Mister Louis, com os seus truques das argolas no corpo e o seu BMW ultimo modelo? Para homens daquele escalão, as chavalas mesmo mamudas e bem avantajadas de traseiro - eram para dar urna moca e não repetir. - Devemos também dizer que o vício, quando surge, perverso e tentador, é incontrolável do poder indígena.

Maria-Rapaz telefonou na noite seguinte, dos arredores do Porto. A funcionária chamou Mister Louis ao telefone mas ele quando atendeu o telefone, ela já tinha desligado, mas voltou a ligar. «Estou a falar duma cabina e não tenho mais moedas.» «Maria», disse ele, deixando transparecer na voz um fio de desespero. «Tu não me disseste que me ias dar com os pés» «E tu nem me disseste que me ias trocar por aquela nojenta da preta», respondeu ela. «Cada um de nós tem as suas razões.» Ele voltou a dizer: «Maria, volta, que eu vou-te pôr uns brincos gírissimos no teu pipi para nós brincarmos como dantes.» - «Põe antes no cu da preta.», disse ela n_um tom brincalhão. «Parece que estou a imaginar a cena. A preta a guinchar, quando quiser arriar o calhau e os brincos a tilintar uns nos outros, ah,ah,ah.» - Ele deixou-a rir até voltar a dizer:
«Maria, eu estou só no mundo e só te tenho a ti. Não me faças atirar da ponte D. Luis 1ao rio Douro, que agora a água está gelada.» -
Ela ficou como o gelo. «Louis, ouve bem o que te vou dizer. Não quero discutir contigo outra vez porque, no fundo de todas as tuas parvoíces, se calhar até me amas. Por isso vê se entendes que eu sou uma miúda inteligente e, porra, pá, deixemo-nos de merdas; nenhuma branca gosta de ser trocada por uma preta. Quando dou o meu amor é porque estou consciente que amo essa pessoa, estou a falar de nós, evidentemente, por isso é que eu te digo, Louis, não me queiras explorar mais. Ainda tu andavas nu como o macaco e já os teus descendentes exploravam as parvas como eu. Vai para África ou para a Índia que lá não devem faltar mulheres que gostem de pôr brinquinhos nos sovacos, cotovelos ou quem sabe, até nos próprios calos dos pés; dizem que elas os têm a rodos.» -
«Neste caso, admites que não me amas e que não me queres mais.», objectou Louis, mas a voz atraiçoou-o. «Desta vez é de vez.» -
«No fundo, acho-te divertido, um velhaco, e único no teu género. Mas vou fazer-te uma lista de duas a três coisas que me interessam: nada de brincos, nada de pretas e um exclusivo só para mim; dia e noite.» -
«Maria», disse Louis, «Mas assim, tenho que ter urna língua de aço...» - Mas a chamada foi abaixo e elejá não a ouviu. Poisou o auscultador no descanso. Ela voltou a telefonar, dias depois e, nessa altura, já a lista das promessas estava consumada; ela nem lhe perguntou se elejá tinha dado mais uma queca na preta ou noutra qualquer, nem lhe perguntou onde ele andava, como ele também não lho disse e tornou-se evidente para

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 ambos que se tinham de afastar um do outro, era tempo de dizerem adeu:
«Louis», -disse Maria.-«Aconteceu-me uma coisa estranha. Apaixonei-m 1 por um amigo teu ...» - E ela ainda estava a relatar-lhe o novo filme d:i sua vida quando ele atirou com o telefone contra a parede. Uns segundo depois, o telefone tornou a tocar.Ele foi atender. Era a voz dela. Maria
continuava entusiasmada a não falar de outra coisa que não fosse o amigo dele:os nossos planos são fazermos filmes sobre os piratas em Portugal e na Espanha, buscando as grandes vedetas, Hermanias, Miro Azevedo. Filipe Gonzalez, para desfilarem diante da Igreja dos Congregados ou do Mosteiro do Pilar -«já imaginaste reunirmos estas personagens sem cachet», -acrescentou ela alegremente.
A verdade é que as coisas estavam a aquecer para o lado dela. Louis nem quis acreditar quando ela disse que o amigo se chamava Champalinas. Louis lera, no pasquim do GAS, o nome dele associado às fajardices com mulheres da pior espécie e manobras fraudulentas, mas era assim mesmo, vigarista um dia, pirata toda a vida. Disse Maria: «Então ele perguntou-me: queres um casaco de visão? Eu disse, Champalinas, não precisas de me comprar coisas tão caras, mas ele insistiu :minha querida,
nada tema comigo. Vamos às compras e está tudo dito.» -
Tinha voltado a dar uma visita pelas ruas Sá da Bandeira e Santa Catarina e Champalinas trouxe o seu Mercedes.Ao chegarem ao centro, ele encostou o carro na baixa e pediu-lhe para aguardar uns instantes; parecia um xeque do petróleo .
Ao fim de alguns minutos ele regressou com embrulho debaixo do braço e disse: «Aqui está, minha querida, o casaco vista-o que é seu.» - Ela deitou a mão ao casaco. «Que bonito.» Ele segredou ao ouvido dela.
«Foram só quatrocentas donas marias, mas você merece tudo de bom
que há no mundo .» -
Era uma tarde de sexta feira, as lojas estavam superlotadas de gente a fazer compras para o fim-de-semana. Champalinas entrara na segunda loja e comprara um anel de brilhantes, enquanto Maria ficara à espera dentro do carro. Cinco minutos depois, ele chega e coloca-lhe o anel no dedo, perante o espanto dela que não queria crer em tanta coisa bela.
«Meu Deus, isto deve ter custado uma fortuna.» - Ele segredou-lhe: «São duzentos mil, mas já está pago.» - No dia seguinte, de manhã, abriram as lojas comerciais e Maria deu um passeio pela baixa e foi ver asmontras,

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vindo a descobrir que o casaco de visão não era verdadeiro; afinal, aquela pele não passava sequer duma pele - de coelho bravo .-Ela nem quis acreditar e pôs-se a protestar com o lojista que tencionava processá-la por difamação e pedir-lhe uma indemnização. E, daí a uma hora, chateada com aquele mau dia, resolveu entrar numa casa de penhores e foi avaliar 0 anel de brilhantes. Ali lhe disseram que em vez de brilhantes, tratava-se de «esmeraldas»  e valia uns cinquenta e picos contos, mediante
pagamento imediato. «Não é uma má ideia. Digo que o perdi e meto o dinheiro ao bolso.» - Pensou Maria e assim fez, vindo recheada de notas na carteira.
À beira destas fajardices todas, eu sou um autêntico homem, percebeu
Louis, que não sabia bem como as coisas se tinham passado e vivia num mundo de salve-se-quem-puder. Na sua agência de trapos, continuava inexplicavelmente a tratar as funcionárias como suas almas gémeas, apesar de todos os seus esforços para as não roer, principalmente, às flausinas que lhe batiam com «ele» nos olhos...
Lá dentro do escritório era um ser admirado, como a figura dum arrombador de gavetas, o gentleman do mico, o explorador de ingénuas; de um modo geral, um artista da arte de as comer bem. Nesse período, corrigiu-se a si próprio.
Mais nenhuma Maria-Rapaz seria capaz de lhe roubar o coração. A titulo de experiência, contou-lhes a história de Champalinas e do casaco com pele de coelho bravo e do anel que foi para o chaço.
Os olhos delas brilhavam e, no fim da história, riram deliciadas; a vigarice paga pela mesma vigarice, dava-lhes vontade de rir. Assim compreendeu Louis, tinha as funcionárias de outros tempos aplaudido e soltado gargalhadas ante as proezas de pessoas sem classe e, neste caso, Champalinas, outrora amigo epresentemente inimigo...
«Há pessoas tão reles e sem categoria.» - Exclamou a nova empregada de escritório, rindo com o seu ar provocador, traduzindo uma série de nomes sensacionalistas, enquanto exibia o seu corpo delgado e, como Louis agora reparava, loucamente apetecível, em várias formas eróticas não muito exageradas.
Fazendo beicinho com a maior desfaçatez, sabendo bem que o tinha excitado, acrescentou afectuosamente:
«Um beijinho?» - A colega mais nova não quis ficar atrás e tentou copiar a pose da outra, mas com bastante menos êxito.
Desistiu da tentativa, não sem alguma irritação.

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A taberna de Rato-Ratão estava classificada como cervejaria esnack-bar. categoria de estabelecimento que as entidades turísticas classificaram de segunda classe. «Uma casa como esta - comunicou o dono - só se encontra em revistas, livros ou no cinema.» -
E voltou a dizer: «Neste momento, praticamos os preços mais baratos ao cliente, por isso espero bem criar mais clientela.» - Realmente, por aquela comodidade toda e pelos preços, pensou Louis, não é difícil um indivíduo tornar-se cliente da casa; e não havia aumento de preços quando surgiam novas pombinhas. Que também seriam bem-vindas. Entretanto, Rato-Ratão enchia-se de bondade, fartando-se de dispensar a sua sabedoria sem pretensões e oferecer a sua amizade e os seus sorrisos sem pedir em troca sequer tostões. E, atrás do sofá do meio, Louis espreitava ao perto a trintona de mini-saia a fazer um telefonema ereparou que, à sua volta, talvez uns vinte otários, tão atiradiços como ele, estavam prontos para esfolar o cadáver.
O mundo do vício.
«Escusava de estar aí debruçado na mesa com esse ar de big boss», - disse Capitão Guei. -«Olhe para trás e pense de que lhe serviu estar a dar de olho à trintona, se houve mais de vinte olhares para ela que a pobre coitada nem sabe qual foi o olhar mais respeitador de todos.» -

«0 teu império está a apagar-se.» - Voz Calada, homem sempre programado, criador do Silêncio dos Surdos, e único proprietário da ideia, gastou exactamente quinze segundos a felicitar Padrinho por ter conseguido levar o seu projecto avante, antes de começar a explicar por que é que esse facto agora estava dependente de novas ideias. Voz Calada tinha começado a sua carreira na publicidade com algum sucesso. Padrinho, no entanto, não se atrapalhou. Todos aqueles anos no negócio de formação tinham-lhe ensinado muita coisa. E marketing é o que ele sabia fazer mais e tinha potencial para isso; o mundo da formação, o mundo do aluno aprender a passo de caracol. No mundo da rapidez, todas as pessoas voam senão ficam para trás; as outras que não chegam à meta, paciência, tentam outra vez. «Estou a falar, -soprou Voz Calada ao telefone -do vosso reinado.» -
Outra vez aquele chato: Padrinho, atarefado com papeis por todo o lado, foi ao sítio onde estava pendurado o telefone no meio do corredor; enquanto os alunos lá dentro da secção, atacados com peças de vestuário mal talhado para consertar, não davam vazão à encomenda e nem sabiam

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por onde esticar os tecidos. Agora, porém, Voz Calada não estava a brincar. «As sondagens mostram», -sussurrou ele. -«Que a informática e a televisão têm um papel preponderante na nova formação dos novos valores para a indústria em geral. Não é isso que pretende, Padrinho? Não sei se está a topar o filme, o tempo dos Marretas já lá vai. Agora é chegada a hora dos Fiúzas entrarem em antena pública. Vê se entendes 0 que eu quero dizer!» -
Padrinho viu-se reflectido num espírito novo, olhou para o espelho
por cima do telefone. Parecia que tinha crescido mais um metro. «Enfim, não há nada como experimentar esse projecto.Venham lá esses filmes.» - Respondeu a Voz Calada, sabendo que não valia a pena insistir. Na escola de formação, todas as informações aos alunos foram dadas através do slogan: Procura a nota. E mandara colocar um cartaz à entrada do seu gabinete e afixara a sua fotografia do Padrinho. -Busca o dinheiro - uma sigla que entusiasmara todo o aluno. Como Voz Calada costumava citar, as suas quatro amantes, todas bem boas, de cada vez que se punha em cima do poleiro delas dava cabo duma pipa de massas. «Que é que eu hei-de fazer ao dinheiro? Ao menos gozo e, quando não tiver nota, elas piram-se à má fila e deixam-me ficar por aí como um cão abandonado e à deriva. - dissera ele um dia a Padrinho nos tempos mais felizes. - Que se lixe. Eu sou de carne e osso. - Padrinho ao telefone, lembrou-se que se esquecera do slogan. «Como é que se chama a frase publicitária?  responde Voz Calada. - São boas como o milho!», «Ó meu sacana, perguntei a frase e não a qualidade das tuas amantes.» -
No tempo em que ele conhecera Voz Calada (há quase cinco anos) num almoço na fábrica das molas, o homem já era um sabido. Nessa altura, ele vendia  porcos aos lavradores por meia nota de conto e punha-lhes chumbos nos ouvidos. Uns dias depois, os animais adoeciam e o sacana voltava a negociar os porcos, trazendo uma dúzia pela meia nota. A seguir, meteu-se nos anúncios e andava para aí a fumar charutos gordos, dizendo: «ando a aprender com o Churchill» - Trazia um colete à moda alentejana com a etiqueta dos toureiros e fazia questão de utilizar a muleta quando pregava o mico aos amigos; adorava imitar o John Wayne, e andar sempre aos tiros (na carteira dos outros, claro!) para grande espanto dos seus clientes, mais ligados a ele; afirmava ser o dono do Palácio da Bolsa com escritório no salão árabe e prezava muito as suas relações com ojuiz supremo do tribunal correccional de adultos de

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habilidade escassa. O Voz Calada era uma personagem do tempo actuaJ e possuía instalações c1tadmas duma agencia criativa, denominada A sociedade Voz Calada e Harmoniosa. Tal como Mister Louis, adorava carros alemães e de preferência grandes e automáticos, com bar na parte de trás do assento, e adorava a qualquer hora beber leite da vaca Mimosa. Dizia-se que, uma ocasião, ia na companhia dum amigo e deu-lhe para engatar uma prostituta na estrada para lhe fazer uma massagem no carro. Mal ela o pôs a aquecer, pediu-lhe que passasse a gaita no leite e Voz Calada reparou que a mulher ainda era maior que ele. Quando ela se aproximou, Voz Calada carregou no botão para descer o vidro e, ao mesmo  tempo,  abriu a porta  e disse com um  sorriso encantador:
«Agradeço-lhe que se ponha daqui a toques muito depressa, antes que ela deixe de endireitar porque, depois, ninguém me aguenta.» - Voz Calada era um génio a inventar factos e ideias e a sua agência estava bem cotada no mercado da piada barata e tornou-se bem conhecido dos rufiões, mangoneiros 1 e ambientes da pesada. Padrinho desconfiava há muito tempo de que Voz Calada inventara a ideia das fitas de projecção sobre a formação - cadeiras, slides e o projectista sem aparecer.
O almoço entre ambos acabou por sensibilizar as duas partes e Voz Calada saiu-se bem no seu desempenho numa campanha de promoção aos vinhos a martelo dos tascos de Cima de Vila, que fora um êxito estrondoso. Voz Calada dizia em voz grossa imitando o Cocas dos Marretas: Beba três e pague só um. Eu sou o copo do prazer. Nesse dia recebeu quatro garrafas de litro por ter convencido os bebedores a beberem o triplo das suas medidas. «Você é um ás», -felicitou-o Padrinho
-«Deixe-me apresentar-lhe os meus cumprimentos.» - ·
Quando Procura a nota começou a ser alvo de curiosidade por parte dos alunos que acorreram em massa ao programa da escola de formação, Padrinho esfregou as mãos de contente. Graças a ele e ao seu entusiasmo, aumentara a sua intimidade com o génio Voz Calada, e passou a ser conhecido corno «OS dois da vida airada».
Tudo, porém, não passou duma gota de água no oceano. As pressões fiscais contra o programa de vídeo agravaram-se durante a ausência de Padrinho e muito por culpa dum tal senhor Chinês que apareceu na escola a bisbilhotar na papelada. «Senhor fiscal, eu não faço ideia onde estejam esses documentos», -roncou o encarregado da escola. - «Üs serviços de contabilidade não estão a cem por cento a funcionar.»

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1 Indivíduos com expediente e preguiçosos.

Mais tarde, o encarregado comunicou aquela visita ao Padrinho que ficou a colher informações. «Ü estafermo tem uma cara do caraças, os seus olhos olham por baixo como a catatua.» - Padrinho considerou tudo uma perseguição à sua empresa e mandou um recado a Voz Calada. «Eu cá», - anunciou o outro, - «juro que não recebi nada. Mas não te preocupes, eu vou saber quem é.» - E foi logo a seguir ao almoço que Voz Calada contactou o fiscal das finanças, o tal Chinês e acabou por saber que era uma rotina ao sistema da contabilidade da empresa.
Mas Padrinho não gostou de ouvir isso e foi tratar com um cliente e fornecedor de computadores para alterar o sistema informático. «Eu quero as rectificações à minha maneira. Tradicionalmente feitas de trás para a frente e de baixo para cima.» - Demonstrou com um esquema no papel o que pretendia. «Está a ver? É assim que eu quero o programa . Três para mim, mais três para mim e mais três para mim e sempre assim.» - Não foi preciso explicar mais nada, que o homenzinho percebeu tudo em ângulo recto, conforme os desejos dele. O que eu mais adoro neste país são os génios. Os maiores fabricantes de ideias. Sem eles, as estrelas não se iluminavam. Fora com o ar mais natural do mundo que Padrinho perguntara. «Tem toda a razão. Também lhe dou a minha.» - Confirmou o outro.
Encontraram-se os dois pela ultima vez, pouco antes de Padrinho seguir para Lisboa; almoço de sexta à tarde no restaurante do Zé da Pipa, ali não muito longe da empresa. A ementa era caseira: arroz de sarrabulho, várias saladas e azeitonas brancas. Por fim, fumaram um charuto cada um e beberam um Armagnac. O paraíso da dolce vita, proferiu Padrinho e reconheceu alguma inveja nos seus pensamentos.
A seguir ao almoço, uma sürpresa. Voz Calada levou-o à sala de dentro onde se encontravam dois homens com dois instrumentos nas mãos;um com uma guitarra e outro com uma viola. «Para descontrair um pouco», -confessou Voz Calada com os olhos brilhantes. -«Vou cantar um fado.» - Ouvíu-se o trínar dos instrumentos e soou a sua voz u m pouco roufenha:

Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida Tão concreta e definida, como outra coisa qualquer...

