Wednesday, December 30, 2015





A pensão do avio ficava bem perto da Praça dos Poveiros. No Largo do Padrão, os únicos que andavam por ali perto eram os homens da rapidinha, à procura de um consolo. Nos dias esfriados, ao cair da noite, as gordas e magras mulheres do avio costumavam manear-se pelos passeios da rua e pensar que, numa boa hora, estariam a apanhar um freguês, para o levar para o cardenho. Chegavam, até, a fazer de sentinela um pouco antes de aparecer a aurora. Havia um café a cerca de quarenta metros mais à beira na rua onde, por vezes, com as malas aos ombros, as mulheres, encostadas às montras mostravam os seus atributos. Mas, habitualmente, engatavam-nos ao passar com um piscar de olhos acenando a cabeça, pois já era habitual. A pensão do avio era conhecida como a velha pensão de Coelho Neto. Na verdade, Coelho Neto era apenas o nome da rua. A pensão era num prédio antigo pintada de cor deslavada com três andares, e tinha janelas, com vistas para a rua. O dono pedinchara aos proxenetas para porem as suas prostitutas a servirem de taxímetro nas ruas e levar os homens para os quartos. Os proxenetas gostavam muito da dormida de Coelho Neto. Diziam que uma dormida naquela pensão sabia tão bem como uma boa golada de vodka para os aquecer nas longas frias noites de sentinela à espera delas. A pensão de Coelho Neto amontoava as prostitutas à volta dos passeios, até pareciam uma verdadeira escolta. É claro que a vizinhança já não se importava com aquele cenário porque já estavam habituados. Mas não era suposto alguém se incomodar com aquilo durante estes anos todos. De resto, quando havia quaisquer escaramuças, os proxenetas eram os primeiros a refugiarem-se num qualquer local da cidade. Depois de a procissão passar, o dono voltava a oferecer-lhes uma dormida e trazerem as mulheres para o negócio, e tudo voltava à mesma forma.

Naquela noite de Dezembro, a rua parecia escura e solitária e as poucas prostitutas que se aventuravam no vaivém, como era habitual, sempre que passava alguém pelas proximidades, diziam vamos subir aos homens que as olhavam, uns por acaso e outros para um caso. Jó, a prostituta da rua, acabava de iniciar a sua faina e puxava os colarinhos do blusão para cima quando viu umas pernas longas atravessar a rua ao fundo. Era um homem alto. Parecia tão alto como um gigante e tinha despertado nela uma curiosidade súbita. Avançou na sua direção e, agarrou um velho exemplar da Nova Gente, preparado para o atrair. Jó gostava deles assim. Altos, fortes e grandalhões. Se tivesse sorte podia ganhar com ele o equivalente a dez cabritos. Já não era a época dos camones, mas aquele devia ter estado a emburricar por ali perto ou algo semelhante. O camone foi direto a ela, batendo as mãos para se aquecer e exclamou num português tacanho “tu fode?”. Ela disse que sim e enfiaram-se os dois dentro de um cardenho aquecido por um aquecedor a gás. Ainda estava algum calor lá dentro... O alemão atirou uma nota para cima da cama que agradou a ela e preparou-se para o trabalho. Sorrateiramente, Jó olhou de soslaio por entre a enroscada camisa e, reparou que as suas duas longas pernas já tinham saído para fora da cama. A seguir veio o serviço. Mas o camone nem lhe deu tempo para respirar e, atirou-se para cima dela. Uns minutos depois, caiu para o lado com um suspiro profundo e, por fim, ouviu-se apenas uma exclamação ofegante Oh, My God. Não mais do que um espernear de corpo; a satisfação era visível. Vestindo-se trauteando, já que a noite estava ganha, Jó voltou a pisar os passeios para fazer-se à vida. Foi nesse momento que um tiro entoou. Correu para uma portada de um prédio, colocando os braços sobre a cabeça, de maneira a proteger-se e procurou ver o que se passava lá à frente. Aguardou e contou os segundos, sustendo a respiração. Dezoito, dezanove, vinte. As estrelas brilhantes sobre a cidade ofuscaram-na. Escurecera; ouviu um ah ténue à distância e a primeira luz surgiu dum prédio. Um feixe de luz branco e brilhante, pouco luminoso quanto baste. Lá no fundo, por entre a luz de um carro, um grupo de homens deixava um rasto que se assemelhava a sangue humano. Rapidamente, Jó, sacou do telemóvel e ligou para o 112. E, então surgiu outro feixe de luz e depois outro. Três, quatro, cinco, todos voltados em direção ao corpo, estendido no chão, que procurava levantar-se a custo. Depois, surgiram pessoas vindas de outros lados. Jó correu até ao fundo. O corpo ainda mexia. E foi nesse momento, com a ajuda de algumas luzes que o reconheceu, com a sua velha revista numa mão. Vermelho como um pimento, agarrado ao braço ensanguentado. O camone agarrou a mão de Jó e esboçou um esgar sofredor. «Polissia! Polissia! Roubaram meus marcos...!» De repente, ouviu-se a sirene, muito veloz, à entrada na rua. Tinoni, tinoni! A ambulância estava a chegar. E, mal o enfermeiro o ajudou a pô-lo na ambulância, Jó apercebeu-se que não era tão grave. O seu estômago contraiu-se como um soco. Não estava com medo; apenas lamentava. Subitamente, toda aquela cena escura se transformou num lívido e brilhante branco. O barulho da ambulância a arrancar ecoou pela rua. O frio notava-se nos rostos gelados das pessoas. Todos permaneciam em silêncio, excetuando o frenético ladrar de um cão; numa varanda. De seguida, ficou tudo tão tranquilo na Rua de Coelho Neto! Apenas na rua alguns transeuntes citadinos que podiam muito bem ser confundidos com os mecos... E passo a passo, com o olhar concentrado, Jó voltou às lides.

