CONTOS DE
RATAZANA (10)
A minha
aposentação antecipada aconteceu aos 61 anos com uma média de 300 e picos euros
mensais. A minha família era composta de quatro pessoas. Não conseguia arranjar
um trabalho. Quem poderia ajudar-me?
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Pus pés ao
caminho e andei porta a porta a deixar cartões a oferecer trabalho, que
cobrisse o meu orçamento mensal: vinte euros por dias eram o suficiente. Uma
empresa de V.N. de Gaia, convidou-me para prestar provas. Lá fui ter com uma
doutora de vestido comprido e um penteado moderno. Ainda não me sentara e já
ela abria a boca. «Qual é o ordenado que o senhor pretende ganhar?», disse ela.
«Precisamos de alguém que tenha conhecimentos de software e armazém.» Aos 61
anos, eu parecia mais novo e não passava dos 65 quilos de peso. «Trabalhei no
ano passado a segurança de um condomínio fechado», exclamei eu. «Doze horas
seguidas, controlar relógios e fazer turnos não são coisas que me metam medo.»
─ «Qual é o ordenado que o senhor pretende ganhar?», insistiu ela. ─ «A doutora
é que sabe. Se for o ordenado mínimo, tudo bem», respondi. ─ «Fico aqui com o
seu contato e dentro de dois dias, dou-lhe uma resposta.» Assim foi. Dois dias
depois, a doutora telefonou-me, dizendo que a minha candidatura ficara sem
efeito. O que suponho haver candidatos que se ofereceram por menos ordenado.
Isto passou-se em Setembro de 2010. A minha família acabara de se mentalizar
quanto á minha nova forma de vida. Há algum tempo no desemprego, tive alguma
sorte em conseguir uns part-times: administrar
condomínios, às vezes motorista particular e também músico de adegas dois a
três dias por semana. As minhas magras poupanças, guardadas numa lata, iam-se
evaporando com a rapidez de um raio, e sendo o principal esteio da família, com
os dois filhos a estudar, eu era o único que podia ajudar. Respondi a anúncios
e pedi trabalho em casas comerciais, mas sem uma cunha os comerciantes não
queriam apostar num sexagenário. Então, uma terça-feira, o telefone soou. Tinha
sido escolhido para concorrer a um anúncio para cobrador de uma associação
funerária. Aqui a idade não era impedimento, valha-nos isso! A seguir ao
pequeno-almoço, meti-me no autocarro e fui para o centro da cidade. Com um
jornal nas mãos, atravessei a rua e passei para o passeio do outro lado. Entrei
na porta da associação, apresentei-me e fiquei há espera que mandassem subir
para um salão na parte superior do prédio, os seis candidatos a duas vagas para
o lugar de cobrador-comissionista. Lá dentro, sentado numa cadeira artesanal,
estava um homem alto e com pouco cabelo. Mal a porta se fechou, dizia ele numa
voz carregada de suspense: “Sejam bem-vindos à associação funerária.” Os meus
companheiros estavam pregados às cadeiras. O rosto do parceiro ao lado parecia
uma rocha. O presidente queria a nossa atenção. Garantiu-nos a quem ficasse c´o
a vaga dos dois cobradores-comissionistas, que teria um ordenado chorudo: 850
euros por mês ou mais. Mas teríamos que apresentar uma caução no valor de vinte
e cinco mil euros. Eu já estava desempregado há bastante tempo para entender
como um trabalho era fundamental, ainda para mais, para um chefe de família.
Galguei os degraus até à porta, meti a primeira e dei uma volta pelas ruas a
puxar pela cabeça. Quem é que me poderia valer com uma caução de vinte cinco
mil euros? Quem é que podia confiar em mim como meu avalista? A primeira pessoa
que me veio à ideia, era um amigo ligado à imobiliária. Mas a sua resposta foi
nula. A mulher teria de assinar e isso era um problema bicudo. Voltei à rua,
subi o elevador, e toquei à campainha à espera que me abrissem a porta. «Olá,
meu caro! O que o trás por cá?», sorriu o advogado, M´Cardoso, estendendo a mão
para me cumprimentar. Engasgando, contei-lhe o problema: a associação, as
comissões, a exigência que eles me fizeram sobre a caução. «De maneira que…
será que o doutor pode ser o meu avalista dos vinte e cinco mil euros?»,
finalizei, entendo como aquilo soava despropositado. M´Cardoso olhou para mim
como se quisesse ler o meu pensamento. Todavia, foi muito rápido na sua
resposta. E sorriu para mim. «Descanse que não é por mim que perde este
trabalho», disse, tirando uma folha da escrivaninha. Depois, pediu-me alguns
dados pessoais, enquanto ia escrevendo, deixando a parte final para a sua
assinatura e releu o documento em voz alta. Dobrou duas vezes o documento,
colocou-o num envelope e disse: «Aqui está a caução de vinte e cinco mil euros.