«O meu pai era mestre nas cantigas.» - O talento de Voz Calada como

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fadista era inegável e estava, de certa forma, em desacordo com a sua personagem. Quando saíram do restaurante, ele encostou-se à porta da entrada e confiou ao Padrinho: «Vou falar do-que-tu-sabes», -explicou Voz Calada. -«Ü sistema é radical. O que eles querem é engolir-te. Vê se te vês livre deles senão és carne para canhão.» «Tu já pertences aos da velha guarda. Percebes o que eu estou a dizer?» «Acho que sim.» . Mentiu Padrinho. «E não é só com homens de negócios, - disse Voz Calada com voz esganiçada -Com os intelectuais é igual. Rua com essa corja de maricas. Que peguem nos esfomeados dos sem abrigo que não tiveram instrução certa, com todos os vadios, todos, ouviste? Novos e velhos, professores e doutores, tudo novo cá na terra, dá uma autêntica revolução. E este país está atafulhado de vigaristas e medíocres! Já me começo a chatear comigo mesmo.» -
E depois o adeus entre os dois.
«Amigo, segue o teu caminho», - Murmurava Voz Calada ao seu ouvido. - «Depois a gente vê-se por aí, algures.»
«ÜK. Não fales mais, senão eu choro.» - Cada um seguiu para o seu lado.


Abandonado por aquela que ele considerava ser a sua amiga dos tempos modernos, Champalinas teve, para seu desencanto, notícias desagradáveis que lhe foram bater à porta do pequeno apartamento onde habitava. - o berro do recibo da luz - «Trriimm» - a campainha da porta preveniu-o a tempo; mas, antes disso, teve que desligar o rádio e deixar- -se estar sereno durante uns bons minutos, até o funcionário dos serviços da luz se retirar. Depois de se certificar que o homem já se tinha ido embora, abriu as portas do quarto e ouviu uma voz que partira de dentro: «Quem era,?» - Perguntou a sua nova amiga.
«Era o vendedor da casa da sorte a ver se eu queria comprar uma lotaria.» - Mentiu ele. A moça saiu do quarto com quase tudo à mostra e tapou meia cara. «Podias ter comprado o 69, é o meu número preferido.» Champalinas deu-lhe vontade de rir e berrou-lhe:
«És uma desavergonhada, já viste como estás? Vê se te vestes.» -
«Oh! Não me fazes a vontade, também não te faço a tua.» - Resmungou ela entre dentes, cravando um par de olhos rebeldes nele. Lá no fundo do corredor via-se a moça, mostrando tudo de bom aos inquilinos do prédio de frente. «Quereis, mas não vos dou...» -

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«O que estás para aí a dizer?» - Perguntou de novo Champalinas.
.Mas a moça desaparecera para o quarto de banho, -deixando a janela entreaberta; -e pôs-se descontraída a tomar um duche frio.
Champalinas pegou no fato completo e nas botas e arranjou-se, desde há muito que mantinha aquele apartamento na zona chique do centro da cidade, para não perder o contacto de gente de bem, queque como se diz na linguagem fina, etinha boas relações com gentes de todos os níveis, embora fosse acusado por alguns amigos de ser um grande pantomineiro. E escapuliu-se no elevador, deixando a moça a tomar banho, saindo cá para fora afim de resfriar os ânimos.
O que seria feitó'da sua indústria de filmes? Dizem que tudo não passou de uma grande manobra e tinha agora um negócio em mão, que os amigos lhe asseguravam óptimos rendimentos: telemóveis e rádios para carros.
Mas, continuando:
A notícia no pasquim da taberna do Rato dizia que a empresa de Mister Louis tinha sido estruturada na sua totalidade e virara-se para a exportação, produzindo calças e camisas de caqui, marca: Quemerda, e assinalando o regresso da marca -Mister English. -Agora revelava-se um autêntico self-made man. É a hora da verdade, escrevia o pasquim: ou ele se atira de cabeça, ou então vai pró maneta e aí nunca se sabe o que pode vir a acontecer! A notícia causou algum impacto entre os leitores, mas outras pessoas não fizeram caso, pensando tratar-se duma brincadeira . «Sabem que eu não sou homem para brincadeiras», -disse ele, depois de ler as notícias . - Sempre que me atiro tenho êxito e, se assim não fosse, estava quieto na praia a apanhar sol nas ventas.» - A sorte, porém, voltou ao fim de algumas semanas e ele sentiu que a exportação para a Colômbia e Brasil subira o volume das encomendas.
«Aceitei este repto com todo o empenho e com a mais sincera das virtudes», -procurar o êxito. -«E parece que o estou a conseguir :-o lançamento das calças Quemerda. -
Que calças eram essas? Um tipo de calças destinadas a combater o sol, com refrigeração no seu interior, era uma das novidades no mercado internacional. «Ü problema das calças», - explicava ele aos amigos. -
«É se um indivíduo vai para uma pista de baile dançar com uma miúda e põe-se no roço, o calor transforma as calças em água.» - Não faltaram risadas ao comentário dele.

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«Desculpem a confidência, mas as calças, para quem sofrer da falta
de calorias na gaita, é uma maravilha, está sempre no braseiro.» -
«Uma espécie de calor artificial» - Disse um deles.
Quando a notícia se espalhou pela taberna do Rato e Champalinas tomou conhecimento, horas mais tarde, ele teve o mais famoso dos risos de troça que alguma vez já teve; um riso que quase o obrigou a mijar pelas calças abaixo. «Calças com refrigeração para combater o calor», - riu-se perdidamente. -<Champalinas acalmou-se e passou o lenço pela boca . «Hoje em dia, ouve-se cada uma, vá lá o diabo lembrar-se destas coisas.» -
«Também ninguém acredita em bruxas», -encorajou-o um amigo. -
«Mas, que as há, isso é uma certeza.» -
O amigo saiu, deixando Champalinas a sós com a ironia daqueles momentos, sem se aperceberem que aquilo lhe dava um prazer fantástico. Mas não há que o censurar por isso; as zangas entre Champalinas e Mister Louis, é um facto que remontam desde há uns tempos atrás. Manda a verdade que se diga que nenhum dos dois sabe quem começou primeiro e quem tem motivos para apontar o dedo ao culpado.
Mas o que foi que aconteceu? O seguinte: durante algum tempo foram amicíssimos mas, numa breve discussão por causa de saias e de copos entre eles, pegaram-se e diminuíram a amizade. Inequivocamente, alguns furos abaixo da tabela de O a 1O, ficaria aí um três...
Seja como for; o optimismo da reportagem no pasquimveio a revelar-se infundado de algum realismo; pois, alguns dias depois, a imprensa comunicara que a empresa de Mister Louis tinha sido abordada para apresentar a sua obra prima: - as calças Quemerda - e fora alvo duma chacota juntamente com a sua nova secretária, no concurso de danças de salão em Genebra.
Para que não nos acusem de falta de informação, devemos acrescentar que os bailarinos -dentro de umas calças com ventiladores (a delicadeza não nos autoriza que divulguemos  pormenores mais concretos), expuseram-se demasiado ao calor, e mais não diremos.
Mister Louis teria sem dúvida classificado a ideia como «uma grande golpada», não fosse o imprevisto da dança em que se deixou adormecer,

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ao compasso dos francos suíços. «Quando um homem vende uma ideia não pode comprá-la de novo. -Mister Louis não chegara a embolsar francos nenhuns, muito pelo contrário, tivera que se fisgar muito rapidamente pois a comunidade mundial dos bailarinos ansiou por deitar-lhe a luva. «Estava tudo tão real como Lucifer ser generoso para com Deus. -invocou ele para o seu espírito interior.» - Os dois piraram-se de lá muito de mansinho sem grande algazarra e contando algumas aventuras por cá passadas à Menina Ane Jalouneix, que no dia anterior entregara ao casal um pedido de indemnização destinado aos bailarinos, na ordem de um milhar de contos. A Menina Jalouneix tinha alguma influência no Departamento do Turismo e os inspectores chegaram tardiamente ao hotel, quando Mister Louis e a sua secretária já galgavam a fronteira para Espanha.
Quero que vocês se lixem.
Durante uma temporada nunca mais se falou nas calças de caqui com ventiladores para o sol.

À medida que os fumos penetravam na mente de Chicras, o seu corpo tornava-se num demónio à solta e, no parque automóvel, cada vez era mais evidente que o seu estado piorava de dia para dia. Os dentes tinham-se pirado pela retrete abaixo, mostrando a gengiva ao luar sempre que tinha que arreganhar a tacha a uma pessoa para pedir uma esmola. Crescera-lhe a barba preta e espessa, o seu nariz bicudo parecia um lápis de desenho enos ombros exibia muitos pêlos; na verdade, todo o seu corpo estava cada vez mais parecido com o chimpanzé, bem peludo, e surgia-lhe até, na zona dos enchidos, um testículo a mais que crescia cada dia mais ejá o obrigava a usar calças de número superior e andar de muleta para equilibrar-se melhor, escondendo assim o novo membro em largas almofadas por dentro das calças. Facilmente se poderá imaginar o desassossego que nele suscitava esta transformação progressiva. Até o seu apetite se alterava. Desde sempre esquisito em matéria de comida ensacada, ao ponto de nada lhe saber bem e de dar por si ao meter para a veia. A estranha sensação de que o testículo aumentava sempre que puxava o ar pela narina - para snifar a coca - caindo em si meio envergonhado e aflito, ante este novo indício de crescimento do novo membro. Era uma coisa terrível, tão terrível que ele, ás vezes, julgava que estava a sonhar e custava-lhe a suportar.

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A presença dele tornava-se nefasta para os poucos comparsas que. acompanhavam na zona dos vícios e todo o dinheiro ajuntado na vigilânci, dos carros se misturava nas doses da droga que acalmavam o seu hábito. levando-o a sentir-se no estado em que ficava, uma espécie de Monstn da Ópera, um ser repugnante, mas não necessariamente aterrador.
«Ele que não se atravesse no meu caminho, senão, ainda lhe parto 0 focinho.» - Exclamou Ave Rara quando ia a entrar na taberna do Rato l' o olhou á distância. E virou-se para o empregado: «Você sabe o que me fez aquele malvado? Costumo dar-lhe sempre meia nota de conto para vigiar o meu carro e não é que o estupor, há dias, apareceu-me com uma lengalenga a ver se eu queria comprar uma máquina de filmar Sony e pediu-me adiantado cinco notas de mil que depois fazíamos contas pois
estava cheio de pressa. E eu, armado em pastor, passei-lhe o dinheiro para a mão e o gajo espeta-me com o embrulho e, quando eu vou abrir. tinha dois tijolos embrulhados num jornal.» -
Ele continuou, no entanto, a mostrar-se solidário, mesmo depois daquele estúpido procedimento que teve lugar ali à porta da taberna e pediu ao empregado que o avisasse quando fosse a sair, pois não queria dar com ele de caras e perder as estribeiras.
Capitão Guei, gentil como era, aproximou-se do sítio onde Chicras estava, deu.-lhe uma moeda de cinco escudos, sem dizer quem era o remetente e deu-lhe uma palmada no ombro e disse-lhe: «Por hoje, basta de arrumar carros. Está na hora de ires ver o Espírito Santo a pregar na televisão.» -
Agradeceu de emoção e de pé em pé saltitou pela rua adiante. «É
fraco o programa que me está a dar», - disse ele, mim tom irónico.-
«Prefiro antes ver a telenovela Gabriela, Cravo e Canela.» -
«A escolha é tua.», - Desculpou-se Capitão Guei.. «Eu só queria informar.»
«Mas informou mal», -voltou a responder Chicras com a sua amargura estampada no rosto. -«Costuma-se dizer que o corno é o último a saber, neste caso, não sou o primeiro e nem serei o último.» -


O amigo Baixote não conseguia libertar-se, por um instante que fosse, das suas horas dos copos, da vigília ás suas conquistas etinha consciência de que, pela primeira vez, perdera a vontade de lidar com  a vida, de

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icordo com os seus valores morais. No clube desportivo onde ensinava
!ióquei em patins a um número reduzido dejogadores, insistindo sempre 110s aspectos da disciplina, para engrandecimento do ser humano e do Jjvertimento deles, começou a dar mostras de um frenesim apaixonado
LJUe os jogadores, apercebendo-se de que aquilo era a expressão de alguma angústia íntima, ficaram desconfiados. «Muito bem, Mister. - dizia-lhe em tom brincalhão uma das estrelas da equipa, EVS. -O que se deve fazer para não falhar um pénalti?» - Ele devolveu-lhe a pergunta com a sua franqueza habitual. «Quando estás de frente com o guarda redes tenta comê-lo, dando-lhe o corpo ao engano, antes de lhe enfiar a bola por debixo do cu.» - No fim da sessão de treino, os jogadores estavam todos esbaforidos. O professor e a estrela juntaram-se ao pé da máquina das bebidas e a estrela perguntou-lhe qual era o segredo da sua técnica. «Diz o inteligente para o burro, -esquivou-se ele -Aprende com quem sabe.» - Ele encolheu os ombros. «Já entendi.» - Ele bebeu um copo de água Luso. «Não há segredos -murmurou-lhe Baixote ao ouvido. - O segredo é o treino intenso.» -
A estrela EVS ficou insatisfeito, o que o irritou. «Üh, deixe-se disso. No seu tempo não era como hoje com dezassete anos!» - Ele respondeu, lentamente. «Já vi que não entendeste o meu provérbio de há bocado.» - Ea estrela impacientou-se ainda mais. «Quem lhe disse isso? -disse com ar importante -Eu sei que há avançados que trocam os olhos para o guarda redes ser comido.» - Baixote reparou que a estrela EVS estava aprecisar duma lição. «Então faz isso. Por acaso, tu não tens três olhos?» - Foi a gota de água. A estrela ficou de nariz espetado no ar. «Ah, está-me a gozar ou quê? -disse -O que quer dizer com isso?» - E, já de saída, responde-lhe por cima do ombro: «Diz-me lá uma coisa, tu é que és a estrela da equipa. E as estrelas não podem falhar, porque são milagreiros e não é só com santos que se fode o próximo!» -

Baixote não era talhado para milagreiro como a personagem do Padre Merrin no filme O Exorcista, tal como a estrela EVS todas as semanas seconsumia na técnica da finta ao guarda redes com a bola, batendo até com o stike, no ringue várias vezes, mas sem resultados práticos. Em dez aparições diante do guarda-redes, convertia duas oportunidades ejá era umpau.

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Baixote, além do desporto como alternativa ao seu emprego di vendedor, apreciava mais as garotas que frequentavam a taberna do Rato como por exemplo; a ultima novidade que diz chamar-se Elisa Moreno. Com ela, Baixote sentia-se «um homem atraente» epor conseguinte estav,1 preparado para dar valor à amizade que os unia; ou pelo menos, ele nisso também pensou a princípio. «Devemos sempre deixar-nos prender pelas mulheres que gostam de nós, assim poupam- -nos o trabalho de gostarmos dela e são as mais fieis», - disse naquela vez. - «Porque.
aquelas de quem gostamos estão-nos sempre a cair em cima, parecem carraças.» - Certo ou errado, era a sua teoria.
Conforme ia dizendo, amava nela o seu corpo esbelto, de seios pequenos, fina mas bem preenchida, ia descobrindo o sentido que ela tinha do tempo. Amava nela, também, o esforço de querer vencer na vida, e o desejo que ela demonstrava em querer vê-lo todos os dias. Amava tudo isto sem querer ver, naquele amor, o princípio do fim.
No fim dos actos de amor, ela tornava-se electrizante. «lau.», gritava eufórica, como se tivesse perdido a virgindade. «Hi! Uuup!» -
Ele continuava a beber «Scotch of malt» e a fumar muitos cigarros, e uma mancha escura alastrava-lhe no meio da cara. Sob a influência do álcool e do tabaco, à noite fazia trinta por uma linha para escapar aos deveres familiares e refugiava-se nas sombras da madrugada. Não estava autorizado a controlar os passos dela. Da ultima vez que o tentou fazer, deu por si a discutir com o cliente ao balcão da taberna pela forma como o cliente confessava ao empregado. «Na noite passada, fui beber um copo com aquela garota morena e dei duas sem tirar nem pôr!» - E mais disse: «E pareceu-me que ela gostou, pois chiava que nem uma rata!» - O que mais irritou Baixote foi o outro, com cara de jesuíta, dizer que tinha dado duas! E pensou para si mesmo: «Deves ter dado duas mas foi de língua.» - Mas depois disso ele esqueceu o assunto e voltou a molhar a pena; e ela abriu-se toda como a rosa e ele deu-lhe o amor com todo o prazer do seu desejo.
Agora Baixote -que a princípio lhe falava constantemente dos amores que tivera nas suas aventuras amorosas e que tinha necessidade de amar de novo -já não protestava contra as escapadas dela. «Eu sei muito bem o que ela faz», -disse ele uma vez aos amigos. -«Mas isso pouco me importa.» -
Por ironia do destino, enquanto Elisa Moreno se recusava terminantemente a enfrentar os factos no tocante ao seu malquisto marido,

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tinha-se envolvido, por obra do emprego que escolhera, em angariar relações com os seus fregueses e no jogo duplo que lhe trouxe alguns dissabores por parte dos seus amigos.
«Mais «stike» ? Baixote mostrava-se céptico. «Ü teu problema», - disse-lhe Elisa Moreno, no seu mais desdenhoso sorriso. - É achares que deves parar por agora quando devias continuar. Olha o meu exemplo. Aquele sacana que eu ajudei a erguer anda a divertir-se à minha custa, ganha inheiro com o meu dinheiro e aproveita a ter umas belas noites de farra. E fodido, pá, não é? E eu, qual é o meu papel de ursa no meio disto tudo?» - Na voz de Elisa Moreno transparecia todo o seu desdém pela situação criada e só a força de alguns amigos a impediam que ela arreasse bronca e caísse no ridículo e no descrédito. O que fez Baixote arredar caminho foi o facto de vir a conhecer o marido dela nos palcos da noite e recusar a tomar parte nos problemas  de ambos e nos argumentos dele em criar conflitos e ser perito em confusões. Afinal de contas, o marido dela metia-se mesmo em sarilhos e intrigas e isso não era abonatório para Baixote que tinha outro estilo de reputação a defender.
«Nada tem a ver uma coisa com a outra.» - Disse ela pacien temente quando ele tentou explicar o seu ponto de referência: -talvez sim, talvez não, pensou Baixote, como qualquer amante receoso.

