Friday, January 26, 2018





                                                    Um Barman De Artes

A carreira extraordinária de Ratazana, nascido e criado na restauração e que em 4 décadas foi o maior barman do Porto.

   Após 41 anos de restauração, Ratazana, como era conhecido, resolveu aposentar-se. Nascido e criado na restauração, elevara-se até à chefia de um bar de artes, como ele anunciava. Pensou que devia dar a vaga aos mais novos. Mas era só da restauração, e não da vida, que Ratazana se aposentava.
   «Eu vinha há anos aconselhando os meus filhos que interviessem no negócio», diz Ratazana, «mas eles esquivavam-se, dizendo-me que eram muitas as horas a atender freguesia. Compreendi que o problema das horas era a falta de aptidão enraizada, de que eles não têm tino para o negócio. Senti que competia a mim continuar ao leme do barco.»
   Assim, aos 30 anos, Ratazana fez-se empresário. Isto foi em 1976. Hoje, aos 69 anos, é um homem apurado e cheio de genica, de feições bem definidas, cabelos castanhos-esbranquiçados e olhos vigilantes. Foi o um dos maiores barmans do Porto, e acredita que os melhores anos da sua vida estão nas recordações.
   Todos os dias úteis, de 9 e meia às 8 e meia, Ratazana está em part-time, sempre ativo, servindo de mordomo-motorista, à administração de condónimos, e às casas de espetáculo que veem nele um ótimo violista e cantador de canções populares, de que é autor.
   Para que se compreenda todo o alcance das realizações desse homem, é preciso acompanhá-lo desde o dia em que, há mais de 46 anos, chegara a um night-club do norte do Porto, trocando a música por copeiro. Loureiro, dono do night-club, foi ter com ele ao balcão, e perguntou-lhe curioso; «Estás mesmo a gostar?» Confirmada a pergunta, passou dias e dias a fio para se superar na missão. Depois de muitos meses e de uma freima de 15 horas diárias ao trabalho, encontrou em Loureiro o mestre com uma escola super avançada, onde se aprendia a técnica e o posicionamento perante o cliente.
   Passados alguns anos, Ratazana foi dono de um bar, na parte alta do Porto, cargo esse que ocupou durante 30 anos, tendo sido o primeiro dono de um bar de sistema europeu. Bateu-se incansavelmente pelas suas ideias a um sistema que não se envergonhasse a saidas que perfilhasem o amor-instantâneo, mas abarcasse regras, arte e respeito.
   Foi nesse tempo que resolveu fundar um grupo unissexo, chamado Grupo de Traidores. Nos seus anos de restauração, Ratazana guardara uma agenda compacta de contatos de clientes da vanguarda boémia. Contatou com várias centenas de pessoas de toda a parte do país, convidando-os a virem ao evento do ano. Somente com a fama do seu nome, atendeu numa semana 1.000 e tantas pessoas. Entrou então em muitos dos bares da cidade, para sincronizar ideias, e por fim decidiu-se por criar um pasquim do bar, que já contava com cerca de 2.000 personagens todas elas alcunhadas. Já eram muitos os aderentes ao grupo, e além de mais ele estava sempre a cativar os estreantes que chegavam ao bar. Tais intenções no entanto, segundo ele próprio afirma, estimularam-no ainda mais ao projeto.
   Desde o princípio, Ratazana utilizou-se do bar para melhorar o convívio entre os clientes e as camareiras. Por exemplo: as camareiras do bar não tinham acanhamento em cantar o fado. Ratazana então compunha-lhes as letras e acompanhava-as ao violão. Organizou então entre os membros do grupo o evento´O Natal do Traidor`, um sorteio de rapidinhas que conseguiu dezenas de participações de homens e mulheres vindos de todos os lados. Por fim o evento tinha obtido tudo o que fora planeado: enchente, animação, divertimento. «Aquele bar foi o melhor presente que já se deu a esta cidade», disse-me um industrial.
   Ratazana incentiva o entretenimento entre a gente do bar, quer sejam novos, quer velhos. «Nunca pude ver», observa ele, «a menor diferença entre os novos e velhos. Num grupo como este, há gente controlada e gente despistada, em proporções iguais.» Para animar o entretenimento do grupo, Ratazana atrai gente do antigamente. Certa vez, durante um concurso´Às sextas-feiras`, um comerciante do antigamente viera pedir-lhe satisfações porque não recebera ainda um prémio. «Apanhei um susto», conta o dono do bar. «Tinha anunciado o prémio ao número 39. E ía na contagem 32... 33... quando fui interrompido por ele. Avancei várias mesas para quando ele tivesse algo para me dizer, anunciar: 39... e entreguei o prémio a ele. «Tive a impressão de que ele ia armar barraca», disse Ratazana», «e a barraca no meio de um entretenimento é o fim da macacada.»
   Outra vez, um empreiteiro que queria entrar no leilão de um galo de crista levantada foi dando bocas a Ratazana, depois de ter licitado algumas vezes sem êxito. «Achei que ele era um homem de teimas», disse Ratazana, «e as teimas é a melhor das garantias. Dei mais ânimo à voz para continuar. Nos quinze minutos seguintes, ele tinha ganho o galo por 4o contos. Fui bem sucedido, e recebi em cash.»
   Dezenas de outros projetos se seguiram, tais como concurso de pernas, mini-saia, às sextas-feiras e miss do bar, multiplicaram-se e sobreviveram às crises, graças ao movimento do bar de Ratazana. Um dos boss de um grande night-club de Lisboa, após elogiar Ratazana pelas suas ratices seletas, disse-me um dia, com certa convicção: «Com o jeito que ele tem para o negócio, ele é mesmo bom. Basta dizer que há umas semanas, ele veio do Porto para me sacar meia dúzia de caras bonitas que eu cá tinha na minha casa.» Fiz chegar a Ratazana essa observação. «Pois bem», disse ele, «talvez eu não seja o pinta assim, mas o curioso é que nessas lides eu nunca fiquei atrás.»
   Há algum tempo, Ratazana convocou 15 patrões da noite, mais empregados e algumas mulheres, que há anos trabalhavam no seu métier para um jantar-concerto num restaurante fora da cidade. E perguntou-lhes se tinham algo a dizer sobre a noite. «Tenho algo a dizer, sim», disse um deles. «Porque é que não está mais gente aqui hoje? Da próxima vez, convide algumas camareiras também. Nós todos estamos nos mesmo negócio com a noite.» Eis aí um dos resultados dos enormes esforços de Ratazana para unir toda a classe do mundo da noite. 
   Na crise do sexo de 2006, o seu bar foi um dos primeiros a sentir a sua quebra no negócio das rapidinhas. «Alguns dos grandes bares cujos donos me aconselharam a não abandonar o barco, porque os tempos íam mudar», disse Ratazana num tom irónico, «nunca mais ninguém os viu.» Hoje o Porto têm 7 bares de estilo-europeu, e três de estilo boite.
   Ratazana tem na sala da sua residência, uma vitrina com dvd´s, álbuns, quadros, uma fotografia do primeiro evento do Grupo de Traidores, num jogo de futebol de cinco, no campo do Nuno Álvares, organizado por ele. Há também uma do concurso de pesca que ele organizou em 1981 e que foi à praia do Cabedelo, com um grupo de clientes-traidores, em uma pesca de boa vontade. Em seguida, vê-se uma fotografia da última comemoração de Ratazana, isto é, do dia em que Ratazana acabou a sua ligação ao bar, partindo para a aposentação. Um dia de despedida do fecho de um ciclo.   

                                (Reproduzido do «Jornal dos Traidores») por Abraão, Porto.

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