Naquela altura, teve início uma segunda procura de consolos. Alguns homens chamavam as prostitutas, através dos carros, originando uma onda de palavrões incorrigíveis. Podia ter feito alguns deles, mas não se atreveu a aventurar-se. Certa vez, assistira ao que um gangue tinha feito a um dos clientes da pensão, o velho picheleiro Tomás. Foi Jó, precisamente, quem o encontrou. O vidro do carro partido e Tomás jazia como uma almofada sangrenta. Roupas rasgadas, golpeado no pescoço, num estado lastimoso e ofegante... Rastejava, penosamente, de um lado para outro. A princípio, Jó, pensou que ele estivesse morto. Mas o pobre Tomás ainda dava sinais de vida, esticando as pernas na direção da porta e, após esticar um bom bocado, respirou devagar, mas muito profundamente. Subitamente, decidiu que preferia ser cortada pelo gangue do que ficar testemunha daquela embrulhada. Colocou a saca sobre os ombros, numa tentativa de não perder o que ia lá dentro, e correu em direção ao posto policial mais próximo. Enquanto percorria, uma respiração muito forte alastrou-se. Recordou que percorreu como o corredor de pista até alcançar a meta. Achou que nunca na vida correra tanto. Mas os seus esforços revelaram-se preciosos. A polícia levou-a de volta até ao local e encaminhou o pobre Tomás numa ambulância para o hospital. Começou a olhar para o relógio. Em breve, o trabalho da putaria acabaria. Em breve, estava a deixar a rua e a entrar no seu quarto... Um táxi buzinou. Era sempre fácil identifica-los, porque os táxis traziam um candeeiro aceso sobre o tejadilho. Uma voz vacilante, exclamou: «Me-ni-na! Me-ni-na!», fazendo o gesto com a mão. Como uma cobra, esgueirou-se rente aos prédios. Uma corrida de cem metros livres. «Me-ni-na!», levantou de novo a mão em direção ao braço. Queria dar a atender onde tinha sido ferido. Apontou para baixo para o braço atado ao peito. «Mim...tá...vivo!» Parecia muito radiante consigo próprio. Tomou outro fôlego e exclamou: «Mim... ter sorte». Jó fitava-o sorridente, pacientemente. «Portuguese, não ser bom atirador!» A seguir exclamou em voz alta e calorenta. «Tu... me-ni-na grande... ami... amiga ser».  Jó nem queria acreditar, nesse momento, viu uma lágrima a descer pelo seu rosto. Estendeu os braços e deu-lhe um abraço. «Friend, Friend», a sua mão enorme, em busca, à volta do corpo dela, até que a segurou. «Friend, Friend.»Assim permanecerem enquanto o taxista aguardava e zumbia o taxímetro à volta deles, e as luzes se apagavam intermitentes e poucos carros se ouviam na rua. E foi assim que as colegas foram dar com eles, quando se despediram. Olharam, estupefactos, para os dois, à luz do candeeiro da pensão de Coelho Neto.

Naqueles tempos, criar amizade com um camone era um caso raro. Seria considerado leviandade. Chamava-se Jack Smith. O camone escrevera a Jó depois de chegar a Inglaterra para lhe agradecer. Enviou-lhe uma fotografia da mulher e do filho. Jó ficou contente. Pela família. Mas nunca lhe respondeu. Sentia-se demasiado confusa. 
Ainda se sente.



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