Depois de Baixote ter acabado as suas relações sexuais com Elisa Moreno, teve de fazer um grande esforço para sufocar dentro de si uma quantidade enorme de pensamentos pérfidos como por exemplo, se o marido .dela não fosse tão besta eu  continuava a roê-la, pensou, danado, o pior é se esse gajo descobre ainda me dá cabo do cortiço.
A caminho de mais um noite andante, Baixote parou junto da casa de diversões do marido de Elisa Moreno e entrou para molhar a língua e ten tar convencer-se de que a animosidade com ele, o seu compadre, não passava de natureza ilusória. O marido dela dominava todas as linguagens nocturnas. «Raios me partam, se eu sei quem anda a fodê-la e a meter macacos contra mim naquela cabeça de perua (e aqui Baixote tremeu todo) juro que mato esse cabrão!» - E mandou semelhante soco na mesa de madeira que a partiu em quatro partes. Mas ele, Baixote, tinha também de reconhecer que a sua inveja do «compadre» derivava em grande parte do maior domínio que o outro tinha sobre a linguagem nocturna. A linguagem é coragem: capacidade de ideia e de realidade.

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Embora a lenta transformação de Padrinho tivesse mudado a escola de formação numa escola científica ou de filmes de terror, numa alusão aleatória destinada ao grande consumo trabalhista -fosse essa a ordem de ideias, era caso para bater palmas, nesse particular -as conclusões
eram, de facto, adversas às portas do êxito e Padrinho, evitando formular maus pensamentos,  deixou o barco navegar ao sabor das marés. o
motorista conduziu-o até à taberna do Rato, onde fora com o intuito de beber um trago para esquecer. Nesta fase, dizia ele ao amigo; um homem precisa duma certa fantasia para se endireitar e, aofim de uma hora, tudo passa, e o resto é letra...

Rato-Ratão ganhara o hábito de falar do balcão como se estivesse a falar da rua e lá dentro, no meio do balcão, narrava histórias do arco da velha. Por ele soube Padrinho das aventuras do Baixote e seus amores, das calças com ventiladores para combater o sol e dos grupos de futebois ou mais exactamente, da resenha desportiva. «De quinze em quinze dias de tarde ou à noite», - esclarecia ele, -«O futebol dá-me momentos de prazer que duram a merda da semana toda a relatar.» - Ia ao fundo da questão e poucos eram aqueles que lhe ganhavam na palheta da lábia.
«Os adeptos têm os seus defeitos», -acrescentava ele, enquanto Padrinho, quejá não tinha energia para o aguentar mais, deixava-o palrar à maneira.
- «Hoje em dia não há adeptos perfeitos. O que conta são os pontos, não é?» «0 relvado é vosso, -recompôs-se Padrinho -e o campeonato é nosso.» -
«Olhem só para o que ele diz», - explodiu Baixote entrando na conversa. - «Na nossa terra sê dos nossos.» - Mas Padrinho não se deixou intimidar. «Deixa de parvoíces, o que tu dizes não passa de tagarelas baratas.» - Rato-Ratão voltou a engrenar na conversa. «Quando entrei naquele estádio e vi uma enorme mancha vermelha ao redor do campo assinalando ainda o sítio onde o Mouro soltara o último suspiro, vi crescer a raiva na assistência e pensei para mim: Os tempos estão diferentes. Agora, já não há jogos regulares. -continuou Rato-Ratão - Tal como a velha prostituta, a mancha vermelha dá espectáculo normalmente ao domingo de tarde e mete-se nas bilheteiras para se mascarar de cobrador - e com quem é que ela se agita na discoteca Dácupau que abre só à noite -com os novos Gandis vestidos de negro, outros chamam-lhes racistas-do-cartão-vermelho e nunca se sabe se acaba o campeonato na ignorância numa coisa que eu não digo.» -

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Toni da Gota acordou na cama duma conquista da noite com suor a escorregar-lhe pela fronte abaixo. A impressão que tinha na coluna era a de alguém que tivesse andado a carregar sacos de cinquenta quilos de batatas às costas. Começou a tossir e, quando deixou de o fazer, quinze minutos depois, tornou a adormecer num sono irrequieto e doentio, sem ter o desejo de comunicar com alguém onde se encontrava . Quando voltou de novo a acordar, tinha um rosto simpático duma garota inclinado para ele, sorrindo meigamente. «Então, seu dorminhoco? Doze horas a dormir, eh?», -disse ela, fazendo-lhe uma carícia na cara. - «Fartei-me de dar voltas com o tu carro pela zona, fui ao cabeleireiro e agora pronto , já aqui estou.» -.
Dito isto, deitou-se ao lado e pôs-se a esfregar o corpo no dele. «Não estejas já a pensar coisas.» - Mas já não foi a tempo, porque ele colou a boca na dela e ferrou-lhe os lábios e, depois, saltou atleticamente para cima dela. Aí se escarrapachou tal e qual como se fosse num cavalo que ele montasse para galgar na pradaria, galopando como só Gary Cooper o saberia fazer. «Ó filha, vou dar mais duas galopadas», - disse ele eufórico. -«Juro-te que não demoro mais de meia hora de cada vez.» - E, sem mais parança, começou a empinar-se de cima para baixo e de baixo para cima, de olhos semi-fechados, mas consciente do que estava a fazer.
Para a pobre garota, que ainda tinha no corpo a lembrança bem fresca da noitada anterior na cama com ele, este novo aquecimento foi a gota de água que fez transbordar o copo. «Socorro, acudam-me, ele dá cabo de mim.» - O grito dela ainda o avivou mais a acelerar o ritmo, o que lhe mereceu levar uma reprimenda da desgraçada. «Pára! Deixa de te portares como um bruto», -disse ela. -«Pensas que sou alguma mula de carga?» - Deixara-se ficar inerte na cama montado em cima dela, sacudido pelas convulsões do seu corpo, como um cowboy de rodeo, procurando serenar-se um pouco, até soltar-se de cima dela. Quando ela se aprontou de todo, pegou na malinha que estava em cima da cómoda e disse sorridente: «Porra, estava a ver que me abafavas», - e depois, corando um pouco, acrescentou :-Nunca vi um homem assim. Sete mocas duma só vez, é obra! Desconfio que nem o Mickey Rourke do filme 9 Semanas e Meia, te conseguia igualar.» - Uns quinze minutos mais tarde, Toni da Gota enfiou-se dentro do carro e afastou-se daquele lugar. Começava também a sentir um cheiro de bradar aos céus; gases intensivos, vindos do buraco anal trespassavam-lhe pelas pernas abaixo edeitavam cá para

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fora um fedor danado que ele teve que abrir os quatro vidros do cari para apanhar ar. «É incrível!», -pensou serenamente. - «Não perceh1 de onde veio este cheiro!» - Parou o carro e pôs as pernas de fora 0, carro a tomar ar. Levou cerca de um quarto de hora a desaparecer ,
aroma. Por fim, já com bastante à-vontade, percorreu vários quilómetro . até parar no posto de combustível mais próximo. Nesse momento apareceu a cara de Ave Rara de sorriso ao canto da boca.
«Ó que caraças! Tu por aqui? - Pergunta ele ainda com o mesmo sorriso.»
«Isso também queria eu saber. -Responde Toni da Gota -Começou
a doer-me a barriga, pá. Não sabes o que será?» - Ave Rara respondeu calmamente. «Andas a stikar muito e agora, se calhar, estás podre t.» -
«Vai-te lixar com essa. Contigo já vi, que não dá para conversar. - Responde Toni da Gota com um rasgo de dor no rosto.» -  Ave Rara demorou algum tempo a responder. «Ah, só te digo uma coisa. Não te trates, não, que vais prós anjinhos mais depressa. Muito boas tardes.» - Toni da Gota pôs o carro a trabalhar e desandou dali, a galope, com uma rapidez que transformou o pó da estrada num verdadeiro vendaval
de poeira pelo ar.

Cada vez que estava na sombra, sentia um peso lento a puxá-lo para baixo, até o fazer perder a consciência, como um brinquedo cuja corda chega ao fim. Esses momentos de alucinações começavam sempre depois dele beber uns copos a mais. Era nesses períodos que, a pouco e pouco, ele ia ficando mais ranhoso. E, à medida que ficava ranhoso, mais vontade de beber ele tinha; e não se podia privar um bebedor de beber, senão era o raio dos canecos; o tipo partia tudo e depois ainda chamava a polícia para ver o estrago e, no fim de contas, quem se lixava era «O dono da tasca».
Mas não foi bem este o caso.
Lá dentro da taberna o ambiente estava febril e Rato-Ratão controlava à sua moda a saída dos copos, pois não queria perder clientes. Os antigos e os modernos eram todos importantes e, naquela noite, ninguém se importava em beber um copo a mais pois, em caso de emergência, o dono da taberna desenrascava um taxi ou um amigo para os levar à sua residência. E Toy, depois da Hora do Show, e que detestava ver aquelas

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.macacas todas aos saltos e, dada a sua tendência para achincalhar as inulheres mais arrogantes, como por exemplo, aquela brasileira que o gozava à distância, ele não se conteve de lhe enviar via boca um
,,palavrão», murmurando entre os lábios, anda minha sacana, se eu
pudesse  enfia r-te nos cornos uma carripana destas queria ver como
,.reagirias; se há brasileira ou se há bebedola? 1 Mas, mesmo assim, a brasileira leu o significado dele e comentou aquele tipo não regula bem da cabeça, disse ela ao seu acompanhante na mesa, ao apontar-lhe o dedo. E o próprio Toy, o Baixote, Toni da Gota e Ave Rara; - e o motorista do Padrinho, sem esquecer as coristas também, em pleno salão de entretenimento - todos se piravam dele, por ser um chato quando estava pingado, reduzindo as conversas a nada ... E em cada um destes bebedores, ele, Padrinho, o grande empresário da actualidade, sublinhou que, é notório que o indivíduo que bebe sonhe, berre como um animal, cante como a cana rachada, e se desleixe por aí diante, noite após noite, até que Voz Calada, o génio das ideias que estivera calado como um rato desde há algum tempo, resolveu intervir dizendo que um dia estava embriagado numa pastelaria e pediu um copo de vinho ao empregado. Como não foi atendido, tirou as calças e pôs o cú em cima dum grande bolo que estava a sair da sala do forno ainda quente, deixando lá a sua marca. A seguir escarrou-lhe para cima e só depois é que meteu as mãos e deu-lhe urna dentada para o comer - até que levou com as formas nos cornos e, quando acordou, estava estendido na rua junto ao posto do saneamento e nem sequer um ai deu.
Muito rapidamente, Toy deitou abaixo mais dois whiskys com água gaseificada e fumou o dobro de cigarros em relação aos copos, tudo no espaço de cinco minutos. Enquanto os clientes não pingados tratavam em dar uma volta com as macacas, como Toy apregoava, os românticos e sonhadores nocturnos  davam por eles a festejar os próximos encontros com-a-mulher-careca-na-vagina, tudo isso emuito mais, capaz de levantar a moral a um defunto.
A princípio, estes sonhos não passavam de pequenas reservas na caixa cinzenta de cada um deles mas, quando chegasse a altura de pôr o sonho a trabalhar, o desafio estava lançado. Amor ao Sexo sem Pêlo; uma nova sinfonia de foder sem entraves de cabelos numa musica já antiga. O símbolo da Mulher-Careca-Na- Vagina, uma vagina sem pêlo ao lado dum pénis careca, simbolizava o amor do futuro ejá constava que vinham mais  seguidoras  com oslogan, Sem   Cabelo   é  mais   Barato,  Não   Há   Contágio

1Bêbeda.

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de Bichos, Experimentem o Famoso Sessenta e Nove. Ui isso é maravilha, cantarolava Ave Rara uma canção do Bob Dylan, acrescentando: Nunca mais me largas, ó beata?. Toy chamou de novo
a atenção do empregado. «Você quer que eu morra à sede? -e abriu os braços -um copo vazio é como um prostituta à esquina duma viela.» - o
empregado serviu-lhe o copo ao balcão. «Toy», -disse Toni da Gota, excitadíssimo . - «Onde    estão as gajas?» -
«Vai à procura delas»,-gritou Toy mais do que nervoso. -«Tu é que as conheces melhor do que eu.» -
«Ouvi-te falar nelas», -insistiu Toni da Gota, zangado. -«Qual é a tua? O que tenho mais é disso na minha agenda.»
O assunto estava realmen te a aquecer.

"Mais uma «vagina-careca", - surgiu à lua da vela na penumbra da noite -anunciou Capitão Guei, imitando a pronúncia inglesa com o seu talento habitual. «Menos uma que não precisa de água benta para a desinfecção.» -Rato-Ratão, de serviço atrás do balcão da taberna, fez tinir copos de fino de cerveja. «Se a moda pega», -queixou-se a Rapariga da Saca Preta. - «Acho que também vou experimentar.» »Isso é revoltante.» -Voltou a falar Capitão Guei, ao lado de Rato-Ratão, que murmurou aereamente: «Revoltante é se os homens também resolvem aderir à campanha dos Não-Sem-Pêlos!» - A perspectiva dos carecas começava a ser tema de conversa e até Baixote parou para meditar, mas Capitão Guei deu-lhe uma mirada, exclamando: «À boa maneira portuguesa», -disse em tom irónico. -«Quem desprezar os bons hábitos antigos de ter um bom pentelho 1 sobre o membro de elite do esqueleto humano, não é bom chefe de família.» - Um olhar de Baixote fê-lo mudar de rotação.
«Dizem-se tantas maluqueiras quejá nada estranho.», -respondeu. -
«Repare até que as lésbicas e os homossexuais não prescindem dos pêlos, faltava virem agora estas taradas. Eu, com urna mulher sem pêlo, não vou para a cama e muito menos endireito o galho!» -
«Digo-lhe uma coisa», -continuou Capitão Guei, desistindo do sotaque.
- «Ás vezes, no calor, até é capaz de fazer jeito a um homem que não sue tanto. Não se lembra daquela narrativa do Chupador das Vaginas Carecas ? É uma coisa do outro mundo. Quando liaquele capítulo, até me deu vontade de rapar os pêlos do traseiro, quem sabe, se aparecesse

130
2 Aglomerado de cabelos.

um empresário que me levasse até Las Vegas.»
Baixote levantou-se, pediu licença e pirou-se sem dizer mais treta. Capitão Guei levou os braços ao ar e dirigiu o olhar à Rapariga da Saca Preta. «Mas que mal eu fiz a ele?» - Ela retribuiu o olhar.
«Nunca se sabe, se ele gostou daquilo que você lhe disse.» -
Quando mais tarde se espalhou a notícia da narrativa do Chupador das Vaginas-Carrecas, os clientes viraram-se para Capitão Guei, sugerindo-lhe cada vez com mais frequência que ele denunciasse esse louco, apelidando-o de «besta humana» - que era o perigo público número um para a tentação das vaginas peludas e que poderia levar as outras pessoas a quererem experimentar a nova vaga dos amantíssimos diurnos ou n'octurnos a entrar nessa via, que tantas dores de cabeça estava a dar aos anti-carecas. O que estava a suceder, embora de inicio ninguém se apercebesse ou sequer tomasse isso em consideração, era que estava ·em voga um bando de canibais sem pêlo . Começara a considerar a figura dos sonhos como uma tara-mania, à solta sobre a cidade. Corriam boatos pelas casas de diversão e em todas as bocas havia quem dissesse que era uma história da carochinha, ninguém tinha levado a sério e pouco faltou para a polícia fazer uma rusga à taberna do Rato. As «carecas» calaram-se, acrescentando ao acto uma novidade - a cabeleira postiça -e assim enganavam os pategas.

