Tuesday, July 29, 2014



CONTOS DE RATAZANA (10)
UMA NOTA DE 2O EUROS
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A minha aposentação antecipada aconteceu aos 61 anos com uma média de 300 e picos euros mensais. A minha família era composta de quatro pessoas. Não conseguia arranjar um trabalho. Quem poderia ajudar-me?
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Pus pés ao caminho e andei porta a porta a deixar cartões a oferecer trabalho, que cobrisse o meu orçamento mensal: vinte euros por dias eram o suficiente. Uma empresa de V.N. de Gaia, convidou-me para prestar provas. Lá fui ter com uma doutora de vestido comprido e um penteado moderno. Ainda não me sentara e já ela abria a boca. «Qual é o ordenado que o senhor pretende ganhar?», disse ela. «Precisamos de alguém que tenha conhecimentos de software e armazém.» Aos 61 anos, eu parecia mais novo e não passava dos 65 quilos de peso. «Trabalhei no ano passado a segurança de um condomínio fechado», exclamei eu. «Doze horas seguidas, controlar relógios e fazer turnos não são coisas que me metam medo.» ─ «Qual é o ordenado que o senhor pretende ganhar?», insistiu ela. ─ «A doutora é que sabe. Se for o ordenado mínimo, tudo bem», respondi. ─ «Fico aqui com o seu contato e dentro de dois dias, dou-lhe uma resposta.» Assim foi. Dois dias depois, a doutora telefonou-me, dizendo que a minha candidatura ficara sem efeito. O que suponho haver candidatos que se ofereceram por menos ordenado. Isto passou-se em Setembro de 2010. A minha família acabara de se mentalizar quanto á minha nova forma de vida. Há algum tempo no desemprego, tive alguma sorte em conseguir uns part-times: administrar condomínios, às vezes motorista particular e também músico de adegas dois a três dias por semana. As minhas magras poupanças, guardadas numa lata, iam-se evaporando com a rapidez de um raio, e sendo o principal esteio da família, com os dois filhos a estudar, eu era o único que podia ajudar. Respondi a anúncios e pedi trabalho em casas comerciais, mas sem uma cunha os comerciantes não queriam apostar num sexagenário. Então, uma terça-feira, o telefone soou. Tinha sido escolhido para concorrer a um anúncio para cobrador de uma associação funerária. Aqui a idade não era impedimento, valha-nos isso! A seguir ao pequeno-almoço, meti-me no autocarro e fui para o centro da cidade. Com um jornal nas mãos, atravessei a rua e passei para o passeio do outro lado. Entrei na porta da associação, apresentei-me e fiquei há espera que mandassem subir para um salão na parte superior do prédio, os seis candidatos a duas vagas para o lugar de cobrador-comissionista. Lá dentro, sentado numa cadeira artesanal, estava um homem alto e com pouco cabelo. Mal a porta se fechou, dizia ele numa voz carregada de suspense: “Sejam bem-vindos à associação funerária.” Os meus companheiros estavam pregados às cadeiras. O rosto do parceiro ao lado parecia uma rocha. O presidente queria a nossa atenção. Garantiu-nos a quem ficasse c´o a vaga dos dois cobradores-comissionistas, que teria um ordenado chorudo: 850 euros por mês ou mais. Mas teríamos que apresentar uma caução no valor de vinte e cinco mil euros. Eu já estava desempregado há bastante tempo para entender como um trabalho era fundamental, ainda para mais, para um chefe de família. Galguei os degraus até à porta, meti a primeira e dei uma volta pelas ruas a puxar pela cabeça. Quem é que me poderia valer com uma caução de vinte cinco mil euros? Quem é que podia confiar em mim como meu avalista? A primeira pessoa que me veio à ideia, era um amigo ligado à imobiliária. Mas a sua resposta foi nula. A mulher teria de assinar e isso era um problema bicudo. Voltei à rua, subi o elevador, e toquei à campainha à espera que me abrissem a porta. «Olá, meu caro! O que o trás por cá?», sorriu o advogado, M´Cardoso, estendendo a mão para me cumprimentar. Engasgando, contei-lhe