Quando sair daqui, vá ao notário reconhecer a assinatura, e está feito.» ─
«Muito agradecido, doutor», disse eu, estendendo-lhe a mão. «Quer que eu assine
algum papel?» Ele abanou a cabeça. «Não, meu caro. Confio em si.» Entrei em
casa eufórico como se me tivesse saído o euro milhões, e a minha mulher
percebeu logo da minha felicidade. «Não demores!», gritou a minha mulher. «Leva
a caução e vai já à associação.» Meti-me no autocarro, segui para o centro da
cidade até à chegar à associação funerária. Subi os degraus como se fosse o
homem-voador, e calmamente, entreguei o envelope à funcionária e disse: «Guarde
bem a caução no cofre, dê-me o livro das cotas e as listas das moradas dos
sócios.» Tinha preparado bem o discurso no autocarro. Na associação funerária,
ao fim-de-semana, entrava-me na pasta uma montanha de notas e moedas, para pagamento
de cotas. Eram quase três mil sócios para cobrar. Eu subia e descia quatro
andares nos blocos dos bairros, num ritmo infernal… Ao fim do trabalho, mal
podia com os calos de andar dez horas a pé sem descanso. No primeiro dia do
mês, à medida que se aproximava a hora de entregar as contas, estava cada vez
mais ansioso. Não fazia bem ideia de quanto iria receber de comissões. Quase ao
abrir a porta da receção, a funcionária levou-me para dentro e perguntou:
«Quanto é que trás aí?» ─ «Cinco mil, quinhentos e vinte e cinco euros.» ─
«Você trabalhou bem», disse ela. «Começou com 27,e 62 ao dia.» ─ «Três euros e
quarenta e cinco por hora», murmurei. «Quase o dobro do ordenado mínimo.»
Estava disposto a trabalhar por menos. Ao longo dos meses que se seguiram, aprendi
muito na associação funerária. Quando não havia grande movimento, procurava
angariar novos sócios. Nos cemitérios tentei falar com familiares que tinham
jazigos e ofereci-me para limpeza e arranjo de flores, o que me valeu uma corridela do cemitério por parte dos
coveiros, que vinham em mim, um intruso nos seus negócios. Passava algum tempo
a assistir a alguns funerais. Então, um dia, um deles chamou-me a curiosidade.
Era um funeral pomposo e cheio de etiqueta. Por si só, fazia um aparato
tremendo para as minhas vistas em entusiasmo. Três homens saíram de uma
carrinha fúnebre e cobriam o chão com uma passadeira vermelha até à entrada da
igreja. Depois, ornamentaram com cordões à volta da passadeira e, por fim,
puseram castiçais ao fundo. Ao olhar bem para o serviço, deixei escapar um
sorriso sarcástico e perguntei a um deles. «Então, e o morto?» Ele olhou bem
para mim como se me quisesse ralhar. «Não se atrapalhe, pois ele não vai
faltar!» Voltei costas e segui o meu rumo. Entretanto, ia aumentando todos os
meses as minhas comissões, até que no Verão estava a ganhar 30 euros ao dia, o
melhor do que quando iniciara. Trabalhei para a associação até acabar o ano, um
ano mais tarde, e ir tirar um curso para motorista de táxi. Devolvi a caução ao
M´Cardoso, e mantivemo-nos sempre em contato durante décadas, nunca o perdi de
vista e sei que lhe devo esta gratidão. Foi ele o verdadeiro salvador, que não
só me salvou do infortúnio, como também me ajudou a construir um ambiente
familiar melhor.
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