Escolher o pêlo pela careca. O vício inconstante, o desejo de tudo, num zás e por aí adiante. Um sonho lançado ao real pode alienar-se de si próprio ao ponto de se tornar realidade. Pensava por vezes em Big Star, o universo das carecas. A utilização da «camisinha» através dum bafo de boca: a técnica com perfeição! Ou, simplesmente, uma habilidade na arte e, por outras palavras -um processo eficaz e limpo -numa escolha completa. A novidade: fora ela a inovadora e, por conseguinte, coubera-lhe o papel de ser a supersónica.
E também a bondade, e a generosidade, e todas essas coisas do género. Estava na melhor, ia entrar na sua nova função; ser aquilo pelo qual sempre sonhara: bem cheirosa, careca desnaturada, humana e bem possante. Sentia-se capaz de derrubar todos os cabeludos que se estendessem à sua frente; com a força que ia crescendo dentro de si, dava-lhe mais poderes.
Eu sou a única, aceitou ela, a pelada.
Com decência, note-se.
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A sua vida era resguardada no aparcamento junto da taberna do Rato mas acabou na noite em que Chicras se pôs na rua aos gritos que tinham deitado a luva ao Chupador das Vaginas-Carecas e que, segundo parece. também o iam acusar na referida história por causa de uma tal Julieta. que ele apregoava há décadas ser a sua heroína. Queriam fazer dele uru viciado cheio de alucinações, um Romeo da coca. As represálias - apedrejamento, lutas de naifas, o habitual - já estavam a caminho.
«Acautelem-se que aí vêm eles.», disse Chicras a ato-Ratão e a Capitão Guei -Esta noite vai haver facadas.» -
Chicras estava ainda no meio da rua, confiante da sua segurança, quando uma garrafa voou pelo ar e foi apanhá-lo de surpresa no focinho. Desmaiou mais pela surpresa que pela dor. Reanimou-o Capitão Guei. que lhe atirou às ventas com a água dum copo, num gesto aprendido nos filmes de piratas, enquanto, nessa altura, já se ouvia a sirene do 115, a ambulância e Chicras dera o pira pela rua, a correr que nem uma lebre. Rato-Ratão, incapaz de resistir por mais tempo aos escândalos à porta do seu negócio, revelara a Capitão Guei as suspeitas sobre Chicras e a personagem do Chupador das Vaginas-Carecas e, a partir daí, ninguém conseguiu segurar Chicras. Todos os dias da sua humilhação jorraram nele como uma praga, como sejá não bastasse estar preso ao vício da droga, álcool e gamar o próximo -ainda tinha de lhe acontecer aquilo. - Atirou-se ao tasqueiro da esquina do quarteirão com uma faca de ponta e mola, dizendo: «Üu dás-me o frango que está a assar no espeto ou furo-te já a bexiga com a faca.» - E o tasqueiro não reagiu, dando o frango numa saca plástica e um pedaço de broa de Avintes, resmungando com uma maldição. «Vai», - disse -Vai-te embora, meu desgraçado. Havias de morrer entalado com as patas do frango.» - Mas Chicras não ia antes sem lhe deixar de dar o recado, eu já ando a comer patas há mais tempo do que tu, gritou, vocês estão com ele cheio mas é à custa dos otários. E redobrou a atenção, pondo-se ao fresco dali com o frango, antes que viesse alguém a estorvar-lhe o caminho.
Enquanto isso, na taberna do Rato, ainda se comentava o escândalo na rua. Era evidente que Rato-Ratão tentou evitar que o escândalo tomasse mais proporções e escondeu falar nisso aos clientes, sabendo que, - ofalatório é pior que um cagatório. -
Enquanto ele, o radioso espírito do bom samaritano da taberna do Rato dava origem às mais fantasiosas conversas.

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E agora entrava Madarne Rara na sala: «Sois boa gente, mas vou-rne ausentar. -Madarne Rara trazia as malas na mão -Preciso de criar em. mim novas emoções.»
Quando Rato-Ratão viu a sua vedeta prestes a sair, embora cemporariarnente, deitou o olho à gaveta corno quem diz: agora as notas dos copos dela vão escassear um pouco. Suplicou que a ausência não fosse muito prolongada. E Toy esperava à entrada da taberna, notando
-se nos olhos ainda a ultima bebedeira, muito embora se diga, já estivesse curada e preparado para outra. «Tentem impedir-me. Eu só bebo quando quero beber.» -
Foi Madarne Rara quem acabou de abalar, dizendo adeus com um lenço branco na mão, enquanto Fífia espreitava ao fundo da sala. Padrinho tinha voltado ao convívio ejuntara-se com ela a conversar. «Onde é que vais?», -perguntou. -«Não me queres levar contigo? -Padrinho estacou, olhou bem para ela e encolheu os ombros. «Estou a pensar nisso. Para já.deixa-te estar aí quietinha até ver se estes malandros sossegam.» -
O que se irá passar daqui a umas horas na taberna do Rato, aqui onde o amor sai à rua, feito numa sande de combinados, em troca duma promessa? Nessa noite estrelada e com luar, olhamos as figuras -umas enfarpeladas, prontas para um pé de dança, outras gulosas ás sombras dos pratos de com.ida e outras à espera de mergulhar os seus sonhos num.a conquista ilusória -atravessando esta porta igual às outras.
E lá dentro, com a sala cheia de luzes coloridas, vêem-se corpos a abanar-se, uns isolados e outros aos pares, aos trios e quartetos, ensaiando sons e deitando o mirone à garupa das cachopas que se esperneavam à vontade. No pouco espaço livre, ao centro da sala, os dançarinos mais frenéticos dançam. aos pulos nos maneias da moda e mexem-se por todo o sítio livre.
«Estou a ver que vós ainda estais aí para as curvas.» - Quem fala é o nosso apresentador de programas, show-man incomparável, sempre pronto a dar elogios e a fazer discursos -o extrovertido Baixote, com o seu trajo de serviço, batendo com o pé ao som do ritmo. -É sem dúvida um predestinado para estes eventos, uma figura de um metro e meio de altura, cabelo raso e cor castanha, castanho dos olhos também, feições

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evidentemente portuguesas, nariz curvo, lábios finos e curtos, rosto saído de uma pintura Malhoa sobre moreno. Um português que já correu Portugal duma ponta a outra, um bom tripeiro de gema. Uma big star.
E a festa continua e os dançarinos dançam cada vez mais entre 0 frenesim do ambiente. E quem são eles? Pois bem, nada mais, nada menos, que a maioria dos elementos do GAS. -E quem são? -Vejam, aqui ao centro está Golias, o sonhador, fazendo olhinhos a uma senhora de capa à toureiro , que usa uns tamancos de lavrador e tendo por vício bater com os pés ao ritmo da música bem firmes no chão. Deu em cheio por cima do pé do Capitão Guei que sofria dos calos e deixou o pobre desgraçado de cangalhas na cozinha a meter gelo nas peles para não aumentarem de formato. -E acolá, ao lado, a Rapariga da Saca Preta passa despercebida , ao contrário da sua «sósia» Fífia, a quem Padrinho ofereceu um espumante de cascata e promoveu-a a rainha da festa, com o título de Miss do chichi! -Estão todos aqui a divertirem-se dançando por aqui e por acolá; à direita Ave Rara bebendo com a Marta Chata; à esquerda Toni da Gota atirando-se à bailarina do flamengo Paulita La Rosa, e quis comprar por tuta e meia, tendo levado com os pés por tão impertinente convite. Toy, o solteirão incorrigível que não troca o copo duma bebida por uma mulher, baila à moda antiga o bailinho da Ilha do Pico com a filha dum pai incógnito; e Champalinas, Mister Louis e Fala Tudo chegam a tempo de se aliarem à festa e colocam-se numa zona ao lado da sala apinhada de gente, banhados pelas luzes cheias de cor. Os atiradores ao centro olham e fazem peito: Padrinho, Compincha, Piasca, Magricelas, Compridão e Deus Neptuno, todas as figuras importantes do GAS. Então, ouve-se um murmúrio vindo da assistência, subindo pouco a pouco de tom, «Vamos a elas», -exigem logo os atiradores -
«Vamos a elas.» -
Baixote entra de novo em cena. «Meus amigos, a noite é vossa e a folia também .», -e depois volta-se para o público, de braços abertos e com os pés a bater ao compasso da música, pergunta: -E quem é que não gosta de fazer Trim-chim-pum-pum-pum?» -
Várias vozes são agitadas, até que toda a assistência chega de novo a um acordo, entoando em coro uma única palavra. Baixote bate palmas. Abre-se a porta atrás de si, dando passagem a um grupo dejovens que desfilam numa passarela de moda. Por fim, na altura da votação, com papeis de voto e tudo, o público elege a vencedora .«Meus Senhores», -

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exclama Baixote. - «A Rainha da noite é a Fífia. Agora, sim, vamos aplaudir.» -
o público aplaudiu entusiasticamente a vencedora e, no final,
aproximaram-se uns dos outros. Baixote desliga a aparelhagem sonora e vem ao balcão regar a garganta com um whisky em copo largo e fundo.
«Esta festa já está, agora venha a próxima.» - Depois de ter embutido dois dedos de bebida, fica só a falar para os seus botões. «Mas que noite esta, eh?», -murmura ele, olhando para a assistência. -«Desta vez, valeu a pena.» - A música torna-se a ouvir na sala.

Quando o show-man Baixote saiu para a rua, a coberto do escuro, para a traseira da carrinha, que estacionara no parque, viu Elisa Moreno a chegar. Sentiu o coração apertado de emoção e, ao mesmo tempo, receio de revelar a sua presença ali. Escondeu-se atrás da carrinha a tremer de frio e deixou-se ali ficar cerca de cinco minutos, enquanto ela passava . Depois, encolheu os ombros, sentou-se na carrinha e ligou o motor. Como por milagre, Elisa Moreno abriu a porta e sentou-se ao lado dele na frente. «Pensavas que me fugias, não?». - Disse ela com um sorriso atraente no rosto. E piraram-se dali, fugindo aos olhares indiscretos.
Eram quatro da madrugada quando regressaram da discoteca Xeque Ao Rei e se instalaram na pensão do costume. Baixote nunca soubera o que era gostar de uma mulher o suficiente, porque sempre gostou de todas elas a valer. O recepcionista desencantou um quarto, o bastante para ele lá ficar com a sua amante, embora ele não gostasse muito desse termo. Tentou falar-lhe a sério: «Tens que entender a importância que pode vir a ter para nós este jogo duplo.» -Mas ela limitou-se a pôr-lhe a mão diante da boca e acenou para ele ficar calado e dormir.
Quando ele se virou para o lado, pôde tornar a fixar os seus pensamentos até cair em si e acabou por adormecer. Mais tarde, quando se pôs a pé, Baixote deixou a sua «Princesa» ficar a dormir na cama e bateu em retirada antes de a aurora chegar. Ao sair, porém, começou a experimentar no interior do seu corpo uma terrível sensação de fraqueza, mal estar, suores frios na cabeça. Soltava espirros constantes que ninguém ouvia, nem mesmo Toni da Gota e Ave Rara, que ficaram a dormir

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acompanhadas das suas amigas na Residência da Xangai, se atreveram a querer saber.
No dia seguinte, no início da abertura, a sala da taberna do Rato ainda mostrava o mesmo cenário da noite passada . Mesas à balda, cadeiras a reboque umas das outras, lixo pelo chão, para além é claro de copos e pratos -limpos e sujos -à espera de serem removidos para a cozinha. E, no meio do caos, o dono da taberna Rato-Ratão, ainda com cara de sono, varria a sala, de mangas arregaçadas e olhando impaciente para o relógio, à espera que chegasse o seu empregado.
Assim se tinha passado mais uma grande festa na taberna do Rato.

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Sunday, August 12, 2018



                                                                FANTASIA E EROTISMO
                                                                                II


Em jovem, Ave Rara possuíra um rosto de uma esperteza verdadeiramente espantosa, um rosto que parecia nunca ter conhecido burrice nem obstáculo de espécie alguma. De pele marcante e grossa, essa cara ajudara-o bastante nas suas conquistas com as mulheres e, para dizer a verdade, foi um dos motivos pelos quais a sulista Marta Chata se apaixonara por ele desde o primeiro instante em que ambos se conheceram naquele dia, na taberna do Rato. «É assim tão persistente e tão machão!», -maravilhava-se ela, apertando-lhe a mão. -«Quem lhe resiste, seu  durão?» -
Ele surpreendeu-se. «De durão não tenho muito, minha querida», - defendeu-se ele.-«Teimoso, sim, tenho um pouco.» -
«Eu vou-o ajudar a acabar com essa teimosia», -admitiu ela. -«Com um pouco da minha paciência.» -
A partir daquele momento, a relação entre eles permaneceu no bom sentido de amigo e amante. Teve, portanto, a sua cota parte o facto dela estar a morar próxima do trabalho onde esporadicamente se encontrava de passagem, afim de curtir umas férias entre a aventura, uns copos e umas boas noitadas. E, quando Ave Rara dormiu a primeira vez com Marta Chata, ela encerrou-o no coração da sua piela e passou a cantar lhe a canção da princesa apaixonada.

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Quando Ave Rara acordou e se viu ao espelho, de cabelos no ar en desalinho total, olhos distorcidos do sono e cheios de ramela, descobriu um rosto que parecia não ser o seu! Tornou a olhar para  o espelho, verificando mais fixamente se realmente era ele. Eu sou eu próprio, disse ele ao espelho e traçou o seu futuro. Sou um homem à imagem de Lupin. para quem certas coisas são fundamentais; a multiplicação do mico, o amigos para a muleta e as mulheres para as cenas malucas. O ideal da esperteza e a contabilidade dos números sou eu: o espírito inovador e controverso do homem moderno, eficaz e mortífero.

Era já tarde. Ele não sabia de cabeça o número do telefone do escritório. Tinha-se esquecido da agenda na bolsa do carro. Tentou recordar-se dos números e marcou os seis algarismos.
Uma voz feminina atendeu ao primeiro toque.
«Está lá, quem fala?», -uma voz sonolenta, conhecida.
«Desculpe, é engano», -Disse Ave Rara de olhos fitos no telefone. -
«Ora gaita, era a minha mulher.» -
Deu por si a recordar um conto do amigo alentejano por causa da cena do telefone. Na verdade a história do amigo tinha graça, embora um pouco diferente. O amigo, durante um fim-de-semana, seguia no carro pela auto-estrada que liga Porto a Vila Real, acelerando o carro cada vez mais ruidoso e diga-se, em abono da verdade, que alentejano era responsável por uma boa parte daquele alarido, pois desatara a carregar no pedal a fundo e alguns condutores, a quem ele ultrapassava,  iam buzinando, chamando-lhe ao mesmo tempo a atenção para a alta velocidade como ele conduzia o carro. É claro que ele era sempre um mais maluco do que nós. Bem, o problema é que instantes depois, passou por ele um carro mais veloz e ele não pôde reagir perante tanta velocidade a não ser ofender, chamando panasca ao chanfrado do motorista. Porém, nem um minuto se tinha passado, quando de repente, o seu telemóvel tocou e ele olhou perplexo para a mulher que seguia no banco ao lado e atendeu a chamada: «Polícia de Trânsito. Violou o código de estrada ao ultrapassar duzentos quilómetros à hora. É favor encostar o carro.» - Ficou sem fala. «Como é que o gajo soube o número do telefone.» - Dois minutos depois, um amigo passou por ele e mandou um piropo ao ar. «És alentejano quanto baste.» - Ele deixou-se cair na sua melancolia, lamentando-se. «Malditos sejam os telefones.» -
Ave Rara, no quarto, anda dum lado para o outro. Depois de algumas

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tentativas para ligar para o escritório sem resultados práticos, deixa-se ficar inerte durante uns segundos até pensar na melhor forma de resolver a questão. E cinco minutos depois, já estava a despedir-se da sua.amiga com um «Até já» e abandonava o quarto.
Foi nesse momento que o número do telefone lhe veio à memória.

Eu sei o que é ovício, disse ohomem de olhar semicerrado. Chamava-se Hamilton Borrachão; tinha cinquenta anos de idade e agarrava a caneca de verde tinto na mão, cuspindo para o chão, antes de enfiar uma golada pela goela abaixo. -E sei também o que é apanhar uma ramada de caixão à cova uma vez por dia, não é disse ele, a cuspir outra vez para o chão. Falar dessas tretas só me dá mais sede. O que é um bêbado? Uma pessoa alegre, nada mais. -Ao que o borracho do Hamilton, com trinta e quatro copos bebidos, costas marretas e semblante torcido, - revirou para o céu os olhos num instante, para implorar o passado. Venham mais pipas de vinho generoso para o cais das Devesas, suplicou: voltai, minhas queridas pipas.
Há quinze anos, aproximadamente, o cais ferroviário da estação das Devesas estava dividido em locais de mercadorias e locais de vinhos, com os comboios diariamente a descarregar as suas mercadorias nas arrecadações respectivas. Ele, o borracho número um do cais, ajudava ao desembarque das pipas provenientes da Régua para os armazéns de vinho, em Vila Nova de Gaia, e colaborava na tiragem das amostras do vinho logo de manhãzinha cedo; e, por volta do meio dia, já via o sol da cor do carvão e as pipas a serem descarregadas pelo ar...
Cinquenta anos! Havia duas décadas que  ele emborcava mil e quinhentos litros de vinho. Nas noites de luar, com o céu sem nuvens, ele punha-se no cais à espera que aparecessem os comboios carregados de pipas de vinho, e o local onde ele costumava estar era junto à linha de mercadorias, onde estacionavam os vagões. Explicava a sipróprio, parece que me estou a ver de verruma na mão, chegar ao pé da pipa e furar o casco de madeira até o vinho espichar para dentro da minha boca; beber até me fartar ejá não poder mexer a queixada. Durante a tardinha, quando o luar aparece na escuridão, é a hora de eu me ir embora e o percurso de trezentos metros que me leva para subir a Ilha do Carneireiro demora me quase duas horas a caminhar a passo trôpego. Quando caio na cama, fico como um tordo sem me mexer e sei que sóacordo no dia seguinte, ao

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som do apito do comboio a chegar.
O Hamilton, com a pele da cara vermelha como um presunto e os dentes podres do tabaco, transpôs a porta principal, a deslizar entre º'
bancos de madeira, como um eco a ressoar de recordações e anseios {: depois o silêncio, um silêncio fúnebre.
-Uma vez, quando era rapaz, nas Devesas, gostava de contar.
sempre com as palavras coçadas do tempo, -uma vez, era eu criança e estava sozinho, vi-me de repente desamparado, junto de uma garrafa de vinho tinto. Com o medo, experimentei beber um gole e senti-me crescer. Fiquei com tanta força, que um miúdo veio-me chatear e eu dei-lhe uma cabeçada com tanta raiva que o pus a dormir! A partir daí, o vinho foi o meu melhor amigo e aliado, acompanhando-me sempre nas horas boas e nas horas más. Fechou os olhos. Quando os abriu de novo, viu à sua beira um copo cheio de vinho. Não havia dúvidas que era vinho, bebeu dum fôlego só.
-O  que ele disse na sua excitação: Não acredito! O combóio ali na estação? E à minha espera! -Com o coração aos saltos, Hamilton correu em passo trôpego e foi buscar a verruma.
Enquanto no cais, junto da gare, o Diabo olhava com a boca cheia de água, não, não era vinho.
Cheia de vinho .