o problema: a associação, as comissões, a exigência que eles me fizeram sobre a caução. «De maneira que… será que o doutor pode ser o meu avalista dos vinte e cinco mil euros?», finalizei, entendo como aquilo soava despropositado. M´Cardoso olhou para mim como se quisesse ler o meu pensamento. Todavia, foi muito rápido na sua resposta. E sorriu para mim. «Descanse que não é por mim que perde este trabalho», disse, tirando uma folha da escrivaninha. Depois, pediu-me alguns dados pessoais, enquanto ia escrevendo, deixando a parte final para a sua assinatura e releu o documento em voz alta. Dobrou duas vezes o documento, colocou-o num envelope e disse: «Aqui está a caução de vinte e cinco mil euros. Quando sair daqui, vá ao notário reconhecer a assinatura, e está feito.» ─ «Muito agradecido, doutor», disse eu, estendendo-lhe a mão. «Quer que eu assine algum papel?» Ele abanou a cabeça. «Não, meu caro. Confio em si.» Entrei em casa eufórico como se me tivesse saído o euro milhões, e a minha mulher percebeu logo da minha felicidade. «Não demores!», gritou a minha mulher. «Leva a caução e vai já à associação.» Meti-me no autocarro, segui para o centro da cidade até à chegar à associação funerária. Subi os degraus como se fosse o homem-voador, e calmamente, entreguei o envelope à funcionária e disse: «Guarde bem a caução no cofre, dê-me o livro das cotas e as listas das moradas dos sócios.» Tinha preparado bem o discurso no autocarro. Na associação funerária, ao fim-de-semana, entrava-me na pasta uma montanha de notas e moedas, para pagamento de cotas. Eram quase três mil sócios para cobrar. Eu subia e descia quatro andares nos blocos dos bairros, num ritmo infernal… Ao fim do trabalho, mal podia com os calos de andar dez horas a pé sem descanso. No primeiro dia do mês, à medida que se aproximava a hora de entregar as contas, estava cada vez mais ansioso. Não fazia bem ideia de quanto iria receber de comissões. Quase ao abrir a porta da receção, a funcionária levou-me para dentro e perguntou: «Quanto é que trás aí?» ─ «Cinco mil, quinhentos e vinte e cinco euros.» ─ «Você trabalhou bem», disse ela. «Começou com 27,e 62 ao dia.» ─ «Três euros e quarenta e cinco por hora», murmurei. «Quase o dobro do ordenado mínimo.» Estava disposto a trabalhar por menos. Ao longo dos meses que se seguiram, aprendi muito na associação funerária. Quando não havia grande movimento, procurava angariar novos sócios. Nos cemitérios tentei falar com familiares que tinham jazigos e ofereci-me para limpeza e arranjo de flores, o que me valeu uma corridela do cemitério por parte dos coveiros, que vinham em mim, um intruso nos seus negócios. Passava algum tempo a assistir a alguns funerais. Então, um dia, um deles chamou-me a curiosidade. Era um funeral pomposo e cheio de etiqueta. Por si só, fazia um aparato tremendo para as minhas vistas em entusiasmo. Três homens saíram de uma carrinha fúnebre e cobriam o chão com uma passadeira vermelha até à entrada da igreja. Depois, ornamentaram com cordões à volta da passadeira e, por fim, puseram castiçais ao fundo. Ao olhar bem para o serviço, deixei escapar um sorriso sarcástico e perguntei a um deles. «Então, e o morto?» Ele olhou bem para mim como se me quisesse ralhar. «Não se atrapalhe, pois ele não vai faltar!» Voltei costas e segui o meu rumo. Entretanto, ia aumentando todos os meses as minhas comissões, até que no Verão estava a ganhar 30 euros ao dia, o melhor do que quando iniciara. Trabalhei para a associação até acabar o ano, um ano mais tarde, e ir tirar um curso para motorista de táxi. Devolvi a caução ao M´Cardoso, e mantivemo-nos sempre em contato durante décadas, nunca o perdi de vista e sei que lhe devo esta gratidão. Foi ele o verdadeiro salvador, que não só me salvou do infortúnio, como também me ajudou a construir um ambiente familiar melhor. 


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