Rtu !
Padrinho cuspiu no chão; ao mesmo tempo que se ergueu de um salto. como que impulsionado  por urna mola; desejou amar ardentemente a Pina-Colada -comojá anteriormente -muitas vezes repetira esse desejo.
E, naquele dia, começou a sacudir o pó das mangas do casaco e deu um jeito ao seu decoro olhando para o espelho: «Caraças, - gritou ele, andando para trás e para a frente -tenho que matar este desejo.» -
A seguir, tomou o caminho e começou a dar passos pelo passeio tipo militar -um dois, um dois -entoando uma quadra chalada dum poema do Rato «Quando a sorte não penetra, três na peida, etc.» -
Aproveitamos para referir que era um hábito, de alguns clientes da taberna do Rato, entoar os seus poemas malucos ...

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«Vamos embora, meu velho, adianta o passo», gritou Padrinho, fervendo com a ideia. -«Vamos tomar de assalto esse plano.» - Voltando costas à rua, lembrando as boas recordações, apaixonado como sempre fora pelas boas novidades, ele teria dado ali (caso trouxesse consigo tal objecto) um tiro para o ar, tomando conta da Pina-Colada de assalto. Ao chegar à porta, inclinou-se para a frente, murmurando: «Já chegamos, agora porta-te bem.» -
- Pina-Colada era uma mulher lésbica; tinha à volta dos trinta e um anos de idade e olhava de uma forma sensual. E todo o seu corpo revestido duma fina pele, lisa como o vidro, um sonho das Caraíbas...
Quando ele se. aproximou, invadiu-o um calor tórrido de estalar, e sentiu o sangue a correr vertiginosamente pelas veias e a sua pele ferver como caldos de galinha. Estava cheio de palavras para lhe dizer tudo mas um «Olá» bastou para ele ficar ali como um morcão na expectativa a olhar para ela, como no filme A Vida é Bela, quando o Roberto Benini choca com a sua Princesa e caem ambos junto ao celeiro e ele afasta-lhe as palhas do rosto, em vez de lhe apalpar os marmeleiros, mas não, aqui não foi assim, porque, a acontecer isso, ele poderia levar uma lambada nas ventas e então, sim, o caldo ficaria entornado...Tinha os olhos fitos na prateleira das garrafas e reparou então, através dos espelhos, que meia dúzia de lesmas estavam sentados à mesa a beber umas bebidas quaisquer. Ás tantas, piscou os olhos com tanta força que ela finalmente sorriu, dando origem à ideia deles se sentarem a conversar. Escolheram um sítio recatado a um canto do bar. «Ü que é que julgas que eu vim cá ver?» - Disse Padrinho de olhar sereno, enquanto, ela lhe pegou nas mãos e lhe fez u_ma meiguice. Começou a tremer; a vibração era tão intensa que ele receou que ela se apercebesse e puxou dum cigarro para descontrair. «Eu sei, eu sei.» - Respondeu Pina-Colada. E depois não disse mais nada. Estavam ambos no vazio do silêncio e, se ele quisesse apalpá-la, teria que inventar uma cena, só que não valia  a pena preocupar-se agora com tais assuntos, pois ali, diante dele, surgiu o inevitável; a figura alta e desengonçada da Preta, com lenço vermelho ao pescoço e um chapéu de coco na mão, calçando uma botas à.cowboy verde-azeitona . «Isso é propriedade privada.» - Disse numa voz trémula e excitada.
A seguir, a Preta inclinou-se para Pina-Colada e beijou-lhe os lábios, enquanto Padrinho se levantou silenciosamente edeixou-as a sós. E, à roda da cabeça de Padrinho, desvanecem-se as ideias e perde-se na rua.

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Quando. mais tarde, Pina-Colada encontrou a figura bizarra d1 Padrinho, deu-lhe uma explicação anda lá, esquece isso. Ao vê-lo atravé do vidro do carro, com os olhos enevoados de sono, sentiu pular e coração, tão forte eram as pancadas que receou que ele fosse parar; e foi naquela forma complacente que elajulgou esquecer o assunto como
se nunca tivesse existido e desceu a ladeira do caminho acompanhando.
-o, de modo a sanar o problema.
Normalmente ela era intransigente na defesa dos seus vícios, e quando os seus amigos, aos fins-de-semana a assediavam com propostas maliciosas, argumentava contra eles como umafera danada, como ela costumava referir, ao explicar: -aqui é o meu paraíso, onde está o meu jardim, entendem? - E se eles respondiam malcriadamen te - qualparaísoqualcaralhosuafressureira - ela ia ao balcão buscar um copo de whisky com gelo até cima, dirigia-se para a mesa do canto, sentava-se com uma revista na mão; tudo isto com um sorriso encantador nos lábios: Os cavalheiros não se importam que eu saboreie a minha bebida, pois não?... Oh!, ela era uma figura única, famosa na noite, rainha nos tablados onde os homens eram artistas e nenhum deles se pode gabar de ter conseguido pôr-lhe as patas em cima, não porque eles não quisessem, disse ela, mas porque foi ela sem apelo nem agravo que lhes deu de sopa.
Para Padrinho não houve patas nem sopas e muito menos negas . Para ele no seu contexto, a amizade perdura para sempre quer haja baldas ou não. No seu padrão , a amizade é intocável e está acima dos desejos da pessoa . Depois dele molhar os lábios com a bebida que tinha na mão, tapou o nariz enquanto cheirava qualquer coisa à distância. Foi quando a Preta (que ainda continuava de chapéu de coco na tola), se aproximou. Depois, com um aceno de timidez, saudou-o com um ar altivo e murmurou um convite; -é melhor sentar-se aqui ao pé de nós para não apanhar frio. - Tornou a afastar-se a passo lento, deixando-o grato por lhe ter avermelhado o rosto, com aquela frase -um bom motivo para sorrir.

Quando era uma miúda nova, Pina-Colada possuíra um rosto duma inocente, verdadeiramente excepcional, um rosto que parecia de anjo. A sua pele suave e macia era como a de uma mão de Princesa . As suas feições gaiatas ajudaram-na bastante nas suas relações com as mulheres efora, por assim dizer, um dos primeiros motivos apresentados pela sua

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primeira namorada, Susana Carrapito, para se ter apaixonado por ela. "Tens um rosto tão redondinho, pareces um queijo», - Maravilhava-se da, apertando-lhe o queixo entre as mãos. -«Um queijo amanteigado Ja serra.» -
Ela   rendeu-se aos ditos. «Não    digas    isso», - respondeu. - «Senão,
babo-me já toda.» -
«Aqui dentro?», -perguntou a outra. - «Com toda esta gente?» -
Ela afastou-se para dentro. A partir daí atormentou-a durante algum tempo a ideia da sua atitude perante as mulheres; qual a medida a tomar para combater essa sensação e apurar esse desejo que era agora a sua segunda natureza. _Teve, no entanto, a sua gravidade o facto de Pina Colada, ao acordar dum longo sono maléfico, transformado por várias cenas nas quais se destacavam imagens de Susana Carrapito na série duma sereia cantando em cima duma gigante baleia, não podendo pôr os pés em terra firme; chamando-a, chamando; -mas, quando foi ter com Susana, ela foi engolida pela baleia e o seu chamamento passou a ser um tributo de culpa e tormento ... e quando Pina-Colada  acordou e olhou para o espelho e descobriu a imagem de Suzana a fitá-la com o seu rosto sedutor, atirou com o espelho contra a janela, partindo-o aos bocados pelo chão, dando sinais de indícios de que sentia uma enorme e forte dor na cabeça.
Quando, mais tarde, pegou noutro espelho olhando para o seu rosto alterado, vendo um par de inchaços à volta dos olhos, horrivelmente feia, nem julgou ser quem era.
Era já noite. Ela não sabia as horas. Além de não ter relógio consigo, no quarto não havia relógio. Vestiu-se à pressa e desapareceu pela rua a correr, em direcção ao bar.
Volta   de  novo ao seu local de trabalho, como uma tresloucada à procura da sua amada. Visita a sala toda e descobre que a amante, sentindo-se sozinha, meteu-se na marmelada com outra rameira qualquer. Fica durante algum tempo imóvel, no escuro dum recanto da sala, sente-se traída e luta contra os seus próprios sentimentos. Depois, tira a fotografia da amante da carteira e rasga-a aos bocadinhos para o chão; e parte sem dar a conhecer a sua presença.
Pina-Colada volta ao quarto e deita-se com a roupa vestida em cima da cama a chorar. «Putas malditas.» - Gritou para a roupa da cama que lhe amortecia a voz, enquanto esmurrava as fronhas cheias de folhos, compradas no Armazém Samberi de Antero de Quental, com tanta força

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que o tecido velho de dois contos se desfez em trapos. «Mas que
raiva. Que ordinarice,foda-se aputa, que pega.» - Voltou a sair e foi para o mundo...O mundo da noite.


Ao fim da tarde do dia seguinte àquela em que recolhera amostras do novo carregamento de vinho, Hamilton o Borrachão tornou a ficar de sentinela na gare a ver passar os comboios e contemplando a estação ferroviária dos cinquenta anos de idade. O mal cheiroso dormia no banco de madeira junto à gare, sempre que estava bêbado e nunca atinava com o caminho de casa. Ele tinha-se instalado no andar de cima, enquanto observava lá ao longe, ao fim da linha, o barulho dum comboio a aproximar-se e o apito reconfortante. E, sob o seu ressono, Hamilton, de cara voltada para o chão, tratou-o num murmúrio, por um nome que há muito não pronunciava. Moscatel, disse ele.
De repente, ouviu o barulho do comboio a apitar ao longe, como se o nome proibido tivesse chamado o comboio. Ao virar o corpo no banco de madeira, desequilibrou-se e caiu redondamente ao chão, ficando inanimado. Durante o tempo que esteve adormecido, reviveu o sonho e viu o comboio a parar junto a ele e o descarregador de botas longas a ranger na madeira do vagão, de verruma na mão a furar o casco de madeira da pipa de vinho Moscatel e a dar-lhe prioridade para ele provar o toque do vinho. Ele esticou a língua o máximo que pôde e pôs-se a lamber o chão húmido e frio da gare. E, por um momento , perdeu o olfacto de distinguir o paladar, na sua dor começou a dizer: só sabem fazer batota. Este vinho não é o verdadeiro Moscatel. Acto contínuo, tornou a adormecer.
De manhã cedo, alguém tinha dado pela presença dele estendido no chão e mandou chamar os arrumadores do lixo que o levarem dali para junto do cais de descargas e puseram-no à sombra do depósito da água.


A taberna do Rato recebeu a visita dum jovem Inspector do Turismo, Henrique Secura, a arrastar os pés, a esfregar a penca vermelha que nem um chouriço parecendo mais velho e mais gasto de que os seus trinta e nove anos. Ele bateu no peito e soltou um grunhido à Tarzan: Unhnh. A esta hora da noite, o que vem a ser isto, murmurou o barman, mas ele não ia permitir que um simples empregado lhe desse ordens com

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0 homem da inspecção do Turismo, por isso, ficou esticado e de olhar malandro.
«Peço perdão, Snrº.barman», -confidencia. -«lnformações que trago
na algibeira, temos motivos para investigar.» -
«Não achamos ser necessário, esta casa possui todas as normas exigidas», - começou o barman por esclarecer.- «Mas já que está aqui, faça o obséquio de pôr-se à vontade.» -
Nesse momento, o Inspector pareceu confuso sem saber por onde principiar. E, antes de mais, agradeceu a gentileza do empregado que lhe pôs uma garrafa de whisky à discrição. E, para não lhe fazer desfeita, entornou um duplo-a valer. Depois afastou-se e pôs-se a medir a parede, não deixando de olhar bem para o tecto.Argumentou :«Isto aqui está baixo. O pé-direito vai ter que crescer.» -
Oempregado começou a sorrir e pediu-lhe explicações .«E então, Snrº. Inspector, como se deve proceder à altura se não existe mais espaço a não ser o tecto do vizinho?»
Ele respondeu rindo à socapa. «Temos Inspector sem dúvida. - comentou o barman, voltando a carregar no copo mais um duplo - É claro que a inspecção está concluída.» - O empregado não viu na inspecção motivo para grandes modificações e tratou de encher o copo outra vez do Inspector Henrique Secura que não deixou para amanhã o que hoje se deve beber.
«Pois é, então, estamos entendidos», - disse o Inspector de olhos arregalados. - «Vou aumentar aqui no projecto mais dois metros de comprimento para isto ficar dentro da alçada da lei .» -
O que o Inspector nunca disse, nem mesmo quando resfriou a cabeça com água na casa de banho, é  que se tinha equivocado; em vez de medir a altura da sala, mediu sim, mas foi a parede do quarto de banho.
«Aqui tem o meu número de telefone de Lisboa»,-comunicou ele antes de sair. - «No caso de haver sarrabiscada, contem comigo para testemunhar.Muito boas noites.» -
Henrique Secura recobrou de novo as forças. «Só um instantinho»,- disse bem alto. - «Deixe-me molhar a goela com mais um copo, é um crime deixar a garrafa a meio.» - Depois de beber de chimpam, os olhos reviraram várias vezes, subitamente apontou a direcção  da    rua  e     lá foi; ele a assobiar o hino da Ponte do Rio Kwai.

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Nessa noite. à luz esverdeada da lâmpada fluorescente do escritório Padrinho foi abalado por um chamamento telefónico dum conhecido.
«Psst. Escuta lá, Padrinho, torna atenção.» -
Padrinho ouviu com atenção o que o outro lhe tinha para dizer. E nã1 foi capaz de reagir às suas palavras. «É isso mesmo, homem», , confirmou a voz. -«Tens que fazer qualquer coisa.» -
Ele tinha o corpo pesado e a cabeça parecia chumbo que nem consegufo rodar o tronco. «A polícia da rusga deitou-lhe a manápula», -explicou.
-«Agora vai ter que dar à língua como o macaco da Índia.» -
Nesse momento a voz tornou-se roufenha e desapareceu da linha. Padrinho sabia que tinha que agir e puxou pela cabeça uma série de soluções. «Oh!, que caraças, só me faltava esta agora.» - Ele continuava perplexo. A voz do outro parecia querer sugerir qualquer ideia mas ele não o entendia - responsabilidade de quem? Como é possível? «Não estou a ver», - arriscou um palpite. - «E que culpa tenho eu, se ele for para o xadrez de Custóias?» -
Dobrou o tronco para trás ouvindo-se o ranger das costelas, numa evidente maratona de elevação física. Por fim, ficou de pé e foi para junto da janela, soltando um grunhido. «Só queixinhas e mais queixinhas que me apetece mandá-los foder a todos e fugir para a Amazónia.» - E rompeu em gemidos repentinos e inconstantes. «Calma, calma», murmurou automaticamente para si. «Tudo se há-de arranjar, tenho a certeza. Vá lá, força.» -
Minutos depois, o telefone tornou a tocar. Ele correu para o auscultador. O conhecido disse: «Psst. Peço desculpa de te incomodar... entendeste o que eu quiz dizer? Vamos fugir daqui antes que nos transformem em bodes expiatórios da má política deles.» -
«Mas que culpa tenho eu dessa má política? -Quiz saber Padrinho.
«Figuram-nos» , -segredou o outro solenemente. -«Só isso. E, depois de nos figurar, tiram-nos a pinta mais fácil.» -
«Custa a crer que seja assim, mas se tu o dizes, fala a voz da experiência», - Objectou Padrinho. «Eu já vivo há muito ano neste mundo e nunca tal me aconteceu mas,... há um ditado que diz: nunca digas que desta água não beberás.»  -
Nest• momento, veio um queixume do outro lado da casa. «Faz pouco barulho. Deixa-me dormir.» - Gritou a voz da mulher. «É a voz da minha mulher. Vou desligar e daqui por um bocado, vou ter contigo ao local
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onde marcamos.»
E desligaram a chamada, ouvindo-se o clique.

Na manhã do dia seguinte não havia sinais de São Nicolau nem do conhecido e Padrinho, na sua perplexidade, deu por si a andar pela rua acima e abaixo num constante vai e vem, com vontade de esmurrar aquele patife que lhe tinha pregado uma valente espera de quase duas horas de seca... Mas, quando se cansou de esperar, ele apareceu a correr e segredou-lhe ao Quvido. «Desculpa lá, mas não consegui pirar-me mais cedo de casa por causa da patroa. -e ele compreendeu a situação - Sei que estás metido nisso, mas podes contar comigo.» - Ele acenou com a cabeça. Padrinho sentiu-se invadido por uma onda de calor.
«Pobre  Cornpincha», -murmurou Padrinho, seguindo pela rua acima na companhia do conhecido. - «Pode ser que ele se safe desta.» - Ao fim da rua, voltou-se para o outro. «Ora bem, -disse -vemo-nos ao fim da tarde, está bem?» -
O outro queria ficar ali mais um pouquinho na conversa de chacha, mas Padrinho respondeu que precisava de pôr a cabeça a resfriar.
Quando o conhecido desapareceu, Padrinho recostou-se a um poste de carreira das camionetas epôs-se a  raciocinar. Naquele dia tinha muita coisa para fazer e muita gente para tratar. Inicialmente, ocorreu-lhe ir falar com os Cartolas, mas depois reviu o caso e mudou de planos; e, antes que se fizesse noite, chamou o motorista para o levar ao Porto.
«Lembras-te daquele advogado que, há coisa de uma semana, me deixaste lá?», -virou-se para o motorista enquanto se sentava no banco do carro. - «Ali perto da baixa portuense, estás-te a recordar?» - O motorista acenou com a cabeça que sim. Pondo ocarro a trabalhar, seguiu directo pela rua que conduz à auto-estrada. Durante a viagem lembrou-se de muita coisa. Depois veio um silêncio; um riso sarcástico; o som do Compincha a sentar-se na cadeira em frente dojuiz e dizer: ele não está a(, mas devia de esta r, enquanto ele não estiver eu não digo nada. Padrinho recostou-se no assento e sorriu pela primeira vez desde há muito tempo. Não lhe ocorreu que a sua confiança no Compinhcha tivesse razões de recear qualquer traição e, antes que tivesse tempo de pensar de novo, desatou de novo a sorrir. Padrinho compreendeu que o melhor seria aguardar para ver o que fazer.

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Ao fim de algumas horas de interrogatório, São Nicolau foi posto na rua sobjuramento de não poder ausentar-se para parte incerta do País, enquanto decqrresse o processo judicial para averiguações de provas. Tratava-se afinal de um processo bem conhecido dele e, por conseguinte, agradeceu a forma como o processo foi dirigido pelo magistrado. Não sendo uma das grandes figuras do processo, São Nicolau limitou-se a aguardar, conforme as instruções, até que Padrinho veio ter com ele e saíram os dois daquela sala de tormento para a claridade dum candeeiro projectando uma luz quente e harmoniosa, passando por várias mesas até se colocarem numa mesa oval junto da porta. Havia muita gente à volta do recinto luminoso e São Nicolau não deixou de reconhecer a amizade do amigo Padrinho naquela hora de consolo.
 «Obrigado, Padrinho, és sempre amigo do teu amigo.» -
«Agora deixa lá isso, não te ponhas para aí a choramingar e bebe uma cachaça para te aquecer a alma.» -
«Tiveste uma boa ideia. Venha lá essa cachaça.» - Concluiu ele.
«Já tens ideia no que vais fazer para futuro?» - Perguntou Padrinho.
«A partir de agora», -disse São Nicolau, -vou continuar a dedicar-
-me às transferências de defuntos para o inferno e não quero saber mais nada de política, percebeste?» -
Padrinho respondeu: «E isso dá dinheiro, assim?» - O outro não deixou de dar uma risada.
«Se dá! Pega todos os dias nos jornais e vê quantos embarcam; e cada um leva o seu destino!...» -
Uns minutos depois, Padrinho e São Nicolau saíram pela outra porta do recinto em direcção ao carro onde o motorista de Padrinho os aguardava. «Segue para Sul.», -disse ele -enquanto São Nicolau ouvia o noticiário do radio sobre as notícias actuais. E para Sul seguiram ambos com os pensamentos absorvidos de tanta coisa...


Ave Rara tornara-se amante de Marta Chata apenas por uma semana e, por aquilo que ela mais tarde designou de «amor-instantâneo», na primeira noite que ambos se conheceram, depois de Ave Rara e Marta Chata terem  esvaziado duas garrafas de whisky, em menos de duas horas e trinta e cinco minutos, deixou Marta Chata sem saber o que fazer.-Se despir-se ou beber! -E ela adaptou pela primeira escolha e deitou-se na

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cama. Ele dá u ma curiosa opinião: «Prefiro ver-te vestida que nua.» - Bela frase, só que ela guarda a aflição toda para si, deitada na cama e bebendo  o ultimo copo da noite.
Marta Chata era uma mulher trintona de estatura normal, com ombros de guarda-vestidos e andava sempre com uma grande agitação nervosa, como evidenciava o rosto pálido e olheirento; o seu cabelo comprido - inteiramente negro e liso -tantas vezes pintado para ficar sempre negro como a noite que cada vez dava mais hipóteses de ficar em pouco tempo com menos cabelos e a ter que usar peruca mais cedo para tapar a sua calvície; e o seu riso soluçante e super agudo que se ouvia à distância dum quilómetro,-contribuíam para transformar Marta Chata na amante de Ave Rara, a mulher da gente, pensou ele, e pegou num cigarro para fumar.Começou a invadi-lo um pequeno ressentimento contra ele próprio. Acabar com aquela relação de ligação contínua; ou continuar às pinguinhas conforme lhe interessava e, para os dias de hoje, parecia ser a melhor solução.
Ele precipitara-se na sua direcção no instante em que lhe transmitiu, em primeira mão, a resolução que só poderia estar com ela em dias ímpares. Ela levou-o para a pequena sala bem ordenada em cuja estante figurava um cartaz do Mao Tsé Tung, fotografias de amigos e em destaque na parte de cima, um vibrador de barro em que se lia I love Amsterdam. E, enquanto ele olhava atentamente e via o Jornal de Notícias e alguns livros feministas, ela disse, num tom neutro: «E o que vais fazer nos dias pares?» - Ave Rara, que estava a passar uma vista de olhos pelas páginas do jornal,  estacou de repente e enrolou os braços como se fosse tirar uma fotografia à lá minuta: «Ó que coisa. Eu sou um homem casado.» - Depois, olhou e viu no chão as garrafas de whisky vazias. Ele e ela bebiam que nem esponjas e, o pior de tudo, é que não tinham dinheiro para
comprar mais whisky.
«É como quiseres.» - Disse ela e pôs-se a travar o fumo do cigarro.
Ave Rara decidira dar uma volta pelo quarto e sala. Procurou banir do pensamento aquelas ideias dos dias trocados e sentou-se no chão, olhando para uma foto da Marylin Monroe em trajes menores. Aquela imagem deu-lhe uma forte corrente no instrumento que se levantou como um lince e foi ter com ela, conseguindo arranjar coragem para lhe dizer:
«Diz-me uma coisa, estás aqui há horas e ainda não conseguiste ter tempo para me seduzires?» - E ela respondeu, sem parar para pensar.

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A maior parte do tempo só estivemos aqui a beber.» - E logo ela se riu totalmente. E ele pôs-se por cima e ela pôs-se por baixo, depois enrrolaram-se e trocaram as posições e, derivado aos whiskys entornados, fizeram o «sessenta e nove» -e ficaram ambos em colapso de orgasmos
 - Pouco tempo depois, virou-se para ela a gaguejar uma banalidade qualquer; ela lançou-lhe um olhar mordaz e disse com os lábios besuntados, que loucura, meu! Ele ficara bastante confortado, tão confortado que olhou de relance para a foto de Marylin como a agradecer lhe aquela inspiração momentânea
 Era evidente que ele atinava com ela na cama. E, no fim, quando fumava um cigarro, ela encostou a cabeça ao ombro dele e disse em voz embriagada: «Não imaginas o gozo que me dá estar com uma pessoa que me satisfaz e não me chateia com nada.» - Ele ficou à espera de ouvir mais mas ela fechou os olhos a seguir e deixou que a sua mão poisasse na dele. «Dorme passarinho.» - Afastou a mão dela para o lugar onde tinha a boca à mercê, beijou-a carinhosamente. «Adeus minha querida. No dia ímpar, conforme o prometido, cá estarei.» -
Tempos mais tarde, deitada na cama, adormecida, estava a sonhar com o seu Príncipe Valente, com as suas idas e voltas ao paraíso dos lençóis, com o escoar das garrafas de whisky e aquelas posições no chão do tempo dos faraós que faziam bradar os sinos dos Clérigos, quando Ave Rara entrou de repente no quarto e a sacudiu para a acordar, gritando: «Pronto, minha querida, tenho que te dizer. São: Ímpares e Pares.» - Ela virou-se para o outro lado e mergulhou nas trevas do sonho.

O facto de se ter um vício compensa aquilo que a vida não pode dar
a uma pessoa. Nessa noite, na sala dejantar revestida a painéis de madeira   folheada e decorada com garrafas tradicionais de bebidas variadas, a
Madame Rara, com o seu vestido espampanante, comeu carne e bebeu uma garrafa de Mateus Rosé, celebrando um novo começo, um idílio amoroso. Para se criar um vício, tem que se viciar primeiro; pelo menos é assim a regra. Sob os olhares malandros dos outros clientes, comeu e bebeu sozinha, recolhendo cedo ao seu apartamento, situado na zona da baixa. Chegada ao quarto, tomou um duche demorado com cheiro a alecrim e esperou pela visita do amigo conhecido recentemente. O seu nome somava sete letras Baixote.

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Na sequência do contacto com a água, sentiu que o seu corpo lhe (ugia: por exemplo, as formas físicas e esculturais, há muito fizeram dela a rainha do nigth and day. Tinha percorrido os quatro cantos do mundo; passara pelo Muro da China ao lado do famoso Chung-Su-Sim, campeão do martelo nas Olimpíadas do Caraças. Recordando o Visconde das calças curtas que a quis levar ao Club dos Lordes de Londres para a apresentar aos amigos das calças à boca de sino, Madame Rara murmurou para si própria que também ela tinha a sua história da Arábia. A seguir à libertação do homem que a amara, deu-se a primeira fuga com o Xá das sete amantes, durante a qual ela percorreu o deserto do Sahara; umas vezes em cima dos camelos dos marroquinos e outras vezes em baixo dos cavalos dos árabes. O Xá (conhecido a partir dela como Moamé da Rosca) fora nesse período um fardo para a jovem Madame, cobiçada por toda a ala de camelos atrás de si pelo deserto sem árvores...
Agora, bem quente na cama do seu pequeno apartamento, Madame Rara livrou-se do fantasma do passado e preparou-se para receber a visita.
Baixote tocou na porta e ela foi abrir.
E entraram juntos. A seguir, beberam vinho, Madame tinha visto na televisão um filme de piratas etomou a liberdade de contar que se deliciara a ver o Pirata da Perna Amarela. Ele riu-se e bebeu a isso; um copo de Mateus Rosé. «Gostaste desta, hem?» - Ele respondeu: «Essa teve piada. À tua saúde.» - Toca a beber. Depois de beber um gole de vinho, ele voltou-se para ela e disse: «Mas ainda não me disseste quem é esse Pirata da Perna Amarela.» - Madame Rara esvaziou o copo e poisou-o a seu lado. «Ah! Pois não, mas vou-te agora dizer: és tu.» - Baixote estava estático a olhar e ela sorria.
Havia muitas coisas para te dizer, Baixote. Coisas que para ti talvez não sejam importantes :queria dizer-te que não me importo nada de fazer o papel  de tua mulher; - lavar-te as camisas e as peúgas  e passá-las  a ferro. - E há  a situação de às vezes poderes  dormir cá uma vez por outra, também não me incomoda mesmo nada. O nosso amor é um caso passageiro,  não achas o mesmo? -Um caso flutuante nas nossas  vidas. Resumindo: Um belo tema para mais tarde recordarmos. Que é que achas,? E mais duas coisas te vou dizer. Se eu dizia que fazias o meu tipo de homem, logo lisonjeavas-te todo e a seguir dizias que era bluff da minha parte, que eu é que tinha a mania de comparar-te com o meu ex.-querido das

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lidas foi não saber amar-te à tua maneira; estava escrito
que. seria a mulher para preencher esse  teu espaço.
Adeus Madame Rara, ele bebeu o ultimo copo da noite.A chuva voltava a bater nasjanelas de caixilhos de alumínio; ela correu as cortina, e deu-lhe um beijo na despedida, fechando a porta suavemente .
Ali deitada na cama, lembrou-se duma última coisa que tinha a dizer ao Baixote e que não foi dito. «Na cama», vieram as palavras, «nunca pareceste interessado em mim, excepto para me ajudares a subir para a cama, fora isso, acabei por sentir que não era uma amante o que tu procuravas . Era uma preta para tua criada.» - Pronto. Agora está tudo dito. Que tenhas boa viagem.
Nessa noite sonhou com ele, o rosto dele preencheu-lhe esse sonho.
«Só é pena não te ter conhecido dez anos antes», -dizia-lhe ele. -«Nunca te deixaria fugir, mesmo sabendo que ia levar com um par de cornos toda a minha vida.» -
Ela não disse que sim nem que não; limitou-se a sorrir, nem mesmo em sonhos jogava certo, pois a um canto da sua memória, já espreitava por ela outro Pirata da Perna Amarela ...

Depois de sair para a rua, Baixote foi até à taberna do Rato, na parte alta da cidade do Porto, e sentou-se a uma mesa a tentar decifrar as palavras que ela lhe havia dito. Ainda não era muito tarde, por isso a sala estava quase vazia, só com poucos clientes a beber uns refrescos, enquanto uma fulana gorda se entretinha noutra sala fazer as palavras cruzadas do jornal, bebendo um cocktail ciclone1, de palhinha. Baixote sentou-se com o seu whisky de malte novo com gelo, por cima de um vidro grosso na mesa onde um quadro representava um boémio à mesa de um bar, de rosto melancólico e triste e com um copo na mão, aparecendo em baixo um escrito -O bar sem um boémio não existe, o boémio sem um bar não sobrevive. -O empregado reparou que ele estava completamente em baixo.
«Ei, amigo!», -disse-lhe ao pé dele. -«Tristezas não pagam dívidas.» - Baixote levantou a cabeça. E logo respondeu: «Porquê, devo-lhe alguma coisa?» - O empregado era um indivíduo entroncado, de braços musculosos, com uma enorme barriga e usava barba espessa.

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1Bebida da noite, preparada segundo o critério do barman.
o empregado corou ao ver Baixote responder-lhe com aquele ar atrevido e Baixote considerava-o como uma espécie de parente mais afastado. «Ouça, não ligue  ao  que  eu  disse.» - Quando o dono da taberna, de nome Rato-Ratão, chegou ao pé dele e perguntou: «Então, foi você que trouxe o mau tempo?» -
«E você ganha algum com isso? » - Respondeu Baixote.
«Eu, pelos visto, não.» -
«Ponha aquela gorda que está ali dentro a dançar à chuva, quem sabe, se não aparecem por aí uns camones 1» -
«Com aquela gordura, desconfio que nem um caolha entrava cá para dentro.»
«Nunca se sabe. Gordura é formosura.» -
«Você é que estava bom para ela; passava-lhe o mau tempo e ela, em troca, dava-lhe um bocado de chicha para aquecer os dedos.»
«Deixe lá isso. Prefiro entreter-me com os meus.» -
«Console-se, então, a ver a chuva a cair», -concluiu ele. - «É mais idiota que eu pensava.» -
«Obrigado, pelo elogio», -disse Baixote, acabando o whisky. -«Nós os dois na balança, não sei para onde o prato da estupidez balancearia mais.» -
Rato-Ratão, sabendo que espicaçando o outro estava a animá-lo,
apesar dele continuar com cara de poucos amigos, chamou o indivíduo com cara de indiano, amarelado de pele e olhos negros que acabava de entrar, envergando umas calças e camisola em tom de laranja. «Ei, amigo,
- gritou - só faltava cá você. Entretenha ali o Baixote que está cismado com aquela gorda que está lá dentro.» - Toy, de apelido do tempo em que andava na catequese e sobrinho duma figura conhecida do mundo do chuto da bola, tendo agora adaptado uma profissão de não fazer nada na vida a não ser viver dos rendimentos da velha mãe, e solteirão de gema, aproximou-se da mesa de Baixote. «Se é verdade o que ele diz, veja lá, se não se quer fazer ali ao pastelão, eu cá por mim não lhe perdoo, atiro-me já a ela». - Responde Baixote. «Isso é uma coisa que me ultrapassa. Atire-se lá a quem quiser, duma coisa tenho a certeza; a mim é que você não se atira.» -
Toy deu uma palmada no ombro de Baixote. «Não me leve a mal, só estou a brincar consigo», -disse. -«Mas, em relação à mulher, digo-lhe, se ela me der uma balda, atiro-me nem que seja de cabeça.» -
«Por mim atire-se à vontade», - disse Baixote. -«E, se assapar nela...

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lTuristas estrangeiros.

8aixote levantou-se da cadeira. «Sois boas pessoas mas acho que está na hora de eu ir dormir.» - Responde Toy, que foi à casa de banho para espreitar a tal fulana gorda, e falou bem alto: «Não se vá embora ainda; a noite ainda é uma criança. E nós vamos ...» - Baixote, interrompeu a frase para se ir mesmo embora. «Vai passear menino, o que tu queres é paleio e eu não tenho a tua vida. Boas noites.» -
Este desenlace entre Madame Rara e Baixote, depois deles terem experimentado as conjunções do amor com um entusiasmo inicial de bradar aos céus, com uma ternura dos anos quarenta de enaltecer, fazia prever que aquele relação tinha pernas para andar, só que terminou antes do tempo de chegarem à meta . Durante esses dias ambos viveram a comunhão de bens de passar camisas e peúgas a ferro e, no meio dumas marmeladas, foi um remedeio. Baixote desabafou que nunca tivera sorte com as mulheres, mas que nunca se sentira bem sem elas, porque lavar camisas e passar a ferro era uma missão a que ele nunca se habituara. Além de que, na pensão onde estivera antes, fartou-se de apanhar piolhos e chatos, tendo que andar sempre no coça-coça! Foi  um tempo inesquecível para ambos. Na ultima noite em que passaram juntos, ele disse a Madame Rara que tinha sido nos tempos da sua juventude  o melhor stick da sua turma. No momento em que as palavras lhe saíram da boca, ficou com receio de ter estragado aquele momento, receando que ela levasse a peito aquela leviandade. Mas escusava de ter medo, pois o que Madame Rara fez foi apalpá-lo de cima a baixo e beijá-lo por todo o lado, ao ponto de o deixar na cama virado ás avessas.

Padrinho tinha um certo receio de andar de combóio, mas desta vez não teve alternativa. Uma vez que o seu motorista estava doente, seguiu no Alfa para a capital. Tinha-se instalado em primeira classe junto à janela, de costas para a máquina porque era adverso à velocidade. O terror de pensar em acidentes de comboios dava-lhe alguns calafrios. Ficou sentado com os punhos metidos na gabardina de forro azul e tentou não entrar em pânico. Quando veio o revisor picar o bilhete, já Padrinho

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tinha acalmado na viagem e começara a ler o jornal duma ponta a JLttra. À medida que o comboio avançava, transportando-o através de iuas linhas paralelas de metal presas ao chão, Padrinho sentia a atracção
.Ja grande cidade começar a exercer sobre ele um domínio mágico que lhe fazia adivinhar num grande futuro. Levantou-se de repente do seu iugar e foi pelo corredor do compartimento da carruagem até à casa
,te banho. Lá dentro, no W.C., voltado para a janela, começou a
desenhar-se a capital. A Lisboa que ele queria ter ali mesmo, à luz do seu pensamento. Disse em voz alta o nome dela. «Aleluia. Até que enfim, stás aí à minha espera.» -
Padrinho saiu e fechou a porta da retrete.
Ao voltar para o lugar, reconheceu a figura do seu primo que o cumprimentou com amabilidade. «Aleluia! -disse o outro -Já faz um tempo que não te ponho a vista em cima.» - Era visível que Mequinho, o primo, estava cheio de curiosidade para lhe fazer as mais variadas perguntas e agora, que desatara a falar, não havia meio de fazê-lo parar.
«Ouço dizer por aí que agora descobriste o ovo de Colombo. E que subiste depressa na vida, isso é tudo verdade, meu caro primo?» - Mequinho fez um intervalo para respirar. Era um homem alto e bastante magro, no seu sotaque de provinciano. Trajava um fato ás riscas, feito por medida, o relógio de ouro com a respectiva corrente presa ao colete, os sapatos à medida dos seus pés confeccionado na sua fábrica, brilhantemente engraxados, os botões preciosos nos seus punhos brancos engomados. Acima desta vestimenta de vendedor de calçado, surgia uma cabeça rectangular, coberta de cabelo espesso muito bem alisado, e de onde brotavam sobrancelhas carregadas, sob as quais ardiam os olhos perspicazes em que Padrinho já tivera o cuidado de reparar. «Estás a ficar muito janota», -comentou em tom irónico.-«Dá-me a impressão que vais ver as meninas da capital.» - Mequinho acenou que sim com a cabeça chegando-se mais para ele e sussurrando em baixo tom: «Vou a Lisboa ver a merda que lá se côa!» - Mequinho sempre tivera veia poética e sentia um certo orgulho em presentear os amigos com quadras instantâneas como agora, quando se pôs a recitar:


Companheiro, peço-te: ouve com atenção
Não queiras ser o mealheiro, nemflor de quem se cheire Umperfume envenenado, não...

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 Padrinho felicitou-o pelo verso e esperou que u primo se calass mas foi então que Mequinho se expandiu ainda mais. «Tu não precis0 de me falar de ti», -disse jovialmente. -«Naturalmente, eu quero qu estejas bem, mas só te aviso para teres cuidado com quem andas.» Piscou um olho com ar entendido e colocou um dedo espetado à frente do nariz. «Nada de confiares em ninguém. Eu respeito a privacidade da pessoas,  podes  crer.» -
Durante uns segundos, Padrinho permaneceu calado e Mequinho, sem
esconder a sua desilusão, viu-se obrigado a falar por ele. «Quero que saibas que não me quero meter na tua vida e podes contar comigo seja para o que for», '-- murmurou. -«Vou ficar aqui umas horas a tratar duns assuntos e, na volta, se quiseres, podemos combinar irmos jantar e depoi seguirmos juntos na viagem.» -
Padrinho pôs-se de pé, e o primo levantou-se também, quase que ocupava todo o espaço disponível entre os bancos. O comboio passou num túnel e por sua vez Padrinho teve que se desviar à pressa para não levar com o outro contra si, que foi agarrar-se ao fecho da porta de correr para não se estatelar no chão. Instantes depois, o comboio saiu do túnel e Mequinho ficou a puxar os dedos da mão com a cabeça cabisbaixa. «Có o diabo! Estava a ver que ia fugir do chão!» - Disse ele por fim.
Eles abandonaram o compartimento, ao som dos apitos sonoros do combóio a querer dizer que estava a chegar ao destino.A cidade -Lisboa
-nem mais nem menos! Estava vestida de branco, parecia que ia a um enterro. E quem será o morto, homem, perguntou a si próprio Padrinho, oh! caraças, espero bem que não seja o meu! Quanqo o comboio parou na estação de Santa Apolónia, saltou para o chão, acompanhado de perto pelo primo.
As pessoas afastavam-se umas das outras. E depressa eles se precipitaram para as saídas até à paragem dos táxis. Nesse instante, Padrinho despediu-se de Mequinho e combinou irjantar com ele, depois de tratar os assuntos que o tinham levado até à capital. Ainda antes dele se perder entre a multidão, dizia Padrinho: «Agora vê lá se perdes a maior parte do tempo a mostrares sapatos sem veres as sapateiras!» - Gargalhada geral. «Em linguagem geral, quer dizer, recoveira da olheira.» - Quando Padrinho voltou costas ainda ouviu os murmúrios do primo.
«Raios te parta, és sempre o mesmo.» -
O tempo estava a preparar-se para uma grande chuvada.

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«Se vós não sabeis o que é um pesadelo eu sei muito bem o que isso
, )>  • dizia Madame Rara a um grupo de camareiras com os rostos
;·i"uminados pela chama interior da curi.?sidade. «No ponto baixo das nossas vidas acontece amiúdas vezes. As raparigas desamparadas ou aniquiladas de tristeza e profunda dor, ou simplesmente àquelas que se deixam viciar pelo álcool e drogas pesadas, esperando chegar ao cume mais depressa para morrer por aí numa valeta mais cedo.» -.
Lá dentro da sala, o fumo acumulava-se no ar e na pequena extensão do recinto. Por debaixo das luzes em tom de amarelo-sujo que entorpecia os corações e tomava os sonhos mais imaginários, saía dos alto-falantes a voz de uma cantora a cantar um trecho de música com letra da desgraça da alma. Aqui rio recinto raso de luz amarelada também a música cheirava a pesadelos e não havia pássaros a cantar.
«Madame, Madame?» - As mãos de uma rapariga acenando no ar, chamaram-na a um canto da sala e levaram-na até à casa de banho.
«Aquela rapariga está ali completamente embriagada e não diz coisa com coisa! Será que está com pesadelos?» - No rosto da rapariga notava-se um ar de angústia. A outra moça estava deitava no chão com o rosto pálido, que coisa incrível. «Porque é que fizeste isto para estares completamente embriagada?» - A outra ouvira-a dizer algo, mas estava demasiado excitada para responder-lhe. Os seus olhos não se arregalavam, antes estavam semicerrados, pelo efeito do álcool e os seus lábios tomaram-se pálidos em vez de rubros. Madame Rara, a dado momento, pegou pelos braços da moça e bradou alto com insistência:
«Acorda, pá, tu não és nenhum saco do lixo, deixa-te destas fitas e encara a realidade.» - E soprava-lhe no canto dos olhos, sacudindo o corpo até chegar a pôr-lhe água na fronte para dar mais ênfase: Oh, como arde a testa. Deve terfebre. Madame Rara tentou controlar-se. «Deixai-a estar aí um bocado a descansar e vamos nós ao trabalho.» -
«Pesadelos», -repetiu a frase com firmeza. -«Isto são é bebedeiras.
Estas gajas são viciadas e malucas ao mesmo tempo.»
E logo voltou a falar. «No meu tempo de menina moça, eu vi tanta fulana a apanhar a piela por causa dos chulos delas e depois diziam que era para esquecer; o tanas é que era, tudo não passava era duma dor de corno que elas sentiam pelos seus gajos. E depois, claro, viciavam-se no álcool e, volta e meia, andavam com semelhante carrascão que nem vos conto nem vos digo.» - Elas foram para a sala trabalhar e, durante o resto do dia, entretiveram-se na conversa com os clientes na sala.

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Mais tarde, quando a outra moça abriu os olhos, deu conta qu Madame Rara estava ao pé de si e saudou-a com um ligeiro aceno de cabeça. Ela foi-lhe buscar um pouco de água no copo e deu-lhe a beber. Uns minutos depois, a moça recompôs-se totalmente e acabou por comportar-se da maneira mais natural do mundo, como se nada tivesse acontecido antes e voltou para o seu serviço.
Madame Rara conversou bastante com ela. «Nestes últimos tempo tenho andado desvairada, nem sei o que faço -e manifestou entre outras coisas o seu repudio por se ter deixado envolver na tentação de tirar umas passas na casa de banho. - aquela sacana da espanhola é que me meteu o vício de experimentar emoções fortes para entrar no mundo da droga.» - Tudo isto e mais algumas confidências a outra contou a Madame Rara eprometera não voltar a infringir aregra dobar.«Prometo-te não voltar aexperimentar essas merdas. Palavra de mulher que quero cumprir.» -
Mas o que ela não disse às colegas foi o seguinte: é que já era um habito seu estas fumaças; desde os tempos em que conheceu algumas colegas viciadas no chuto, e que aquela cena de hoje não fora um acidente mas, sim, um sinal de fraqueza, um sinal de desgraça pura e total. Era possível que também algumas andassem metidas no vício mas, para já. remetiam-se ao silêncio das trevas da noite.
As camareiras estavam à espera de Madame Rara, já impaciente com toda aquela conversa sobre os pesadelos. Queriam saber mais história. como por exemplo a história dela.
«ÜS meus pesadelos já os tive noutra idade. Agora não, aos quarenta anos, o qe eu quero são umas noitadas bem passadas e, de vez em quando», - disse ela com emoção, - «arranjar por aí um manduca qualquer que me aqueça os pés no Inverno para não ganhar calos no Verão. Ésó isso que eu quero mesmo.» - Madame Rara era uma mulher fascinante que cativava qualquer pessoa ao primeiro contacto. «Se fosse hoje»,- acrescentou ainda. - «Não acreditava em tudo o que em nova acreditei;que o amor era para durar sem a gente se cansar, que se podia confiar num traidor fiel, tudo. Ver os homens adorarem-nos como se fôssemos galinhas de ouro e não termos os chulos a sugar-nos o leite e os patacos até à quinta parte de sua majestade: O camelo!» - Ouviram
-se as gargalhadas das camareiras; todas elas estavam estupefactas com o conto de Madame Rara.
Quando ela saiu da sala, os risos ainda pairavam no ar.

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A seguir à Rapariga da Saca Preta, Golias voltou ao mundo da fantasia que começara com a nova realidade a mover-lhe os sentidos. Tinham-lhe aparecido, por exemplo, algumas delas armadas em fidalgas da capital, sem lhe deixar credenciais de boa técnica, até que mais tarde, durante a festa da inauguração do Salão do GAS viu uma mulher vestida de negro que mais parecia um uniforme. Após trinta e nove minutos de conversa pró tecto e encostos propositados, tomou a liberdade de a convidar a ir visitar o seu quarto de fantasia erótica e, por fim, ei-lo sentado junto duma urna enfeitada de flores com um manequim de plástico a imitar o morto, de olhos bem abertos ao silêncio, fitando, com o seu vestido à uniforme.
Mas quem é ela? Uma prostituta? Uma imigrante, visitante ou uma
companhia qualquer? Não confundir o termo das palavras; uma visita é uma visita. Não está em causa a sua condição de visitante. Uma visita é para ser estimada, apreciada e até gozada.
Chama-se Graça Boa Hora. Era uma mulher quarentona, mas apresentando uma fotografia invejável. E, nestas coisas, Golias sempre se deixa atrair por um bom porte físico.
O papel espesso na parede, ás riscas azul-marinho sobre o fundo creme, perdeu um pouco de cor, o bastante para desenhar quadrados vivos nos lugares onde antes havia rectângulos. Golias não gosta de saturação.
Quando  se mudou para  ali, compôs  uma  decoração  cheia  de
recordações. Na chaminé tem uma colecção de postais com dedicatórias às namoradas, à qual chama simplesmente recuerdos de mi vida, uma gigantesca pista de automóveis telecomandada ao canto do sofá. Mas no quarto onde ele se deita, na parede em frente, está o retrato de uma mulher de preto, tão corpulenta como ele é forte. Uma mulher poderosa, como ele a amoli: assim a guarda perto de si.
Da mesma forma que, nos dias da sua loucura pelo erotismo, ele abre a urna camuflada debaixo da cama onde ela está oculta. Sob um medalhão junto à garganta, vê-se o retrato dele. Ela é a Viscondessa, e o seu nome é- pois, qual havia de ser? -Centopeia. Noutros tempos, tempos remotos ejá longe, ela e ele comungaram o bem e o mal um com o outro.
Os reposteiros, de veludo encarnado grosso, ficam corridos em dia de sol permanente e descobertos em dias de sombra frequente. A dura realidade de estar aqui a apanhar sol permanente e não estar lá, no lugar

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da  urna,  em dias de sombra frequente, prendem-lhe  todos os seus pensamentos.
Quando chega o inicio do seu ritual, Golias cruza as mãos diante.do
corpo e fixa os olhos no manequim de plástico, fazendo-se credor das suas graças, apesar da luxúria, da maluqueira e dos costumes do acto que em redor imperam. Outro motivo que o leva a correr as cortinas é que há, evidentemente, a concentração total no erotismo. A paranóia para o lascivo é um acto de pura imaginação que o leva aos confins do além. Cheia de arrepios de medo estava Graça Boa Hora que, em boa fé, não via chegar a hora de se pôr dali a desandar que nem um foguete. A cobrança por tal encomenda ficara-lhe bem penoso e, para desanuviar o seu suplício, disfarçou-se de coveiro coberta de um sobretudo preto e uma colher de sopa na mão; e pôs-se ao fresco que nem uma borboleta
conseguiria desaparecer dali tão rápido.
 Quando chegar ao fim do seu ritual, Golias emocionado pelas imagens televisivas que os seus olhos encaixaram, terá um prazer total poder dizer que já falou com a Viscondessa Centopeia, onde se viu obrigado a contar-lhe as suas leviandades, epor conseguinte ficou incorrupto, puro.

O Deus Neptuno é inimigo das mulheres solitárias. Sempre que vê uma mulher sozinha não espera pela demora para a·devorar. E só se sente satisfeito quando puxa a portinhola para cima e aperta os botões das calças. Nos dias em que ele sai de casa para visitar a taberna do Rato, entrelaça as mãos diante do corpo e fixa os olhos nas pessoas que estão sentadas à sua volta, de maneira a ver se encontra alguma alma feminina numa mesa e de preferência sozinha.
Uma história que ele contara a um dos seus favoritos, o espalhafatoso Baixote e famoso apresentador de programas de mulheres, na taberna do Rato, onde o Deus Neptuno tem o hábito de comer todas as mulheres desamparadas à procura do subsídio da febra abonada. Ali, contou ele, acabou por conhecer uma jovem de vinte e sete anos, profissional de analises de produtos  variados, também pelos  vistos desamparada,  e

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Juseram-se os dois na conversa. Muito bem, essa tal analista de produtos
·variados era uma figura atractiva. Mal acabara de tirar os trapinhos do corpo como uma taxi-girl, pôs-se aos saltos dum lado para o outro, confessando que não estava ali para mais nada a não ser fazer um srrip-tease em rodopio. Foi isto nem mais nem menos que o Deus Neptuno viu para seu desabono, deixando-se ficar ali, insignificante, a olhar o talen to da artista. Apeteceu-lhe arrancar as unhas dos pés ou pôr-lhe a vagina careca, mas não perdeu pela demora. No dia seguinte, subiu o preço da oferta da febra abonada e voltou ao local do espectáculo.
Durante o trajecto, chegou a falar para si próprio. Muito bem, monte de esterco, andas a gozar-me mas hoje vou-te pôr de língua afiada que
nem um galg'o atrás da galga. Quando ela acabou o programa, Deus Neptuno, espalhado sobre o sofá, implorou à analista de produtos variados, de mãos entrelaçadas: «Minha querida, não me dês mais baile, eu gosto muito de ti, mas tu pões-me as tensões ao máximo.» - Quando Baixote ouviu a história, abanou a cabeça e disse: «Que pu ta, fez-se artista e não queria molhar o pincel; era só receber o pataco e pronto, já estava o trabalho feito.» - Mas a verdadeira moral da história era que o Deus Neptuno tinha levado a artista ao tapete e carimbado o seu passaporte de ejaculação.
O Deus Neptuno é o maior.
O movimento do GAS aumenta a partir dele, quase doze horas por dia. Ele está constantemente a beber água, um copo de dez em dez minutos para se manter em forma; o próprio tesão limpa as impurezas antes dele se realizar. Todos os novatos que o rodeiam conhecem a sua fama sobre as solitárias pois, segundo o Deus Neptuno, secomunica à desamparada, através do seu peso monetário, que faz dela ficar aliviada.
«A mulher solitária», -fez ele notar. -«Necessita de consolo físico, além do vil metal que é importante para a manter na sedução do pecado. A solitária bebe leite enquanto eu bebo água, essa é que é a nossa diferença.» -
Deus Neptuno muitas vezes teve ocasiões de contar mil histórias de mil dias em que participou ao lado das mais belas mulheres mundanas daquele tempo. Quem não teve nunca u m sonho de ser o Rei dos Atiradores do Sexo um dia? -Mas ele sonha com mais de um dia; sente o poder crescer-lhe nas pontas dos dedos para que possa fazer umas coceguinhas nas desamparadas solitárias com que controlará a história.
A história do Rei do tiro, note-se. Do tiro ao sexo.

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1 \ 1(11 i 1tho Toy inclina-se para o Tio do chuto da bola e faz-lhe v1 i
inakào li ma dúzia de copos enquanto o diabo esfrega um olho. O Tio escutv quieto e deixa-o palrar à vontade, pois sabe que é tudo letra o que el diz e que tudo não passa de conversa de copos. Entretanto, Toy, comii cabeça demasiado pesada para o corpo que possui, equilibra todo o set1 peso no pescoço grosso. Os seus olhos começam a ficar turvos; os lábio vão mexendo para contar uns filmes à maneira. Ele é a força pura do alcoolismo; move-se ao retardador, e as suas histórias, no seu passe de conversa sonolenta, dão para adormecer um morto.
Não, um morto não, um vivo assim é que é.
As explicações que ele dá podem ouvir-se no mesmo preciso momento, à distancia dum quilómetro. Começando por uma série de insultos à equipa de futebol da sua terra, melhor dito, ao seu treinador e aos jogadores por uma falta de atenção táctica, estupidez momentânea e burrice de camelo do Presidente, e assim por aí adiante, chega ao cúmulo de berrar alto e pôr-se a coçar os colhões perante a plateia de clientes que o tinham que gramar naquela estúpida conversa. «Eu fazia uma revolução que mandava aquela cambada toda para o galheiro 1.» - E continua a dizer alto e bom som: «Porque os otários dos sócios é que têm que gramar com as burrices daquele treinador que estava bom era para treinar os tomates do Padre Inácio.» -
A história anima-o edeita abaixo mais uma golada de whisky com muita água no copo. Toy ergue de novo a sua voz. «Se Domingo não ganharmos àqueles pascácios», -declarou, levando o copo à boca, - «eu juro que mando à merda o Presidente e desisto de ser sócio.» - O Tio continuava a deixá-lo falar esóseria. E, de vez em quando, murmurava num tom autoritário e sonoro.«Não sabes o que dizes. És sempre o mesmo pateta.» -
Passaram ali um bom bocado do tempo ao balcão do bar. Enquanto ele repetia as queixas contra os maus resultados da sua equipa, o Tio respondia-lhe, longe a longe, com brandura: «Ü teu sofrimento é o nosso sofrimento. Por isso cala-te e não digas mais asneiras.» - Mas ser viciado no álcool é motivo de opressão constante. O hábito de beber muda o seu timbre de voz, a sua atitude de carácter e contagia todos os que dele se aproximam.
Toy continua a dirigir-se ao Tio. «Sabes que mais? Que selixe o futebol; é melhor eu virar-me para as mulheres que essas ao menos não me chateiam tanto e dão-me mais gozo de entretenimento.» - Bebeu outro

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1Cadeia.

opo e, no final, deu um arroto, dizendo a palavra: «Amem.» Deu por encerrada a conversa da noite.
Padrinho está a olhar-se ao espelho. Parece tudo menos um santo, é simplesmente um homem de carne e osso com as suas próprias roupas que veste todos os dias: blusão de couro e chapéu de feltro, umas calças de bombazina presa a uns suspensórios, camisola de lavrador, acompanhado duma camisa branca a realçar o corpo. Este Padrinho tão sentimental está cada vez mais vulnerável ao grupo de amigos que o acompanham nas suas passadas pelos meandros do vício e do prazer.
Ele fala num tom rabugento para disfarçar o seu mau dia e vira-se para Rato-Ratão, o dono da taberna. «Então, rapaz, como vai isto por cá?» - O outro abana a cabeça e fala num tom irónico. «Vai-se-lhes indo.» - E volta a falar: «E a sua escola de formação, os aprendizes como vão?» - Padrinho fecha os olhos, suspira. «Vai um pouco mal. Quero regularizar a situação mas as Finanças não autorizam.» - Então, aproximam-se mais clientes e eles vêem-se obrigados a mudar o tema da conversa. Pega no copo de whisky e muda-se para o outro lado da sala. De repente entra Ave Rara e dirige-se a Padrinho enviando-lhe uma saudação através dum toque de mão nos ombros. «É hoje que me vais levar a comer a uma marisqueira?» - E logo o outro responde: «Ó que caraças, é para já.» - Então alinham as ideias e vêem-se de repente com Fífia também a bordo do carro de Ave Rara, a caminho do restaurante. E precipitam-se pela noite fora. A lua começa a aquecer, a fervilhar, como a água aquece o lume. O calor torna-se mais forte e Fífia, com um movimento rápido, arregaça as saias para cima, mostrando um par de coxas bem torneadas. Depois chegam à sala do restaurante, uma sala em forma de postal, com um aquário ao centro e sob uma temperatura amena
e dócil.
Padrinho e Ave Rara, com Fífia sentada ao meio, preparam-se para dar ao dente. «Ü que desejam para comer e para beber?» - A voz do empregado ressoa ao pé deles. Padrinho faz a encomenda. «Traga-nos uma travessa de percebas, e mande preparar uns tigres grelhados à maneira da casa; e para beber, sirva-nos um Alvarinho bemfresco .» -
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. ..;ala do restaurante estava bem apinhada de homens e mulheres, Jiante dos quais, os empregados andavam nu.ma fona dum lado pra 0 outro, nas mesas e no balcão, sem mãos a medu para atender os pedidos encomendados pelos clientes.
Padrinho dá inicio ao jantar. «Começai, meus amigos, comei e que
vos faça bom proveito.» - A seguir, a voz de Ave Rara não se fez esperar.
«A quem tu o dizes. Estou com uma fome de leão.» - Momentos depois, quando chegam as travessas, é chegado o grande momento; eles batem-se como tigres aos mariscos do mar e depois calam-se por instantes, quando o inimitável vinho escorrega pelas suas goelas. Até os sufoca e faz arregalar os olhos de estremecimento. O Ave Rara suspira fundo.«Já está. Venha mais outro.» - Fífia resolve intervir na conversa: «Não há garganta no mundo que resista a um copo destes.» - Responde Padrinho:
«Aí é o teu engano. Resisto mais depressa a um copo destes que ao teu amor.» - Ela dá-lhe um empurrão. A explicação parece magra mas serve para a ocasião.
«Vocês gramam-se», - diz Ave Rara. - «Mas eu gramo mais o caneco.»- Eles riem-se e continuam a comer, sem tempo marcado nem horário apalavrado. E assim se passa ojantar, até Ave Rara se levantar da mesa com um já volto e nunca mais voltou . A palavra engodo fica marcada no dicionário do Padrinho.
Depois desta cena não haverá outra igual.
Na fatídica manhã do seu trigésimo sétimo aniversário, dentro do seu carro, junto à praia do Cabedelo, o empregado de mesa TóZe via dormir a amante e sentia o coração a encher-se até mais não de puro amor. Tinha por mais de uma vez acordado aos repelões, antes do nascer do sol, com o travo amargo na boca que lhe deixara um pesadelo, o seu sonho de reconstruir um lar único -dos casais que adoram o ar livre da natureza -e acabara por adormecer de novo enrolado na construção do paraíso ali à beira-mar. Despertando ao som das ondas e envolto no nevoeiro do céu, ficou irritado consigo mesmo por se ter esquecido da parte final do sonho. Ergueu-se sem ruído, agora estava bem desperto, e olhou pela janela do carro em direcção à praia, ainda enevoada. Lá um pouco mais distante, ouviu ligeiramente o chiar da passarada junto ao

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arvoredo ao pé da seca do bacalhau. TóZé puxou o pescoço mais para cima epôs-se a fumar um cigarro, abrindo um pouco o vidro dajanela. A areia da praia estava envolta em névoa, no meio da qual rodopiavam as
aaivotas, fazendo a chiadeira do costume.

Desde o inicio do romance entre TóZé e a sua amante, no local do
trabalho onde se conheceram, há mil equinhentos dias, os sonhos tinham-se desvanecido aos poucos, da mesma forma que as ilusões se criaram no domínio imaginativo em que ele sonhara um dia; construir um castelo de areia à beira-mar para a sua princesa. Por isso, sempre que voltavam à praia , aquilo parecia tratar-se de um presságio de alguma coisa maravilhosa, .uma.vez que a curtição entre ambos era totalmente diferente das outras curtições entre eles.
Daí, o regresso à praia, em horário de pescador, animara o espírito de ambos e, depois duma boa curtição, dormiam até o sol raiar pelos vidros do carro. Quando ela acordava, via-o em cima do rochedo, tentando pescar com uma cana euma linha com um anzol eum isco enfiado. Tudo o que é corriqueiro acaba por se tornar impróprio para consumo e TóZé sabia muito bem como devia fazer feliz a amante; tornar-se ele num verdadeiro erudito.
Na manhã do seu trigésimo sétimo aniversário, quando a primeira luz do dia afluiu na praia e as gaivotas começaram dum momento para o outro a banharem-se nas águas, a beleza do momento cortou-lhe a respiração. Correu na direcção do carro onde a sua amante Mei dormia ainda e acordou-a com meiguices nas partes intimas.
TóZé sentiu vontade de fazer amor e não esperou sequer pela autorização das gaivotas, estendendo-se sobre ela, beijando-lhe a boca até desaparecer a comichão. Quando terminou, ficou a olhar para a inocência da silhueta meio adormecida.Ela tinha o cabelo comprido, loiro malhado , uma pele branca, branca e os olhos atrás das pálpebras eram dum castanho claro. Os pais dela não eram conhecidos. Por isso, a união dos dois foi fácil e amor à primeira vista. Com o passar do tempo, foram trabalhar juntos para os copos eentendiam-se às mil maravilhas no mundo da copofonia 1 • Como não tinham filhos, transformaram-se numa união sagrada de amor único e soberano, onde a natureza era a rainha-mãe dos seus segredos e mistérios. Cheio de emoção, TóZé observou Mei enquanto ela dormia e expulsou o espírito maligno do pesadelo que o atormentava. «Quem diz que viver assim na praia», - raciocinou alegremente, -«ouvir o relento, cheirar o aroma, fazer amor ao som dos

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1 Bar de alternos .
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t Olhando fascinado a aurora maravilhosa, voltou a dirigir um discurso silencioso à amada adormecida. «Mei, eu faço hoje trinta e sete anos de idade e estou maravilhado com este amor. Só desejo do fundo do meu coração envelhecer ao teu lado.» - Disse-lhe enquanto ela dormia, atirando-lhe um beijo com a ponta dos dedos e inclinou-se para o lado e acabou por adormecer.
Baixou logo os olhos. Nem um ai mais disse e ali ficou entregue ao sonho, como ele desejara.

Quando a perversa Linda chegou à maior idade e se tomou, em virtude da sua beleza atractiva e de parecer ter olhos postos em tudo, bibelô dos desejos de muitos homens, começou a constar que andava à procura doutro amante mais generoso na medida em que o primeiro já a tinha posto de lado. Os seus pretendentes rejeitados lamentavam-se que, em termos práticos, ela exigia demasiado para aquilo que dava em troca; mas em abono da verdade se diga, uma carícia dela a valer valia bem à vontade o ordenado mínimo daquele tempo. Alguns amigos mais azedos foram ao ponto de sugerir que, com todos os defeitos e virtudes, Linda procurasse amealhar mais amantes, de forma a praticar menos egoísmo e fosse mais generosa para com eles, dividindo uma parte da sua beleza e vícios com todos eles. Apesar dessas tentativas e algu.mas atenuantes deles quererem fazer dela a sua prostituta, predilecta. Linda não foi no balão e seleccionou um a um os seus amigos privados.
Depois dos amigos saberem da sua firmeza em manter ao bom estilo a sigla: -muitos e bons -ela começou a olhar ferozmente concentrada na carteira de todos eles, que era no geral tomado como um sinal de desdém. A partir daí, os «cabritos» rotulados de amigos passaram a ter mais liberdade de dormir com ela na sua choupana, (como ela referia) sozinha com os seus jogos de cartas, em que era uma viciada incorrigível, e os tradicionais copos de bebidas variadas a qualquer hora do dia. Certo amigo, no entanto, ganhou o hábito de a levar para o seu atelier particular, discretamente  sem dar muito nas vistas, muito embora ela já  não

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,precisasse de dar satisfações aos vizinhos. Era um amigo intocável já
.;om idade de ser seu pai, que se tinha convertido em seu conselheiro, Jesde os tempos, em que ela viera desaguar à cidade, dando o nome de Zé, apenas esse nome e mais não deu. Linda nunca mais o largou e deu sempre provas de ter por ele um carinho especial, não esquecendo como J obvio, a sua tentação à carteira dele.
O bairro onde ela habitava chama-se Bomsanto, rodeado por uma imensa floresta de árvores e de verdes à volta dos campos e logradouros, com as suas múltiplas raízes; u ma área de mais de dois quilómetros de diâmetro. Certas zonas das árvores tinham-se transformado em guaritas de amantes nocturnos; outras em refúgio dos cães e galinhas. Alguns moradores mà.is pobres fizeram abrigos toscos nos carros abandonados e viviam como lordes no seu palácio de quatro portas e quatro rodas. Quando a chuva e o temporal se faziam notar, desaparecia tudo e nem os cães e galinhas lá ficavam para contar onde se tinham alojado.
Era um bairro do povo, ao qual o intocável Zé viera parar com a sua carrinha de marca Citroen, trazendo uma vestimenta chique e um perfume não menos chique e os vizinhos, quando o viam passar, faziam-lhe uma continência como um soldado faz a um general «Bom dia, meu Senhor». Como filho de Deus e embora ele não tivesse sido nenhum oficial do exército, ele aceitava o cumprimento dos vizinhos sem se meter a dar sequer explicações.Zé ganhava a vida como industrial. O seu plafond monetário chegava e bastava para proporcionar àjovem Linda um futuro auspicioso e rentável.
«Que bairro simpático, este.» - Dizia Zé.
«Nem por isso.» - Discordava a Linda.
«Porquê? Olha só: não vês esta gente tão acolhedora que deve ser bastante tua amiga.
«Estás muito errado. Não passam eles duns pulhas e elas dumas putas.» -
«Ü quê? Então é um bairro de pecadores?» -
«Vamos mas é sair daqui.» -
Um tanto excitado com a conversa, Zé inclinava-se, colando a boca ao ouvido dela. «Diz-me então depressa. O que é que agora te apetece fazer?» - Então ela arranjou-se à pressa e saiu a passear com ele por entre as pessoas que estavam aglomerados à porta da entrada a cochicharem umas com as outras. Pelo caminho ela pediu-lhe dinheiro para comprar roupas e ele acenava com a cabeça, todo risonho.

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 Zé.0 intocável, era uma pessoa bem falante e o dinheiro para ele er" somenos, 0 mais importante para ele, era a pessoa, e essa pesso;i chamava-se Linda. No carro, ele confessara-lhe a sua excitação numu manobra táctica, «Tás a ver, tenho ali na mala do carro umas botas para te oferecer se te portares comjuízo.» - Ela ficara indignada com a maneira dele expressar e comunicara-lhe que hoje não era dia para fazer marmelada; simplesmente não lhe apetecia, bem podia ele voltar para as suas amigas do bar. O rosto da rapariga ia-se colorindo de várias cores conforme manifestara o seu desapontamento e foi esse desapontamento que deu a Zé optimismo suficiente para o fazer ficar agastado, a cinquenta
passos da casa dela, e deixá-la à porta da entrada, dizendo com ironia:
«Não há amor também não há botas para ninguém. Passe muito bem.» - No seu dia a dia, Linda era empregada num bar de alternos. Ela apanhava boleia num  transporte dum amigo qualquer, levando uma pequena sacola com as coisas mais úteis para a sua maquilhagem lá dentro do trabalho.  O bar  era  conhecido  em todo  o quarteirão  pela  sua excentricidade e, acima de tudo, pelas catraias que lá atraíam os clientes mais requintados do mundo nocturno. Uma vez por semana, Zé dava lá
uma saltada e ficava a vê-la pular na pista de dança até ela se cansar. No  bar,  depois  de Linda  dar  um  vistaço 1 ao seu pé  de dança,
encaminhava-se para uma mesa sem ser aquela em que Zé estava sentado. Nas paredes do bar liam-se os escritos em letra gótica: o entusiasmo com que se vive cada ilusão é fantástico  e fabuloso.
Linda devia-lhe uma explicação. Embora ele não estivesse zangado com a sua indelicadeza, comprometeu-se com o empregadô de mesa e mandou servir-lhe uma taça de champanhe .Mas, apesar dessa gentileza toda da parte dele, o rosto de Linda manteve-se inalterãvel. Quem muda de opinião quer dizer que também muda de feição, com certeza. Só a cabeça dele sabe o que lá vai mas, concretamente, isto com mais uma tacita de champanhe, a coisa compõe-se, pensou Zé e na boa hora o fez. O empregado levou a taça à mesa, acompanhada de um bilhete escrito, no qual englobava metade de uma nota de cinco mil escudos. O escrito dizia o seguinte: se quiseres a outra metade da nota, vem cá buscá-la. A seguir, cruzou os braços e fechou os olhos. Quando Linda pegou no bilhete e se preparou para ir embora, o empregado abriu os olhos instantaneamente. «Raios te partam». - berrou ele. - «Parece que nãoprecisas de dinheiro? Vai lá buscar a outra parte da nota, são cinco mil dele!...»

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lBoa figura.

A perversa Linda demorou um segundo a raciocinar se havia ou não havia de ir buscar a outra parte da nota. E levantou-se da cadeira num ápice. «OK. Não te preocupes comigo.» - Linda sorriu e atravessou a pista em direcção à mesa dele. Quando Zé pôs os olhos nela, ajovem foi invadida por uma onda de calor e sentou-se ao lado, dizendo simplesmente: «Olá». Nessa noite ela entrou na sua choupana e dormiu com ele até o dia seguinte, ficando assim o capítulo das botas encerrado; e ela acabou por aceitar o que perdera antes. «Ü tigre ataca sempre quando o sol se abre.» - Dissera-lhe Zé, citando-lhe um velho provérbio à despedida.

Pouco tempo depois, Linda apaixonou-se por um músico para viver com ele um intenso amor. Nos dias que se seguiram, passou muitas horas fechada em casa e abandonou a carreira de alternadeira. O músico da harpa tinha-a embalado num sonho em que ela se deixou seduzir sem nunca protestar; eu nunca imaginei vir a tocar harpa, o que é que vocês pensam que isso é, mas raios me partam, se um dia eu não vou aprender a tocar harpa, flauta, ou quem sabe, até pífaro. Comigo é que não é.
Quando ela acabou de vez com os amigos para se dedicar ao músico e se desviou do mau caminho para entrar noutro caminho menos mau, deu por si deitada na cama, descobrindo que já não tinha dinheiro que chegasse para os seus vícios, que tinha o corpo dorido da falta de ginástica diária, que lhe custava levantar em virtude de tanto pífaro tocar e, por ultimo, enrolou-se no travesseiro e puxou da garrafa da gota e mandou abaixo uma boa golada de líquido. Por fim, deixou-se ali deitada a sonhar com o tocador da harpa nos palcos de todo o mundo.

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